"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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A montanha mágica - Thomas Mann - Livro em portugués

A Montanha Mágica Thomas Mann Propósito Queremos narrar a vida de Hans Castorp – não por ele, a quem o leitor em breve conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático, mas por amor a esta narrativa, que nos parece em alto grau digna de ser relatada. A favor de Hans Castorp convém, entretanto, mencionar que esta é a sua história, e que há histórias que não acontecem a qualquer um. Os fatos aqui referidos passaram-se há muitos anos já. Estão, por assim dizer, recobertos pela pátina do tempo, e em absoluto não podem ser narrados senão na forma de um remoto passado. Isso talvez não seja um inconveniente para uma obra deste gênero, mas antes uma vantagem; é necessário que as histórias já se tenham passado. Poderíamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, melhor corresponderão à sua qualidade essencial e mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito. Acontece, porém, com a história o que hoje em dia também acontece com os homens, e entre eles, não em último lugar, com os narradores de histórias: ela é muito mais velha que seus anos; sua vetustez não pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa, por revoluções em torno do Sol. Numa palavra, não é propriamente ao tempo que a história deve o seu grau de antiguidade – e com esta observação feita de passagem queremos aludir ao caráter problemático e à peculiar duplicidade desse elemento misterioso. Mas, para não se obscurecer artificialmente um estudo de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avançada de nossa história provém do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripécia e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa consciência... Desenrola-se – ou para evitarmos propositadamente qualquer forma de presente – desenrolou-se numa época transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar. Passa-se, pois, antes desse período, se bem que não muito antes. No entanto, não será o caráter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário, quanto mais próxima do presente ela se passar? Além disso, poderia ser que também sob outros aspectos a nossa história, pela sua natureza íntima, tenha isto e aquilo em comum com a lenda. Narrá-la-emos pormenorizadamente, com exatidão e minúcia, já que a sua natureza cativante ou enfadonha jamais depende do espaço ou do tempo que ela exige. Sem medo de sermos acusados de meticulosidade, inclinamo-nos, pelo contrário, a opinar que realmente interessante só é aquilo que tem bases sólidas. Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhor será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto esta tarefa o mantiver enredado. Decerto não chegará – Deus me livre – a sete anos. Dito isto, comecemos. CAPÍTULO I A Chegada Um jovem singelo viajava, em pleno verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos- Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita, por três semanas. Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa, demasiado longa, na verdade, para uma estada tão curta. É preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até a beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por sobre abismos outrora considerados insondáveis. A partir dali torna-se demorada a viagem que até esse ponto se realizava rapidamente, em linha quase reta. Há delongas e complicações. Na localidade de Rorschach, já em território suíço, voltamos a confiar-nos à viação férrea; mas, por enquanto não se progride além de Landquart, pequena estação alpina, onde se precisa fazer baldeação. É um trem de bitola estreita o que ali tomamos depois de prolongada espera numa paisagem varrida pelo vento e desprovida de encantos. No momento em que se põe em movimento a locomotiva de pequeno porte, mas evidentemente de extraordinária força de tração, começa a parte deveras aventurosa da viagem, uma escalada brusca e penosa que parece não ter fim. A estação de Landquart acha-se situada a uma altura relativamente moderada. A partir dela, porém, entra-se na própria montanha, por uma estrada rochosa, áspera, angustiante. Hans Castorp – eis o nome do referido jovem – estava sozinho num pequeno compartimento forrado de cinza, onde também se encontravam sua maleta de couro de crocodilo (presente de seu tio e pai de criação, o cônsul Tienappel, cujo nome convém mencionar desde já), bem como o casaco de inverno, a balouçar suspenso num gancho, e o cobertor de viagem enrolado. Estava sentado junto à janela aberta, e como a tarde se vinha tornando cada vez mais fresca, levantara rapaz mimado e franzino que era a gola do sobretudo de verão, forrado de seda e de corte amplo e moderno. A seu lado, no assento, jazia uma brochura intitulada Ocean Steamships, na qual Hans Castorp, durante as primeiras horas de viagem, de vez em quando lançara um olhar; agora, porém, o livro permanecia ali abandonado, enquanto o hálito da locomotiva arquejante, ao entrar pela janela, salpicava-lhe a capa de partículas de carvão. Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava, enquanto um fiacre o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido. Hans Castorp ia passando por experiências análogas. Não tivera a intenção de levar essa viagem muito a sério e de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquidá-la depressa, porque tinha que ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar a sua vida anterior exatamente no ponto em que a abandonara por um instante. Ainda ontem se movimentara dentro do costumeiro círculo de idéias; ocupara-se com os acontecimentos mais recentes – o seu exame final – e com o futuro imediato – sua entrada na vida prática, como funcionário da firma Tunder & Wilms (Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras). Com o máximo de impaciência que seu temperamento lhe permitia, procurara olhar para além das semanas vindouras. Nesse momento, porém, parecia-lhe que as circunstâncias exigiam dele plena atenção, não lhe sendo licito menosprezá-las. Essa sensação de ser alçado a regiões cujos ares nunca respirara, e onde, como sabia, reinavam condições de vida particularmente rarefeitas e reduzidas, a que em absoluto não estava acostumado – essa sensação começava a excitá-lo, a enchê-lo de certa angústia. O torrão natal e a rotina de sempre haviam ficado não somente para trás, muito para trás, mas sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascensão continuava a afastá-los mais ainda. Pairando entre eles e o desconhecido, Hans Castorp perguntava-se como passaria lá em cima. Talvez fosse imprudente e prejudicial para ele, que nascera a poucos metros acima do mar e se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar tão subitamente a esses sítios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude média. Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez lá em cima – pensava –, devia-se viver como em toda parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante a escalada, as esferas impróprias em que se encontrava. Hans Castorp olhou pela janela. O trem serpenteava, sinuoso, através de um desfiladeiro estreito. Viam-se os primeiros vagões, via-se a locomotiva vomitando, no seu esforço, golfadas de fumaça parda, esverdeada e negra que logo se dissipavam. Nas profundidades, à direita, murmuravam cursos d'água; à esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um céu cinzento como pedra. Túneis tenebrosos iam desfilando, e quando reaparecia a luz, rasgavam-se dilatados abismos com povoados no seu fundo. Logo se fechavam os abismos, seguidos por novos desfiladeiros com restos de neve nas gretas e fendas. Havia paradas diante das casinhas miseráveis de estações pequenas; surgiam desvios onde o trem dava marcha à ré, o que produzia um efeito desnorteante, já que era difícil saber em que direção se ia e recordar os pontos cardeais. Abriam-se grandiosos panoramas do universo de cumes alpinos, um amontoado solene e fantasmagórico, que o trem procurava alcançar e galgar; e logo no próximo meandro da estrada voltavam a subtrair-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trás a zona das árvores frondosas e, se não se enganava, também a dos pássaros canoros. Esta idéia de cessação e empobrecimento fez com que ele, acometido de um ligeiro acesso de vertigem e malestar, cobrisse por dois segundos os olhos com a mão. Mas isso passou. Viu então que terminara a ascensão; estava vencido o ponto culminante do passo. O trem corria confortavelmente no fundo plano de um vale. Eram aproximadamente oito horas. Ainda havia luz. Na paisagem longínqua apareceu um lago de águas cinzentas. Das suas margens subiam pinheirais negros pelas encostas das montanhas adjacentes, tornando-os mais ralos a maior altura, acabando-se aos poucos e dando lugar à rocha calva, envolta em brumas. O trem parou numa estaçãozinha; era Davos-Dorf, segundo Hans Castorp ouviu gritar. Dentro em pouco chegaria ao seu destino. De repente, porém, ressoou a seu lado a voz de Joachim Ziemssen, a voz displicente, hamburguesa, de seu primo, que dizia: – Boa tarde! Pode descer, vamos. – Olhando pela janela, viu na plataforma Joachim em pessoa, trajando um sobretudo marrom, sem chapéu, e de um aspecto tão sadio como nunca lhe vira. Joachim riu-se e tornou: – Vamos, pode sair, não faça cerimônia. – Mas se ainda nem cheguei! – exclamou Hans Castorp estupefato e permanecendo sentado. – Não, senhor, já chegou. Estamos na aldeia. Daqui, o sanatório fica muito mais perto. Tomei um carro. Passe-me a bagagem. Rindo, um tanto confuso pelo imprevisto da chegada e do encontro com o primo, Hans Castorp entregou-lhe a maleta e o casaco de inverno, o cobertor enrolado em volta da bengala e do guarda-chuva, e finalmente o Ocean Steamships. A seguir percorreu o estreito corredor do vagão e saltou para a plataforma, a fim de trocar com o primo saudações propriamente ditas, de caráter mais íntimo, que, entretanto, se efetuaram sem exuberância, como convém a pessoas de maneiras frias e reservadas. Parece estranho, mas desde cedo ambos haviam evitado chamar-se pelos prenomes, exclusivamente porque temiam uma cordialidade excessiva. Como, porém, não ficava bem tratarem-se pelo nome de família, limitavam-se ao você, e esse hábito se arraigara em ambos os primos. Um homem de libré e boné agaloado observou como eles se apertavam as mãos – o jovem Ziemssen em atitude militar – depressa e com algum acanhamento. Aproximou-se então para pedir o certificado da bagagem de Hans Castorp. Era o porteiro do Sanatório Internacional Berghof. Prontificou-se a buscar na estação de Davos-Platz a mala do hóspede, enquanto os dois senhores com o carro se dirigissem diretamente ao sanatório, para jantar. O homem coxeava fortemente, de modo que a primeira pergunta que Hans Castorp fez a Joachim Ziemssen foi esta: – É um veterano de guerra? Por que coxeia assim? – É o que você pensa – retrucou Joachim com certa amargura. – Um veterano de guerra! O homem tem, ou pelo menos teve, o mal no joelho. Foi por isso que lhe extraíram a rótula. Hans Castorp procurou refletir o mais rápido possível. – Ah, sim – disse. Enquanto prosseguia no caminho, ergueu a cabeça e lançou um rápido olhar para trás. – Mas – acrescentou – você não me fará acreditar que ainda sofre daquela coisa. Até parece que já usa galões e acaba de voltar das manobras. – E olhou o primo de soslaio. Joaquim era mais alto e mais espadaúdo do que ele, um modelo de força juvenil e como que talhado para a farda. Representava aquele tipo bem trigueiro que sua loura pátria não raro produz. Sua tez, já por natureza bastante morena, estava tostada pelo sol e adquirira uma cor quase brônzea. Com os grandes olhos negros e o bigodinho escuro sobre os lábios cheios, bem conformados, seria positivamente belo, não fossem as orelhas muito despegadas. Essas orelhas haviam sido seu único desgosto, a grande dor da sua vida até certo momento. Agora tinha outras preocupações. Hans Castorp continuou: – Você vai regressar comigo, não é? Não vejo nada que o possa impedir. – Regressar com você? – perguntou o primo, fitando-o com os olhos grandes que sempre haviam sido suaves, mas durante esses cinco meses tinham assumido uma expressão um tanto cansada, quase melancólica. – Com você? Quando? – Ora, daqui a três semanas. – Compreendo, você já pensa em regressar – respondeu Joachim. – Espere um pouco; mal acaba de chegar. Três semanas representam quase nada para nós aqui em cima, mas para você que vem de visita e tenciona demorar-se só três semanas, é uma porção de tempo. Trate de se aclimatar primeiro. Não tardará a notar que não é assim tão fácil. E o clima não é a única coisa estranha que existe aqui. Você encontrará muita coisa nova, sabe? Comigo, isso não vai tão depressa como você imagina. “Regressar daqui a três semanas” é uma idéia lá de baixo. Tenho a pele tostada, sim senhor, mas isto vem principalmente do sol refletido pela neve e não significa grande coisa, como Behrens sempre afirma. No último exame geral, ele disse ter quase certeza que eu teria de ficar ainda uns seis meses. -seis meses? Está louco? – gritou Hans Castorp. Diante da estação que não era muito mais que uma espécie de telheiro, instalaram-se no cabriolé amarelo que os esperava numa praça pedregosa. Enquanto os dois baios se punham em movimento, Hans Castorp remexia-se, cheio de indignação, no assento mal estofado. -seis meses? Mas já faz quase seis meses que você está aqui. Não se tem tanto tempo assim... – Pois é, o tempo... – disse Joachim, olhando para a frente e meneando a cabeça repetidas vezes, sem se preocupar com o sincero agastamento do primo. – Aqui não fazem muita cerimônia com o tempo da gente. Você não tem idéia. Três semanas são para eles como um dia, vai ver. Tudo isso se aprende e... – acrescentou – ...aqui se modificam todas as nossas concepções. Hans Castorp não cessava de contemplar-lhe o perfil. – Mas você se restabeleceu maravilhosamente – disse, dando de ombros. – Acha? – respondeu Joachim. – Não é mesmo? Também o creio continuou, encostandose no espaldar, para logo voltar à posição anterior. – Vou melhor sim – explicou –, mas ainda não estou bem. À esquerda, em cima, onde antes se ouviam estalidos, nota-se agora apenas uma respiração um pouco rude, que não inspira cuidados. Mas aqui, mais para baixo, percebe-se um ronco muito forte, e no segundo espaço intercostal há também ruídos. – Que grande cientista se tornou você! – disse Hans Castorp. – Pois é. Sabe Deus que é uma triste ciência. Quem me dera te-la esquecido no serviço militar – replicou Joachim. – Mas, por enquanto ainda expectoro esputo – acrescentou, dando de ombros, com um gesto ao mesmo tempo resignado e veemente que não lhe ficava bem. A seguir mostrou ao primo um objeto que tirou pela metade do bolso interior do sobretudo, para logo guardá-lo novamente; era um frasco chato, bojudo, de vidro azul, com um fecho de metal. – A maioria de nós, aqui em cima, usa isto. Batizaram-no até com um nome especial, um apelido bem engraçado. Está olhando a paisagem? Era o que Hans Castorp fazia. Deu sua opinião: – Magnífica. – Acha? – perguntou Joachim. Haviam seguido na direção do eixo do vale, por um trecho de caminho espaçadamente ladeado de habitações e paralelo ao leito da via férrea. Depois, dobrando à esquerda, tinham cruzado os trilhos de bitola estreita e atravessado um curso d'água. Nesse instante subiam a trote um atalho pouco íngreme, rumo a uma encosta coberta de bosques. Ali, numa meseta um tanto proeminente, de pouca altura, destacava-se um edifício comprido, encimado por uma torre em cúpula, com a fachada dirigida para sudeste. Numerosas varandas davam-lhe de longe um aspecto esburacado, poroso como uma esponja. As primeiras luzes acabavam de ser acesas, enquanto o crepúsculo avançava rapidamente. Já se esvaíra um suave arrebol, que durante algum tempo animara o céu toldado. Reinava na natureza aquele estado de transição, descolorido, melancólico, desprovido de vida, que precede imediatamente o anoitecer definitivo. O vale povoado, extenso e levemente sinuoso, iluminava-se em toda parte, tanto no fundo como nas bordas, sobretudo na direita que formava uma saliência, com os terraços da encosta salpicados de construções. A esquerda, algumas veredas subiam através dos prados, para se perderem na baça negrura dos pinheirais. Os bastidores mais distantes das montanhas, próximos da saída do vale, que ali se estreitava, exibiam-se num frio azul de ardósia. Com o vento que acabava de levantar-se, o frescor da noite começava a se fazer sentir. – Não! Para falar com franqueza, não acho a paisagem assim tão formidável – disse Hans Castorp. – Onde estão as geleiras, os picos brancos e as cordilheiras gigantescas? Não me parece que essas montanhas aí sejam muito altas. – Pelo contrário, são bem altas – retrucou Joachim. – Você nota quase em toda parte o limite das árvores. Ele se delineia com absoluta nitidez. Terminam os pinheiros, e com isso acabase toda a vegetação. Como você vê, é pura rocha. Por ali, à direita desse pico que é o Schwarzhorn, aparece até uma geleira. Você enxerga uma coisa azul? Não é lá muito grande, mas é uma geleira em regra, a Scaletta. O Pico Michel e o Tinzenhorn, naquela abertura (não se pode vê-los daqui), também ficam cobertos de neve durante o ano inteiro. – De neve eterna – disse Hans Castorp. – Pois é, neve eterna, se assim o quer. Não se pode negar que tudo isso é bastante alto. E não se esqueça que nós mesmos nos achamos a uma altura espantosa. Mil e seiscentos metros acima do nível do mar. Assim, as elevações não nos impressionam tanto. – Sim senhor, que ascensão! Fiquei com uma angústia, que lhe conto! Mil e seiscentos metros! São mais ou menos cinco mil pés, se não me engano. Nunca na vida estive a tal altura. – E cheio de curiosidade, Hans Castorp aspirou profundamente aquele ar estranho, como que para prová-lo. Era fresco, e nada mais. Carecia de aroma, de sabor, de umidade. Tragava-se facilmente e nada dizia à alma. – Ótimo! – exclamou Hans Castorp cortesmente. – Sim, esse ar tem grande fama. De resto, a paisagem não se apresenta, esta noite, sob o seu aspecto mais favorável. Às vezes está muito mais bonita, sobretudo com neve. Mas a gente acaba por se cansar dela. Nós todos, aqui em cima, pode acreditar, estamos fartos dela, indizivelmente fartos – disse Joachim, e sua boca torceu-se numa expressão de nojo, que parecia exagerada e violenta, e novamente não lhe ficava bem. – Você tem um jeito tão esquisito de falar! – disse Hans Castorp. – Esquisito? – perguntou Joachim com certa apreensão, voltando-se para o primo. – Não, não! Desculpe! Tive essa impressão só por um momento – apressou-se Hans Castorp a dizer. Ele se referira à expressão “Nós, aqui em cima”, que Joachim já empregara umas quatro ou cinco vezes, e que de certa forma lhe causava impressão deprimente e chocante. – Como vê, o nosso sanatório está situado ainda mais alto que a aldeia – continuou Joachim. – Cinqüenta metros. O prospecto diz “cem”, mas são apenas cinqüenta. O sanatório que fica mais alto é o Schatzalp, lá do outro lado. Não se vê daqui. No inverno, eles têm de transportar os cadáveres em trenós, porque os caminhos se tornam impraticáveis... – Os cadáveres? Ah sim!... Vejam só! – exclamou Hans Castorp, e de repente rebentou em riso, um riso violento, irreprimível, que lhe sacudia o peito e fez com que o rosto enrijecido pelo vento frio se contraísse num trejeito dolorido. – Em trenós? E você me conta essas coisas assim, sem mais nem menos? Parece que se tornou muito cínico nesses cinco meses. – Qual cínico! – replicou Joachim, dando de ombros. – Que é que você quer? Os cadáveres pouco se importam com isso... De resto, pode ser que a gente chegue mesmo a ficar cínico, neste nosso meio. O próprio Behrens também é um velho cínico; um sujeito de classe, seja dito de passagem; na universidade pertencia a uma corporação das mais finas; e dizem que é ótimo cirurgião. Acho que ele vai agradar a você. Além dele há o Krokowski, seu assistente, um tipo muito capaz. No prospecto fala-se especialmente da sua atividade. E que ele pratica a dissecação psíquica dos pacientes. – O quê? A dissecação psíquica? Que coisa nojenta! – gritou Hans Castorp, e com isso, a hilaridade tomou conta dele. Já não conseguia dominá-la. Depois de tudo quanto ouvira, a dissecação psíquica lhe encheu as medidas. Riu-se tanto, que as lágrimas lhe brotavam por entre a mão, com a qual, inclinando-se para a frente, cobria os olhos. Também Joachim riu de todo coração, o que parecia fazer-lhe bem. Assim, o humor dos dois jovens era excelente, ao descerem do carro, que terminara por conduzi-los lentamente através de uma rampa íngreme e serpeante até o portal do Sanatório Internacional Berghof. Número 34 Logo à direita, entre o portão e o guarda-vento, achava-se a guarita do porteiro. Um criado de tipo francês, vestido com libré cinzenta igual à do homem coxo da estação, estava ali sentado em frente do telefone, lendo jornais. Saiu ao encontro dos recém-chegados e os conduziu através do vestíbulo bem iluminado, a cuja direita ficavam os salões. Ao passar, Hans Castorp lançou um olhar para dentro e notou que estavam vazios. Perguntou ao primo onde se encontravam os hóspedes. – Estão fazendo repouso – respondeu o primo. – Eu bem estou de licença, porque queria receber você. Normalmente também me deito na sacada, depois do jantar. Pouco faltou para que Hans Castorp voltasse a estourar de riso. – Como? Em plena escuridão, vocês ainda se deitam na sacada? – indagou com voz vacilante. – Sim senhor. Isso faz parte do regulamento. Das oito às dez. Mas venha agora ver seu quarto e lavar as mãos. Entraram no elevador, cujo mecanismo elétrico foi posto em ação pelo criado francês. Enquanto subiam, Hans Castorp enxugou os olhos. – Estou todo moído e exausto de tanto rir – disse, respirando pela boca. – Você me contou mil coisas estranhas... Aquela história da dissecação psíquica é o cúmulo; por esta não esperava. Estou aliás um pouco cansado pela viagem. Você sofre também de pés frios? Ao mesmo tempo sinto que me arde o rosto. E bem desagradável. A gente jantará logo, não é? Tenho a impressão de que estou com fome. Come-se bem aqui em cima, entre vocês? A passo silencioso, andavam pela passadeira de fibra de coqueiro, que cobria o estreito corredor. Globos de vidro fosco difundiam uma luz pálida. As paredes resplandeciam, brancas e duras, revestidas de uma tinta a óleo com aparência de verniz. Surgiu uma enfermeira de touca branca, trazendo no nariz um pince-nez, cujo cordão lhe passava por trás da orelha. Era evidentemente uma irmã protestante, sem verdadeira dedicação ao oficio, curiosa e irritada de tanto tédio que pesava sobre ela. Em dois pontos do corredor, em frente das alvas portas numeradas, viam-se no chão uns recipientes grandes, bojudos, de gargalo curto, sobre cuja finalidade Hans Castorp se esqueceu de pedir explicações. – Aqui está o seu quarto – disse Joachim. – Número 34. À direita fica o meu, e à esquerda mora um casal russo; gente um pouco relaxada e barulhenta, não posso negá-lo, mas não houve jeito de evitar isso. Bem! Que tal lhe parece? Havia portas duplas, com cabides no espaço entre elas. Joachim acendera a lâmpada do teto, e à sua luz trêmula o quarto se apresentava alegre e quieto, com os móveis brancos e práticos, os papéis de parede igualmente brancos, resistentes e laváveis, o linóleo limpo, cobrindo o soalho, e as cortinas de linho, bordadas de maneira simples e graciosa, conforme o gosto moderno. A porta da sacada estava aberta. Enxergavam-se as luzes do vale e ouvia-se ao longe uma música de baile. O atencioso Joachim colocara algumas flores num pequeno vaso sobre a cômoda – o que a época oferecia, aquilégias e umas poucas campânulas, que ele mesmo colhera na encosta. – Muito amável da sua parte – disse Hans Castorp. – Que quarto simpático! Num lugar destes dá prazer passar algumas semanas. – Anteontem morreu aqui uma americana – disse Joachim. – Behrens achou logo que a coisa se acabaria antes da sua chegada, e que então você poderia ficar com o quarto. O noivo estava ao lado dela. Embora fosse oficial da marinha inglesa, não demonstrou muito valor. A cada instante saía ao corredor, para chorar que nem um menino. E depois esfregava as faces com cold cream, porque estava escanhoado e as lágrimas lhe ardiam na pele. Na noite de anteontem, a americana teve duas hemoptises de primeira, e com isso acabou-se a festa. Mas ela já se foi ontem de manhã. Claro que depois desinfetaram tudo a fundo, com formalina; não sabe? Dizem que é excelente nesses casos. Hans Castorp ouviu essa história numa distração nervosa. Estava de mangas arregaçadas, à frente da ampla pia, cujas torneiras niqueladas cintilavam à luz elétrica. Mal lançou um olhar fugidio para a cama de metal branco, coberta de roupa limpa. – Desinfetaram então? Está ótimo – disse ele, com certa loquacidade e sem muito propósito, enquanto lavava e enxugava as mãos. – Pois é, aldeído metílico; não há micróbio que resista a isso. H2CO, sim senhor! Mas tem um cheiro picante, não é? Naturalmente, a mais rigorosa limpeza é indispensável... – Sua pronúncia era mais acentuadamente hamburguesa do que a do primo, que desde os seus tempos de estudante perdera os vestígios do dialeto da sua terra. Hans Castorp continuou conversando com grande desembaraço: – Que queria eu dizer?... O oficial de marinha provavelmente se barbeava com aparelho de gilete, achou eu; esses troços esfolam a pele mais facilmente do que uma navalha bem afiada. Eu, pelo menos, fiz essa experiência, e por isso uso alternadamente uma e outra coisa... Ora, é lógico que a água salgada dói na pele irritada. E no serviço militar, quem sabe se o homem não se acostumou ao uso do cold cream; nisso não vejo nada de surpreendente... – E prosseguindo, acrescentou que tinha na maleta duzentos Maria Mancini, seu charuto preferido. A inspeção alfandegária fora muito condescendente. A seguir transmitiu as saudações de diversas pessoas de sua cidade natal. -será que não aquecem os quartos? – exclamou de repente, e correu aos radiadores, a fim de apalpá-los. – Não, eles costumam manter-nos a uma temperatura fresca – respondeu Joachim. – É preciso um frio muito mais intenso, para que acendam a calefação central já em agosto. – Agosto, qual agosto! – disse Hans Castorp. – Mas se estou com frio, um frio horroroso, ao menos no corpo, pois o resto me arde! Olhe, experimente, estou com o rosto em brasa. Essa idéia de que alguém lhe tocasse o rosto absolutamente não condizia com a mentalidade de Hans Castorp, e a ele mesmo causou impressão penosa. Ademais, Joachim não correspondeu ao convite, limitando-se a dizer: – É do ar. Não quer dizer nada. O próprio Behrens anda o dia inteiro com as faces azuladas. Há pessoas que nunca se habituam. Então, go on, senão nós não encontraremos mais nada para comer. Quando saíram, a enfermeira voltou a aparecer, para examiná-los com olhares míopes e curiosos. No primeiro andar, Hans Castorp deteve-se de repente, imobilizado por um ruído simplesmente atroz, que se ouvia a pouca distância, por trás de uma volta do corredor; um ruído não muito forte, mas de som tão lúgubre, que o jovem fez uma careta e mirou o primo com os olhos arregalados. Era evidentemente uma tosse, a tosse de um homem, mas uma tosse em nada parecida com nenhuma outra que Hans Castorp jamais ouvira; sim, uma tosse em comparação com a qual todas as demais pareciam sinais de magnífica e sadia vitalidade; uma tosse inteiramente despida de prazer e alivio, que não se efetuava num acesso regular, mas que soava como se alguém chafurdasse débil e horripilantemente no lamaçal da podridão orgânica. – Pois é – disse Joachim. – Este é um caso sério. Um aristocrata austríaco, homem elegante, como que feito para andar a cavalo. E agora vai desse jeito. Mas por enquanto ainda passeia. Continuavam no caminho. Hans Castorp falou pormenorizadamente da tosse do cavaleiro. – Você deve considerar – disse ele que nunca ouvi coisa semelhante; – tudo aqui é completamente novo para mim. É natural que me impressione com isso. Há muitas espécies de tosse, tosses secas e tosses soltas. Diz-se geralmente que as soltas são mais benignas do que aquelas que fazem a gente ladrar. Em minha juventude – ele disse mesmo “em minha juventude” – quando tive o crupe, ladrava como um lobo, e todo o mundo sentiu-se aliviado quando a tosse se tornou mais solta. Lembro-me ainda muito bem. Mas uma tosse como esta nunca se viu, pelo menos eu não tinha idéia de que existia uma coisa dessas. Já não é uma tosse viva. Não é seca, mas também não se pode chamar de solta. Não encontro, nem de longe, a palavra adequada. É como se se descortinasse o interior do homem, e tudo fosse lodo e pântano... – Ora veja – disse Joachim –, ouço essas coisas todos os dias. Para mim, pode dispensar a descrição. Mas Hans Castorp não conseguiu dominar-se. Afirmou repetidas vezes que para ele era como se tivesse lançado um olhar no interior do aristocrata. Quando entraram no restaurante, seus olhos fatigados da viagem mostravam um brilho exaltado. No restaurante A sala do restaurante era clara, elegante e confortável. Estava situada logo à direita do vestíbulo, à frente dos salões, e conforme explicou Joachim, era freqüentada principalmente pelos hóspedes recém-chegados ou por quem tinha visitas. Mas também aniversários e partidas iminentes eram festejados ali, assim como os resultados favoráveis de exames gerais. Em certas ocasiões, o ambiente era de franca alegria no restaurante, dizia Joachim, e até se servia champanhe. Mas nesse momento apenas se achava ali uma senhora de aproximadamente trinta anos, que lia um livro e ao mesmo tempo cantarolava baixinho, tamborilando na toalha com o dedo médio da mão esquerda. Quando os dois jovens se sentaram, mudou de lugar, a fim de darlhes as costas. Era misantropa – explicou Joachim, abafando a voz –, comia sempre no restaurante lendo um livro. Afirmava-se que desde muito jovem passava a vida em sanatórios para doenças pulmonares e nunca mais convivera com o mundo de fora. – Ora, comparado com ela, você é apenas um principiante, com seus cinco meses, e ainda o será quando tiver cumprido um ano – disse Hans Castorp ao primo. Joachim tomou o cardápio, dando de ombros com um gesto que antes não lhe era peculiar. Haviam escolhido a mesa mais próxima da janela, e que ficava elevada sobre um estrado. Era o lugar mais agradável da sala. Achavam-se sentados junto à cortina creme, frente a frente, com os rostos abrasados pela luz da pequena lâmpada de mesa, de quebra-luz vermelho. Hans Castorp juntou as mãos recém-lavadas e esfregou-as uma na outra com uma sensação de conforto e expectativa, como era seu hábito ao sentar-se à mesa, talvez porque seus antepassados costumassem rezar antes de tomar a sopa. Servia-os uma criada amável, de fala gutural, que trajava vestido preto com avental branco e tinha um amplo rosto de cores sumamente sadias. Com grande hilaridade, Hans Castorp aprendeu que as criadas na Suíça se chamavam Saaltöchter, filhas de sala. Pediram uma garrafa de Gruaud Larose, que Hans Castorp devolveu porque estava fria demais. A comida era excelente. O cardápio constava de sopa de aspargos, tomates recheados, um assado com diversos legumes e saladas, uma sobremesa particularmente bem preparada, queijos variados e frutas. Hans Castorp comeu muito, se bem que o seu apetite se evidenciasse menos intenso do que lhe parecera. Mas uma espécie de consideração por si próprio fazia-o comer fartamente, mesmo não sentindo fome. Joachim não fez muita honra aos quitutes. – Estou cansado dessa cozinha – disse – e isto se dá com todos aqui em cima; é costume resmungar contra a comida, pois quem se acha amarrado neste lugar por toda uma eternidade... – Em compensação, bebeu o vinho com prazer e mesmo com certa paixão. Evitando cuidadosamente qualquer frase por demais sentimental, manifestou várias vezes a sua satisfação por ter com quem trocar palavras sensatas. – Sim, senhor, você veio mesmo a calhar – disse ele, e sua voz pausada revelava emoção. – Posso lhe afirmar que para mim a sua chegada é um grande acontecimento. É pelo menos uma variação... Quero dizer que ela representa um marco, uma subdivisão, nesta eterna e infinita monotonia... – Mas o tempo deve passar depressa para vocês aqui – opinou Hans Castorp. – Depressa ou devagar, como quiser – respondeu Joachim. – Propriamente não passa de modo algum; sabe? Aqui não há tempo nem vida; não senhor, não há nada disso – acrescentou meneando a cabeça. E novamente levantou a taça. Também Hans Castorp voltou a beber, embora o rosto lhe ardesse como fogo. Mas o seu corpo continuava frio, e nos seus membros havia um desassossego todo especial, ao mesmo tempo eufórico e um tanto penoso. Suas palavras precipitavam-se; freqüentemente se confundia, mas com um gesto displicente da mão passava por cima de tais incidentes. O próprio Joachim tornara-se mais animado também, e a conversa prosseguia ainda mais desembaraçada e alegre, quando a senhora da mesa vizinha, cessando subitamente de cantarolar e tamborilar, levantou-se e saiu. Comiam gesticulando com os garfos; davam-se ares de importância, com as bochechas túmidas de comida; riam-se, sacudiam a cabeça, encolhiam os ombros, e ainda com a boca cheia voltavam a palestrar. Joachim queria saber o que se passava em Hamburgo, e levou a conversa para o projeto da canalização do Elba. – Fenomenal! – disse Hans Castorp. – É formidável para o desenvolvimento da nossa navegação. É de uma importância incalculável. No nosso orçamento, destinamos a essa obra cinqüenta milhões para as despesas mais imediatas, e você pode ter certeza de que sabemos o que estamos fazendo. Apesar da importância que atribuía à canalização do Elba, abandonou, porém, imediatamente o assunto, para pedir que Joachim lhe contasse mais pormenores da vida “aqui em cima” e dos hóspedes. Este lhe fez a vontade com grande prazer, já que se sentia feliz por ter uma oportunidade de desafogar-se e abrir-se. Teve de repetir a história dos cadáveres que eram transportados pela pista de trenó, e de assegurar mais uma vez que se tratava da mais estrita verdade. Como Hans Castorp mais uma vez desatasse a rir, o primo riu-se também, parecendo gozar de todo o coração. Depois relatou outras coisas divertidas, a fim de manter vivo o bom humor reinante. Falou de uma senhora que se sentava à mesma mesa que ele, uma tal Srª. Stöhr, mulher bastante doente, aliás, casada com um músico de Cannstatt, e que era a criatura mais inculta que já encontrara. Dizia ela “desinfecar”, com toda a seriedade. E ao assistente Krokowski intitulava de “fómulo”. Era preciso ouvir tudo isso, sem pestanejar. Ademais, era mexeriqueira, como de resto a maioria dos hóspedes ali em cima, e costumava contar que uma companheira, a Srª. Iltis, trazia consigo um “esterilete”. – Imagine, chama aquilo de “esterilete”! Não é impagável? – E semideitados, recostandose no espaldar das cadeiras, riram-se tanto, que o corpo lhes estremecia e ambos terminaram por ser acometidos de soluço. No meio dessas conversas, Joachim se entristeceu ao pensar no seu infortúnio. – Pois e, aqui estamos e nos divertimos – disse com uma expressão dolorosa, ainda interrompido, de vez em vez, pelas trepidações de seu diafragma – e no entanto não posso prever, nem de longe, quando poderei sair daqui. Pois, quando o Behrens me diz: “Mais meio ano”, sei que preciso preparar-me para um prazo maior. É bem duro isso. Você deve compreender como é triste para mim. Já me haviam aceitado no exército, e no mês que vem poderia fazer exames para oficial. Agora vivo aqui vadiando, com o termômetro na boca, conto os erros dessa ignorantona da Srª. Stöhr e perco meu tempo. Um ano tem tanta importância na nossa idade, traz tantas alterações e tantos progressos na vida lá de baixo! E eu obrigado a estagnar aqui como uma poça d'água, sim senhor, como um charco apodrecido. Não há exagero nenhum nessa comparação... Ao invés de responder, Hans Castorp limitou-se a perguntar se havia um jeito de se obter porter nesse sanatório. O primo olhou-o com certa surpresa e verificou que estava a ponto de adormecer ou até já cochilava. – Mas você está com sono! – disse Joachim. – Vamos, está na hora da gente ir para a cama. – Não! Não está na hora – disse Hans Castorp com a língua trôpega. Mesmo assim seguiu Joachim, caminhando um pouco curvado, com as pernas duras, como um homem literalmente prostrado de cansaço. Fez, porém, um violento esforço para se dominar quando, no vestíbulo fracamente iluminado, ouviu o primo dizer: – Aí está Krokowski. Acho que temos de parar um instante, para que eu possa apresentar você. Diante da lareira de uma das salas de recepção, ao lado da escancarada porta corrediça, o Dr. Krokowski estava sentado junto à fonte de luz e lia um jornal. Pôs-se de pé, quando os dois jovens se aproximaram dele, e Joachim, em atitude militar, disse: – Permita-me, doutor, que lhe apresente meu primo Castorp, de Hamburgo, que acaba de chegar. O Dr. Krokowski cumprimentou o novo pensionista com uma certa cordialidade jovial, robusta e confortante, como se quisesse dar a entender que no contato com ele todo acanhamento era supérfluo e somente deveria reinar a mais risonha confiança. Tinha aproximadamente trinta e cinco anos; era espadaúdo, obeso e muito mais baixo do que os dois, de maneira que, para encará-los, via-se obrigado a deitar a cabeça para trás. Além disso era extremamente pálido, de uma palidez translúcida e mesmo fosforescente, que ainda mais se intensificava pelo sombrio fulgor dos olhos, pela negrura das sobrancelhas e da barba comprida, que terminava em duas pontas e já mostrava alguns fios brancos. Trajava uma fatiota preta, um tanto surrada, bem como sapatos pretos, perfurados como sandálias, grossas meias de lã cinzenta e um amplo colarinho mole, de um tipo que Hans Castorp só conhecia num fotógrafo de Dantzig, e que de fato dava ao Dr. Krokowski um ar de artista. Com um sorriso afetuoso, que fez com que os dentes amarelos apontassem por entre a barba, apertou a mão do jovem e disse numa arrastada voz de barítono, com algum sotaque estrangeiro: -seja bem-vindo, Sr. Castorp! Espero que o senhor se aclimate rapidamente e se sinta bem no nosso meio. Permita-me a pergunta: veio como paciente? Era comovente ver como Hans Castorp se esforçava por mostrar-se cortês e dominar a sonolência. Sentia-se irritado pelo fato de estar tão pouco apresentável, e com a desconfiada soberba peculiar aos jovens, via no sorriso e na atitude confortante do médico apenas sinais de ironia indulgente. Respondeu que passaria três semanas ali, mencionou o seu exame e acrescentou que, graças a Deus, gozava a mais perfeita saúde. -será? – perguntou o Dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava. – Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde. Posso perguntar qual é o exame que prestou? – Sou engenheiro, doutor – comunicou Hans Castorp com dignidade e modéstia. – Ah, engenheiro! – E o sorriso do Dr. Krokowski por assim dizer se retraiu, diminuindo momentaneamente em força e cordialidade. – Uma profissão excelente! De maneira que o senhor não pretende receber aqui nenhuma assistência médica, nem de ordem física nem psíquica? – Não, muito obrigado – disse Hans Castorp, a ponto de dar um passo para trás. Eis que o sorriso do Dr. Krokowski reapareceu vitoriosamente, e enquanto tornava a apertar a mão do jovem, exclamou com ênfase: – Pois então, durma bem, Sr. Castorp, na plena convicção de sua saúde inatacável! Durma bem e até amanhã! – Com essas palavras despediu-se dos jovens e voltou ao seu jornal. Não havendo mais ascensorista, àquela hora, subiram a pé pela escada, silenciosos e um tanto perturbados pelo encontro com o Dr. Krokowski. Joachim acompanhou Hans Castorp até o número 34, onde o criado coxo já depositara a bagagem do recém-chegado. Continuaram a conversar durante um quarto de hora, enquanto Hans Castorp tirava da mala o pijama e os objetos de toucador, fumando um charuto grosso, mas leve. Essa noite ainda não tivera oportunidade para fumar um charuto, o que lhe parecia estranho e extraordinário. – Ele dá a impressão de ter muita personalidade – disse, expelindo a fumaça. – Mas é pálido como cera. E o calçado que usa! Que coisa horrorosa! Imaginem, meias de lã cinzenta e ainda aquelas sandálias! Você acha que no fim ele se ofendeu? – Ele é um pouco suscetível – admitiu Joachim. – Você não deveria ter rejeitado tão bruscamente a assistência médica, pelo menos o tratamento psíquico. Ele não gosta que alguém se esquive a isso. Comigo também antipatiza, porque não me abro bastante. Mas, de vez em quando, conto-lhe um sonho, para que tenha alguma coisa que analisar. – Pois então escandalizei-o? Que vou fazer? – disse Hans Castorp, agastado; estava pouco satisfeito consigo próprio, por ter melindrado alguém. Ao mesmo tempo o cansaço acometia-o com força redobrada. – Boa noite – disse. – Estou caindo de sono. – Às oito virei buscar você para o café da manh㠖 prometeu Joachim ao sair. Hans Castorp aprontou-se apenas ligeiramente para a noite. Foi dominado pelo sono, apenas apagada a lâmpada de cabeceira. Mas sobressaltou-se mais uma vez, ao recordar-se de que na antevéspera alguém morrera nessa mesma cama. -sem dúvida não foi a primeira vez – disse de si para si, como se isso pudesse tranqüilizálo. – Afinal de contas, é um leito de morte, um simples leito de morte. – E adormeceu. Logo, porém, começou a sonhar. Sonhou quase sem interrupção até a manhã do dia seguinte. Em primeiro lugar, apareceu-lhe Joachim Ziemssen, numa posição estranhamente desengonçada, a descer num trenó por uma pista inclinada. Era de um palor tão fosforescente quanto o do Dr. Krokowski, e à sua frente achava-se sentado o aristocrata austríaco, cuja imagem era um tanto vaga, como a de alguém que apenas ouvimos tossir. “Pouco se nos dá, aqui em cima”, disse o desengonçado Joachim, e logo era ele, e não o aristocrata, quem tossia daquela maneira horripilante e lamacenta. Ao ouvi-lo, Hans Castorp verteu lágrimas amargas e verificou que era preciso correr à farmácia para comprar cold cream. Mas à beira do caminho estava sentada a Srª. Iltis, de focinho pontiagudo, segurando na mão alguma coisa, que devia representar o seu “esterilete”, mas na realidade era apenas um aparelho de gilete. Essa visão, por sua vez, fez com que Hans Castorp desatasse a rir, e dessa forma passou pelas mais diferentes emoções, até que o despertou a manhã, despontando através da porta semi-aberta da sacada. CAPÍTULO II Da pia batismal e dos dois aspectos do avô Hans Castorp conservava apenas pálidas recordações da casa paterna. Mal chegara a conhecer o pai e a mãe. Morreram ambos no curto intervalo entre o seu quinto e sétimo ano de vida. Primeiro faleceu a mãe, de forma absolutamente inesperada, em vésperas de um parto, por causa de uma obstrução de vasos sanguíneos, conseqüência de uma neurite; segundo o diagnóstico do Dr. Heidekind, foi uma embolia que paralisou instantaneamente o coração: a mãe acabava de rir-se, sentada na cama, e parecia cair para trás de tanto riso, mas na realidade isso se deu porque morrera. O pai, Hans Hermann Castorp, era incapaz de compreender essas coisas; visto ter tido grande apego à esposa e não ser ele próprio de compleição muito robusta, não pôde conformar-se com o golpe. Seu espírito, desde aquele dia, tornou-se confuso e apoucado. Presa de uma espécie de torpor, cometeu uma série de erros nos negócios, de maneira que a firma Castorp & Filho sofreu prejuízos sensíveis. Na segunda primavera depois da morte da mulher, contraiu uma pneumonia durante uma inspeção dos depósitos do porto varrido pela ventania, e como o coração fatigado não resistiu à febre alta, faleceu ao cabo de cinco dias, não obstante todos os cuidados do Dr. Heidekind. Acompanhado de numeroso cortejo de concidadãos, foi unir-se à esposa no jazigo dos Castorps, muito bem situado no cemitério de Santa Catarina, com vista para o jardim Botânico. O avô paterno, o senador, sobreviveu apenas pouco tempo ao pai; morreu também de uma pneumonia, porém depois de muita luta e longo sofrimento, pois, ao contrário de seu filho, era Hans Lorenz Castorp uma personalidade que dificilmente se deixava abater, e se arraigava com grande tenacidade na vida. Durante o breve período entre aqueles outros dois falecimentos – não ultrapassou um ano e meio – morava o órfão Hans Castorp na casa do avô, mansão ao gosto do Classicismo nórdico, edificada em princípios do século passado, sobre um terreno estreito, à Rua da Esplanada. Era pintada numa cor que lembrava um céu nublado. No meio do andar térreo, cinco degraus acima do chão, achava-se o portão de entrada, flanqueado por meias colunas. Existiam ainda dois pavimentos superiores, além do primeiro cujas janelas desciam até o chão e estavam defendidas por grades de ferro fundido. Ali havia apenas as salas de recepção, inclusive a de jantar, clara, decorada com estuque e cujas três janelas guarnecidas de cortinas escarlates davam para o pequeno quintal. Era nesse aposento que, durante os referidos dezoito meses, o avô e o neto almoçavam todos os dias às quatro horas, servidos pelo velho Fiete, que trazia brincos nas orelhas, botões de prata na casaca e uma gravata de cambraia igual àquela do patrão, do qual também imitava o hábito de esconder na laçada o queixo escanhoado. O avô tratava-o por “tu” e falava com ele em dialeto baixoalemão, não para pilheriar, pois que não tinham nenhum senso de humor, mas com toda a seriedade, e porque sempre o fazia no contato com gente do povo – estivadores, carteiros, carroceiros e criados. Hans Castorp escutava-o com gosto, e com o mesmo prazer escutava as respostas que dava Fiete, igualmente em baixo-alemão, quando servia o dono da casa e se curvava para falar-lhe junto à orelha direita, com a qual o senador ouvia muito melhor do que com a outra. O ancião compreendia, fazia que sim e continuava comendo, muito ereto entre a mesa e o alto espaldar da poltrona de acaju, e quase que sem se inclinar para o prato. O neto, sentado à sua frente, contemplava em silêncio, com atenção inconsciente e profunda, os gestos precisos e bem cuidados, mediante os quais as belas mãos alvas, magras e idosas do avô, com as unhas convexas, aparadas em ponta, e com o anel sinete de pedra verde no indicador direito, arranjavam na ponta do garfo um bocado de carne, legumes e batatas, e os conduziam à boca, enquanto a cabeça, levemente, ia a seu encontro. Hans Castorp olhava então suas próprias mãos, ainda desajeitadas, e sentia que nelas se preparava a capacidade de manejar mais tarde a faca e o garfo com a mesma perfeição do avô. Mais problemática era, porém, a questão de saber se um dia chegaria a acomodar o queixo numa gravata como aquela que enchia a ampla abertura do colarinho singular do avô, cujas pontas afiadas roçavam as bochechas. Ora, para isso, era preciso ter a idade dele, pois, já naqueles dias, ninguém, com exceção do avô e do velho Fiete, usava tais colarinhos e gravatas. Era uma lástima, porquanto o pequeno Hans Castorp gostava imensamente de contemplar o queixo do avô, apoiado no alto nó da gravata branca como neve; ainda quando adulto, causava-lhe prazer essa reminiscência, que encerrava algo que ele aprovava no fundo de seu coração. Terminada a refeição, os guardanapos eram dobrados, enrolados e enfiados nas argolas de prata – uma tarefa da qual Hans Castorp naquela época se desincumbia com grande dificuldade, visto esses guardanapos serem tão grandes como pequenas toalhas. A seguir, o senador levantava-se da poltrona, que Fiete puxava para trás, e ia, de passo arrastado, ao “gabinete”, em busca de um charuto. Às vezes, o neto o seguia ali. Esse “gabinete” devia sua origem ao fato de a sala de jantar ocupar toda a largura da casa e ter três janelas, de modo que não restara espaço suficiente para três salas de recepção, como se costuma encontrar nas casas desse tipo, senão apenas duas, uma das quais formava um ângulo reto com a sala de jantar e tinha somente uma janela. Para evitar que essa sala ficasse excessivamente ampla, haviam feito uma subdivisão por meio de um tabique, aproximadamente na quarta parte do seu comprimento, formando-se assim o dito “gabinete”, uma peça estreita, que de uma clarabóia recebia uma luz crepuscular e continha apenas poucos móveis: uma estante, na qual se achavam as caixas de charutos do senador; uma mesa de jogo cuja gaveta abrigava objetos atraentes, como naipes de uíste, fichas, tabuletas de dentes móveis para marcar pontos, uma lousa com lápis de pedra, boquilhas de papel, e outras coisas; e finalmente no canto havia um armário de vidro, estilo rococó, de madeira de mogno, atrás de cujas vidraças se achavam cortinas de seda amarela. Quando o pequeno Hans Castorp estava nesse gabinete, acontecia às vezes que se punha nas pontas dos pés, para aproximar-se do ouvido do ancião e pedir: – Vovô, mostre-me, por favor, a pia batismal. E o avô, que já afastara para trás a aba comprida da sobrecasaca de casimira macia e tirara do bolso da calça um molho de chaves, abria então o armário, de cujo interior emanava um aroma singularmente misterioso e agradável ao menino. Ali estava guardada toda espécie de objetos pouco usados e justamente por isso fascinantes: um par de candelabros de prata, um barômetro quebrado com figuras talhadas em madeira, um álbum de daguerreotipias, um licoreiro de madeira de cedro, um pequeno turco, duro ao tato, sob a roupagem de seda, e que tinha na barriga um mecanismo engenhoso, que outrora lhe permitira caminhar sobre a mesa, mas já não funcionava havia muito tempo, um modelo de navio antigo; e bem no fundo havia até uma ratoeira. O velho, porém, retirava da prateleira do centro uma bacia redonda de prata muito oxidada, que se encontrava sobre uma bandeja igualmente de prata, e mostrava ao menino ambos esses objetos, tirando um de cima do outro e exibindo-os de todos os lados, enquanto mais uma vez lhe dava as explicações já muitas vezes prestadas. A bacia e a bandeja primitivamente não formavam um jogo, como se podia ver, e como o pequeno voltava a aprender; mas haviam sido usados como tal – dizia o avô – fazia uns cem anos, isto é, desde a compra da bacia. Esta era formosa, de linhas simples e nobres, com a marca do gosto austero que reinava em princípios do século passado. Polida e maciça, repousava sobre um pé redondo e era dourada no seu interior; mas desse ouro sobrara com o tempo somente um reflexo de amarelo pálido. Como único adorno, uma coroa de rosas e folhas denteadas, lavrada em relevo, cobria a borda superior. Quanto à bandeja, podia-se ler a data que lhe conferia uma antiguidade muito maior: “1650”, em números enfeitados de arabescos, emoldurados de toda espécie de desenhos distribuídos desordenadamente, à “maneira moderna” daquela época, mistura exuberante e arbitrária de escudos e rabiscos, metade flores metade estrelas. No reverso da bandeja, porém, estavam inscritos os nomes dos chefes de família que no decorrer dos anos a tinham possuído. Já havia ali sete nomes, cada qual com o ano da transmissão do objeto, e o ancião, com a ponta do dedo ornado de anel, recitava-os um a um, ao neto. Estava ali o nome do pai, assim como o do próprio avô, o do bisavô, e depois se dobrava, triplicava, quadruplicava o prefixo na boca do narrador. O menino, com a cabeça inclinada para o lado, ouvia tudo isso, cravando na bacia um olhar pensativo, sonhador ou abstrato, e abrindo a boca infantil, numa expressão entre respeitosa e sonolenta; ouvia esses “bis, tris, tetra”, sons obscuros de tumba e de tempos soterrados, que todavia expressavam uma ligação piedosamente mantida entre o presente – a sua própria vida – e aquele mundo submerso. Esses sons exerciam sobre ele um efeito esquisito, que se refletia no seu rosto. Ao ouvi-los, tinha a impressão de respirar um ar frio, bolorento, o ar da igreja de Santa Catarina ou da cripta de São Miguel; parecia-lhe sentir o sopro daqueles lugares onde as pessoas tiram os chapéus e avançam num andar reverente, cadenciado, na ponta dos pés; julgava ouvir até mesmo o silêncio remoto, pacato, desses lugares ecoantes; sensações devotas mesclavam-se com a idéia da morte e da história, ao som dessas sílabas surdas, e tudo isso impressionava o garoto simpaticamente; quem sabe se não era para ouvi-las e repetilas mais uma vez, que ele gostava tanto de contemplar a pia batismal? Depois, o avô repunha a bacia na bandeja e mostrava ao menino a concavidade lisa, levemente dourada, que resplandecia sob a luz vinda do teto. – Já faz quase oito anos – dizia – que te levantamos sobre esta bacia, e que a água com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristão Lassen da paróquia de São Jacó verteu-a na concha da mão do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabeça até a bacia. A água tinha sido amornada, para que não te assustasses e chorasses. E de fato não choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermão. Mas quando sentiste a água, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu o batismo, e a água que escorreu da cabeça dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor também já faz muito que está junto de Deus. E há setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi também nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabeça por cima da bacia, exatamente como a vês agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a água morna e límpida escorreu da mesma forma dos meus cabelos (não tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada. O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabeça do ancião, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento já longínquo a que se referia. E se apoderava do menino uma sensação ia muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia – impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão. Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do avô se lhe gravara na memória com muito maior nitidez, intensidade e significação do que a de seus próprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade física particular, pois o neto se parecia com o avô, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhança com um septuagenário encanecido e esclerótico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor do ancião, que incontestavelmente fora a figura mais característica, a personalidade pitoresca da família. No que se refere aos assuntos públicos, o tempo, já muito antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista, e de opiniões rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de pé a restrição aristocrática da única classe social capaz de produzir os futuros governantes, e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no século XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniçada resistência do patriciado livre, conquistara o direito de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovações. Sua vida coincidia com uma época de rápido desenvolvimento e múltiplas revoluções, com decênios de progresso em marcha forçada, que haviam exigido muita audácia e grande abnegação nos negócios públicos. Mas Deus sabe que não era culpa do velho Castorp que o espírito moderno obtivesse seus conhecidos e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importância às tradições ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possível, e se fosse por ele, a administração seria ainda hoje tão idílica e antiquada como o seu próprio escritório. Era assim que o ancião, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidadãos, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos públicos, os olhares silenciosos e contemplativos da criança faziam pouco mais ou menos as mesmas observações; observações mudas, despidas de crítica, porém cheias de vida, e que mais tarde, como reminiscência consciente, conservavam o seu caráter de irrestrita aprovação, hostil a qualquer análise verbal. Como já dissemos, havia nisso um quê de simpatia, aquele laço íntimo, aquela afinidade de almas que não raras vezes salta uma geração. Os filhos e os netos olham para admirar, e admiram na intenção de aprender e aperfeiçoar, o que se acha preparado na sua massa hereditária. O senador Castorp era alto e macilento. Os anos lhe haviam curvado os ombros e a nuca, mas ele fazia esforço intenso para compensar isso por uma postura muito ereta. Ao assumi-la, numa dignidade penosamente mantida, contraía-se-lhe a boca, cujos lábios já não se apoiavam em dentes, repousando sobre as gengivas vazias, uma vez que o ancião punha a dentadura postiça apenas para comer. E justamente esse esforço, aumentado talvez pelo empenho de esconder um incipiente tremor de cabeça, é que determinava aquela atitude austera e tesa, com o queixo escorado pelo nó da gravata, atitude que tanto agradava ao pequeno Hans Castorp. O senador apreciava a caixinha de rapé – usava uma oblonga, de tartaruga, lavrada de ouro – e servia-se de lenços vermelhos, cujas pontas costumavam pender do bolso traseiro da sobrecasaca. Se bem que isso não deixasse de ser uma nota um tanto cômica da sua personalidade, parecia perfeitamente admissível em consideração à idade, como uma negligência que a velhice ora se pode permitir consciente e humoristicamente, ora acarreta sem que a vítima, numa ignorância respeitável, se dê conta dela. Seja como for, era esse o único sinal de fraqueza que o olhar arguto do pequeno Hans Castorp jamais observara na pessoa do avô. Mas, para o menino de sete anos tanto como para a recordação do adulto, a imagem cotidiana e familiar do ancião não constituía a genuína e verdadeira. Na sua realidade autêntica, o avô tinha aspecto diferente, muito mais belo e muito mais certo do que o de todos os dias: era assim como aparecia num retrato de tamanho natural, que antigamente estivera pendurado na sala de estar dos pais do menino, e depois emigrara com ele para a Rua da Esplanada, onde recebera o seu lugar por cima do sofá de seda vermelha, na sala de recepção. O retrato mostrava Hans Lorenz Castorp vestido com os trajes oficiais de um vereador da cidade – trajes dos cidadãos austeros e até piedosos de uma era desaparecida, e que essa comunidade ao mesmo tempo conservadora e progressista levara consigo na sua marcha através das épocas, reservando-os ao uso festivo, a fim de confundir, dessa forma cerimoniosa, o passado com o presente, o presente com o passado, e de evidenciar a perpétua continuidade da sua história, como que confirmando a veneranda solidez da sua firma comercial. Sobre um chão coberto de lajes avermelhadas, diante de um fundo de pilares e arcos ogivais, o senador Castorp aparecia de pé, com o queixo inclinado e as comissuras da boca apontando para baixo, cravando nas lonjuras a mirada contemplativa dos olhos azuis, empapuçados. A veste talar, aberta na frente, exibia nas orlas um largo debrum de peles. De umas meias mangas amplas, estufadas e adornadas de galões, saíam outras mangas, mais justas, de pano liso. Punhos de renda cobriam as mãos até a metade. As pernas finas do ancião estavam revestidas de meias de seda preta, e os pés, calçados de sapatos com fivelas de prata. Rodeava-lhe o pescoço uma golilha larga como um prato, engomada e disposta em numerosas pregas, que o queixo aplanava na parte dianteira, e que se levantava de ambos os lados. Por baixo dela caía sobre o colete um folho pregueado de cambraia. Sob o braço levava o ancião o tradicional chapéu de aba larga, cuja copa terminava em ponta. Era um excelente retrato, obra de um artista afamado, executada com ótimo gosto, no estilo dos mestres antigos, ao qual se prestava o tema. Trazia à lembrança de quem o contemplasse quadros espanhóis ou holandeses do fim da Idade Média. O pequeno Hans Castorp olhara-o freqüentemente, não como um perito de arte, é claro, mas com certa compreensão geral e até com muita perspicácia. Embora não tivesse visto o avô em pessoa tal como o representava a tela, senão uma única vez, – e assim mesmo durante um curto instante, por ocasião da chegada de um cortejo solene ao palácio da municipalidade – não deixava de considerar, como já dissemos, a aparência do retrato como a verdadeira e genuína, e de ver no avô de todos os dias apenas a forma interina, um substituto imperfeitamente adaptado ao seu papel. Pois, o que havia de diferente e esquisito no seu aspecto cotidiano tinha a sua origem, evidentemente, numa tal adaptação imperfeita e quiçá um tanto desajeitada; tratava-se de restos e vestígios da sua forma pura e autêntica, que não se tinham apagado por completo. Assim, estavam fora de moda o colarinho duro, pontudo, e o alto nó da gravata branca, mas era impossível aplicar o termo “fora de moda” àquela maravilhosa peça de vestuário, de que aqueles constituíam apenas alusão interina: a golilha espanhola. E o mesmo acontecia com a cartola de abas inusitadamente recurvas, que o avô usava na rua, e à qual, numa realidade superior, correspondia o feltro de aba larga, reproduzido no quadro; e ainda o mesmo se dava com a longa e ampla sobrecasaca, cujo modelo e essência era, aos olhos do pequeno Hans Castorp, a veste talar, agaloada e debruada de peles. Assim o menino aprovara no seu íntimo que o avô surgisse em plena autenticidade e perfeição no dia em que chegou a hora de lhe dizer adeus para sempre. Era na sala de jantar, a mesma sala onde tantas vezes haviam feito as refeições, sentados um em frente do outro. No seu centro jazia agora Hans Lorenz Castorp, estendido no caixão enfeitado de prata, exposto numa essa rodeada de coroas. Lutara até o fim contra a pneumonia, lutara tenaz e demoradamente, se bem que antes tivesse dado a impressão de se acomodar à vida moderna apenas por meio de uma espécie de adaptação. E enquanto o ancião jazia ali, no seu leito de gala, não se sabia se era vencedor ou vencido. Em todo caso, exibia uma expressão severa e sossegada; a fisionomia, depois de todas essas lutas, aparecia mudada, e o nariz mais pontiagudo. A metade inferior do corpo estava escondida sob um cobertor, em cima do qual se achava um ramo de palmeira. A cabeça repousava erguida sobre um travesseiro de seda, de forma que o queixo se conchegava imponentemente à concavidade dianteira da golilha espanhola. Entre as mãos, meio ocultas pelos punhos de renda, e cujos dedos, embora imitando uma posição natural, não deixavam de revelar frieza e imobilidade, haviam introduzido um crucifixo de marfim, que o defunto, de sob as pálpebras abaixadas, parecia fitar incessantemente. No princípio da enfermidade, Hans Castorp vira o avô algumas vezes; mas depois não tornara a vê-lo. Haviam evitado que ele assistisse ao espetáculo da luta, que na sua maior parte se desenrolara durante as horas noturnas. Só indiretamente sentira o menino as suas conseqüências, em virtude da atmosfera angustiada da casa, dos olhos avermelhados do velho Fiete, das idas e vindas dos médicos. O resultado final, porém, que agora presenciava na sala, resumia-se no fato de que o avô, solenemente desobrigado daquela adaptação passageira, assumira em definitivo o seu genuíno e merecido aspecto. E esse resultado parecia ao pequeno Hans Castorp digno de aprovação, ainda que o velho Fiete vertesse lágrimas, meneando sem cessar a cabeça, e que ele mesmo chorasse, como o fizera quando da repentina morte da mãe, e pouco tempo depois em presença do pai, que também estivera estendido assim, não menos silencioso e estranho. Não se esqueça que era a terceira vez, num curto lapso de tempo, e numa idade tão tenra, que a morte agia sobre o espírito e os sentidos – principalmente os sentidos – do menino. Esse quadro e essa impressão já não lhe eram novos, senão bastante familiares. Nas duas ocasiões anteriores já se mostrara comedido e dono de si, sem perder o domínio dos nervos, apesar da tristeza natural que sentia. E dessa vez aparentou ainda maior tranqüilidade do que das outras. Como ignorasse a significação prática que aqueles acontecimentos tinham para a sua existência, ou talvez os considerasse com certa indiferença pueril, confiante em que o mundo, deste ou daquele modo, cuidaria de seu bem-estar, manifestou em frente dos ataúdes certa frieza igualmente infantil, bem como uma atenção objetiva, à qual o terceiro enterro acrescentou um matiz especial de superioridade precoce, baseada na plenitude da experiência anteriormente adquirida, que o imunizava contra os freqüentes acessos de choro e o contágio do pranto dos demais, fazendo com que tudo isso se lhe afigurasse como uma reação normal. No decorrer de três ou quatro meses, após o falecimento do pai, esquecera-se da morte; agora se recordou, e todas as impressões antigas reavivaram-se exatamente, simultâneas e intensas, na sua peculiaridade incomparável. Analisadas e resumidas, essas impressões seriam pouco mais ou menos as seguintes: a morte tinha dois aspectos, um piedoso, significativo, de melancólica beleza, quer dizer, um aspecto religioso, e ao mesmo tempo tinha outro, absolutamente diverso e até mesmo oposto, um aspecto muito físico, bem material, que era impossível qualificar propriamente de belo, significativo, piedoso, sequer de triste. A natureza solene e religiosa expressava-se no suntuoso ataúde do defunto, na magnificência das flores e no ramo de palmeira, que, como se sabe, simbolizavam a paz celestial; expressava-se além disso, e ainda mais nitidamente, no crucifixo entre os dedos exangues de quem outrora era o avô, bem como no Cristo abençoador, de Thorwaldsen, que se achava à cabeceira do féretro, e nos dois candelabros que se erguiam de ambos os lados e nessa ocasião haviam assumido um caráter igualmente eclesiástico. Todas essas disposições encontravam evidentemente o seu sentido preciso e próprio na idéia de que o avô se unira para sempre com sua verdadeira e genuína figura. Mas, além dessa razão de ser, existia – como o pequeno Hans Castorp bem notava, ainda que não se desse conta disso em palavras – mais uma outra, uma finalidade mais profana, a manifestar-se em tudo isso, principalmente naquela multidão de flores, e entre elas em especial nas tuberosas espalhadas por toda parte: cabia-lhes disfarçar, fazer esquecer e não admitir ao limiar da consciência o segundo aspecto da morte, que não era nem belo nem realmente triste, mas, a bem dizer, quase indecente e de um caráter baixo e carnal. Era em virtude desse segundo aspecto que o avô defunto se afigurava tão estranho, que no fundo nem parecia o avô, senão um boneco de cera, de tamanho natural, que a morte pusera em seu lugar, e ao qual agora se dedicavam todas essas pompas piedosas e reverentes. Quem jazia ali, ou melhor, aquilo que ali se achava estendido, não era portanto o verdadeiro avô; não passava de um invólucro, que – Hans Castorp sabia-o muito bem – não constava de cera, mas de sua própria matéria; apenas de matéria, e precisamente nisso residia o indecente e a ausência de tristeza; aquilo era tão pouco triste como são as coisas que dizem respeito ao corpo e só a ele. O pequeno Hans Castorp contemplava essa matéria lisa, cor de cera, de uma consistência caseosa, de que estava feita aquela figura morta de tamanho natural, com o rosto e as mãos do ex-avô. Uma mosca acabava de pousar na testa imóvel e começava a mexer a probóscide. O velho Fiete espantou-a cautelosamente, evitando tocar a testa; ao fazê-lo, exibia uma fisionomia reservada e pudica, como se não devesse nem quisesse saber do ato que praticava; pudor que sem dúvida se devia ao fato de ser o avô, no atual estado, corpo e nada mais. Mas a mosca deu um vôo circular e aterrissou em seguida nos dedos do avô, perto da cruz de marfim. Enquanto isso sucedia, Hans Castorp percebeu, mais distintamente do que antes, aquela emanação leve apenas, mas de uma persistência singular, e que não lhe ficava estranha. Por vergonhoso que isso parecesse, lembravalhe ela um companheiro de escola, afetado de um mal desagradável e por isso evitado pelos colegas. E Hans Castorp compreendeu que o aroma das tuberosas tinha por objetivo abafar essa emanação, o que não conseguia, apesar da linda exuberância e austeridade. Hans Castorp esteve diversas vezes diante do cadáver; uma vez a sós com o velho Fiete; outra, com seu tio-avô Tienappel, negociante de vinhos, e os dois tios James e Peter; depois uma terceira vez, quando um grupo de estivadores endomingados permaneceu durante alguns minutos perante o ataúde, para despedir-se do antigo chefe da casa Castorp & Filho. E chegou a hora do enterro. A sala estava cheia de gente e o pastor Bugenhagen, da igreja de São Miguel, o mesmo que batizara Hans Castorp, pronunciou, ornado de uma golilha espanhola, a oração fúnebre. No coche que seguia à frente de uma fila comprida, uma fila interminável, o pastor conversava muito amigavelmente com o pequeno. E assim terminou mais um capítulo da vida de Hans Castorp, que logo depois mudou de casa e de ambiente, pela segunda vez na sua curta existência. Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp Não lhe redundou isso em desvantagem, pois o menino passou a morar na casa do cônsul Tienappel, seu tutor nomeado pelo tribunal. Nada lhe faltava ali, nem com respeito à sua pessoa, nem tampouco no referente à defesa dos seus interesses, dos quais ele ainda nada sabia. O cônsul Tienappel, tio da saudosa mãe de Hans, administrava os bens deixados pelos Castorps. Pôs à venda os imóveis, e também se encarregou de liquidar a firma Castorp & Filho, Importação e Exportação. O que conseguiu salvar eram uns quatrocentos mil marcos, que constituíam a herança de Hans Castorp. O cônsul Tienappel colocou-os em valores seguros, cobrando, não obstante os sentimentos de parente, trimestralmente, dois por cento de comissão legal sobre os juros vencidos. A casa dos Tienappel, situada no fundo de um jardim, à Avenida de Harvestehude, dava para um gramado, no qual não se tolerava a mais mínima erva daninha. Atrás havia um roseiral público e o rio. Apesar de possuir uma bela carruagem, o cônsul caminhava todos os dias ao escritório, na cidade velha, a fim de fazer um pouco de exercício, pois às vezes sofria de ligeiras congestões cerebrais. Às cinco da tarde regressava da mesma maneira, e a seguir comia-se na casa dos Tienappel com todo o refinamento de gente culta. Era um homem cheio de corpo, que se vestia com os melhores tecidos ingleses. Tinha os olhos um tanto saltados, de um azul aquoso, que escondia atrás de óculos com aros de ouro; o nariz, de ordinário, estava coberto de espinhas. O cônsul usava barba grisalha de marinheiro e um diamante esplendoroso no curto mindinho da mão esquerda. Sua mulher já falecera havia muito tempo. Tinha dois filhos, Peter e James. O primeiro servia na marinha e passava apenas pouco tempo em casa do pai, ao passo que o outro trabalhava na firma paterna, uma casa de vinhos, sendo considerado como o futuro sucessor do chefe. A casa era dirigida desde muitos anos por Schalleen, filha de um ourives de Altona, que andava com alvos punhos engomados em volta dos pulsos roliços; cumpria a ela cuidar que na mesa de almoço e de jantar houvesse fartura de frios, camarões, salmão, enguia, peito de ganso, e tomato ketchup para o rosbife. Observava com olhos vigilantes os garçons contratados por ocasião dos banquetes, que o cônsul Tienappel dava aos seus amigos, e era ela que, na medida do possível, servia de mãe ao pequeno Hans Castorp. Este se criou num clima abominável, entre vento e bruma. Ia crescendo, se assim se pode dizer, dentro de um impermeável amarelo. Contudo sentia-se perfeitamente bem. Desde cedo era um pouco anêmico, conforme verificou o Dr. Heidekind, que lhe prescreveu, para antes do almoço, após a aula, um volumoso copo de porter, bebida substancial, como se sabe, e considerada pelo doutor como altamente sanguificativa. Em todo caso, o porter tranqüilizava apreciavelmente a vitalidade de Hans Castorp e aumentava nele de modo benéfico uma determinada tendência para a “basbaquice”, como dizia seu tio Tienappel, ou seja, aquela sua inclinação para sonhar, de boca aberta, sem pensar, e com o olhar cravado no espaço. De resto era sadio e normal, um tenista regular e um bom remador, se bem que preferisse ao manejo dos remos instalar-se numa noite de verão no terraço do clube náutico de Uhlenhorst, diante de um copo cheio, para apreciar a música e contemplar os barcos iluminados, por entre os quais os cisnes sulcavam o irisado espelho das águas. Bastava ouvi-lo falar, calma e ponderadamente, sem grande profundidade e com alguma monotonia, numa voz levemente influenciada pelo dialeto hamburguês; bastava até examinar-lhe de relance a correção loura, o perfil finamente recortado, de certo cunho antigo, e no qual uma arrogância hereditária e inconsciente se manifestava sob a forma de uma indolência um tanto árida, para verificar que, indubitavelmente, esse Hans Castorp era um produto puro e autêntico daquele solo e se enquadrava com absoluta perfeição no ambiente. Ele próprio, se se tivesse estudado sob esse aspecto, não teria experimentado a mínima dúvida quanto a isso. A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força de elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluírem à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via – e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses – a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infância, e despertavam nele apenas a sensação confortável e habitual de fazer parte de tudo isso; impressão que culminava, quando, numa manhã de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen – Joachim Ziemssen – comia no Pavilhão do Alster pãezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, após o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volúpia a fumaça de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuíno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparência anêmica e refinada, agarrava-se com fervor e firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da mãe, aos prazeres físicos que a vida lhe oferecia. Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilização que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus filhos. Ia lavadinho como um nenê e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiança dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armário, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem – afirmava ele que fora de Hamburgo ninguém sabia engomar. Um pedacinho puído no punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchê-lo de violento mal-estar. Suas mãos, posto não fossem tipicamente aristocráticas, tinham a pele bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herança do avô, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistência mole, haviam sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro. Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café. Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas. Como se vê, empenhamo-nos em anotar tudo quanto possa prevenir o espírito do leitor a favor de Hans Castorp. Mas julgamo-lo sem exagero, e não o apresentamos nem melhor nem pior do que era. Hans Castorp não era nem um gênio nem um imbecil, e a razão de evitarmos, para sua qualificação, o termo “medíocre”, reside em circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência e quase nada com a sua singela personalidade; fazemo-lo devido ao respeito que temos pelo seu destino, ao qual nos sentimos inclinados a atribuir certa significação ultraindividual. Seu cérebro satisfazia as exigências do curso científico do colégio, sem que tivesse de recorrer a excessivos esforços que decerto não teria realizado em nenhuma ocasião e por nenhum objetivo; menos por medo de se prejudicar do que por não ver nenhum motivo para empreendêlos; ou melhor: por não ver nenhum motivo absoluto. É precisamente por isso que não o chamamos de medíocre, já que ele percebia, desta ou daquela forma, a ausência de tais motivos. O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultra-pessoais da sua existência, e que da idéia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra-pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso. Tudo isso se refere à mentalidade do nosso jovem, não só durante a sua vida escolar, senão também durante os anos posteriores a ela, quando já escolhera a sua profissão civil. Quanto à sua carreira através do ginásio, cabe dizer que se viu obrigado a repetir um que outro ano. Mas, finalmente, a sua origem, a urbanidade de suas maneiras e também um belo talento, embora pouco apaixonado, pelas matemáticas, ajudaram-no a atravessar essas etapas. E concluído o curso ginasial, Hans Castorp decidiu cursar também o colégio por bem dizer, sobretudo a fim de prolongar uma situação habitual, provisória e indecisa e de ganhar tempo para refletir sobre o que desejava vir a ser; pois a princípio não o sabia com certeza, nem sequer no último ano do colégio chegou a formar uma opinião firme a esse respeito, e quando a coisa se decidiu -seria exagerado dizer que ele mesmo tomou essa decisão –, sentia o jovem muito bem que poderia ter escolhido, da mesma forma, um outro caminho. Uma coisa, entretanto, era verdade: os navios sempre lhe haviam despertado grande interesse. Na meninice enchera as páginas das suas agendas com desenhos a lápis, de cúteres de pesca, chatas carregadas de legumes e veleiros de cinco mastros. Aos quinze anos, gozou do privilégio de assistir, de um lugar reservado, nos estaleiros de Blohm & Voss, ao lançamento de um novo paquete postal de duas hélices, o Hansa. Pintou então uma aquarela bem-feita e exata em todos os pormenores da esbelta nave. O cônsul Tienappel pendurou no seu escritório particular esse quadro, no qual o verde-garrafa transparente do mar revolto estava pintado com tanto amor e tamanha habilidade, que alguém disse ao cônsul Tienappel que nisso se revelava talento e que Hans Castorp poderia tornar-se um bom pintor de marinhas apreciação que o cônsul não se arrependeu de ter repetido ao pupilo, já que Hans Castorp a recebeu com uma boa risada, sem se preocupar um instante sequer com esse tipo de idéias excêntricas e perspectivas de vida boêmia. – Você não tem muito dinheiro – dizia-lhe às vezes o tio Tienappel. – A parte principal de meus bens caberá um dia a James e Peter, quer dizer, fica na firma, e Peter vai receber os juros da sua quota. O que pertence a você está bem colocado e produz uma renda segura. Mas, hoje em dia, não tem graça viver de juros, a não ser que a gente possua cinco vezes mais que você. Para ser alguém nesta cidade e viver como você está acostumado, é preciso ganhar muito dinheiro. Tome nota disso, meu filho. Hans Castorp tomou nota. Começou a procurar uma profissão que lhe permitisse sair-se airosamente perante si mesmo e aos olhos do mundo. E quando, finalmente, escolheu – obedecendo a uma sugestão do velho Wilms, da casa Tunder & Wilms, que numa noite de sábado, à mesa do uíste semanal, disse ao cônsul Tienappel: “Hans Castorp deveria estudar engenharia naval. É uma boa idéia. Então poderia entrar na minha firma, e eu cuidaria do rapaz” –, quando finalmente se decidiu, tinha a sua profissão em alto apreço e verificou que ela era complicada e trabalhosa como o diabo, mas também possuía seu aspecto nobre, importante e grandioso. Em todo caso achava-a infinitamente preferível, para o seu caráter pacífico, à do primo Ziemssen, filho duma meia-irmã de sua saudosa mãe, que queria a todo o transe tornar-se oficial. E todavia não tinha esse Joachim Ziemssen o peito muito sadio; podia ser que justamente por isso uma profissão exercida ao ar livre, e que não exigisse quase nenhuma atividade mental, fosse indicada para ele – assim pensava com leve desprezo Hans Castorp, que considerava o trabalho com o máximo respeito, ainda que a ele próprio o esforço fatigasse facilmente. Nesse ponto insistimos sobre as reflexões que fizemos acima, sobre a questão de saber se um prejuízo que a época causa à vida individual do homem lhe pode diretamente influenciar o organismo físico. Hans Castorp respeitava o trabalho. Como poderia deixar de fazê-lo? Isto seria contrário à sua natureza. Tudo contribuía para que o trabalho se lhe apresentasse como digno do mais irrestrito respeito; no fundo não existia nada fora dele que merecesse tal respeito; o trabalho era o princípio em face do qual uma pessoa se saía bem ou malograva, era o que havia de absoluto na época, e trazia em si a sua justificativa. O respeito que Hans Castorp lhe devotava era portanto de caráter religioso e, conforme lhe parecia, indiscutível. Isso não quer, no entanto, dizer que ele amava o trabalho; disso não era capaz, por mais que o respeitasse, simplesmente pela razão de não se dar bem com ele. Um esforço intenso irritava-lhe os nervos e esgotava-o rapidamente. Com toda a franqueza Hans Castorp confessava que no seu íntimo gostava muito mais das horas de lazer, livres do lastro de chumbo das tarefas penosas, as horas que abertamente se estendiam diante dele, e não crivadas de obstáculos a serem vencidos a duras penas. Essa contradição na sua atitude perante o trabalho deveria, a bem dizer, ser resolvida. Talvez assim é que o seu corpo tanto como o seu espírito – em primeiro lugar o espírito e sob a sua influência também o corpo -se teriam dedicado ao trabalho com maior prazer e intensidade, se Hans Castorp, no âmago da sua alma, naquelas profundezas que ele mesmo ignorava, tivesse sido capaz de crer no trabalho como valor absoluto e princípio que se justificasse a si próprio, e de achar sossego nesse pensamento. Com isso chegaríamos mais uma vez à questão da sua mediocridade ou mais-do-que-mediocridade, à qual não tencionamos dar uma resposta precisa. Não nos consideramos, de forma alguma, encomiastas de Hans Castorp, e por isso não eliminamos a hipótese de que o trabalho, na sua vida, apenas estorvava um pouco o gozo perfeito do Maria Mancini. Não foi convocado para o serviço militar. Aliás, no fundo do seu coração antipatizava com ele, e assim conseguiu evitar a convocação. Possivelmente, o médico militar, Dr. Eberding, que freqüentava a vila na Avenida de Harvestehude, tivesse ouvido do cônsul Tienappel, assim de passagem, que o jovem Castorp considerava a obrigação de vestir a farda como uma interrupção sensível dos seus estudos, havia pouco encetados numa universidade do Reich. Trabalhando com vagar e calma – até fora de Hamburgo, Hans Castorp conservava o hábito tranqüilizador de tomar já de manhã uma dose de porter – o seu cérebro ia se enchendo de geometria analítica, cálculo diferencial, mecânica, projetiva e grafostática; calculava o deslocamento de navios carregados e vazios, a estabilidade, a equilibragem e o metacentro, ainda que isso às vezes lhe fosse custoso. Seus desenhos técnicos – esses contornos no meio do navio, traçados de linhas de flutuação, e seções longitudinais – não alcançavam o nível da sua representação pictórica do Hansa em alto-mar; mas, quando se tratava de explicar uma idéia abstrata por meio de uma apresentação mais acessível aos sentidos, intensificando as sombras com tinta nanquim ou colorindo os cortes transversais com tintas alegres que indicassem os materiais, então Hans Castorp superava em habilidade a maioria dos seus colegas. Durante as férias, costumava regressar muito asseado, muito bem vestido, com um bigodinho ruivo no sonolento rosto de jovem patrício, e evidentemente a caminho de uma posição respeitável. E as pessoas que se ocupavam de questões municipais e também eram entendidas em assuntos de família e de vida social – como é o caso de quase todos, numa cidade livre e autônoma –, esses seus concidadãos, examinando-o criticamente, perguntavam-se que papel oficial o jovem Hans Castorp chegaria a desempenhar no futuro. Havia uma tradição a seu favor; seu nome era antigo e de boa reputação; e mais cedo ou mais tarde – isto parecia quase certo -seria preciso contar com a sua pessoa como fator Político. Então teria um lugar na Assembléia ou no Conselho Municipal e influiria na legislação; no exercício de um cargo honorífico, participaria das preocupações que acarreta a soberania; pertenceria a alguma repartição administrativa, à comissão de finanças talvez ou à de obras públicas, e sua voz não deixaria de ser ouvida e levada em conta. Até seria interessante saber a que partido se filiaria, mais tarde, esse jovem Castorp. As aparências podiam enganar, mas ele não tinha, propriamente, a cara duma pessoa com a qual os democratas podem contar. Era evidente a semelhança com o avô. Quem sabe se não puxaria a este, tornando-se um travão, um elemento conservador? Era muito possível, como também era possível o contrário. Afinal de contas, tratava-se de um engenheiro, futuro construtor de navios, de um homem da técnica e do tráfego universal. Assim se ventilava a outra alternativa de Hans Castorp unir-se aos radicais, chegando a ser um homem de ação, destrutor profano de edifícios antigos e belas paisagens, sem raízes no solo pátrio, qual um judeu, e sem laços de tradição, qual um ianque; talvez preferisse romper desconsideradamente com aquilo que uma veneranda história nos transmitiu, e arrastar o Estado por um caminho de audaciosas experiências, em vez de promover o desenvolvimento circunspecto das condições naturais de vida. Também isso era admissível. Estaria no seu sangue a convicção de que Suas Excelências, prudentes e sábias, às quais a dupla sentinela da Municipalidade apresentava armas, administravam tudo da melhor maneira possível, ou se inclinaria a apoiar a oposição na Assembléia? Naqueles olhos azuis sob as sobrancelhas ruivas não se podia ler nenhuma resposta a essas perguntas que a curiosidade dos seus concidadãos fazia, e parece provável que nem o próprio Hans Castorp, uma folha em branco, teria sabido satisfazê-la. Quando empreendeu a viagem, durante a qual travamos conhecimento com ele, ainda não completara vinte e três anos. Tinha atrás de si quatro semestres de estudos na Escola Politécnica de Dantzig, e outros quatro nas escolas congêneres de Brunswick e de Karlsruhe. Recentemente passara nos exames teóricos, sem distinção nem grandes aplausos, mas com dignidade, e a essa época dispunha-se a trabalhar como engenheiro voluntário, na casa Tunder & Wilms, a fim de conseguir nos estaleiros a necessária formação prática. No entanto, ao chegar a esse ponto, o seu caminho tomou outro rumo. Para preparar-se para os exames, Hans Castorp tivera que estudar com intensidade e perseverança. Ao regressar para casa, parecia muito mais fatigado do que usualmente. O Dr. Heidekind ralhava com ele cada vez que o encontrava, e exigia uma mudança de ar, mas que fosse radical. Dessa vez, disse ele, não bastava Nordyrney, nem Werk, na ilha de Föhr. A seu ver, Hans Castorp deveria, antes de entrar nos estaleiros, passar algumas semanas nas altas montanhas. – Muito bem – disse o cônsul Tienappel ao sobrinho-pupilo. Mas nesse caso, seria preciso veranearem em lugares diferentes, pois que nem quatro cavalos arrastariam a ele, cônsul, até às altas montanhas. Aquele ar da serra não lhe convinha; o que ele necessitava era uma pressão atmosférica razoável, para não sofrer algum ataque. Que Hans Castorp, por conseguinte, viajasse sozinho para as montanhas. Por que não visitar Joachim Ziemssen? Era uma idéia natural. Joachim Ziemssen estava doente – não doente como Hans Castorp, mas de outro modo, realmente sério, que causara, mesmo, um grande susto a toda a família. Já antes sofria de catarros e acessos de febre, e um dia se pusera a escarrar sangue. Então partira a toda pressa para Davos, sumamente contrariado e abatido, já que acabava de atingir a meta dos seus desejos. Durante alguns semestres, a instâncias da família, estudara jurisprudência; mas, obedecendo a um impulso irresistível, mudara de profissão e se apresentara como aspirante a oficial. Já fora até admitido. E agora fazia cinco meses que se internara no Sanatório Internacional Berghof (médico diretor: Dr. Behrens, conselheiro áulico). Aborrecia-se mortalmente, conforme diziam seus cartões-postais. Se Hans Castorp, antes de assumir o seu cargo na casa Tunder & Wilms, quisesse fazer alguma coisa pela sua saúde, nada mais plausível do que ir a Davos, para visitar o coitado do primo, o que seria agradável para ambas as partes. Era pleno verão quando Hans Castorp se decidiu a viajar. Já haviam chegado os últimos dias de julho. Tencionava passar três semanas lá em cima. CAPÍTULO III Ensombramento pudico Estando muito cansado, Hans Castorp receara dormir além da hora. Mas levantou-se muito mais cedo do que era necessário, de maneira que teve tempo de sobra para observar com minúcia os seus hábitos matinais – hábitos sumamente civilizados, no meio dos quais desempenhavam papéis importantes uma baciazinha de borracha, um sabonete verde de alfazema, num receptáculo de madeira, e o indispensável pincel de palha – e também para combinar os cuidados de limpeza e de higiene com o trabalho de desemalar e arrumar os seus objetos. Ao passar o aparelho prateado pelas faces cobertas de perfumada espuma, lembrou-se dos seus sonhos confusos e maneou a cabeça, esboçando um sorriso indulgente ante tamanho desvario, com a sensação de superioridade que experimenta quem se barbeia à luz clara da razão. Não se sentia precisamente descansado, mas o dia incipiente dava-lhe boa disposição. Com o rosto empoado, em ceroulas de fio de Escócia e chinelos de marroquim vermelho, e ainda enxugando as mãos, saiu à sacada, que corria ao longo do edifício, subdividida apenas por paredes de vidro fosco, que, embora sem avançarem até a balaustrada, formavam compartimentos correspondentes aos diversos quartos. A manhã estava fresca e nublada. Vastas massas de neblina jaziam imóveis diante das elevações laterais, enquanto volumosas nuvens brancas e cinzentas repousavam sobre a cordilheira mais distante. Pedaços e tiras de céu azul apareciam aqui e ali, e quando um raio de sol caía sobre o fundo do vale, a aldeia cintilava muito alva, contrastando com os sombrios pinheirais que cobriam as encostas. Em algum lugar se dava um concerto matinal, provavelmente no mesmo hotel donde viera, na noite anterior, o som de uma orquestra. Ouviam-se em surdina os acordes de um hino religioso; depois de uma pausa, seguiu-se uma marcha. Hans Castorp gostava da música, de todo o coração, porque ela produzia nele um efeito semelhante ao do porter matutino, efeito altamente calmante, entorpecente, que o induzia à “basbaquice”. Assim escutou-a satisfeito, com a cabeça levemente inclinada para o lado, com a boca aberta e os olhos um pouco avermelhados. Lá de baixo subia, sinuoso, o caminho que conduzia ao sanatório, e pelo qual haviam chegado na véspera. Gencianas estreladas, de talo curto, cresciam na grama úmida da encosta. Parte do terraço estava cercada por uma sebe, para formar um jardim, onde havia veredas ensaibradas, canteiros de flores e uma gruta artificial de rochedos, junto a um esplêndido abeto. Para o sul abria-se um alpendre com telhado de zinco, onde se viam algumas espreguiçadeiras. Ao lado se erguia um mastro pintado de marrom avermelhado, em que às vezes tremulava uma bandeira; bandeira de fantasia, verde e branca, com o emblema da medicina, um caduceu, no centro. Uma mulher passeava pelo jardim, uma senhora já de idade, de aspecto sombrio, quase trágico. Vestida completamente de preto, com um negro véu envolvendo os desgrenhados cabelos grisalhos, ia e vinha sem descanso pelas veredas, num passo monótono e rápido, de joelhos um tanto dobrados e de braços rígidos, caídos para a frente. Tinha a testa sulcada de rugas horizontais, e dirigia fixamente ao alto os olhos muito negros, sob os quais pendiam bolsas flácidas. Seu semblante envelhecido, de uma lividez meridional, com a grande e melancólica boca contraída para um lado, relembrou a Hans Castorp o retrato de uma famosa atriz trágica, que ele vira em alguma parte. Era sinistro observar como essa mulher enlutada, pálida, acertava, aparentemente sem sabê-lo, os passos longos, tristonhos, ao ritmo da marcha que ressoava de longe. Pensativo, com uma simpatia compassiva, Hans Castorp contemplou-a do alto da sacada. Era-lhe como se aquela visão triste obscurecesse o sol da manhã. Mas, ao mesmo tempo, percebeu mais uma coisa, algo audível, ruídos que partiam do quarto dos vizinhos da esquerda – o casal russo, segundo as informações de Joachim. E esses ruídos igualmente não condiziam com aquela manhã clara e fresca; pelo contrário, pareciam poluí-la de certa forma viscosa. Hans Castorp recordou-se de que, já na noite anterior, ouvira qualquer coisa parecida, mas o cansaço impedira-o de prestar atenção. Era uma luta acompanhada de risinhos e arfadas, cuja natureza escabrosa não podia passar despercebida ao jovem, se bem que ele, por bondade, se esforçasse a princípio por interpretá-la de uma maneira inocente. Também poderíamos ter dado outras denominações a essa tal bondade, por exemplo, o nome um tanto insípido de pureza da alma, ou talvez o belo e austero nome de pudicícia, ou ainda os nomes depreciativos de temor à verdade ou de tartufice, ou até mesmo o de resguardo místico ou de piedade. Havia um pouco de tudo isso na atitude que Hans Castorp adotava em face dos rumores que vinham do quarto vizinho, e que se refletia na sua fisionomia através de um ensombramento pudico, como se não devesse nem quisesse saber nada daquilo que ouvia – expressão de inocência que não era precisamente original, mas que, em certas ocasiões, tinha o hábito de adotar. Com a dita fisionomia retirou-se, pois, da sacada, para o quarto, na intenção de não assistir por mais tempo a acontecimentos que se lhe afiguravam graves e mesmo perturbadores, apesar de se manifestarem sob o acompanhamento de risinhos. Porém, no interior do quarto, fizeram-se ouvir ainda mais distintamente os atos praticados do outro lado da parede. Parecia uma perseguição em torno dos móveis; uma cadeira caiu estrondosamente uma pessoa apanhou a outra; davam-se palmadas e beijos, e a todos esses sons juntavam-se agora os acordes de uma valsa, as frases batidas e melodiosas de uma canção popular, acompanhando de longe a cena invisível. Hans Castorp, com a toalha na mão, sem querer, deteve-se a escutar. E de repente corou baixo da camada de pó-de-arroz: o que ele já previra claramente acabava de suceder: o brinquedo, sem dúvida alguma, tomara um rumo animalesco. “Grande Deus!”, pensou, virando as costas para terminar sua toilette com movimentos propositadamente ruidosos. “Ora, são marido e mulher, está bem, não há mal nenhum nisso. Mas, já de manhã, em pleno dia... É meio forte. E me parece que ontem à noite também quebraram a trégua. Afinal de contas, são enfermos, ou pelo menos um dos dois está doente, uma vez que estão aqui; seria indicada alguma moderação. Mas o mais escandaloso”, continuava raciocinando com grande irritação, são essas paredes tão finas que a gente ouve tudo. É insuportável! Construção barata, claro; é uma vergonha como economizaram nisso! Será que, mais tarde, verei esse casal e lhes serei apresentado? Seria bem penoso para mim.” Nesse momento Hans Castorp notou com admiração que o rubor que lhe subira às faces recém-barbeadas não queria absolutamente ceder. Pelo menos persistia a sensação de calor que o acompanhava e não era outra coisa senão aquele ardor seco de que padecera na noite anterior, e que, depois d se ter sumido durante o sono, reaparecera agora, reanimado por essas circunstâncias. Isso não o predispôs mais favoravelmente para com o casal vizinho. Pelo contrário, avançando os lábios, murmurou a seu respeito uma palavra altamente desrespeitosa. A seguir cometeu o erro de refrescar, uma vez mais, o rosto com água, o que agravou o mal consideravelmente. Assim sucedeu que sua voz vacilasse, mal-humorada, ao responder ao primo que batera para chamá-lo. E ainda quando Joachim entrou, Hans Castorp não dava a impressão de um homem refrescado, que com boa disposição encara a manhã. O café da manha – ’dia – disse Joachim. – Que tal a sua primeira noite aqui em cima? Está satisfeito? Já estava pronto para sair, num traje esporte e com botas de feitio sólido. Por cima do braço tinha o sobretudo, com o frasco chato a destacar-se à altura do bolso lateral. Como no dia anterior, não levava chapéu. – Obrigado – respondeu Hans Castorp; – mais ou menos. Não quero formar uma opinião precipitada. Tive sonhos meio confusos, e além disso a casa possui um grande defeito: as paredes têm ouvidos, e isto e um pouco desagradável. Quem é aquela mulher de preto, lá no jardim? Joachim percebeu imediatamente de quem se tratava. – Ah, essa? É “Tous–les–deux” – disse. – Ela é chamada assim por todo o mundo, porque essas palavras são as únicas que se ouvem dela. É mexicana, sabe? Não fala alemão, e de francês só umas poucas frases estropiadas. Faz cinco semanas que está aqui, para visitar o filho mais velho, um caso totalmente desesperador, que em breve esticará as canelas. Já tem o mal em toda parte; todo o corpo está envenenado, pode-se dizer. Segundo Behrens, esse estado final se parece com o tifo. Em todo caso é horrível de se ver. E há uns quinze dias, chegou o caçula, para ver o irmão pela última vez. Aliás, um belo tipo, tal qual o outro. Ambos são bonitões, de olhos ardentes; as mulheres estavam entusiasmadas. Bem, o caçula já tinha tossido um pouco, antes de vir para cá, mas fora disso parecia completamente bom. E mal chega aqui, imagine, tem um acesso de febre, e logo 39,5! Febre muito alta, sabe? Puseram-no na cama, e se ainda chegar a levantar-se, terá uma bruta sorte, disse o Behrens. Há muito que já deveria estar internado aqui, acham os médicos... Pois é, desde então a mãe anda desse jeito, quando não se acha à cabeceira das duas camas, e cada vez que alguém lhe dirige a palavra, responde apenas: “Tous les deux”, pois não sabe dizer outra coisa, e no momento não há ninguém aqui que compreenda espanhol. – Ah, então é por isso – disse Hans Castorp. – E você acha que ela me dirá a mesma coisa, quando lhe for apresentado? Seria esquisito, quero dizer que seria ao mesmo tempo cômico e sinistro – acrescentou, e seus olhos estavam como na véspera: davam-lhe a impressão de estarem quentes e pesados, como se tivesse chorado por muito tempo; e novamente havia neles aquele brilho que ali acendera a estranha tosse do aristocrata austríaco. De um modo geral parecia a Hans Castorp que só nesse instante acabava de estabelecer contato entre o presente e o dia de ontem, voltando a entender o nexo das coisas, o que não conseguira logo depois de despertar. Enquanto umedecia o lenço com algumas gotas de água de alfazema, para esfregar a testa e a região abaixo dos olhos, avisou ao primo que ele também estava pronto. -se você não tiver outros planos, podemos tomar café tous les deux – gracejou com uma sensação de descomedida leviandade. Joachim lançou-lhe um olhar indulgente, acompanhada de um sorriso estranho, entre melancólico e zombeteiro, conforme pareceu a Hans Castorp. Por quê? Isto era com ele... Após ter verificado que levava consigo a necessária provisão de tabaco, Hans Castorp tomou a bengala, o sobretudo e o chapéu – sim, também o chapéu, como uma espécie de desafio, pois estava por demais seguro dos seus hábitos e de seu modo de viver, para sujeitar-se, tão rapidamente e por apenas três semanas, a costumes novos e estranhos. Assim saíram do quarto e desceram a escada. Nos corredores, Joachim apontava para uma que outra porta, mencionando os nomes dos ocupantes, nomes alemães e outros que revelavam toda espécie de origens estrangeiras, e acrescentando breves comentários quanto ao caráter e à gravidade do respectivo caso. Encontraram, também, pessoas que já regressavam da sala de refeições, e cada vez que Joachim cumprimentava alguém, Hans Castorp, cortesmente, tirava o chapéu. Sentia-se curioso e impaciente como um jovem a ponto de ser apresentado a uma multidão de pessoas estranhas, e que ao mesmo tempo anda acossado pela sensação nítida de ter os olhos turvos e o rosto avermelhado – o que, aliás, só parcialmente era o seu caso; pois que, em realidade, estava pálido. – Antes que me esqueça! – exclamou de repente, com certa ênfase incontida. – Você pode, tranqüilamente, apresentar-me àquela senhora do jardim, se por acaso houver uma oportunidade. Não tenho nada contra ela. Que ela me diga “tous les deux”; não faz mal, já estou preparado. Sei o que ela quer dizer, e farei uma fisionomia adequada. Mas não desejo absolutamente travar conhecimento com aquele casal russo; ouviu? Não tenho a mínima vontade. É gente de péssimas maneiras, e se devo morar durante três semanas lado a lado com eles e não for possível evitar essa vizinhança, pelo menos não quero conhecê-los. Tenho motivos de sobra para pedir isso do modo mais formal... – Está bem! – disse Joachim. – Então incomodaram muito a você? Pois é, são uns bárbaros, gente sem civilização, numa palavra. Eu mesmo já lhe disse. Ele costuma sentar-se à mesa, numa jaqueta de couro, puída que só ela. Sempre me admira que Behrens tolere isso. E ela também não anda muito asseada, apesar do chapéu de plumas... Em todo caso, não se preocupe: eles têm seus lugares muito longe de nós, à mesa dos russos ordinários; pois, além desta, existe ainda uma mesa dos russos distintos. Há pouca probabilidade de você entrar em contato com eles, mesmo que o deseje. Em geral não é muito fácil travar conhecimento, já que há tantos estrangeiros entre os hóspedes. Eu mesmo só conheço pessoalmente umas poucas pessoas, apesar de estar aqui há tanto tempo. – Qual dos dois está doente, ele ou ela? – perguntou Hans Castorp. – Acho que é ele. Sim, é só ele – respondeu Joachim, visivelmente distraído, enquanto dependuravam os sobretudos nos cabides, à entrada da sala de refeições. Feito isso, entraram no recinto bem iluminado, de teto levemente abobadado, onde burburinhavam vozes, tiniam talheres e corriam criadas com bules fumegantes. Havia sete mesas na sala, a maioria em sentido longitudinal e apenas duas colocadas transversalmente. Eram mesas bastante grandes, cada qual com capacidade para dez pessoas, se bem que nem todas estivessem completamente ocupadas. Alguns passos em diagonal através da sala bastaram para que Hans Castorp alcançasse o lugar que se encontrava preparado para ele no lado estreito da mesa central entre as duas transversais. De pé, atrás da sua cadeira, Hans Castorp inclinou-se numa mesura reservada e polida para os companheiros de mesa, a quais Joachim, cerimoniosamente, o apresentou. Mal os encarou, ainda menos chegou a gravar na memória os seus nomes. Unicamente o nome e a pessoa da Srª. Stöhr lhe chamaram a atenção, e também o fato de ela ter um rosto vermelho e cabelos gordurentos de um louro acinzentado. Sua fisionomia revelava tão obstinada ignorância, que facilmente se podiam esperar dela crassos disparates. A seguir, Hans Castorp sentou-se e notou com satisfação que o café da manhã era considerado ali como uma refeição importante. Havia na mesa tigelas com geléias e com mel, pratos com arroz-doce e com mingau de aveia, travessas com ovos mexidos e com carne fria; a manteiga figurava em abundancia; alguém estava a levantar a redoma de vidro para cortar um pedaço de queijo suíço, úmido de gordura; e no centro da mesa via-se ainda uma fruteira com frutas, frescas e secas Uma criada vestida de preto e branco perguntou a Hans Castorp o que ele desejava beber: chocolate, café ou chá. Era baixinha como uma criança, e tinha um rosto oblongo, de velha. Como Hans Castorp constatou com espanto, era uma anã. Ele lançou um olhar ao primo, mas este se limitou a dar de ombros, franzindo as sobrancelhas, como para dizer: “E daí?” Assim, Hans Castorp, conformando-se com o fato estranho, pediu chá, com especial cortesia, por se tratar de uma anã. Pôs-se, então, a comer arroz-doce com canela, enquanto seus olhos vagavam por sobre os demais pratos, que ainda desejava provar, e estudavam os hóspedes distribuídos nas sete mesas – os colegas de Joachim, seus companheiros de destino, todos enfermos interiormente, e que ali, conversando, tomavam o café da manhã. A sala estava decorada com aquele gosto moderno que sabe dar um cunho fantástico à mais singela objetividade. Não era muito larga em proporção a seu comprimento. Rodeava-a uma espécie de passeio onde se viam aparadores, e que se abria em amplas arcadas para o interior cheio de mesas. Os pilares revestidos, até meia altura, de madeira cujo lustro imitava sândalo, e dali em diante caiados, da mesma forma como a parte superior das paredes e o teto, ostentavam faixas multicores com motivos simples e alegres, que se repetiam nos vastos arcos da abóbada pouco acentuada. Guarneciam a sala alguns candelabros elétricos, de latão polido, compostos de três argolas superpostas, ligadas entre si por um entrelaçamento decorativo; em volta da argola inferior havia uma série de globos de vidro fosco, parecidos com pequenas luas. Existiam quatro portas envidraçadas, duas em frente de Hans Castorp, na largura da sala, que davam para um avarandado, uma terceira à esquerda, que conduzia diretamente ao vestíbulo de entrada, e finalmente aquela pela qual Hans Castorp entrara, vindo de um corredor, uma vez que Joachim o guiara por uma escada diferente da que haviam usado à noite passada. À sua direita estava sentada uma criatura pouco vistosa, vestida de preto, de tez veludosa e faces levemente febris, que dava a Hans Castorp a impressão de ser costureira ou modista, sem dúvida porque ela tomava apenas café com pão e manteiga, e porque nele a idéia de uma costureirinha fazia tempo que se associara com esse tipo de refeição. O lugar à sua esquerda estava ocupado por uma senhorita inglesa, também já avançada em anos, muito feia, com dedos magros e enregelados; lia cartas da sua terra, escritas em letra redonda, enquanto bebia um chá cor de sangue. Depois vinha Joachim e, em seguida, a Srª. Stöhr, numa blusa de lã enxadrezada – ao comer, mantinha a mão esquerda firmemente cerrada nas proximidades da face. Era visível o seu esforço de proferir as palavras com um ar de distinção e cultura, mostrando uns grandes e estreitos dentes de lebre, sob o lábio superior. Um jovem de fino bigode, e com a cara de quem tem na boca qualquer coisa de gosto repugnante, sentou-se ao lado dela e tomou a refeição em completo silêncio. Entrou quando Hans Castorp já se instalara na cadeira; saudou os comensais com um rápido gesto de queixo, enquanto ainda caminhava, e ocupou o seu assento, demonstrando claramente que não tencionava travar conhecimento com o novo pensionista. Talvez estivesse demasiado enfermo para dar atenção a esse tipo de convenções e para se interessar pelo ambiente em geral. Durante um momento sentou-se à sua frente uma jovem extraordinariamente magra, de cabelos louro-claros, que esvaziou no prato uma garrafa de iogurte, tomou-o com a colher e sumiu imediatamente. A conversação à mesa não era muito animada. Joachim palestra cerimoniosamente com a Srª. Stöhr, informando-se a respeito da sua saúde e inteirando-se com um pesar formal de que esta deixava muito a desejar. A Srª. Stöhr queixou-se de seu estado de “lassidão”. – Sinto-me tão lassa! – disse, arrastando as sílabas com a afetação peculiar às pessoas pouco cultas. Já antes de se levantar tivera 37,3 e quanto não teria de tarde? A costureira, como comunicou, tinha a mesma temperatura, mas declarou sentir-se, pelo contrário muito agitada tomada de uma tensão íntima, desassossegada, como se se achasse às vésperas de um acontecimento singular e decisivo, o que em absoluto não era o caso, visto se tratar de uma excitação puramente física, sem motivos na alma. Já não parecia ser costureira, por quanto se expressava numa linguagem correta até erudita. A Hans Castorp, por sua vez, essa tal excitação ou pelo menos o fato de se falar dela, causou a impressão de uma coisa até certo ponto inconveniente e quase escandalosa, numa criatura tão insignificante e prosaica. Perguntou primeiro à costureira, e depois à Srª. Stöhr, há quanto tempo já se achavam no sanatório, e ficou sabendo que aquela vivia ali fazia cinco meses, e esta há sete. A seguir reuniu seus conhecimentos de inglês para interrogar a sua vizinha da direita acerca da qualidade de chá que ela tomava – era chá de roseira brava –, e se tinha um sabor agradável, o que a senhora confirmou quase impetuosamente. Feito isso, pôs-se a contemplar a sala, onde as pessoas iam e vinham, já que o café da manhã não constituía uma refeição que se fizesse rigorosamente em comum. Receara um pouco receber impressões horrorosas, mas viu-se logrado; o ambiente nessa sala parecia bastante animado. Absolutamente não despertava a idéia de um lugar de sofrimentos. Jovens de ambos os sexos, tostados pelo sol, entravam cantarolando, conversavam com as criadas e atacavam a comida com vigoroso apetite. Havia também pessoas mais idosas: casais, uma família inteira, com crianças, que falavam russo, e até uns adolescentes. As mulheres vestiam, quase todas, casaquinhos muito justos, de lã ou seda, suéteres, como os chamavam, ora brancos ora à fantasia, com golas voltadas para fora e bolsos laterais. Era bonito ver como andavam ou palestravam com as mãos enterradas nesses bolsos. Em algumas mesas, eram exibidas fotografias, sem dúvida instantâneos recentes, tirados pelos próprios pensionistas. Numa outra mesa, trocavam selos. Falavam do tempo, de como haviam dormido, e da temperatura que tinham de manhã, tirada na boca. A maioria mostrava-se alegre, provavelmente sem motivo particular, apenas por não terem preocupações imediatas e estarem reunidos num grupo numeroso. Verdade é que alguns se achavam sentados à mesa, com a cabeça apoiada nas mãos e o olhar cravado à sua frente. Mas os outros deixavam-nos cismar, e ninguém lhes prestava atenção. De repente, Hans Castorp sobressaltou-se, irritado e como que ferido. Uma porta acabava de bater violentamente, a porta da esquerda, que dava para o vestíbulo. Escapara às mãos de alguém, ou foi mesmo fechada com estrondo. Era esse um ruído que Castorp abominava, e que sempre o enfurecia. Talvez se baseasse essa animosidade na sua educação, talvez proviesse de uma idiossincrasia inata; em todo caso ele detestava as portas cerradas com estrondo e tinha vontade de esbofetear a quem cometesse esse crime na sua presença. No caso particular, tratavase, além do mais, de uma porta envidraçada, o que, pelo tinir estridente, aumentava o choque. “Barbaridade!”, disse Hans Castorp de si para si, todo revoltado, “que falta de educação!” Mas, como no mesmo instante a costureira lhe dirigisse a palavra, não teve tempo para descobrir o culpado. Contudo, assomaram-lhe algumas rugas entre as sobrancelhas louras, enquanto respondia à interlocutora. Joachim perguntou se os médicos já haviam passado. – Sim, fizeram a primeira ronda – respondeu alguém. Acabavam de sair precisamente no momento em que os primos tinham entrado. Nesse caso era melhor irem-se embora, sem esperar, opinou Joachim. Sem dúvida encontrariam, no decorrer do dia, outra oportunidade para apresentar Hans Castorp. Mas na porta quase esbarraram com o Dr. Behrens, que entrava a passo rapidíssimo, acompanhado do Dr. Krokowski. – Epa! Cuidado cavalheiros! – exclamou Behrens – Este encontro poderia ter acabado num desastre para os nossos calos. – Falava com a pronúncia arrastada do noroeste da Alemanha e mastigava as palavras. – Então o senhor é o tal? – disse a Hans Castorp quando Joachim o apresentou, batendo os calcanhares – Muito prazer. – E estendeu ao jovem uma mão do tamanho de uma pá. Era um homem ossudo, muito mais alto do que o Dr. Krokowski, de cabelos completamente brancos, com a nuca saliente, grandes olhos azuis, proeminentes, injetados e lacrimosos, nariz arrebitado e um bigodinho curto, um tanto torto, em virtude de um franzimento unilateral do lábio superior. O que Joachim dissera das bochechas do médico era pura verdade: eram azuis, de maneira que a cabeça formava um berrante contraste com o jaleco branco de cirurgião que ele usava; jaleco cintado, que descia abaixo dos joelhos, deixando ver as calças listadas e uns pés colossais, calçados de botinas amarelas, bastante surradas. O Dr. Krokowski também andava de trajes profissionais, mas o seu jaleco era de lustrina preta com elásticos nos punhos, e que lhe realçava ainda mais a palidez. Limitando-se a um mero papel de assistente, não tomou parte na cena de apresentação, mas uma certa tensão crítica da sua boca demonstrou que ele julgava um tanto esquisita a sua posição de subalterno. – Primos, hem? – perguntou o Dr. Behrens, apontando para os dois jovens. Fixava neles os olhos azuis, injetados de sangue. – E o outro também está apaixonado pelo rufar dos tambores? – indagou de Joachim, avançando a cabeça na direção de Hans Castorp. – Nunca na vida; não é? Eu vi logo – agora se dirigia a Hans Castorp – que o senhor tem qualquer coisa de paisano, de comodista. Não é marcial como esse guerreiro aí. Aposto como seria melhor paciente do que ele. Nota-se imediatamente se alguém tem ou não tem vocação para ser um paciente que preste. Para isso precisa-se talento, como, aliás, é necessário para tudo, e esse ajudante de cozinha aí não mostra nem a menor sombra disso. Pode ser até que sirva para o campo de manobras, mas não tem jeito para doente. A todo momento quer ir embora, imagine! Sempre quer ir embora, e não pára de insistir comigo e de me suplicar; simplesmente não pode esperar o dia em que comecem a judiar com ele, lá embaixo. Que excesso de entusiasmo! Não nos quer sacrificar nem meio ano. E contudo leva uma vida bonita aqui. Diga o senhor mesmo, Ziemssen, é ou não é uma vida bonita? Bem, o senhor seu primo saberá nos apreciar melhor; ele vai se divertir, tenho certeza. Mulheres não faltam aqui, e por sinal são encantadoras. Pelo menos, quando vistas de fora, há algumas muito pitorescas. Mas o senhor deveria era melhorar um pouco as suas cores, para não fazer um papel feio diante do belo sexo. Dizem que a árvore da vida é verde, muito bem, mas para a cútis, o verde não me parece indicado. Totalmente anêmico, claro constatou, aproximando-se sem mais aquela de Hans Castorp e baixando-lhe uma das pálpebras com o índice e o dedo médio. – Eu disse logo que o senhor está totalmente anêmico. Quer saber uma coisa? Não era má idéia abandonar por algum tempo a sua querida Hamburgo. Não nego que seja uma cidade à qual nós aqui devemos ficar muito gratos. Sempre nos manda um bom contingente, graças à sua meteorologia úmida. Mas permita-me que eu aproveite a ocasião para dar-lhe o meu despretensioso conselho, sine pecúnia, sabe? Enquanto estiver aqui, faça a mesma coisa que seu primo. Nada melhor, no seu caso, do que viver por algum tempo, como se tivesse uma ligeira tuberculosis pulmonum, e acumular algumas proteínas. É uma coisa curiosa, no nosso meio, esse metabolismo protéico... Embora fique aumentada a combustão geral, o corpo chega a fixar proteínas... Mas então, Ziemssen, dormiu bem? Lindo, não é? E agora um passeio, vamos! Mas só meia hora, e nada mais! E depois ponha na boca o charuto de mercúrio. Convém sempre tomar nota, Ziemssen minuciosamente! Sábado quero ver a sua curva. E seu primo pode também tomar a temperatura. Controlar não faz mal a ninguém. Passar bem, senhores. Divirtam-se. Adeusinho Adeusinho... E o Dr. Krokowski acompanhou o chefe, que continuava cruzando a sala, balançando os braços, com as palmas das mãos voltadas para trás, e perguntando à direita e à esquerda se haviam dormido bem, que todos afirmavam. Brincadeira de mau gosto. Viático. Hilaridade interrompida – Homem muito simpático – disse Hans Castorp, enquanto atravessavam o portal, após terem cumprimentado amavelmente o porteiro coxo, que se achava na sua guarita classificando cartas. Saíram a ar livre. O portal encontrava-se na parte sudeste do edifício caiado de branco, cujo corpo central tinha um andar a mais que as duas alas e era encimado por uma pequena torre coberta de zinco e guarnecida de um relógio. Quem saia por esse portal, não entrava no jardim cercado, mas penetrava logo na natureza livre, com vista sobre prados que se estendiam pelas encostas das montanhas e estavam semeados de isolados abetos de pouca altura e de pinheiros tortos, agachados no chão. O caminho pelo qual trilhavam era na realidade o único que existia, com exceção da estrada que descia ao vale. Passava em ligeiro declive atrás do sanatório, rumo à esquerda, ladeando a cozinha e a despensa, onde se viam grandes recipientes de lixo ao longo das grades da escada que conduzia ao porão. O caminho seguia ainda alguns instantes a mesma direção, para, após uma volta brusca à direita, elevar-se numa subida íngreme ao longo da encosta escassamente arborizada. Era uma vereda de chão duro, avermelhado, ainda um tanto úmido, a cuja beira jaziam de quando em quando uns blocos de pedra. Os primos não eram os únicos a passear. Alguns hóspedes, que haviam terminado a refeição quase ao mesmo tempo que eles, seguiam-nos a curta distância, e outros grupos, já de regresso, vinham-lhes ao encontro, com o passo ruidoso de pessoas que descem. – Homem muito simpático – repetiu Hans Castorp. – Tem um jeito tão desembaraçado de falar! Dá gosto ouvi-lo. Essa do charuto de mercúrio, para designar o termômetro, é mesmo muito boa. Compreendi logo... Mas agora vou acender um charuto de verdade – disse, estacando. – Já não agüento mais sem ele. Desde o meio-dia de ontem que não fumo nada que preste. Com licença! – Tirou da charuteira de couro de verniz, enfeitada com as suas iniciais em prata, um Maria Mancini, belo exemplar da camada superior da caixa, achatado de uma face, como ele gostava especialmente. Cortou a ponta com uma pequena guilhotina de corte angular, que trazia na corrente do relógio. Acendeu o isqueiro, pôs fogo ao charuto bastante comprido, de ponta vertical, e tirou algumas baforadas gostosas. – Muito bem – disse então – quanto a mim, podemos continuar o passeio. Você não fuma, claro, devido àquele excesso de entusiasmo. – Nunca fumei – respondeu Joachim. – Para que fumaria justamente aqui? – Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar. Um dia sem tabaco seria para mim o cúmulo da insipidez, um dia totalmente vazio, sem o mínimo atrativo, e se eu qualquer dia despertasse sabendo que não poderia fumar, acho que não teria coragem nem para me levantar. Francamente, eu ficaria na cama. Olhe, quando a gente fuma um charuto que puxa bem... claro que não deve estar furado, o que constitui um defeito muito desagradável... quero dizer, quando a gente fuma um charuto bom, sente-se garantido e nada lhe pode acontecer. É a mesma coisa como deixar-se ficar deitado numa praia de mar; fica-se deitado, não é? Não se tem a necessidade de nada, nem de trabalho nem de distrações... E fuma-se no mundo inteiro, graças a Deus! Ao que me parece, não existe nenhum lugar onde esse prazer seja desconhecido, por mais longe que arraste o destino Até os exploradores das regiões polares levam fumo em abundância, para que possam agüentar os esforços das suas viagens. Isto sempre me pareceu simpático. Pode acontecer que uma pessoa ande muito mal... Suponhamos, por exemplo, que eu me encontre num estado lamentável... mas, enquanto tiver o meu charuto agüentarei firme, disso tenho certeza. O charuto me faria vencer qualquer obstáculo. – Contudo, é um sinal de fraqueza – objetou Joachim – depender do fumo até esse ponto. Behrens tem toda a razão: você um paisano Ele disse isto em sentido elogioso, mas você é mesmo um paisano incorrigível. Mas, afinal de contas, anda bem de saúde e pode fazer o que quiser – acrescentou, e seus olhos assumiram uma expressão cansada. – Sim, com exceção desta anemia – disse Hans Castorp. – E não usou luvas de pelica para me falar à queima-roupa da minha cor verde. Mas é verdade, eu mesmo notei que em comparação com o pessoal daqui, meu rosto é quase verde. Lá em casa não tinha reparado nisso. E achei muito gentil da parte dele dar-me assim, sem mais aquela, uns conselhos desinteressados, sine pecunia, como disse. Tenho a intenção de fazer o que ele me recomendou, e de adaptar o meu estilo de vida ao seu... Que mais poderia fazer aqui em cima? E não me fará mal nenhum acumular algumas proteínas, embora essa expressão me soe meio repugnante Não acha também? Enquanto caminhava, Joachim tossiu algumas vezes. Ao que parecia, cansava-o a subida. Quando pela terceira vez teve um acesso de tosse, estacou, franzindo a testa, e disse: “Toque para a frente!” Hans Castorp apressou-se em prosseguir no caminho, sem olhar para trás. Depois diminuiu o passo, até quase parar, porque tinha a impressão de se ter adiantado muito ao primo. Mas não voltou a cabeça. Um grupo de pensionistas de ambos os sexos vinha se aproximando dele. Hans Castorp já os vira trilhar o caminho plano a meia altura da encosta. Agora se achavam na descida, indo a seu encontro, a passo barulhento, numa confusão de vozes. Eram seis ou sete pessoas de diferentes idades, umas muito jovens, outras um tanto avançadas em anos. Hans Castorp contemplou-as, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto seus pensamentos se ocupavam com Joachim. Andavam sem chapéu, tostados pelo sol. As senhoras vestiam pulôveres de cor, ao passo que os homens, na sua maioria, iam sem sobretudo e mesmo sem bengala, como quem sai sem cerimônias, com as mãos nos bolsos, para dar uma voltinha. Achavam-se na descida, que não exige grande esforço muscular, mas apenas um ligeiro refreamento pelas pernas fincadas no chão, para evitar o excesso de velocidade e o conseqüente tropeção. Assim, seu modo de andar tinha algo de alado e leve, que se comunicava às suas fisionomias e à sua atitude em geral e inspirava a quem os via o desejo de fazer parte do grupo. E já se encontravam próximos de Hans Castorp, que se pôs a examinar-lhes os rostos. Nem todos estavam queimados pelo sol. Duas senhoras destacavam-se até pela palidez, uma magrinha como um caniço, com uma tez de marfim, e a outra, mais baixa, gorducha, com a cara salpicada de lunares. Todos o fitaram com o mesmo sorriso petulante. Uma mocinha alta, de suéter verde, com cabelos desgrenhados e uns estúpidos olhos semicerrados, passou tão perto de Hans Castorp que quase lhe roçou o braço. E ao mesmo tempo assobiava... Mas, que coisa louca! Assobiava, porém não o fazia com a boca. Nem sequer contraía os lábios; pelo contrário, mantinha-os firmemente cerrados. Havia qualquer coisa que assobiava no seu interior, enquanto ela encarava Hans Castorp, com uma mirada tola dos olhos entreabertos. Era um assobio sumamente desagradável, agudo, penetrante e todavia oco, prolongado e que pelo fim baixava de tom, assim como fazem aqueles porquinhos de borracha que se compram nas feiras, e que deixam escapar, com um som gemebundo, o ar insuflado. Tal era o ruído que partia inexplicavelmente do peito da jovem, enquanto ela se afastava com o resto do grupo. Hans Castorp quedou-se imóvel, olhando para longe. Então se virou bruscamente, percebendo que esse assobio atroz fora um trote, uma brincadeira de antemão preparada, pois viu pelos movimentos de ombro que aquela gente se ria dele. Um rapaz atarracado e beiçudo que, para andar com as mãos nos bolsos da calça, levantava o paletó de uma forma bastante inconveniente, virou-se descaradamente para ele e riu... Nesse meio tempo, Joachim se aproximara. Passou pelo grupo, cumprimentando-o na sua maneira militar, fazendo uma quase continência, e inclinando-se, de tacões unidos. Em seguida, voltou-se para o primo com um olhar interrogador. – Que é que há com você? – perguntou. – Ela assobiou! – respondeu Hans Castorp. – Assobiou com a barriga, ao passar junto de mim. Tenha a bondade de me explicar como isso se faz. – Ora! – exclamou Joachim, com uma risada desdenhosa. – Não foi com a barriga. Bobagem! É a Kleefeld, Hermine Kleefeld. Assobia com o pneumotórax. – Com quê? – gritou Hans Castorp, sumamente excitado, sem no entanto, saber em que sentido: vacilava entre o riso e o choro quando acrescentou: – Afinal de contas não se pode esperar de mim que eu compreenda a gíria de vocês. – Vamos adiante – disse Joachim. – Posso lhe explicar tudo isso, enquanto a gente passeia. Parece mesmo que você criou raízes. Trata-se de um negócio de cirurgia, compreende? É uma intervenção que freqüentemente executam aqui. O Behrens tem grande prática nisso... Quando um pulmão está muito atacado, e o outro está bom, ou pelo menos relativamente bom, dispensa-se o lado enfermo por algum tempo de qualquer atividade, a fim de poupá-lo. Quer dizer, dão um talho nesta região, no flanco, não sei precisamente onde, mas o Behrens é um mestre nessas coisas. E depois enchem a gente de gás, de nitrogênio; sabe? E assim o pulmão carcomido é posto fora de ação. É claro que o gás introduzido no corpo não se conserva indefinidamente. Precisa ser renovado de quinze em quinze dias, mais ou menos. É a mesma coisa que reencher um balão; compreende? Ao cabo de um ano ou mais, se tudo for bem, pode o pulmão curar-se graças a esse completo descanso. Mas, nem sempre termina assim, e parece até que a intervenção é bastante arriscada. Contudo, dizem que já foram obtidos muitos bons resultados com esse pneumotórax. Toda aquela turma, que você acaba de encontrar, anda com ele. Havia lá a Srª. Iltis, aquela que tem os lunares, sabe? E a Srta. Levi, uma magrinha, se você se lembra; ela ficou de cama por muitíssimo tempo. Eles formaram um grupo, pois essa coisa do pneumotórax estabelece uma relação natural entre as pessoas. Chamam-se entre si a “Sociedade Meio-Pulmão”; são conhecidos por esse nome. Mas o orgulho da sociedade é a Hermine Kleefeld, porque sabe assobiar com o pneumotórax. É um talento especial que muito poucos têm. Como ela consegue fazê-lo, não lhe posso explicar; nem ela mesma sabe explicá-lo claramente. Depois de ter andado depressa, é capaz de assobiar interiormente, e disso se aproveita para dar um susto à gente, sobretudo aos doentes recém-chegados. Acho, aliás, que com isso perde nitrogênio, pois precisa reabastecer-se de oito em oito dias. Agora, Hans Castorp desatou a rir. No decorrer das explicações de Joachim, a sua excitação tomara decididamente o rumo da hilaridade. Enquanto prosseguia no caminho, cobrindo os olhos com a mão e inclinando-se para a frente, sentiu os ombros sacudidos por uma rápida sucessão de risinhos silenciosos. – É uma sociedade registrada? – perguntou, numa voz embargada, que, à força de conter o riso, soava chorona e levemente queixosa. – Tem estatutos? Que pena você não ser sócio. Olhe, nesse caso poderiam admitir-me como sócio honorário ou como... visitante. Você deveria pedir ao Behrens que lhe ponha parte dos pulmões fora de ação. Quem sabe se você não conseguiria também assobiar, se se esforçasse um pouco? Afinal de contas, isto se aprende... Em todo caso é a coisa mais engraçada que já vi – acrescentou, com um profundo suspiro. – Escute, não me leve a mal que eu fale desse jeito, mas eles mesmos andam tão bem-humorados, esses seus amigos pneumáticos. Quem vê como caminham assim, alegremente... E quando se pensa que essa era a “Sociedade Meio-Pulmão!” “Fiu-u”, sibilou ela... Que pequena! Mas isso é pura traquinice. Por que estão tão alegres, pode me explicar? Joachim esforçou-se por encontrar uma resposta. -meu Deus – disse enfim – eles estão tão livres... quero diz é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes vem a idéia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso, quando estiver mais tempo aqui em cima. -sem dúvida – confirmou Hans Castorp. – Tenho até certeza disso. Desde que estou aqui, comecei logo a me interessar pela vida de vocês, e quando a gente tem interesse por alguma coisa, não tarda compreendê-la, não é?... Mas, que se passa comigo? Não me agrada! – disse abruptamente, olhando o charuto. –Já faz tempo que pergunto o que é que me incomoda, e agora vejo que é o Maria que não tem sabor nenhum. Tem um gosto de papel mascado. Eu garanto que me sinto como se tivesse o estômago desarranjado. É mistério para mim. Não nego que hoje comi muita coisa, mas isso não pode ser o motivo, pois quanto mais se come, mais aroma tem charuto. Que acha você? Será porque tive uma noite muito agitada? Talvez seja isto... Não! Não há jeito! Vou jogá-lo fora – concluiu, após uma nova tentativa. – Cada tragada a mais aumenta a decepção. Não adianta forçar. – Depois de hesitar um momento, atirou o charuto encosta abaixo, por entre a brenha úmida. – Quer saber coisa? – perguntou então. – Estou convencido de que isso tem alguma relação com aquele maldito ardor no rosto, que está me incomodando outra vez, desde que me levantei. O diabo sabe por quê, mas tenho a impressão de estar todo corado... Você também sentiu isso, quando chegou aqui? -senti, sim – disse Joachim. – No começo estranhei também muita coisa. Mas não se preocupe. Eu já lhe disse que não é tão fácil aclimatar-se aqui em cima. Tudo isso se arranja. Olhe esse banco aí tem uma vista bonita. Vamos sentar-nos um pouquinho e depois voltar. Está quase na hora do repouso. O caminho tomara-se plano. Corria agora na direção de Davos-Platz, e oferecia, por entre altos e delgados pinheiros, dobrados pelo vento, o panorama do povoado que se estendia branco sob a luz clara. O banco de feitio tosco, em que se sentaram, encostava-se à vertente íngreme. A seu lado, um curso d'água corria rumo ao vale, gorgolejando e cachoando através de uma calha de madeira. Com a ponta de seu bastão alpino, Joachim pôs-se a designar ao primo os nomes dos cumes envoltos em nuvens, que pareciam fechar o vale pelo lado sul. Mas Hans Castorp limitouse a olhá-los de relance. Inclinado para a frente, desenhava na areia com a bengala fina guarnecida de prata. O que lhe interessava não era aquilo. – Há uma coisa que eu queria lhe perguntar... – começou. – Aquela doente que ocupava o meu quarto acabava de “esticar as canelas”, quando cheguei. Já houve muitos outros óbitos, desde que você está aqui? – Deve ter havido alguns – respondeu Joachim. – Mas são tratados com muita discrição, sabe? A gente não nota nada, ou apenas casualmente mais tarde. Quando alguém morre, passa-se tudo no mais estrito sigilo, em consideração aos outros pacientes, sobretudo às senhoras, que, sem isso, talvez teriam crises de nervos. Você nem percebe, quando alguém morre no quarto pegado ao seu. Trazem o caixão de madrugada, enquanto todos estão dormindo, e vão buscar a pessoa em questão somente em horas determinadas, por exemplo durante as refeições. – Hum! – disse Hans Castorp, continuando a desenhar. – As coisas se passam então atrás dos bastidores. – Sim, isto não é exagero. Mas recentemente... faz... espere um pouco, faz talvez umas oito semanas... – Nesse caso não se pode dizer “recentemente” – objetou Hans Castorp, vigilante e crítico. – Como? Ah, sim, então não foi recentemente. Como você é meticuloso! Eu disse o número apenas por dizer. Bem, faz pouco tem tive ocasião de lançar um olhar atrás dos bastidores, por mero acaso. Lembro-me daquele momento como se fosse hoje. Foi quando levaram o viático, o sacramento da extrema-unção, sabe? Os Santos Óleos, à pequena Hujus, Barbara Hujus, que era católica. Quando cheguei aqui, ela ainda não estava de cama, e fazia travessuras que nem uma colegial de quinze anos. Mas depois foi enfraquecendo rapidamente. Não se levantou mais. Seu quarto achava-se a três portas do meu. Por fim chegaram seus pais, e um dia, também o padre. Veio quando todo mundo estava tomando o chá da tarde e não havia ninguém nos corredores. Mas, imagine o que me aconteceu: adormeci durante o repouso geral, não ouvi o sinal do gongo e me atrasei uns quinze minutos. Assim se deu que no momento crítico, em vez de me achar entre os outros, me perdi atrás dos bastidores para usar a sua expressão. Eu estava a ponto de atravessar o corredor, quando apareceram e foram ao meu encontro, com camisas de renda e uma cruz à sua frente, uma cruz de ouro, com lanternas, como se fosse o estandarte da banda do regimento. – É uma comparação pouco adequada – disse Hans Castorp com certa severidade. – Ora, eu tive essa impressão. Foi sem querer que me lembrei disso. Mas ouça o que aconteceu então. Vinham em minha direção, passo apressado. Eram uns três, se não me engano; à frente o homem da cruz, depois o sacerdote, com óculos no nariz, e por fim um menino com o turíbulo. O padre levava à altura do peito o viático recoberto e mantinha a cabeça humildemente inclinada. Você compreende: era o Santo Sacramento. – Justamente – disse Hans Castorp. – Por isso estranhei quando você falou da banda do regimento. – Pois é. Mas espere um pouco. Se você tivesse assistido à cena, também não saberia o que pensar dessa recordação. Era uma coisa capaz de lhe causar um pesadelo... – Por quê?... – Bem, eu não sabia como me comportar numa circunstância dessas. Não andava de chapéu, para que o pudesse tirar... – Está vendo? – interrompeu-o Hans Castorp mais uma vez. – Está vendo como é necessário levar chapéu? Notei naturalmente que aqui todos andam sem. Contudo, se deve usar um chapéu, para poder tirá-lo nas ocasiões oportunas... E que aconteceu então? – Postei-me junto da parede – disse Joachim – numa atitude conveniente. Quando se aproximaram de mim, fiz uma leve mesura. Era precisamente em frente do quarto da pequena Hujus, número vinte e oito. Acho que o padre ficou satisfeito ao ver a minha reverência; agradeceu muito amavelmente, tirando o barrete. E no mesmo instante pararam. O menino com o turíbulo bateu à porta, abriu então e deu passagem ao superior. E agora imagine o meu espanto e veja se compreende o que senti! No momento em que o sacerdote atravessa o limiar do quarto, começa lá dentro um barulhão, uns berros como você nunca ouviu, umas três ou quatro vezes seguidas, e depois uma gritaria ininterrupta, contínua, gritos que pareciam sair de uma boca vastamente aberta, assim: aaaaah! Expressava-se nisso tanta desolação, tanto horror, tanto protesto, que é indescritível, e havia no meio umas súplicas tão pungentes!... E de repente tudo se torna cavo e surdo, como se a voz se tivesse sumido debaixo da terra e viesse das profundezas do porão. Hans Castorp voltou-se bruscamente para o primo: – Era a Hujus? – gritou, nervoso. – E por que parecia a voz vir do porão? – Ela se tinha escondido sob os cobertores – explicou Joachim. – Imagine a impressão que eu tive! O sacerdote permanecia perto da entrada, pronunciando algumas palavras tranqüilizadoras. Parece-me que o vejo ainda. Ao falar, avançava um pouco a cabeça, e depois a retraía novamente. O homem com a cruz e o coroinha achavam-se ainda no limiar do quarto, sem poderem entrar. E por entre os dois, eu podia ver o interior do quarto. É igual aos nossos, com a cama à esquerda da porta, contra a parede. À cabeceira havia algumas pessoas, os pais naturalmente, que também se inclinavam para a cama, proferindo palavras de consolo, e na cama só se via uma massa informe, que suplicava, esperneava e protestava atrozmente. – Esperneava mesmo? – Com todas as forças. Mas de nada lhe adiantou. Era inevitável que ela recebesse a extrema-unção. O padre aproximou-se dela, os dois outros entraram também, e a porta fechouse. Mas antes pude ainda enxergar a cabeça de Hujus, que apareceu por um segundo, com os cabelos louros totalmente revoltos. Ela cravou no sacerdote os olhos arregalados, uns olhos como que pálidos, completamente descorados e logo lançou uns gritos e voltou a esconder-se debaixo da colcha. – E você me conta essa história só agora? – disse Hans Castorp depois de um silêncio. – Não compreendo por que deixou de fazê-lo ontem à noite... Mas, meu Deus, ela devia estar muito forte ainda para se defender desse jeito. Para isso precisa-se muita força. Só deveriam buscar o padre quando uma pessoa estivesse muito fraca. – Estava fraca, sim – replicou Joachim. – Ora, não me faltam histórias para contar. O difícil é fazer a primeira seleção... Bem, e estava mesmo muito fraca. O que lhe dava tanta força era unicamente o medo. Sentia um pavor horrível, porque percebia que estava às portas da morte. Era uma mocinha, afinal, e isto justifica até certo ponto a sua conduta. Mas há também homens que se comportam assim, o que revela uma covardia imperdoável. O Behrens sabe, aliás, como lidar com esses tipos. Ele encontra o tom adequado. – Que tom? – perguntou Hans Castorp, franzindo as sobrancelhas. – “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma. Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu: – Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado. – Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente... – Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas. – Psiu! – fez Joachim de repente. – Cale-se! – cochichou, dando uma cotovelada ao primo que ainda se ria a bandeiras despregadas. Hans Castorp ergueu os olhos, através das lágrimas. Vindo da esquerda, aproximava-se um forasteiro, um senhor baixinho, moreno, com bigode preto elegantemente torcido, e com calças de xadrez claro. Trocou com Joachim um “Bom dia!” – sua saudação era nítida e sonora e deteve-se à frente dos dois jovens, numa atitude graciosa, cruzando os pés e apoiando-se na bengala. Satã Seria difícil avaliar-lhe a idade. Devia ter entre trinta e quarenta anos, visto seus cabelos, nas fontes, se acharem entremeados de fios de prata e mais acima se tornarem bastante ralos, se bem que a aparência geral da sua pessoa desse a impressão de juventude. Duas entradas profundas ressaltavam ao lado da fina risca que repartia os escassos cabelos, e davam a impressão de aumentar a altura da fronte. Os trajes do forasteiro – amplas calças de xadrez amarelado e paletó muito comprido, de uma fazenda parecida com burel, com duas fileiras botões e lapelas largas –, esses trajes estavam longe de pretender elegância. O colarinho duro, de pontas arredondadas e viradas para baixo, já estava um tanto puído nas bordas, por ter sido lavado freqüentemente; a gravata preta estava gasta pelo uso. Além disso, notou Hans Castorp, pelo jeito frouxo como as mangas caíam sobre pulsos, que o desconhecido não usava punhos. Contudo, era visível tratar-se de um cavalheiro; a esse respeito não deixavam dúvidas cunho de cultura, que marcava o rosto do forasteiro, nem tampouco a sua atitude natural e quase nobre. Tal mescla de desalinho e graça, combinada com uns olhos negros e o bigode suavemente ondulado, fez Hans Castorp pensar em certos músicos estrangeiros que na época do Natal tocavam nos pátios de Hamburgo, e com os olhos aveludados dirigidos para cima estendiam os chapéus de aba larga, para que, das janelas, lhes lançassem moedas de dez Pfennige. “Um tocador de realejo”, pensou Hans Castorp, e assim não se admirou nem um pouquinho do nome que ouviu, quando Joachim se levantou do banco e, com algum acanhamento, fez a apresentação. -meu primo Castorp... o Sr. Settembrini. Também Hans Castorp se pusera de pé, para cumprimentar o cavalheiro. Seu rosto revelava ainda os traços daquele excesso de hilaridade. Mas o italiano, cortesmente, fez questão de que não se incomodassem, e obrigou-os a sentarem-se de novo, ao passo que ele mesmo permanecia em frente aos dois, na sua postura agradável. Esboçava um sorriso, ao manter-se assim, contemplando os primos, e principalmente a Hans Castorp; e essa expressão fina, um tanto zombeteira, que lhe aprofundava e encrespava uma das comissuras da boca, sob o espesso bigode, produzia um efeito singular, convidando, em certo sentido, à lucidez do espírito e à vigilância. Hans Castorp, de pronto sentindo-se como que desembriagado, envergonhou-se do seu anterior desenfreamento. – Os senhores estão de bom humor. Têm motivo, têm toda a razão. Uma esplêndida manha! O azul do céu, o sol a sorrir... – E com um gesto rápido, e elegante do braço, ergueu para o céu a mãozinha amarela, enquanto enviava na mesma direção um relance alegre. – Realmente, falta pouco para esquecermos onde estamos. Falava sem sotaque exótico, e somente a precisão da pronúncia poderia fazer adivinhar que se tratava de um estrangeiro. Seus lábios formavam as palavras com certa volúpia. Dava prazer ouvi-lo. – E o senhor teve uma viagem agradável? – perguntou a Hans Castorp. – Já lhe comunicaram a sentença? Quero dizer: já se realizou a sinistra cerimônia do primeiro exame médico? – Aqui deveria ter calado e aguardado, se realmente desejasse obter uma resposta; pois fizera a pergunta, e Hans Castorp estava a ponto de responder. Mas o forasteiro continuou imediatamente: – Tudo decorreu bem? Da sua hilaridade... – Silenciou por um instante, enquanto se acentuava o encrespamento dos seus lábios – ...pode-se tirar conclusões muito diferentes. Quantos meses lhe pespegaram os nossos Minos e Radamanto? – A palavra “pespegaram” soava particularmente engraçada em sua boca. – Deixe-me adivinhar. Seis? Ou logo nove? Ora, aqui não há parcimônia... Hans Castorp riu-se, cheio de surpresa, e ao mesmo tempo procurou recordar quem eram Minos e Radamanto. Respondeu então: – Desculpe, mas o senhor está enganado, Sr. Septem... -settembrini – corrigiu o italiano, com nitidez e presteza, acrescentando uma reverência humorística. – Sr. Settembrini, perdão! Mas, como já disse, há um equívoco da sua parte. Não estou doente. Faço apenas uma visita de algumas semanas ao meu primo Joachim e quero aproveitar esta ocasião para descansar um pouquinho... – Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido... – Até estas profundezas, Sr. Settembrini? Não diga isso, que subi uns cinco mil pés para chegar aqui... – É o que o senhor pensa. Palavra de honra, trata-se apenas uma ilusão – disse o italiano, com um gesto enérgico da mão. – Somos umas criaturas que caíram muito baixo; não é mesmo, tenente? – E com isso se voltou para Joachim, que se regozijou bastante ao ouvir o título, mas, esforçando-se por dissimular a sua satisfação, respondeu circunspectamente: – Pode ser que a gente se tenha apatetado aqui. Mas, afinal de contas, há meios de se regenerar... – Pois é, acho também que o senhor tem capacidade para isso; é um homem decente – disse Settembrini. – Sim, sim, sim! – acrescentou sibilando três vezes o “s” e fazendo estalar a língua outras tantas vezes contra o céu da boca. Depois, dirigindo-se a Hans Castorp exclamou: – Vejam só, vejam só, vejam só! – com a mesma pronúncia do “s” enquanto encarava o novato com tamanha intensidade, que seus olhos assumiam expressão fixa e cega. Por fim, reavivando o olhar prosseguiu: – De modo que o senhor veio voluntariamente a estas alturas, para visitar esta nossa gente decaída! Quer nos conceder por algum tempo o prazer da sua companhia... Ora, é muito gentil da sua parte. E quanto tempo tenciona ficar aqui? Sou indiscreto. Mas eu gostaria de conhecer o prazo que uma pessoa se fixa a si própria, quando se decide livremente, sem depender da vontade de Radamanto. – Três semanas – respondeu Hans Castorp, com um orgulho um tanto fátuo, ao notar que despertava inveja. – O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: “Vou passar aqui três semanas e depois partirei”? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, corno é o privilégio das sombras. Temos ainda outros privilégios, e todos eles são desse tipo. Posso perguntar que profissão o senhor exerce na vida lá de baixo, ou melhor, para que profissão se prepara? Como está vendo, não costumamos refrear a nossa curiosidade. Ela também faz parte dos nossos privilégios. – Com o maior prazer – disse Hans Castorp, e deu a explicação desejada. – Engenheiro naval? Magnífico! – gritou Settembrini. – Asseguro-lhe que essa profissão me parece magnífica, embora os meus próprios talentos sejam orientados num sentido diferente. – O Sr. Settembrini é escritor – explicou Joachim com certo acanhamento. – Escreveu o necrológio de Carducci para algumas revistas alemãs. Você sabe, Carducci?... – E tornou-se ainda mais acanhado, quando o primo o olhou pasmado, como se quisesse dizer: “Que sabe você de Carducci? Não mais do que eu, se não me engano muito.” – Exatamente – confirmou o italiano, sacudindo a cabeça. – Tive a honra de falar aos seus compatriotas da vida desse grande poeta e livre-pensador, quando essa vida tinha chegado ao fim. Conheci-o; posso chamar-me seu discípulo; em Bolonha, estive sentado aos seus pés. A ele devo o que possuo de cultura e de alegria de espírito... Mas estávamos falando do senhor. Engenheiro naval! Sabe o senhor que está subindo no meu conceito? De repente se me afigura como o representante de todo um universo de trabalho e de gênio prático. – Ora, ora, Sr. Settembrini, por enquanto sou apenas um estudante e me acho bem no início. – Pois é, e o primeiro passo custa. Como aliás é difícil todo trabalho que merece este nome, não é? – Difícil como o diabo – disse Hans Castorp, e essas palavras lhe saíram do fundo do coração. Rapidamente Settembrini franziu as sobrancelhas. – O senhor invoca o próprio diabo para confirmar isso? – perguntou. – Satã em pessoa? Sabe talvez que meu grande mestre lhe dedicou um hino? – Como? – admirou-se Hans Castorp. – Ao diabo? – Em carne e osso. De vez em quando cantam esse hino na minha pátria, por ocasião de certas solenidades: O salute, o Satana, o Ribellione, o foza vindice della Ragione... Uma maravilha esse cântico! Contudo, me parece pouco provável que o senhor tenha pensado justamente nesse Diabo, que está em ótimas relações com o trabalho. O diabo ao qual se referiu o senhor, e que abomina o trabalho, porque tem motivos para temê-lo, deve ser aquele outro do qual dizem que com ele não se brinca... Tudo isso causou uma impressão estranha ao bom Hans Castorp. Não compreendia o italiano, e o resto do que dizia Settembrini tampouco lhe inspirava muita confiança. Essas coisas cheiravam a sermão dominical, ainda que proferidas num tom de palestra leve e jocosa. Hans Castorp olhou o primo, que baixou os olhos, e depois disse: – O senhor toma as minhas palavras muito ao pé da letra, Sr. Settembrini. O que eu disse do Diabo era apenas uma maneira de falar e nada mais. – Deve haver uma pessoa com espírito – disse Settembrini, mirando o ar com uma expressão melancólica. Porém, reanimando-se imediatamente, e dando à conversa um caráter jovial, gracioso e conciliador continuou: -seja como for, posso deduzir, com razão, das suas palavras que o senhor escolheu uma profissão tão cansativa quanto honrosa. Meu Deus, eu sou humanista, sou um homo humanus, e nada entendo dessas coisas engenhosas, por mais sincero que seja o respeito que lhes voto. Mas imagino que a teoria da sua disciplina deve requerer um cérebro claro, penetrante; e a sua prática, um homem na genuína acepção da palavra. Não é assim? – Exatamente, é assim mesmo. Não posso deixar de concordar com o senhor – respondeu Hans Castorp, empenhando-se, mau grado seu, em falar com alguma eloqüência. – É enorme o que hoje em dia se exige de nós. Nem é bom pensar na extensão dessas exigências, pois do contrário arriscaríamos perder a coragem. Sim senhor, não é brinquedo. E quando uma pessoa não tem uma constituição muito robusta... Olhe, eu estou aqui apenas de visita, mas também não sou dos mais resistentes. Seria mentira se dissesse que me dou perfeitamente bem com o trabalho. Pelo contrário, devo confessar que o esforço me esgota bastante. No fundo, só me sinto à vontade quando nada faço... – Como, por exemplo, neste momento? – Neste momento? Ora, acabo de chegar aqui, e ando ainda meio tonto, como o senhor pode imaginar... -meio tonto? Ah!... – Pois é. Não dormi muito bem e, depois, o café da manhã foi muito reforçado... Estou acostumado a uma primeira refeição abundante, mas a de hoje parece que foi completa demais para mim, too rich, como dizem os ingleses. Numa palavra, eu me sinto um pouco angustiado. E ainda houve o charuto que, esta manhã, não me deu prazer nenhum. Imagine! Coisa que quase nunca me acontece, a não ser quando estou seriamente doente. E hoje o charuto estava com gosto de couro! Tive de jogá-lo fora, não adiantava forçar. O senhor fuma, se me posso permitir a pergunta? Não? Então não pode ter idéia do aborrecimento e da decepção que um caso desses provoca numa pessoa que desde a juventude gosta tanto de fumar, como eu... – Não tenho nenhuma experiência nesse campo – replicou Settembrini –, e com essa inexperiência não me acho em má companhia. Grande número de espíritos nobres e esclarecidos detestaram o tabaco. O próprio Carducci antipatizava com ele. Mas nesse ponto o senhor encontrará plena compreensão por parte do nosso Radamanto, que é um partidário do seu vício. -meu vício? Não diga isso, Sr. Settembrini. – Por que não? É preciso chamar as coisas pelos seus nomes verdadeiros, e fazê-lo energicamente. Isto fortifica e eleva a vida. Também eu tenho vícios. – O Dr. Behrens é, então, um apreciador de charutos? Que homem simpático! – O senhor acha? De modo que já travou conhecimento com ele... – Já. Faz pouco tempo, antes de sairmos. Foi quase uma consulta, mas sine pecunia, sabe? Ele notou imediatamente que estou bastante anêmico, e me deu o conselho de seguir, aqui, o mesmo regime que meu primo: passar muito tempo estendido na sacada e também tomar a minha temperatura. Assim me disse. – Realmente? – gritou Settembrini. – Que maravilha! – exclamou então, rindo-se às gargalhadas, com o rosto levantado para céu. – Como se diz na ópera de seu mestre: “Sou caçador de pássaros, sempre risonho, sempre alegre!” Escute, essa é mesmo divertida. E o senhor seguirá o conselho? Claro! Por que deixaria de fazê-lo? É esperto como o diabo, esse Radamanto! Com efeito, “sempre alegre”, se bem que às vezes de uma alegria meio forçada. Tem tendência para a melancolia. Seu vício não lhe faz bem (se fizesse não seria um vício), e o tabaco torna-o merencório. É por isso que nossa reverenda superiora se encarregou da administração das suas provisões de fumo e lhe concede somente pequenas rações diárias. Dizem que de vez em quando ele sucumbe à tentação de lhe roubar uns charutos a mais, e nesse caso cai em melancolia. Numa palavra: uma alma atarantada. O senhor já conhece a nossa enfermeira-chefe? Não? Que lástima! Seria imperdoável da sua parte, se não solicitasse honra de lhe ser apresentado. Ela pertence à estirpe dos Von Mylendonk, prezado senhor! Da Vênus de Médicis distingue-se num único ponto: no lugar onde a deusa mostra os seios, costuma a enfermeira-chefe usar um crucifixo. – Ah, ah, essa é boa! – riu-se Hans Castorp. – E seu prenome é Adriática. – Ainda isso? – exclamou Hans Castorp. – Francamente, extraordinário. Von Mylendonk e Adriática. É como se fosse uma pessoa morta há muito tempo. Parece até medieval. -meu caro senhor – retrucou Settembrini –, aqui existe muita coisa que “parece medieval”, para usar a sua expressão. Tenho para mim que foi exclusivamente o seu senso de estilo que fez o nosso Radamanto nomear esse fóssil diretora do seu Museu de Horrores. Pois ele é artista. Não sabia disso? Pinta a óleo. Que quer? Não é proibido, não é? Cada um tem plena liberdade de fazê-lo... Dona Adriática diz a todos quantos querem ouvi-la, e também aos que não querem, que em meados do século XIII houve uma Mylendonk que era abadessa de um convento em Bonn, às margens do Reno. Ela mesma não pode ter nascido muito tempo depois dessa época... – Ah, ah, ah! Acho que o senhor é muito irônico, Sr. Settembrini. – Irônico? Quer dizer: malicioso. Sim, sou um pouco malicioso – disse Settembrini. – Lamento apenas que me tenham condenado a desperdiçar a minha malícia com assuntos tão miseráveis. Espero que o senhor não se oponha à malícia, meu caro engenheiro. A meu ver, é ela a mais esplêndida arma da razão na luta contra as potências das trevas e da fealdade. A malícia, senhor, é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento. – E de súbito pôs-se a discorrer sobre Petrarca, a quem chamou de “pai dos tempos modernos”. – Mas acho que está na hora do repouso – disse Joachim, ponderadamente. O escritor acompanhara suas palavras de expressivos gestos da mão. Nesse momento concluiu a mímica, apontando para Joachim e dizendo: – O nosso tenente dá o sinal do serviço. Vamo-nos, então! Temos o mesmo caminho, “à direita, aquele que busca os muros de Dis, o Poderoso”. Ah, Virgílio, Virgílio! Ninguém o superou, meus senhores! Acredito no progresso, certamente, mas Virgílio dispõe de adjetivos que nenhum moderno encontraria... – Enquanto regressavam, começou a recitar versos latinos com pronúncia italiana. Interrompeu-se, porém, quando se encontraram com uma mocinha qualquer, aparentemente uma aldeã, e de modo algum notável pela sua beleza. Abriu então um sorriso donjuanesco e meteu-se a cantarolar. – Ts, ts, ts – estalou a língua. – Ai, ai, ai! Oh la la! Moscazinha bonitinha, quer ser minha? Vejam só, “seus olhos brilham à luz furtiva” – citou sabe Deus que autor, e enviou um beijo em direção à jovem, que lá se ia, toda confusa. “Que grande doidivanas!”, pensou Hans Castorp, e não mudou a sua opinião, quando Settembrini, após esse acesso de galantaria, voltou a dizer mal. Tinha uma birra especial contra o Dr. Behrens. Criticou-lhe o tamanho dos pés e ironizou o título de conselheiro áulico que recebera de um príncipe que sofria de tuberculose cerebral. A região inteira falava ainda da vida escandalosa que levara esse príncipe, Radamanto fizera vista grossa, à maneira mais perfeita de um cortesão. A propósito, sabiam os senhores que Behrens foi o inventor da temporada de verão? Ele e mais ninguém! Honra ao mérito! Antigam apenas os fiéis entre os mais fiéis passavam o estio nesse vale. Porém, “o nosso humorista”, na sua clarividência incorruptível, verificou que esse inconveniente era somente o resultado de um preconceito, e estabeleceu a teoria segundo a qual, pelo menos no que tocava ao sanatório, a cura de verão era não só recomendável, mas até sumamente eficaz e mesmo imprescindível. Soube lançar essa teoria, divulgou-a por meio de artigos de jornal e interessou a imprensa por ela. De então, os negócios marcharam igualmente bem no verão como inverno. – É um gênio – disse Settembrini. – In-tu-ição! – exclamou, e a seguir se pôs a achincalhar os demais estabelecimentos do lugar, elogiando, num tom cáustico, o espírito negocista dos seus donos. Havia lá o Professor Kafka... Todos os anos, na época crítica do degelo, quando grande número de pensionistas queria partir, o Professor Kafka via-se forçado a fazer uma viagem de oito dias, mas prometia outorgar as autorizações de alta logo após o seu regresso. Entretanto, permanecia ausente durante seis semanas, e os desgraçados a esperar, enquanto cresciam -seja dito entre parênteses – as suas contas. Certa vez, Kafka foi chamado a Fiume, para examinar um doente, mas não se pôs a caminho antes que lhe garantissem uns bons cinco mil francos suíços, e entre uma coisa e outra passaram-se quinze dias. E no seguinte ao da chegada do insigne mestre, faleceu o paciente. Quanto ao Dr. Salzmann, este dizia à boca pequena que o Professor Kafka mantinha limpas as suas seringas de injeção, a ponto de infeccionar os enfermos. “Ele usa pneumáticos nas rodas de seu coche”, afirmava Salzmann, “para que seus mortos não o ouçam.” Ao que Kafka replicava que no sanatório de Salzmann obrigavam os pacientes a um consumo muito intenso do “fruto consolador da vinha” (igualmente na intenção de lhes arredondarem as contas), de maneira que ali a gente morria como moscas, não de tísica, mas de cirrose do fígado... Enquanto Settembrini prosseguia no mesmo tom, Hans Castorp ria-se jovialmente e sem malícia, ao ouvir essa catadupa de eloqüência blasfema. A linguagem do italiano tinha um som particularmente agradável, na sua absoluta pureza e correção, livres de qualquer sotaque. Dos seus lábios volúveis, as palavras brotavam cheias, distintas e como que recém-feitas. O próprio Settembrini gozava com as locuções e formas cultas, vivas e sardônicas, de que se servia; até mesmo a flexão e conjugação gramatical dos vocábulos causavam-lhe evidente prazer, que era ao mesmo tempo expansivo e contagioso. Seu espírito parecia por demais claro e concentrado, para que lhe pudesse ocorrer, uma vez sequer, perder o fio. – O senhor fala com tanta graça, Sr. Settembrini – disse Hans Castorp – e com tamanha vivacidade... Não sei como chamar esse seu jeito de falar... – Plástico, não é? – respondeu o italiano, abanando-se com o lenço, apesar da temperatura bastante fresca. – Esta deve ser a palavra que o senhor procura. Quer dizer que eu falo de um modo plástico... Mas que é isto? – exclamou. – Que é que estou vendo? Ali deambulam os nossos juízes do inferno. Que visão! Os três já haviam dobrado a curva do caminho. Seria em virtude dos discursos de Settembrini? Ou por causa do declive? Ou talvez se tivessem afastado do sanatório menos do que parecera a Hans Castorp? (Todo caminho que trilhamos pela primeira vez é muito mais longo do que o mesmo caminho quando já o conhecemos.) Fosse como fosse, o regresso realizara-se com uma rapidez surpreendente... Settembrini tinha razão. Os que ali caminhavam pelo largo que se estendia atrás do sanatório eram os dois médicos. O Dr. Behrens ia à frente – com o jaleco branco e a nuca saliente, agitando os braços como se fossem remos. O Dr. Krokowski seguia-lhe as pegadas, trajando o blusão preto e lançando em torno de si olhares tanto mais orgulhosos quanto mais a ética profissional o obrigava a manter-se atrás do chefe quando estava de serviço. – Ah, Krokowski! – gritou Settembrini. – Lá vai ele conhece todos os segredos das nossas damas. Não deixem de reparar refinado simbolismo da sua vestimenta. Ele anda de preto para indicar que o seu peculiar campo de estudos são as trevas. Esse homem tem na cabeça um único pensamento, e esse pensamento é sórdido. Como é possível, prezado engenheiro, que ainda não tenhamos falado dele? O senhor já chegou a conhecê-lo? Hans Castorp disse que sim. – E agora? Estou disposto a acreditar que também ele lhe agrada. – Francamente, Sr. Settembrini, não sei. Falei com ele apenas poucos instantes, e não tenho o hábito de formar uma opinião precipitada. Costumo olhar a gente e pensar: “Então és assim? Muito bem”. – Isto é pura apatia – respondeu o italiano. – Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. O senhor achou que eu era malicioso, mas quando eu falava assim talvez o fizesse com intenções pedagógicas. Nós, os humanistas temos todos uma veia pedagógica... Meus senhores, o laço histórico entre o humanismo e pedagogia é a prova do laço psicológico que existe entre ambos. Não convém privar os humanistas da sua função educadora... Não se lhes pode arrebatar essa função, porque só entre eles se encontra a tradição da dignidade e da beleza do Homem. Um dia, o humanista substituiu o sacerdote, que numa época sombria e misantrópica ousara arrogar-se a direção da juventude. Desde então, senhores não surgiu mais nenhum tipo novo de educador. O ginásio humanista – o senhor pode me chamar de reacionário, meu caro engenheiro, mas, por princípio, in abstracto, queira compreenderme bem, continuo seu adepto... Ainda no elevador, o italiano prosseguiu no desenvolvimento do seu tema, e não se calou senão quando os primos, no segundo andar, se despediram dele. Settembrini ia até o terceiro, onde, como contou Joachim, habitava um quartinho situado na parte traseira do sanatório. – Então não tem muito dinheiro? – perguntou Hans Castorp, que também entrara no quarto de Joachim, totalmente igual ao seu. – Acho que não – respondeu o primo. – Ou pelo menos só o necessário para pagar a pensão. Seu pai já era escritor, sabe? e se não me engano, também o avô. – Ora, nesse caso... – disse Hans Castorp. – E ele está seriamente doente? – Ao que saiba, não é coisa perigosa. Mas é um mal persistente e volta uma e outra vez. Já sofre disso faz muitos anos. Uma vez partiu, mas teve que internar-se de novo. – Coitado! Logo ele que tanto se entusiasma pelo trabalho... E com tudo isso é tão loquaz! Tem tanta facilidade em saltar de um assunto ao outro! Com aquela pequena mostrou-se bastante atrevido. Eu me senti até um pouco chocado. Mas o que disse depois sobre a dignidade humana foi mesmo notável. Tive a impressão de ouvir um discurso solene. Você se encontra freqüentemente com ele? Sutileza do pensamento Mas Joachim já não podia responder senão com dificuldade e sem nitidez. Tirara um pequeno termômetro de um estojo de couro vermelho, forrado de veludo que se achava na mesa, e introduzira na boca a extremidade inferior cheia de mercúrio. Mantinha-o à esquerda, por baixo da língua, de maneira que o instrumento de vidro saía obliquamente da boca, apontando para cima. Depois, pôs-se à vontade, calçando sapatos e vestindo uma jaqueta agaloada; foi buscar na mesa uma tabela impressa e um lápis, bem como um livro uma gramática russa, já que estudava o russo, por esperar disso, segundo afirmava, certas vantagens no serviço. Assim equipado, saiu para a sacada, instalou-se na espreguiçadeira e atirou por cima dos pés um cobertor de lã de camelo. Essa última precaução quase não era necessária. Havia um quarto de hora, a camada de nuvens tornara-se cada vez mais transparente, e o sol irrompeu com tamanho calor e brilho estival, que Joachim protegeu a cabeça com uma espécie de toldo de linho branco, que por meio de um pequeno mecanismo engenhoso, podia ser fixado no braço da cadeira e inclinado segundo a posição do sol. Hans Castorp elogiou esse invento. Ficou à espera do resultado da tomada de temperatura. Nesse ínterim, pôs-se a observar tudo quanto se fazia; também contemplou o saco de pele que se achava apoiado num canto loggia – Joachim servia-se dele nos dias frios –, e com os cotovelos fincados no parapeito olhou para o jardim, onde o alpendre comum estava a essa hora povoado de pacientes deitados, que liam, escreviam ou conversavam. Não se lograva ver, aliás, senão uma parte do interior, com talvez umas cinco espreguiçadeiras. – Quanto tempo vai durar isto? – perguntou Hans Castorp voltando a cabeça. Joachim levantou sete dedos. – Mas já devem ter passado esses sete minutos. Joachim fez que não. Depois de alguns instantes tirou o termômetro da boca, olhou-o e disse: – Pois é, quando se presta atenção ao tempo, ele passa muito devagar. Eu realmente gosto de tomar a temperatura quatro vezes dia, porque assim se nota o que representa, propriamente, um minuto, ou até uns sete minutos, para gente que, como nós aqui, esbanja tão pavorosamente os sete dias da semana. – Você diz: “propriamente”. Assim não se pode dizer – objetou Hans Castorp, que se sentara com uma coxa no parapeito. O branco dos seus olhos estava estriado de vermelho. – O tempo absolutamente não tem natureza própria. Quando nos parece longo, é longo e quando nos parece curto, é curto, mas ninguém sabe em realidade sua verdadeira extensão. – Não tinha o hábito de filosofar, mas nesse momento sentia-se impelido a fazê-lo. Joachim replicou: – Como não? Afinal de contas medimos o tempo. Temos relógios e calendários, e quando um mês se escoa, termina para mim, para você e para todos os outros. – Espere um pouco – disse Hans Castorp, levantando o índice à altura dos olhos turvos. – Você acha então que um minuto é tão longo como lhe parece, quando toma a temperatura. – Um minuto é tão longo... dura tanto tempo quanto necessita o ponteiro dos segundos para dar uma volta completa. – Mas esse tempo é muito diferente, conforme a sensação que experimentamos. E na realidade... eu digo: na realidade – repetiu Hans Castorp, apertando o índice contra o nariz com tanta força que chegou a torcer a ponta – trata-se aí de um movimento no espaço, não é? Espere, não me interrompa. Medimos, portanto, o tempo por meio do espaço. Mas isto é a mesma coisa que medir o espaço com o auxílio do tempo... O que fazem somente pessoas sem espírito científico. De Hamburgo a Davo são vinte horas; sim senhor, de trem. Mas a pé, quantas horas são? E o meu cérebro? Nem um segundo! – Escute – disse Joachim. – Que é que você tem? Parece que o ar, aqui em cima, lhe ataca o cérebro. – Cale a boca, que estou pensando com grande sutileza. Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções... – Bem – disse Joachim. – Nesse caso é também uma mera convenção o fato de eu ter, neste termômetro, cinco décimos a mais. Mas é por causa desses cinco décimos que preciso cruzar os braços em vez de seguir a carreira militar. Que coisa nojenta! – Você tem 37,5? – A temperatura está baixando outra vez – respondeu Joachim, completando a curva na papeleta. – Ontem à noite, eu tinha quase 38. Foi por causa da sua chegada. Aqui, quem recebe visitas costuma sofrer uma elevação de temperatura. Mas, mesmo assim, é um alívio. – Agora vou deixá-lo sozinho – disse Hans Castorp. – Minha cabeça está ainda cheia de idéias sobre o tempo... É um vasto complexo, posso lhe afirmar. Mas não quero excitar você, que já tem alguns décimos a mais. Vou ver se guardo tudo na cabeça, e mais tarde voltaremos a falar nisso, mas talvez depois do almoço. Quando for hora de almoçar, você me chama, não é? Eu também vou fazer uma sessão de repouso. Isso não dói, graças a Deus. – Com essas palavras contornou a vidraça de separação e entrou no seu próprio compartimento, onde a espreguiçadeira e a mesinha se achavam também preparadas. Foi buscar, no quarto cuidadosamente arrumado, o Ocean Steamships, bem como o belo e macio cobertor, enxadrezado de verde e carmesim. A seguir, estirou-se na cadeira. Depois de pouco tempo, também ele viu-se obrigado a baixar o toldo. Para quem se encontrava assim deitado, o calor do sol fazia-se insuportável. Mas Hans Castorp verificou imediatamente e com satisfação que a sua posição era muito cômoda; não se recordava de ter visto, jamais, uma espreguiçadeira tão confortável. A armação, de linhas um tanto antiquadas – o que, evidentemente, era apenas um capricho estético, visto a cadeira estar novinha –, era feita de madeira lustrosa, entre marrom e vermelho. Um colchão forrado de chitão macio era, em realidade, composto de três almofadões altos e estendia-se desde os pés até a cabeceira. Havia ainda uma almofada em forma de rolo, nem muito dura nem muito mole, presa à altura da nuca por meio de um cordão, revestida de uma capa bordada, e que produzia um efeito sumamente agradável. Hans Castorp apoiou o cotovelo sobre a larga superfície do braço da cadeira e com as pálpebras semicerradas entregou-se ao repouso, sem recorrer ao Ocean Steamships para a sua distração. Vista através dos arcos da loggia, a paisagem áspera e pobre, mas iluminada pelo sol, assemelhava-se a um quadro dentro de uma moldura. Hans Castorp contemplou-a, pensativo. De repente lembrou-se de um outro assunto e interrompeu o silêncio, dizendo em voz alta: – A moça que nos serviu o café é uma anã; não é? – Psiu! – fez Joachim. – Fale baixinho. Sim, é uma anã. E daí? – Nada. Ainda não tínhamos comentado esse fato. E com isso tornou a devanear. Já passava das dez horas, quando se deitou. Decorreu uma hora. Uma hora comum, nem longa, nem curta. Quando ela chegou ao fim, ressoou um gongo através da casa e do jardim, primeiro à distância, depois pertinho, e por fim cada vez mais longe. – O segundo café da manh㠖 disse Joachim. Ouviu-se que ele se levantava. Também Hans Castorp terminou o repouso e entrou no quarto, para se arrumar. Os primos encontraram-se no corredor e desceram juntos. – Sabe que o repouso estava ótimo? – disse Hans Castorp. – Que cadeiras são essas? Se houver uma delas à venda, vou levá-la para Hamburgo. Deitado assim, sinto-me como no céu. Que acha você: será que o Behrens mandou fazê-las especialmente, segundo as suas indicações? Joachim não sabia. Após terem deixado os sobretudos no vestiário entraram pela segunda vez na sala de refeições, onde o segundo café da manhã já estava sendo servido. A sala cintilava de tanto leite. Em cada lugar via-se um copo grande, de meio litro pelo menos. – Não é comigo! – disse Hans Castorp, voltando a sentar na extremidade da mesa, entre a costureira e a inglesa, e desdobrou resignadamente o guardanapo, embora ainda se sentisse abarrotado do café da manhã. – Não senhor, não é comigo – repetiu. – Deus me livre! Nunca tomo leite, e ainda menos a esta hora. Não poderia arranjar alguma porter? – dirigiu-se à anã, com toda a amabilidade e delicadeza. Infelizmente não havia. Mas a criada prometeu trazer-lhe cerveja de Kulmbach, e de fato voltou ela pouco depois. Era uma cerveja preta, espessa, com uma espuma parda, e substituía perfeitamente a porter. Hans Castorp bebeu com avidez, de um alto de meio litro. Acompanhou a bebida de presunto com pão torrado. Novamente foi servido mingau de aveia, e novamente muita manteiga e fruta. Ele limitou-se a contemplar tudo isso, já que não se sentia capaz de comer mais. Pôs-se a estudar os pensionistas, e aos poucos a multidão começou a subdividir-se em grupos, salientando-se até algumas individualidades. A sua própria mesa estava completa, com exceção do lugar que se achava à sua frente, na extremidade oposta. Segundo ficou sabendo, era o “lugar do doutor”. Pois os médicos participavam das refeições comuns, quando as suas ocupações lhes deixavam o tempo necessário, e costumavam comer numa e noutra mesa, alternadamente. Por isso se reservava à extremidade de todas elas um “lugar do doutor”. No momento, nenhum dos dois se encontrava presente. Dizia-se que estavam operando. De novo entrou o jovem bigodudo, abaixou uma só vez o queixo na direção do peito e sentou-se com uma fisionomia desassossegada e hermética. Também a magrinha de cabelos louros estava no seu lugar, engolindo colheradas de iogurte, como se fosse o seu único alimento. A seu lado, instalara-se desta vez uma senhora de idade, baixinha e alegre, a qual dirigia uma torrente de palavras russas ao jovem taciturno, que a olhava com uma expressão preocupada, limitando-se a sacudir a cabeça, ostentando a expressão de quem tem na boca qualquer coisa de gosto repugnante. À sua frente, do outro lado da senhora de idade, achava-se mais uma mocinha, aliás muito bonita, com uma tez rosada e seios rijos; tinha cabelos castanhos agradavelmente ondulados, olhos redondos e pueris, da mesma cor, e um pequeno rubi na mão bem-formada. Ria muito, e também falava russo, só russo. Chamava-se Marusja, segundo Hans Castorp pôde ouvir. Além disso, observou ele de passagem que Joachim baixava os olhos com ar severo cada vez que a moça ria ou falava. Settembrini apareceu na porta lateral e, cofiando o bigode, encaminhou-se para o seu lugar, na extremidade da mesa colocada obliquamente diante de Hans Castorp. Apenas sentou-se, os comensais desataram a rir. Sem dúvida, acabava de dizer alguma coisa maliciosa. Hans Castorp também conseguiu identificar os membros da “Sociedade Meio-Pulmão”. Hermine Kleefeld, com seus olhos estúpidos, foi arrastando o passo, até a mesa mais próxima da porta do avarandado, e cumprimentou o jovem beiçudo que, no passeio da manhã, levantara o paletó daquele jeito inconveniente. A Srta. Levi, com a cútis de marfim, estava sentada junto da Srª. Iltis, gorda e salpicada de lunares, à mesa transversal, à direita de Hans Castorp, onde, além delas, só se encontravam pessoas desconhecidas. – Lá vêm os seus vizinhos – murmurou Joachim ao primo, inclinando-se para a frente. O casal passou perto de Hans Castorp, rumo à mesa dos “russos ordinários”, a última à direita, onde já se achava uma família com um menino de cara feia, a devorarem enormes montões de porridge. O homem era de constituição débil e tinha as faces cavas e cinzentas. Trajava uma jaqueta de couro marrom e calçava toscas botinas de feltro, fechadas a fivela. Sua esposa, também baixinha e delgada, exibia um chapéu enfeitado de penas, que a cada passo se balouçavam, um boá pouco limpo, igualmente de penas, e minúsculos sapatos de couro da Rússia, cujos tacões excessivamente altos a obrigavam a um passo saltitante. Hans Castorp examinou os dois com uma falta de consideração que não lhe era habitual e cuja brutalidade ele mesmo sentiu; mas foi justamente o caráter brutal da sua conduta o que, de repente, lhe causou certo prazer. A expressão de seus olhos era ao mesmo tempo obtusa e indiscreta. Quando, nesse momento a porta envidraçada da esquerda se fechou, tinindo estrepitosamente, como acontecera na hora do café, Hans Castorp não tornou a sobressaltar-se, mas limitou-se a uma careta fleumática. Empenhou-se então em voltar a cabeça para aquele lado; no entanto, verificou que esforço era excessivo e não valia a pena. Aconteceu que mais uma vez não logrou averiguar quem manejava a porta daquela maneira relaxada. Essa indiferença provinha do fato de o ter atordoado e paralisado completamente a cerveja matinal, que em outras ocasiões exercia sobre ele apenas um efeito levemente inebriante. Dessa vez, porém produziu em Hans Castorp as mesmas conseqüências de um golpe na testa. As pálpebras pesavam-lhe como chumbo. A língua já não obedecia aos mais simples pensamentos, quando por cortesia procurou palestrar com a inglesa. Até a tentativa de mudar a direção do olhar lhe custava um imenso esforço. E a isso acrescia aquele horroroso ardor no rosto que reaparecera com a mesma intensidade da véspera; sentia as faces como que túmidas de calor. Respirava com dificuldade e o coração batia qual um martelo envolto num pano. Se todas sensações não o incomodavam grandemente, era porque sua cabeça encontrava no estado de quem fez duas ou três inalações de clorofórmio. Que o Dr. Krokowski finalmente surgira na sala e se sentara no lugar à sua frente, Hans Castorp notou-o apenas como num sonho, não obstante o médico o fixar diversas vezes, ao conversar em com as senhoras à sua direita, enquanto as mocinhas – a exuberante Marusja e a macilenta comedora de iogurte – baixavam humilde e pudicamente os olhos. Hans Castorp, aliás, não deixou de se comportar convenientemente – é escusado dizê-lo; visto a sua língua mostrar recalcitrante, preferiu permanecer calado, mas conseguiu manejar com uma correção toda especial a faca e o garfo. Quando primo lhe deu um sinal com a cabeça e se levantou, pôs-se também pé, inclinou-se vagamente em direção aos companheiros de mesa e seguiu com passo firme atrás de Joachim. – Qual é a hora do próximo repouso? – perguntou, ao saírem da casa. – A meu ver, é a melhor coisa que existe por aqui. Quem me dera estar deitado na minha magnífica espreguiçadeira! Vamos muito longe? Uma palavra indevida – Não – respondeu Joachim. – Nem posso ir longe. A esta hora costumo descer à aldeia e dar um passeio até Davos-Platz, quando tenho bastante tempo. A gente olha as lojas e o movimento na rua, e compra o que precisa. Antes do almoço há mais uma hora de repouso, e depois fica-se outra vez deitado até as quatro. Não se preocupe. Desceram em pleno sol pela rampa da estrada. Atravessaram o curso d'água e as trilhas estreitas, tendo diante de si os vultos das montanhas que ladeavam o vale à direita: a Kleine Schiahorn, as Grüne Türme e o Dorfberg, conforme Joachim foi explicando. Lá, mais adiante, a certa altura, via-se o cemitério de Davos-Dorf, cercado de um muro; também para ele apontou Joachim com a bengala. E chegaram à estrada principal, que, um pouco acima do fundo do vale, se estendia ao longo da vertente composta de terraços. Não se podia falar, propriamente, de aldeia, da qual apenas sobrava o nome “Dorf”. Devorara-a a estação climatológica, ao prolongar-se mais e mais em direção à entrada do vale, de modo que a parte do conjunto que se chamava “Dorf” se confundia, insensivelmente, e sem solução de continuidade, com a outra, chamada “Davos-Platz”. Hotéis e pensões, todos eles abundantemente providos de avarandados cobertos, sacadas e alpendres de repouso, achavam-se dispersos por ambos os lados bem como casinhas particulares nas quais se alugavam cômodos; de vez em quando viam-se casas em construção; havia também alguns terrenos baldios, onde a estrada permitia ver os prados abertos do vale... Hans Castorp, tomado pelo desejo de se proporcionar o costumeiro e querido estímulo, acendera novamente o charuto. Provavelmente foi graças à cerveja que acabava de beber que redescobriu, com indizível satisfação, alguns vestígios do almejado aroma, se bem que este aparecesse apenas em raros momentos e sem grande intensidade. Custou-lhe um certo esforço nervoso alcançar uma idéia daquele antigo prazer, e o repugnante sabor de couro continuava predominando. Incapaz de conformar-se, lutou algum tempo pela obtenção do gozo que ora se lhe esquivava, ora assomava a muita distância, como que zombando dele. Finalmente, fatigado e aborrecido, jogou fora o charuto. Apesar do seu atordoamento, sentiu que a cortesia o obrigava a entabular uma conversa. Para esse fim, procurou lembrar-se das coisas interessantes que, havia pouco, tencionara dizer acerca do tempo. Mas constatou que se esquecera por completo de todo esse “vasto complexo”, a ponto de não abrigar na sua cabeça o mínimo pensamento a esse respeito. Em compensação, meteu-se a falar de assuntos referentes ao corpo, e isso de maneira bastante esquisita. – Quando é que você vai tirar novamente a temperatura? – perguntou. – Depois da refeição? Assim está bem. A essa hora acha-se o organismo em pleno funcionamento; aí deve aparecer a verdade. Mas diga, você não acha que o Behrens brincou comigo, quando sugeriu que eu também tomasse a temperatura? Settembrini riu-se gargalhadas, quando ouviu a história. E realmente seria absurdo. Além disso, nem termômetro tenho. – Ora – disse Joachim. – Isso é o de menos. Basta comprar um. Aqui se encontram termômetros em toda parte. Qualquer loja tem. – Para quê? Não senhor o repouso, vá lá; mas tomar a temperatura, isso seria exigir muito de um visitante. É uma ocupação e que deixo para vocês. Se eu ao menos soubesse – continuou Hans Castorp, pondo as mãos sobre o coração, como um jovem apaixonado – que tenho a toda hora estas palpitações! Elas me inquietam, e já faz tempo que estou refletindo sobre isso. Olhe, a gente sofre de palpitações quando se acha em vésperas de uma alegria extraordinária, ou quando está com medo; em poucas palavras, quando experimenta uma emoção, não é? Mas, sentir que o coração bate gratuitamente, sem motivo nem sentido, por assim dizer por conta própria – acho isso misterioso, compreende? É como se o corpo seguisse o seu próprio caminho e se tivesse desligado da alma. De certo modo é semelhante a um cadáver que também, na realidade, não está completamente morto... Isto não existe... Mas ainda leva uma vida bastante ativa e independente: os cabelos e as unhas continuam crescendo, e como me explicaram, reina nele, sob todos os aspectos, físicos e químicos, a mais franca animação. – Que maneira de falar é essa? – disse Joachim num tom de ponderada censura. – Franca animação! – Talvez quisesse, dessa forma, vingar-se um pouco da observação que o primo fizera, de manhã, sobre a banda do regimento. – Mas é mesmo! Reina a mais franca animação. Por que é que você se escandaliza? – perguntou Hans Castorp. – De resto, mencionei isso apenas de passagem. Eu queria somente dizer que é uma coisa sinistra e penosa ver o corpo levar uma existência própria, independente da alma, e dar-se ares de importância, como no caso dessas palpitações sem motivo. E a gente se esforça por encontrar um sentido nessa coisa; procura-se a emoção indispensável, um sentimento de alegria ou de medo, que as justifique de certo modo – pelo menos eu faço isso, pois só posso falar de mim. – Sim senhor – disse Joachim, suspirando. – É mais ou menos a mesma coisa que estar com febre. Nesse caso também reina no corpo “a mais franca animação”, para empregar a sua expressão. Então acontece facilmente que, sem querer, a gente ande à cata de uma emoção, como você diz, para que essa animação receba um sentido mais ou menos plausível... Mas estamos falando de coisas tão desagradáveis! – acrescentou em voz trêmula, e cortou a conversa. Hans Castorp limitou-se a dar de ombros, da mesma forma como vira Joachim fazer na véspera. Durante algum tempo caminharam em silêncio. Depois Joachim perguntou: – E que tal acha você acha as pessoas aqui em cima? Quero dizer, os nossos companheiros de mesa. Hans Castorp assumiu um ar indiferente, pensativo. -meu Deus! – disse. – Não me parecem grande coisa. Tenho a impressão de que em outras mesas há pessoas mais interessantes, pode ser que me engane. A Srª. Stöhr deveria lavar os cabelos, estão muito ensebados. E aquela Mazurca, ou como se chama?, parece-me um pouco fútil. A toda hora bota o lenço na boca, de tanto rir. Joachim achou graça nessa deformação do nome. – Mazurca? É boa! – exclamou. – Ela se chama Marusja, sabe? É o mesmo que Maria. Pois é – acrescentou – ela é mesmo estouvada, e contudo teria motivos de sobra para ficar mais quieta. Está bastante doente. – Ninguém pensaria isso – disse Hans Castorp. – Tem uma aparência tão sadia! Uma doença do peito é a última coisa que eu atribuiria. – Tentou trocar com o primo um olhar atrevido, mas verificou que o rosto de Joachim, apesar de tostado pelo sol, mostrava uma cor terrosa, como a adquire a pele queimada, quando o sangue retira, e que sua boca se crispara de um modo particularmente doloroso, adotando uma expressão que despertou no jovem Hans Castorp um vago pavor e fez com que ele, mudando imediatamente de assunto, fosse informar-se sobre outras pessoas, na intenção de esquecer o mais depressa possível Marusja e a expressão de Joachim, o que, aliás, conseguiu sem dificuldade. A inglesa do chá de roseira-brava chamava-se Miss Robinson. A costureira não era costureira, mas uma professora do Liceu Estadual Königsberg, e por isso se expressava com tanta correção. Seu nome era Engelhart. Quanto à velhota jovial, nem o próprio Joachim sabia como se chamava, apesar de viver há muito tempo ali em cima. Em todo caso era a tia-avó da comedora de iogurte, com a qual morava constantemente no sanatório. Mas quem estava mais doente, dentre todos os que comiam à mesa, era o Dr. Blumenkohl, Leo Blumenkohl, de Odessa, aquele moço bigodudo de cara fechada. Já havia anos que se achava internado... Estavam passando por uma verdadeira rua de cidade, a rua principal de um centro internacional, como logo se via. Vinham-lhes ao encontro veranistas que flanavam por ali, jovens na maioria, os homens em traje esporte e sem chapéu, as senhoras também sem chapéu e com saias brancas. Ouvia-se falar russo e inglês. À direita e à esquerda havia lojas com elegantes vitrines, e Hans Castorp, cuja curiosidade travava uma luta violenta com a ardente fadiga, obrigou os olhos a verem, detendo-se durante muito tempo diante da loja de um camiseiro, para constatar que a vitrine estava mesmo “à altura”. Depois surgiu uma rotunda, com uma galeria coberta, onde uma orquestra dava um concerto. Era o cassino. Em algumas quadras de tênis jogavam-se partidas. Jovens escanhoados, de pernas compridas, trajando calças de flanela cuidadosamente passadas, exibiam os antebraços desnudos e os sapatos com solas de borracha. À sua frente jogavam mocinhas tostadas, vestidas de branco, que em plena corrida se estiravam alto no ar iluminado pelo sol, a fim de rebaterem, no vôlei, a bola alvacenta. Um como que um pó de farinha pairava sobre as quadras bem cuidadas. Os primos sentaram-se num banco vazio, para olhar e criticar o jogo. – Você não joga aqui? – perguntou Hans Castorp. – Não me deixam – respondeu Joachim. – Nós temos de ficar deitados, sempre deitados... Settembrini costuma dizer que vivemos uma vida horizontal, que somos uns horizontais. É uma das suas piadas sarcásticas... Aquela gente que ali joga não está doente, ou então joga apesar da proibição. De resto, eles não jogam muito seriamente; é mais para mostrar os trajes... E quanto às proibições, existem por aqui outras coisas proibidas que se jogam, como o pôquer, sabe? e neste ou naquele hotel, também os petits chevaux. Entre nós, isto se pune com expulsão, porque o jogo de azar é considerado a infração mais prejudicial. Contudo, há quem saia ainda depois da revista noturna, para entrar na jogatina. O príncipe que deu o título ao Behrens também costumava escapulir de noite. Hans Castorp mal o ouvia. Andava com a boca entreaberta; embora não estivesse resfriado, tinha dificuldade em respirar pelo nariz. Seu coração martelava num ritmo contrário à música, o que lhe causava impressão vagamente penosa. Tomado dessa sensação de desordem e contrariedade, estava a ponto de cochilar, quando Joachim o avisou de que eram horas de voltar. Percorreram o caminho em silêncio. Hans Castorp até chego tropeçar diversas vezes na estrada plana, e, ao dar-se conta disso, esboçou um sorriso melancólico, sacudindo a cabeça. O porteiro coxo conduziu-os no elevador até o seu pavimento. Separaram-se em frente do número 34, com um breve “Até logo”. Hans Castorp rumou, através do quarto e saiu para a sacada, onde, sem mais nem menos, se deixou cair na espreguiçadeira. Nem sequer mudou de posição, mergulhou numa pesada modorra, que as rápidas pulsações do coração animavam desagradavelmente. Uma fêmea, naturalmente! Não se deu conta do tempo que passou nesse estado. Chegada a hora ressoou o gongo. Mas, como Hans Castorp sabia, isso não representava o chamado imediato à refeição. Era, apenas, o sinal para os hóspedes se aprontarem. Assim, permaneceu deitado até que o estrondo metálico se intensificasse e depois se afastasse pela segunda vez. Quando Joachim atravessou o quarto, para buscá-lo, Hans Castorp quis mudar de roupa. Joachim, entretanto, não permitiu. Detestava e desdenhava a falta de pontualidade. Como era possível progredir na vida e recuperar a saúde, para voltar ao serviço – perguntou –, aquele que se mostrava por demais relaxado até para observar o horário das refeições? Nesse ponto, indiscutivelmente, tinha razão, e Hans Castorp limitou-se a observar que não estava doente, rias apenas se sentia sumamente sonolento. A toda pressa lavou as mãos, e em seguida desceram ao salão, pela terceira vez nesse dia. Os hóspedes vinham afluindo por ambas as entradas. Entravam também pelas portas do avarandado, que estavam abertas. Dentro de pouco tempo, todos se encontravam sentados em torno das sete mesas, como se nunca se tivessem levantado. Tal era, pelo menos, a impressão de Hans Castorp – impressão puramente fantástica e irracional, mas que seu cérebro enevoado não logrou rechaçar por alguns instantes, e na qual encontrou mesmo algum prazer; pois, no decorrer da refeição, tentou repetidamente evocá-la, obtendo cada vez uma ilusão perfeita. A velhota jovial estava novamente a dirigir uma torrente de palavras, no seu linguajar indistinto, ao Dr. Blumenkohl, sentado do lado oposto da mesa, e que a ouvia com um ar preocupado. Sua sobrinha macilenta comia, finalmente, outra coisa que não o iogurte: o espesso crême d'orge, que as criadas serviam em pratos; mas ela não foi além de umas poucas colheradas. A bela Marusja, para abafar o riso, apertava contra a boca o lencinho, que exalava perfume de flor de laranjeira. Miss Robinson lia as mesmas cartas escritas em letra redonda que já lera de manhã. Evidentemente não sabia nem uma única palavra de alemão e fazia até questão de não saber. Joachim, em atitude diferente, proferiu algumas frases inglesas sobre o tempo, às quais ela respondeu mastigando uns monossílabos, para logo recair no silêncio. Quanto à Srª. Stöhr, com a sua blusa de padrão escocês – submetera-se ela, essa manhã, ao exame médico, cujos pormenores relatou com afetação vulgar, descortinando os seus dentes de lebre. Lamentou-se de que em cima, à direita, houvesse ainda ruídos; além disso, tinha uma diminuição do murmúrio abaixo da axila esquerda; era preciso ficar mais cinco meses, conforme lhe dissera “o Velho”. Em sua linguagem ordinária, chamava o Dr. Behrens de “o Velho”. Mostrou-se, de resto, muito indignada pelo fato de não estar “o Velho” presente à mesa. Segundo a “toumée” queria dizer: segundo o turno era hoje a vez da sua mesa, ao passo que “o Velho” novamente se sentara à mesa próxima da esquerda (onde, com efeito, se via o Dr. Behrens juntando as manzorras diante do prato). Mas, claro continuou a Srª. Stöhr –, ali tinha o lugar a gorda Srª. Salomon, de Amsterdã, que todo santo dia se apresentava às refeições num vestido muito decotado, e tal aspecto parecia que era do agrado do “Velho”, se bem que ela, a Srª. Stöhr, não soubesse explicar por que razão, uma vez que nos exames médicos ele tinha ensejo para ver o quanto queria dessa dama. Mais tarde contou, cochichando exaltadamente, que à noite anterior, no avarandado de repouso localizado no sótão, alguém apagara a luz, e isso para fins que a Srª. Stöhr qualificava de “manifestos”. “O Velho” notara o incidente e praguejara de tal maneira, que todo o sanatório o ouvira. Mas naturalmente, mais uma vez não conseguira descobrir o culpado, e entanto não era preciso ter estudado na universidade para adivinhar que fora aquele capitão Miklosich, de Bucareste para quem nunca havia escuridão suficiente em companhia de senhoras; um homem sem a mínima cultura, embora usasse espartilho, e por natureza uma fera, sim, uma fera, repetiu a Srª. Stöhr numa voz afogada, enquanto o suor lhe perlava a testa e o lábio superior. Todo o mundo em Davos sabia das relações que existiam entre ele e a esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand, de Viena, e não podiam se chamar de “secretas”. Não somente entrava o capitão, às vezes já de manhã cedo no quarto da mulher do cônsul–geral, quando esta se encontrava ainda deitada, e assistia então a sua toilette; mas, na terça-feira passada, saíra do quarto Wurmbrand às quatro da madrugada... A enfermeira do jovem Franz do número 19, aquele que tivera recentemente o pneumotórax fracassado... essa enfermeira, pois, apanhara o capitão em flagrante delito, de tanta vergonha enganara-se na porta, de modo que se vira, de repente, no quarto do Sr. Paravant, promotor público de Dortmund... Por fim, a Srª. Stöhr entregou-se a considerações pormenorizadas sobre um instituto “cósmico” da aldeia, onde ela costumava comprar seu dentifrício. Joachim cravava os olhos no prato. A comida era tão boa quanto abundante. Incluindo a sopa, constava de nada menos que seis pratos. Depois do peixe vinha uma sólida iguaria de carne com verduras; a seguir, ainda outro prato de legumes; fritura de aves, uma sobremesa austríaca, em nada inferior à da véspera, por fim queijo e frutas. Cada prato era servido duas vezes, e não inutilmente. Em toda parte, nas sete mesas, viam-se pratos cheios; reinava naquela sala um apetite voraz, uma fome de lobo, que seria um prazer observar, se ela não produzisse, ao mesmo tempo, uma impressão de certo modo sinistra e até repulsiva. Não somente as pessoas bem-humoradas manifestavam esse apetite, aquelas que tagarelavam e se atiravam bolinhas de pão, mas também as taciturnas e sombrias, que, nos intervalos entre os diferentes pratos, apoiavam a cabeça nas mãos e fitavam o ar. Um adolescente, na mesa vizinha da esquerda, um colegial, segundo parecia, com mangas muito curtas e óculos redondos de grossas lentes, cortava em pedacinhos tudo quanto se amontoava no seu prato, transformando-o numa papa informe; depois se inclinava para a frente e devorava a comida, passando, de vez em vez, o guardanapo por baixo dos óculos, para enxugar não se sabia o quê, lágrimas ou gotas de suor. Dois incidentes ocorreram durante o almoço, despertando a atenção de Hans Castorp, na medida em que seu estado permitia. Primeiramente, a porta envidraçada tornou a fechar-se com estrondo; foi quando comiam o peixe. Hans Castorp sobressaltou-se, irritado, e na sua cólera veemente disse de si para si que desta vez era necessário descobrir o culpado. Não se limitou a pensar nisso intimamente, mas também formou as palavras com os lábios, por tomar muito a sério o incidente. – É preciso encontrá-lo! – murmurou com uma indignação de tal modo exagerada, que tanto Miss Robinson como a professora o olharam, pasmadas. Com essas palavras voltou-se para a esquerda e arregalou os olhos injetados. Era uma senhora que atravessava a sala, ou melhor, uma moça, de estatura média vestida de pulôver branco e saia a fantasia, com cabelos ruivos, que ela usava numa trança enrolada em volta da cabeça. Hans Castorp mal pôde entrever-lhe uma parte do perfil. Andava sem fazer ruído, o que formava um contraste estranho com a sua entrada barulhenta; caminhando de um modo singularmente furtivo, cabeça levemente avançada, dirigiu-se à mesa situada na extrema direita da sala, perpendicular ao avarandado, a mesa dos “russos distintos”. Uma das mãos achava-se enterrada no bolso do pulôver justo, ao passo que a outra, levantada à altura da nuca, segurava e arranjava o penteado. Hans Castorp olhou essa mão – entendia de mãos e lhes devotava atenção muito crítica, tendo o hábito de examinar, antes de mais nada, essa parte do corpo das pessoas com quem travava conhecimento. Aquela mão que ali arrumava os cabelos era propriamente a mão de uma senhora distinta; não oferecia aquele aspecto cuidado e refinado que costumavam ter as mãos das esfera social de Hans Castorp. Bastante larga, de dedos curtos, tinha algo de primitivo, de infantil, que lembrava a mão de uma colegial. As unhas, evidentemente, ignoravam a manicura; estavam aparadas de maneira tosca, também de colegial, e a pele, nas bordas, parecia tanto áspera, como a de quem tivesse o vício de roer as unhas. Hans Castorp notou tudo isso mais por adivinhação do que pelos olhos, pois a distância era demasiadamente grande. A moça retardatária cumprimentou com um aceno de cabeça os companheiros de mesa e sentou-se, dando as costas à sala, ao lado do Dr. Krokowski, que presidia àquela mesa. Depois, ainda segurando os cabelos com a mão, lançou por sobre o ombro um olhar ao público, o que permiti Hans Castorp vislumbrar-lhe as maçãs salientes e os olhos rasgados... Uma recordação vaga, ele não sabia de que nem de quem, assaltou-o leve e passageiramente ao ver esse rosto. – Uma fêmea, naturalmente! – pensou Hans Castorp, e, mais uma vez lhe aconteceu articular as palavras, de modo que a professora, Srta. Engelhart, pôde ouvir o que dizia. A insignificante solteirona deu um sorriso indulgente. – É Mme... Chauchat – disse. – Ela é tão relaxada! Uma mulher encantadora! – Ao mesmo tempo intensificou-se o rubor aveludado das faces da Srta. Engelhart, coisa que sempre se dava quando ela abria a boca. – Francesa? – perguntou Hans Castorp com severidade. – Não, russa – respondeu a Srta. Engelhart. – Pode ser que o marido seja francês ou de origem francesa. Não tenho certeza. – É aquele? – indagou Hans Castorp, ainda irritado, apontando para um senhor de ombros caídos, que se achava à mesa dos “russos distintos”. – Não, senhor – tornou a professora. – Ele nunca esteve aqui. Ninguém o conhece. – Ela deveria fechar a porta com mais cuidado – disse Hans Castorp. -sempre bate com a porta. É uma falta de educação. A professora aceitou a censura com um sorriso humilde, como se ela própria fosse a culpada, e assim deixaram de falar em Mme... Chauchat. O segundo incidente consistia na temporária ausência do Dr. Blumenkohl. Era só isso e nada mais. De repente, acentuou-se a expressão levemente enojada do seu rosto, enquanto mais preocupadamente do que em geral cravava o olhar no vazio. Depois, com um movimento discreto, afastou a cadeira e saiu. Foi quando a imensa vulgaridade da Srª. Stöhr se manifestou em toda a sua crueza. Provavelmente, a baixa satisfação que lhe causava o fato de estar menos enferma do que Blumenkohl, fez com que lhe acompanhasse a saída com comentários mesclados de compaixão e desdém. – Coitado! – disse ela. – Está com os pés na cova. Outra vez precisa conversar com o Joãozinho Azul. – Arvorando uma fisionomia de obstinada tolice, proferiu, sem o menor asco, a denominação burlesca “Joãozinho Azul”. Ao ouvi-la, Hans Castorp experimentou ao mesmo tempo horror e vontade de rir. Pouco tempo depois, voltou o Dr. Blumenkohl, do mesmo modo discreto. Sentou-se novamente e prosseguiu na refeição. Também ele comia muito; servia-se duas vezes de cada prato, taciturno, com expressão tristonha e fechada. Finalmente, o almoço chegou ao fim. Graças ao serviço atencioso – a anã movimentavase de maneira particularmente rápida –, durara apenas uma hora. Ofegante, sem saber como subira, Hans Castorp jazia mais uma vez na magnífica espreguiçadeira da sua sacada. O repouso após o almoço prolongava-se até a hora do chá, sendo considerado como o mais importante e por isso observado com todo o rigor. Entre as divisões de vidro opaco que o separavam, de um lado, de Joachim, e do casal russo, do outro, permanecia Hans Castorp estendido, modorrando, a respirar pela boca, enquanto o seu coração martelava. Quando fez uso do lenço, notou nele manchas de sangue, mas não teve forças para refletir a esse respeito, apesar de ser muito impressionável e se inclinar, por natureza, para preocupações hipocondríacas. Tornara a acender um Maria Mancini, e dessa vez fumou o charuto até o fim, fosse qual fosse o seu sabor. Entretanto, angustiado e cismarento, analisava as coisas estranhas que lhe aconteciam ali. Duas ou três vezes, seu peito foi sacudido por uma risada interior, ao relembrar a expressão abominável que empregara, na sua vulgaridade a Srª. Stöhr. O Sr. Albin No jardim, lá embaixo, a brisa levantava de vez em quando a bandeira adornada de um caduceu. O céu voltara a nublar-se em toda parte. Desapareceu o sol, e quase imediatamente surgiu um frio pouco hospitaleiro. O alpendre de repouso parecia estar cheio; ouviam-se conversas e risos abafados. – Por amor de Deus, Sr. Albin, guarde essa faca. Pode acontecer uma desgraça! – lamentava-se uma voz aguda, suplicante, de mulher. -meu caro Sr. Albin, por favor, tenha consideração pelos nos nervos e afaste essa arma homicida – interveio outra. E um jovem louro, que com um cigarro na boca estava sentado na borda da primeira espreguiçadeira, retrucou num tom insolente: – Nem penso nisso! Será que as senhoras não me permitem brincar com a minha faca? Não nego que é uma faca muito bem afiada. Comprei-a em Calcutá, de um faquir cego. O homem era capaz de a engolir, e logo depois o seu menino ia desenterrá-la a uns cinqüenta passos de distância... Querem ver? Corta melhor que uma navalha. Baste tocar no gume, e a carne se abre que nem manteiga. Esperem, vou mostrá-la de perto... – O Sr. Albin levantou-se. Houve gritos estridentes. – Não? Nesse caso vou buscar meu revólver – continuou ele. – Talvez seja mais interessante para as senhoras. É formidável. Tem uma força de percussão que nem imaginam... Vou buscá-lo no meu quarto. – Sr. Albin, Sr. Albin, não faça isso! – imploravam várias vozes. Mas o Sr. Albin já saíra do alpendre para subir ao quarto. Era muito jovem, com movimentos desengonçados, e tinha uma cara rosada, de criança, ornada de pequenas suíças. – Sr. Albin! – gritou uma senhora atrás dele. -seria melhor buscar um sobretudo. Ponha um sobretudo, faça o favor! O senhor passou seis semanas na cama, com pneumonia, e agora fica sentado aqui, sem se agasalhar, e ainda fuma cigarros! Palavra de honra, Sr. Albin, isso é tentar a Deus. Mas ele se limitou a um riso sarcástico e foi-se embora. Poucos minutos após, já estava de volta com o revólver na mão, para desenfrear uma gritaria ainda mais idiota que a anterior. Ouviu-se perfeitamente como algumas dentre as senhoras, levantando-se de um pulo, tropeçavam no cobertor e caíam no chão. – Vejam só como ele é pequeno e lustroso – disse o Sr. Albin. – Mas ele morde, quando aperto aqui... – Nova gritaria. – Claro que está carregado – acrescentou o Sr. Albin. – Há seis balas no cilindro, que gira a cada disparo... Aliás, não comprei este negócio para brincadeira – concluiu, ao notar que o efeito das suas palavras diminuía. Enfiou o revólver no bolso do paletó, tornou a sentar-se, cruzando as pernas, e acendeu novo cigarro. – Absolutamente não é para brincadeira – repetiu, cerrando os lábios. – Mas, para quê? Para que, então? – perguntaram algumas vozes trêmulas de pressentimento. – Que horror! – exclamou de repente uma das senhoras, e o Sr. Albin sacudiu a cabeça afirmativamente. – Vejo que as senhoras começam a compreender – disse – Com efeito, é para isso que ando com ele – continuou num tom displicente, depois de ter tirado uma longa tragada do cigarro, não obstante a pneumonia recém-vencida. – Conservo-o preparado para o dia em que esta coisa aqui começar a me aborrecer muito, e terei a honra de me despedir respeitosamente. É muito simples. Gastei algum tempo em estudar o assunto e sei como melhor se liquida. A palavra “liquida” provocou um grito de susto. – O coração interessa. E um alvo incômodo... Além disso prefiro extinguir a consciência no seu próprio centro, enxertando um corpo estranho engraçadinho neste órgão interessante... – E o Sr. Albin mostrou com o indicador o crânio coberto de cabelos louros, aparados rente – Deve-se apontar aqui – com essas palavras, o Sr. Albin voltou a tirar do bolso o revólver niquelado e bateu com o cano na fronte – aqui, em cima da artéria... É um processo facílimo, até sem espelho... Ouviram-se muitas vozes de insistente protesto, às quais se misturou ainda um violento soluço. – Sr. Albin, Sr. Albin, tire esse revólver da fronte, guarde o revólver! Não posso ver uma coisa dessas! Sr. Albin, o senhor é moço, vai recuperar a saúde, voltará à vida e terá uma grande carreira pela frente; garanto-lhe! Bote o sobretudo, deite-se na espreguiçadeira, agasalhe-se bem e continue com o seu tratamento! Não mande o massagista embora, como fez da outra vez, quando ele veio esfregá-lo com álcool. E por amor à sua vida, sua jovem e preciosa vida, Sr. Albin atenda ao nosso conselho: abandone os cigarros! Mas o Sr. Albin mostrava-se inexorável: – Não e não! – disse ele. – Não insistam comigo. Está bem. Agradeço-lhes a sua bondade. Nunca neguei nada a uma senhora, mas deve-se compreender que é inútil procurar deter a roda do destino. Faz mais de dois anos que vivo aqui... Estou farto e vou sair do jogo. Que mal há nisso? Incurável, minhas senhoras! Olhem o homem que aqui está à sua frente; é um caso incurável. O próprio Behrens já não disfarça essa sua opinião, nem para guardar as aparências. Então me concedam a pequena liberdade que para mim resulta desse fato! É como no ginásio, quando se decidia que alguém levava bomba e tinha que repetir o ano. Deixavam então de examiná-lo, e ele não precisava mais trabalhar. Eu cheguei definitivamente a essa situação feliz. Nada mais preciso fazer; não entro mais no balanço; posso me rir de tudo... Querem chocolate? Sirvam-se. Não, minhas senhoras, não me privem de nada. Tenho montões de chocolate no meu quarto; oito caixas de bombons, cinco barras de Gala-Peter e quatro libras de chocolate Lindt. Tudo isto me mandaram as senhoras do sanatório durante a minha pneumonia... Em algum lugar, uma voz de contrabaixo reclamou silêncio. O Sr. Albin deu uma rápida risada; era um riso trêmulo, abrupto... Depois se fez silêncio no alpendre de repouso, um silêncio tão completo, como se se tivesse sumido uma miragem ou uma fantasmagoria. De um modo estranho pareciam ecoar as palavras que haviam sido pronunciadas. Hans Castorp ficou a escutar, até que o último ruído houvesse cessado, e conquanto tivesse a impressão de que o Sr. Albin era um fantoche, não pôde deixar de sentir uma certa inveja. Principalmente aquela comparação tirada da vida escolar causara-lhe viva impressão, já que ele mesmo tivera que repetir o quinto ano do ginásio e ainda se lembrava muito bem daquela situação decerto um pouco ignominiosa, mas também cômica e agradavelmente desembaraçada, que desfrutara durante o último trimestre, quando deixara de se esforçar e pudera “rir-se de tudo”. Não é fácil precisar seus pensamentos, visto serem obscuros e confusos, mas parecia-lhe, em suma, que a honra oferecia consideráveis vantagens, mas que a vergonha não as tinha menores, e que as vantagens desta última eram quase ilimitadas. Enquanto, a título de experiência, representava no seu espírito o papel do Sr. Albin e imaginava o que significaria ver-se definitivamente livre da pressão da honra e gozar para sempre as imensas vantagens da vergonha, assustou-se o jovem diante de uma sensação de gozo dissoluto, que lhe imprimiu às batidas do coração, por alguns instantes, um ritmo ainda mais acelerado. Satã faz propostas desonrosas Depois perdeu a consciência. De acordo com o seu relógio de bolso eram três e meia quando o despertou uma conversa atrás da divisão de vidro do lado esquerdo. O Dr. Krokowski, que a essa hora fazia a ronda sem o acompanhamento do conselheiro áulico, falava em russo com o casal mal-educado. Informava-se, como parecia, a respeito do estado do marido e pediu que lhe mostrassem a papeleta da temperatura. Depois prosseguiu na ronda, sem, no entanto, tomar o caminho ao longo da sacada, evitando o compartimento de Hans Castorp e dando uma volta pelo corredor, a fim de entrar pela porta no quarto de Joachim. Hans Castorp sentiu-se um tanto melindrado pelo fato se ver contornado dessa maneira, se bem que não desejasse de modo algum uma entrevista a sós com o Dr. Krokowski. Sem dúvida, estava bem de saúde e não entrava em conta; pois, aqui em cima – pensou ele – estabelecera-se o princípio de não se ver considerado nem despertar interesse quem tivesse a honra de estar são; isso não deixou de agastar o jovem Castorp. Após ter passado uns dois ou três minutos no quarto de Joachim, o Dr. Krokowski continuou seu caminho, ao longo da sacada. H Castorp ouviu o primo dizer-lhe que estava na hora de se levantar e de preparar-se para o chá da tarde. – Está bem – respondeu e ergueu-se. Mas sentiu-se tonto, por ter permanecido deitado durante tanto tempo. Ao invés de refrescá-lo, a modorra de novo lhe provocara aquele ardor penoso das faces, ao passo que o resto do corpo estava arrepiado, talvez porque não se agasalhara suficientemente. Lavou os olhos e as mãos; pôs em ordem os cabelos e as roupas, foi encontrar-se com Joachim, no corredor. – Você ouviu esse Sr. Albin? – perguntou, enquanto desciam pela escada. – Claro! – replicou Joachim. – Deveriam ensinar disciplina a esse sujeito. Perturbou o repouso da tarde com o seu palavrório e excitou as senhoras de tal maneira, que lhes retardou a cura por semanas inteiras. É caso muito grave de insubordinação. Mas quem vai denunciá-lo? Ademais, esse tipo de conversa costuma ser bem recebido pela maioria, pois serve de distração. – Você acha possível – indagou Hans Castorp – que ele ponha em prática aquele “processo facílimo”, como o chama, e enxerte no corpo um “corpo estranho”? – Por que não? – respondeu Joachim. – Impossível não é. Essas coisas acontecem aqui. Dois meses antes da minha chegada, um estudante, que estava no sanatório havia muito tempo, enforcou-se no mato, logo depois de um exame geral. Nos primeiros dias da minha estada, falavam muito do incidente. Hans Castorp bocejou nervosamente. – Hum! Não me sinto bem entre vocês – declarou. – Francamente, talvez nem possa ficar aqui, sabe? e me veja obrigado a partir. Você não me levaria a mal? – Partir? Que idéia é essa? – gritou Joachim. – Tolice! Mal acaba de chegar. Como quer formar uma opinião logo no primeiro dia? -meu Deus! É ainda o primeiro dia? Já me parece que estou aqui há muito, muito tempo... – Por favor, não volte a filosofar sobre o tempo! – disse Joachim. – Hoje de manhã me deixou todo confuso. – Não se preocupe, já esqueci tudo isso – tornou Hans Castorp. – Todo o vasto complexo. Não tenho mais nenhuma sutileza na cabeça. Aquilo passou... Então, haverá chá agora? – Sim, e depois caminharemos até o mesmo banco da manhã. -se Deus quiser. Tomara que a gente não encontre o Settembrini. Sou incapaz de tomar parte numa conversa erudita; isso lhe digo desde já. Na sala de refeições, serviam-se todas as bebidas adequadas a essa hora. Miss Robinson tomava novamente o seu chá de roseira brava, vermelho como sangue, enquanto a sobrinha engolia colheradas de iogurte. Além disso havia leite, chá, café, chocolate e mesmo caldo de carne. Por toda parte, os hóspedes, que haviam passado deitados as duas horas após o reforçado almoço, achavam-se ocupados em passar manteiga em grandes fatias de cuca entremeada de passas. Hans Castorp pediu chá e embebeu um biscoito nele. Experimentou também um pouco de geléia. Examinou atentamente a cuca com passas, mas estremeceu diante da idéia de comer aquilo. Mais uma vez – a quarta – achava-se sentado no seu lugar, na sala das sete mesas, com a abóbada singelamente pintada. E um pouco mais tarde, às horas, encontrava-se ali pela quinta vez, por ocasião do jantar. O intervalo, curto e insignificante, fora preenchido por um passeio até aquele banco encostado na vertente da montanha, próximo do curso d'água, pelo caminho que a essa hora estava muito freqüentado por pensionistas, de maneira que os dois primos tiveram de cumprimentar muita gente. Seguira-se ainda um repouso na sacada, de uns noventa minutos, fugazes e pouco substanciais. Para o jantar, mudou cerimoniosamente de traje. Comeu então -sentado entre Miss Robinson e a professora – sopa Julienne, carne frita com legumes, dois pedaços de uma torta que continha simplesmente tudo – amêndoa, creme de manteiga, chocolate, confeitos e maçapão –, bem como um excelente queijo acompanhado de pão integral. Novamente mandou vir uma garrafa de cerveja de Kulmbach. Mas, após ter bebido metade do alto copo, percebeu nitidamente que o lugar que lhe convinha era a cama. A cabeça lhe zunia; suas pálpebras pesavam feito chumbo; o coração batia qual um pequeno timbale e para aumentar a sua tortura, imaginava que a bela Marusja, que inclinando-se para a frente, escondia o rosto na mão adornada com rubi, estava se rindo à sua custa, se bem que ele tivesse feito todos esforços possíveis para não lhe dar motivos. De muitíssima distância ouviu também a Srª. Stöhr contar ou afirmar alguma coisa, que parecia a tal ponto disparatada, que já não atinava com certeza se o seu ouvido o enganava ou se, porventura, as palavras da Srª. Stöhr convertiam em absurdos no seu próprio cérebro. Afirmava ela saber preparar vinte e oito diferentes espécies de molhos para peixe, e ter coragem de se gabar desses conhecimentos, ainda que seu marido lhe tivesse desaconselhado mencioná-los. “Ninguém vai acreditar, e quem acreditar achará a coisa ridícula”. E no entanto queria quebrar o silêncio e professar abertamente que era de fato capaz de preparar vinte e oito espécies de molhos para peixe. Isso pareceu pavoroso ao pobre Hans Castorp. Espantou-se, levou a mão à testa e esqueceu-se por completo de mastigar e deglutir um bocado de queijo Chester com pão integral que tinha na boca. Ainda não o engolira, nem quando se levantou da mesa. Saíram pela porta envidraçada da esquerda, aquela porta infeliz que sempre se fechava com estrondo e dava diretamente para o vestíbulo. Quase todos os pensionistas tomaram esse caminho. Parecia que era costume realizar, após o jantar, uma espécie de reunião no vestíbulo e nos salões adjacentes. A maioria dos pacientes mantinha-se de pé, conversando em pequenos grupos. Jogava-se em torno de duas mesas dobráveis, forradas de verde, numa o dominó noutra o bridge; desse último jogo participavam somente pessoas jovens, entre elas o Sr. Albin e Hermine Kleefeld. No primeiro salão havia alguns aparelhos ópticos, destinados a divertir os hóspedes: um estereoscópio, através de cujas lentes se enxergavam fotografias colocadas no seu interior, como, por exemplo, um gondoleiro veneziano de uma plasticidade rígida e sem vida. Em segundo lugar existia ali um caleidoscópio em forma de óculo, a cuja lente se apoiava a vista, enquanto se acionava devagar uma roda denteada, a fim de desencadear uma fantasmagoria multicor e sempre variada de estrelas e arabescos. E finalmente, um tambor giratório, no qual eram introduzidas fitas cinematográficas, e por cujas fendas, abertas dos lados, podia-se ver um moleiro brigando com um limpa-chaminés, um mestre-escola a castigar um menino, um funâmbulo que dava saltos, e um casal de camponeses a dançar uma tirolesa. Hans Castorp, com as mãos frias repousando nas coxas, olhou demoradamente todos esses aparelhos. Também se deteve por alguns instantes na proximidade da mesa de bridge, onde o incurável Sr. Albin, crispando desdenhosamente os lábios, manejava as cartas com os movimentos displicentes de um homem mundano. Num ângulo da sala estava sentado o Dr. Krokowski, a dirigir palavras animadas e cordiais a um semicírculo de senhoras, do qual faziam parte a Srª. Stöhr, a Srª. Iltis e a Srta. Levi. O pessoal da mesa dos “russos distintos” retirara-se ao pequeno salão adjacente, separado da sala de jogo por uma simples cortina, e ali constituía espécie de grupo íntimo. Além de Mme... Chauchat havia ali um cavalheiro lasso, de barba loura, tórax côncavo e olhos esbugalhados, e uma jovem muito morena, de um tipo original e humorístico, com brincos de ouro e cabelos lanosos despenteados. O Dr. Blumenkohl, bem como dois rapazes de ombros caídos, uniram-se a eles. Mme... Chauchat trajava vestido azul com gola de renda branca. Sentada no sofá, atrás da mesa redonda, no fundo do pequeno aposento, formava o centro do grupo. Tinha o rosto voltado para a sala de jogo. Incapaz de contemplar sem reprovação aquela mulher mal-educada, Hans Castorp pensava de si para si: “Ela me lembra qualquer coisa, mas não sei dizer o quê...” Um indivíduo alto, de uns trinta anos, e cujos cabelos já começavam a tornar-se ralos, tocou três vezes seguidas no pequeno piano castanho a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão, e a pedido de algumas senhoras reiniciou pela quarta vez a peça melodiosa, depois de ter fitado profunda e silenciosamente os olhos de cada uma delas. – É permitido perguntar como se sente o senhor, meu caro engenheiro? – perguntou Settembrini, o qual, mãos nos bolsos, flanara por entre os hóspedes e agora se aproximava de Hans Castorp. Trazia ainda aquele paletó de fazenda cinzenta parecida com burel, e as calças, claras, enxadrezadas. Sorriu ao dirigir-se a Hans Castorp, que de novo se sentiu como que desembriagado à vista desses lábios finos, contraídos numa expressão zombeteira, sob a curva do negro bigode. Mesmo assim tinha a boca semi-aberta, enquanto os seus olhos injetados fixavam o italiano com um olhar bastante estúpido. – Ah! É o senhor? – disse. – O senhor do passeio da manhã, aquele do banco lá em cima, perto da fonte... Claro, logo o reconheci. Quer acreditar – continuou, embora sabendo que não devia dizer uma coisa dessas – que no primeiro momento tomei o senhor por um tocador de realejo?... Foi uma idéia absurda, naturalmente – acrescentou, ao notar que o olhar de Settembrini assumira um caráter frio e perscrutador –, uma rematada bobagem, numa palavra. Ainda não posso compreender por que cargas d'água eu... – Não faz mal; fique tranqüilo – replicou Settembrini, após um instante de silêncio, durante o qual apenas contemplara o jovem. – E como passou o senhor o dia de hoje, o primeiro dia da sua estada neste sítio de prazeres? – Dentro do regulamento, obrigado – respondeu Hans Castorp. – Sobretudo à maneira horizontal, como o senhor costuma dizer. Settembrini esboçou um sorriso. – Pode ser que em certa ocasião me tenha expressado dessa forma – disse então. – Pois é, e achou divertido esse modo de viver? – Divertido ou aborrecido, conforme... – tornou Hans Castorp. – Isto às vezes é difícil de distinguir, sabe? Absolutamente não cheguei a me aborrecer; para isso o ambiente aqui é animado demais. A gente vê e ouve tanta coisa nova e estranha! Contudo, tenho a impressão de não estar aqui apenas há um dia, mas há muito tempo já... e até me parece que fiquei mais velho e mais inteligente... – Mais inteligente também? – perguntou Settembrini, alçando os sobrolhos. – Permita a pergunta: quantos anos tem o senhor? Imaginem! Hans Castorp não sabia. Não podia, nesse instante, recordar a sua idade, apesar de esforços violentos, quase desesperados que fazia para se lembrar. A fim de ganhar tempo, esperou até que a pergunta fosse repetida, e depois respondeu: – Eu? Quantos anos? Estou no vigésimo quarto ano da... Em breve vou fazer vinte e quatro. Mas desculpe, que estou cansadíssimo – acrescentou. – Cansado é um termo muito eufemístico, quando me refiro ao meu estado. Conhece o senhor essa sensação de sonhar e de saber que se sonha, de querer despertar e não conseguir? É justamente o que se passa comigo. Tenho certeza de ter febre. Não há nenhuma outra explicação. Quer acreditar que ando com os pés frios até os joelhos? Se bem que os joelhos não façam parte dos pés... Perdão, estou totalmente confuso, e isso não é de admirar, quando a gente já de manhã cedo ouve assobios do... do pneumotórax e depois escutar o palavrório do Sr. Albin, e ainda numa posição horizontal. Imagine, não posso me livrar da idéia de que os meus cinco sentidos não merecem confiança, e isto me incomoda ainda mais que o do rosto e os pés frios. O senhor me diga com toda a franqueza: acha possível que a Srª. Stöhr saiba preparar vinte e oito molhos para peixe? Não quero saber se ela é de fato capaz de prepará-los – isto me parece completamente impossível –, mas apenas se realmente afirmou coisa dessas durante o jantar, ou se aquilo é alucinação minha... Settembrini olhou-o. Parecia não ter prestado atenção. Novamente seus olhos haviam-se cravado no vazio, tomando rumo fixo e cego. Como fizera durante o passeio da manhã, disse três vezes, num tom irônico e pensativo, “sim, sim, sim” e “vejam só, vejam só, vejam só”, sempre sibilando o “s”. – Vinte e quatro, disse o senhor? – perguntou então. – Não, vinte e oito – insistiu Hans Castorp. – Vinte e oito molhos para peixe! Não molhos quaisquer, mas justamente molhos para peixe; é o que me parece fantástico. -meu caro engenheiro – disse Settembrini, entre irado e exortador –, trate de se dominar, e me deixe em paz com essas bobagens absurdas. Nada sei dessas coisas, nem quero saber. Vai fazer e quatro, disse o senhor? Hum... Permita-me mais uma pergunta ou talvez uma sugestão despretensiosa, se quer considerar assim. Uma vez que a estadia aqui parece que não lhe convém, uma vez que não se sente bem no nosso meio, nem física nem, se não me engano muito, psiquicamente... que acha o senhor de renunciar à oportunidade envelhecer aqui? Numa palavra, que tal se ainda esta noite preparasse as suas malas e aproveitasse amanhã o trem para ir-se embora? – O senhor pensa que eu deva partir? – perguntou Hans Castorp. – Ora, mal acabo de chegar. Não, senhor, como posso formar uma opinião logo no primeiro dia? Ao proferir essas palavras, lançou casualmente um olhar para a sala vizinha, onde viu Mme. Chauchat pela frente, com os olhos oblíquos e as largas maçãs. “Que me recorda ela, meu Deus, e a quem?”, pensou, mas apesar de todo o esforço, sua cabeça exausta foi incapaz de encontrar a resposta. – Naturalmente, não é fácil aclimatar-se aqui em cima – continuou. –– Mas isto era de prever. Se eu logo desistisse, só por sentir durante alguns dias um pouco de calor e de tonturas, teria vergonha de mim e me julgaria covarde. Isto será contrário a toda razão... Não! Diga o senhor mesmo... De repente começou a falar com grande ênfase, acompanhando as palavras de vivos movimentos dos ombros. Parecia insistir com o italiano para que este retirasse formalmente a sugestão. – Inclino-me diante da razão – respondeu Settembrini. – Inclino-me também diante da coragem. O que o senhor disse não soa mal. Seria difícil opor-lhe um argumento sólido. Além disso, já observei uns belíssimos casos de aclimatação. Houve, por exemplo, no ano passado, a Srta. Kneifer, Ottilie Kneifer, moça de boa família, filha de um alto funcionário do Estado. Esteve aqui cerca de um ano e meio e habituara-se de tal modo ao ambiente, que por coisa alguma quis ir embora quando a sua saúde ficou restabelecida por completo. (Ora, também isto acontece, há gente que fica boa aqui.) Bem, ela suplicou ao Dr. Behrens, fervorosamente, que lhe permitisse ficar. Não queria nem podia voltar para a sua terra. Aqui se sentia em casa, aqui estava feliz. Mas, como houvesse muitos pedidos e se precisasse do quarto dela, seus rogos foram em vão, e insistiram em dar-lhe alta como curada. E Ottilie começou a ter muita febre. Sua curva subiu consideravelmente. Contudo, foi desmascarada quando lhe substituíram o termômetro por uma “irmã muda”. O senhor ainda não sabe o que isso significa? É um termômetro sem escala que o médico controla pessoalmente, medindo a coluna de mercúrio e inscrevendo a temperatura na papeleta. Ottilie tinha 36,9; sim senhor, não tinha febre. Então tomou um banho no lago; era em princípios de maio, e de noite havia temperaturas abaixo de zero. A água do lago não estava propriamente gelada, mas ainda muitíssimo fria. Ottilie passo bom tempo na água, para contrair esta ou aquela doença. Mas, e o resultado? Continuou perfeitamente boa. Despediu-se desolada, inacessível ao consolo dos pais. “Que vou fazer lá embaixo?” gritou uma e outra vez. “Meu lar é aqui!” Não sei que fim ela levou... Mas tenho a impressão de que o senhor não me presta atenção, meu caro engenheiro. Parece que lhe custa manter-se de pé, se não me engano. Tenente, aqui lhe entrego seu primo – disse voltando-se para Joachim, que nesse instante se aproximava. – Ponhao na cama. Reúne em si razão e coragem, mas esta noite anda meio débil. – Não, senhor, entendi tudo, realmente – afirmou Hans Castorp – A “irmã muda” é apenas uma coluna de mercúrio, totalmente sem escala. Está vendo que compreendi muito bem. - mesmo assim entrou no elevador, com Joachim e mais alguns outros pensionistas. Terminara a reunião e o pessoal dispersava-se em busca das sacadas ou dos alpendres para o repouso noturno. Hans Castorp acompanhou Joachim até o quarto. O chão do corredor, com a passadeira de palha de coqueiro, executava sob os seus pés movimentos suavemente ondulantes, mas que não o incomodavam. Sentou-se na grande poltrona de forro florido do quarto de Joachim – outra igual achava-se no seu próprio aposento e acendeu um Maria Mancini. Achou-o sabor de cola, de carvão e outras coisas, menos o que deveria Apesar disso, continuou a fumá-lo, enquanto observava como Joachim se arrumava para o repouso, vestindo o fumoir e, por cima, um velho sobretudo, para depois ir à sacada, com a lâmpada do criado mudo e o manual de russo na mão. Lá fora, o primo acendeu a lâmpada e, com o termômetro na boca, deitou-se na espreguiçadeira, onde com surpreendente habilidade começou a envolver-se em dois grandes cobertores de lã de camelo, que se achavam estendidos na cadeira. Hans Castorp contemplou com sincera admiração aqueles movimentos destros. Joachim jogou os cobertores, um após outro, por cima de si, primeiro pela esquerda, cobrindo-se até a axila, depois por baixo, sobre os pés, e por fim pela direita, até formar uma espécie de pacote perfeitamente simétrico e liso, do qual saíam apenas a cabeça, os ombros e os braços. – É formidável como você faz isso! – disse Hans Castorp. É questão de prática – respondeu Joachim, falando com o termômetro preso entre os dentes. – Você também vai aprender. Amanhã, sem falta, teremos de comprar alguns cobertores para você. Serão úteis também lá embaixo, e aqui são indispensáveis, sobretudo para você que não tem saco de peles. – Mas não tenciono deitar-me na sacada de noite – declarou Hans Castorp. – Não farei isto, posso garantir. Acho que me sentiria ridículo. Tudo tem limites, afinal. Além disso me parece preciso acentuar, num ou noutro ponto, que estou apenas de visita aqui em cima. Vou ficar ainda alguns instantes com você e fumar um charuto, como de costume. Ele tem um sabor infame, mas eu sei que é de boa qualidade; é o que me basta por enquanto. Daqui a pouco serão nove horas. Infelizmente faltam ainda alguns minutos. Mas, nove e meia já será uma hora mais ou menos normal para a gente se recolher. De repente sentiu um calafrio, primeiro um, e logo depois diversos outros, em rápida seqüência. Hans Castorp levantou-se de um pulo e correu para o termômetro suspenso na parede, como se se tratasse de apanhá-lo em flagrante delito. Segundo a escala de Réaumur havia nove graus no quarto. Hans Castorp apalpou o radiador e verificou que estava frio e apagado. Resmungou algumas palavras confusas, significando aproximadamente que, embora estivessem em agosto, era uma vergonha não se acender a calefação; pois o que importava não era o nome do mês, mas a temperatura reinante, e esta era de um frio de rachar. Mas nas suas faces continuava o referido ardor. Hans Castorp voltou a sentar-se. Pôs-se novamente de pé, e em voz baixa pediu licença para tomar o cobertor da cama de Joachim. Instalado na poltrona, cobriu-se com ele, dos quadris para baixo. Assim permaneceu, ao mesmo tempo ardendo e tiritando, a torturar-se com o charuto de gosto asqueroso. Invadiu-o uma intensa sensação de miséria, como se nunca na vida ele se tivesse sentido tão mal quanto nesse momento. – Que horror! – murmurou. Em seguida, porém, achou-se de repente tomado por uma estranha e exuberante sensação de alegria e esperança, e depois de tê-la experimentado, ficou-se esperando que ela se reproduzisse. Mas isto não se deu, e o que lhe restava então era apenas a miséria. Finalmente se levantou, atirou o cobertor de Joachim sobre a cama, cochichou, de boca crispada, qualquer coisa parecida com “Boa noite!” e “Veja se não morre de frio!” e “Trate de me buscar na hora do café!”. Depois, cambaleando, atravessou o corredor, em busca do seu quarto. Ao despir-se, começou a cantarolar, mas não de alegria. Mecanicamente, sem prestar atenção, desempenhou-se das pequenas funções e obrigações da higiene noturna de um homem civilizado; pingo copo umas gotas de um dentifrício vermelho, contido num frasco de viagem, e gargarejou discretamente; lavou as mãos com um sabonete de violeta, suave e de excelente qualidade, e pôs a camisola de cambraia, em cujo bolsinho se viam bordadas as iniciais H.C. Feito isso, meteu-se na cama e apagou a luz, enquanto deixava cair a cabeça quente e agitada sobre o travesseiro de agonia da americana. Esperara com a mais absoluta certeza mergulhar sem demora no sono, mas verificou que se enganara, e as mesmas pálpebras que pouco antes tivera tanto trabalho de manter abertas, não queriam agora permanecer fechadas e abriam-se, latejando irrequietamente, logo tentava cerrá-las. “Ainda não é a hora em que costumo dormir”, disse de si para si. “Além disso passei muito tempo deitado durante o dia”. Lá fora, alguém parecia bater um tapete – coisa pouco verossímil, e que em realidade não se dava; evidenciou-se que eram as palpitações do seu próprio coração, que Hans Castorp ouvia fora de si, ao longe, exatamente como se um tapete fosse tratado com um batedor de junco. O quarto não estava completamente escuro. Pela porta aberta da sacada entrava a luz das lampadazinhas acesas nos compartimentos de Joachim e do casal da mesa dos “russos ordinários”. E enquanto Hans Castorp estava assim de costas, com as pálpebras a piscar, sentiu renovar-se nele uma impressão toda especial que recebera durante o dia, uma observação que logo procurara esquecer, por terror e delicadeza. Tornou a ver aquela expressão que assumira o rosto de Joachim quando se falava de Marusja e das suas qualidades físicas – essa contração particularmente dolorosa da boca acompanhada do palor como que salpicado de manchas das faces tostadas pelo sol. Hans Castorp compreendia o que aquilo significava; compreendia-o e penetrava-o de uma forma nova, tão profunda e tão íntima, que o batedor de junco, lá fora, redobrava a velocidade e o vigor dos seus golpes e quase que abafava os sons de uma serenata que vinham de Davos-Platz. Pois havia outro concerto naquele hotel. Uma melodia simétrica e barata de opereta ressoava através das trevas, e Hans Castorp pôs-se a assobiá-la num cicio – pode-se muito bem assobiar num cicio –, enquanto marcava o ritmo com os pés frios debaixo do acolchoado de penas. Está visto que este não é um método apropriado para adormecer, e ademais, Hans Castorp já não tinha vontade alguma de fazê-lo. Desde que compreendera, de uma forma tão inédita e viva, por que Joachim empalidecera, o mundo parecia-lhe renovado, e aquela sensação de exuberante alegria e esperança tornou a comovê-lo no seu íntimo. De resto, aguardava mais alguma coisa, sem saber claramente o que era. Mas, quando notou que os vizinhos da direita e da esquerda haviam terminado o repouso e entravam nos quartos, para trocar a posição horizontal na sacada pela mesma posição no interior do aposento, expressou de si para si a convicção de que o casal bárbaro, dessa vez, observaria a trégua. “Posso dormir tranqüilamente”, pensou. “Esta noite, eles vão se comportar bem, disso tenho certeza.” No entanto, tal não aconteceu. O próprio Hans Castorp não acreditara seriamente nessa possibilidade e, para dizer a verdade, teria ficado grandemente surpreendido se não tivessem aberto as hostilidades. Mesmo assim soltou grande número de exclamações silenciosas do mais veemente espanto, diante dos ruídos que ouvia. – É incrível! – gritou, sem voz. – Que coisa impressionante! Quem teria pensado que isto fosse possível! – E, de quando em vez, voltou a acompanhar, ciciando, a melodia de opereta barata, que obstinadamente chegava até ele. Depois veio o sono. Mas, junto com ele, surgiram fantásticas imagens de sonhos, mais fantásticas ainda do que as da primeira noite no meio das quais diversas vezes se sobressaltou, assustado ou entregue à perseguição de uma idéia confusa. Sonhava que via o Dr. Behrens passear pelas alamedas do jardim, caminhando de joelhos dobrados com os braços pendendo, rijos, para a frente, e acertando os passos longos, como que monótonos, ao ritmo de uma marcha que ressoava ao longe. Quando o conselheiro áulico estacou diante de Hans Castorp, usava óculos com grossas lentes redondas e dizia coisas sem nexo: “Paisano, naturalmente”, observou, e sem pedir licença abaixou a pálpebra de Hans Castorp com os dedos indicador e médio da mão enorme. “Um paisano decente, como notei logo. Mas não lhe falta talento, absolutamente não lhe falta talento para uma intensa combustão geral. Não se incomodaria em gastar conosco alguns anos, alguns anos alegres de serviço aqui em cima? Pois então, cavalheiros, e agora um passeio, vamos!”, exclamou, metade na boca os dois índices enormes e dando assobios tão estranhamente melodiosos, que de diversos lados e em miniatura surgiram, voando através dos ares, a professora e Miss Robinson, para lhe pousarem nos ombros, à direita e à esquerda, assim como na sala de refeições ficavam sentadas ao lado de Hans Castorp. E assim o médico se foi, a passo saltitante, esfregado um guardanapo por trás das lentes dos óculos, a fim de enxugar olhos e secar não se sabia o quê, suor ou lágrimas. Depois, Hans Castorp sonhou que se encontrava no pátio do ginásio, onde durante tantos anos passara os intervalos entre as aulas, e que estava a ponto de pedir emprestado um lápis a Mme... Chauchat, que igualmente estava presente. Ela deu-lhe uma lapiseira de prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz agradavelmente velada, que devolvesse sem falta depois da aula. E quando o olhou, com seus olhos rasgados, de um azul esverdeado, por cima das maçãs salientes, ele fez um esforço violento para se desprender do sonho; pois agora já sabia e queria gravar na memória que acontecimento e que pessoa ela lhe recordava com tamanha intensidade. A toda pressa, pôs-se a guardar essa percepção num lugar seguro, já que sentia como o sono e o sonho novamente se apoderavam dele. Com efeito, viu-se logo na contingência de procurar um refúgio para se abrigar contra a perseguição do Dr. Krokowski, que lhe quis dissecar a alma, o que provocou em Hans Castorp um medo louco que realmente não tinha limites. Fugiu a passo trôpego, diante do doutor, passando pelas divisões de vidro que separavam os compartimentos das sacadas, e com perigo de vida saltou ao jardim. Em último recurso, tentou trepar no mastro pardo da bandeira. Despertou, banhado em suor, quando o perseguidor lhe agarrava a perna da calça. Apenas se acalmou um pouco e voltou a adormecer, os acontecimentos tomaram o seguinte rumo: ele se encontrou empenhado em arredar com o ombro o Sr. Settembrini, que ali se achava, de pé, sorrindo – um sorriso fino, seco, zombeteiro, sob o espesso bigode negro, e que se esboçava justamente no ponto em que esse bigode se erguia numa bela curva; um sorriso que melindrava Hans Castorp. “O senhor é demais aqui”, ouviu-se distintamente dizer. “Vá-se embora! É apenas um tocador de realejo e é demais aqui!” Mas Settembrini não deixou que o afastasse do lugar e Hans Castorp estava ainda a perguntar-se o que deveria fazer, quando, de chofre e por sorte, lhe ocorreu uma excelente idéia a respeito da natureza do tempo: evidenciouse que o tempo nada mais era senão uma “irmã muda”, uma coluna de mercúrio totalmente desprovida de escala, para aqueles que quisessem trapacear. Em seguida, acordou com a firme intenção de comunicar, no dia seguinte, essa descoberta a seu primo Joachim. No meio de tais aventuras e achados decorreu a noite, e também Hermine Kleefeld, assim como o Sr. Albin e o Capitão Miklosich, desempenharam papéis complicados. Este último carregava nas suas fauces a Srª. Stöhr e era trespassado com uma lançada pelo promotor Público, Sr. Paravant. Houve ainda um sonho que Hans Castorp teve duas vezes durante essa noite, e ambas as vezes exatamente do mesmo modo, a segunda já de madrugada. Achava-se sentado na sala das sete mesas, quando a porta envidraçada se fechou com enorme estrondo. Entrara Mme... Chauchat, no seu suéter branco, com uma mão no bolso e a outra na nuca. Porém, ao invés de se dirigir à mesa dos “russos distintos”, a mulher mal-educada aproximou-se a passo cioso de Hans Castorp e, sem dizer palavra, estendeu-lhe a mão para beijar – não as costas, mas sim a palma. E Hans Castorp beijou o interior dessa mão; beijou essa mão pouco cuidada, um tanto larga, de dedos curtos, com a pele áspera nas bordas das unhas. Novamente o invadiu então, dos pés à cabeça, aquela sensação de gozo dissoluto por que passara, quando, a título de experiência, se sentira livre da pressão da honra e desfrutara as ilimitadas vantagens que acarreta a vergonha. Foi essa a sensação que ele tornou a encontrar no sonho, mas com uma intensidade mil vezes maior. CAPÍTULO IV Compra necessária – E agora? Já terminou o verão de vocês? – perguntou Hans Castorp ironicamente, no terceiro dia, ao primo. O tempo mudara de modo assustador. O segundo dia completo que o visitante passara no sanatório fora de magnífico esplendor estival. O azul profundo do céu luzia por cima das copas pontiagudas dos pinheiros, enquanto a aldeia, no fundo do vale, fulgia deslumbrante em meio ao calor. O ar estava cheio do tilintar alegre e calmo dos cincerros das vacas que aqui e ali, nas encostas, pastavam o capim curto e cálido dos prados. Já à hora do café da manhã, as senhoras haviam exibido levíssimas blusas de fazendas laváveis, algumas até com mangas de broderie, o que não ficava igualmente bem a todas; para a Srª. Stöhr, por exemplo, esse traje era pouco vantajoso, visto ela ter os braços demasiado balofos para usar vestimenta vaporosa. Também o sexo forte levara em conta o tempo esplêndido, no que se referia à escolha dos trajes. Surgiram jaquetas de alpaca e ternos de linho. Joachim ostentara calças de flanela cor de marfim, sob o costumeiro paletó azul, combinação que lhe dava um ar tipicamente militar. Quanto a Settembrini, também ele manifestara repetidas vezes a intenção de mudar de roupa. – Que diabo! – dissera, enquanto, depois do café da manhã, passeava em companhia dos dois primos, em direção à aldeia. – Como está quente o sol! Já vejo que terei de pôr roupa mais leve. – Mas, apesar dessa declaração expressa, continuara trajando o casaco espesso e comprido, com as largas lapelas, e as calças enxadrezadas, que provavelmente representavam tudo quanto possuía de vestuário. No terceiro dia, porém, parecia transtornada a natureza e posta às avessas a ordem das coisas. Hans Castorp mal dava crédito aos próprios olhos. Era depois do almoço, e o pessoal, fazia vinte minutos, entregava-se ao repouso, quando o sol se escondeu rapidamente. Nuvens feias, pardas como turfa, surgiram por cima da cordilheira ao sudeste, e um vento glacial, estranho, que penetrava até a medula dos ossos, como se viesse de desconhecidas regiões geladas, começou subitamente a varrer o vale, provocando uma brusca queda de temperatura e encetando um regime completamente novo. – Vem neve – ressoou a voz de Joachim por trás da divisão de vidro. – Que é que você quer dizer com “neve”? – perguntou Hans Castorp. – Não pensa seriamente que vai nevar?! – Claro! – respondeu Joachim. – Já conhecemos esse vento. Quando ele vem, traz consigo passeios de trenó. – Bobagem! – retrucou Hans Castorp. -se não me engano muito, estamos em princípios de agosto. No entanto, Joachim, como conhecedor do clima, dissera a verdade. Dentro de poucos instantes, começou a desabar formidável nevada, com acompanhamento de incessantes trovões. Era um torvelinho tão denso, que tudo parecia envolto num vapor branco e quase nada se enxergava da aldeia e do fundo do vale. A neve continuou caindo durante toda a tarde. Puseram a funcionar a calefação central. Enquanto Joachim recorria ao saco de peles e não admitia nenhuma interrupção do seu tratamento, Hans Castorp refugiou-se no interior do quarto, aproximou a cadeira do radiador aquecido e, meneando freqüentemente a cabeça, contemplava as monstruosidades que por lá se passavam. Na manhã do dia seguinte, já não nevava. Mas, conquanto o termômetro de fora marcasse alguns graus acima de zero, o solo permanecia coberto com neve de um pé de altura, de modo que, ante os olhos pasmados de Hans Castorp, se desdobrava uma perfeita paisagem hibernal. Voltaram a desligar a calefação. A temperatura nos quartos era de seis graus acima de zero. – E agora? Já terminou o verão de vocês? – perguntou Hans Castorp ao primo, com amarga ironia. – É difícil prever – respondeu Joachim, na sua maneira objetiva. -se Deus quiser, haverá ainda uns belos dias de verão. Mesmo em setembro, não é impossível. Mas o caso é que aqui não existe diferença acentuada entre as estações, sabe? Elas se misturam, por assim dizer, e não ligam ao calendário. No inverno, há dias em que o sol está tão forte, que a gente sua e tira o paletó durante o passeio, e no verão. . . Bem, você está vendo o que às vezes acontece no verão. E ainda a neve, esta então põe tudo em desordem. Cai neve em janeiro, mas em maio não cai muito menos, e em agosto também está nevando. Generalizando, posso dizer que não se passa nenhum mês sem que haja neve; nisso a gente pode se fiar. Numa palavra, temos dias de verão e dias de inverno, dias de primavera e dias de outono, mas não há propriamente estações aqui em cima. – É uma bela confusão – disse Hans Castorp. Em companhia do primo, foi à aldeia, com galochas e sobretudo de inverno, a fim de comprar uns cobertores para cura de repouso, visto ser evidente que, num tempo desses, não lhe bastaria o cobertor de viagem. Chegou até a ventilar a idéia da compra de um saco de peles, porém abandonou-a e mesmo se assustou diante dela. – Não, senhor – disse. – Vamos limitar-nos aos cobertores. Lá embaixo ainda me prestarão serviços. Cobertores usam-se em toda parte. Nisso não há nada de particular e estranho. Mas um saco de peles é uma coisa toda especial. Se eu comprasse um saco de peles – compreenda-me bem –, teria a impressão de me domiciliar aqui e de tornar-me, em certo sentido, um de vocês. . . Bem, só quero dizer que absolutamente não vale a pena adquirir um saco de peles só para essas poucas semanas. Joachim concordou. Numa bela e bem-sortida loja do bairro inglês, compraram dois cobertores de lã de camelo, do mesmo tipo que possuía Joachim, particularmente compridos e largos, muito macios e de cor natural. Deram ordem de mandá-los sem demora ao sanatório, o Sanatório Internacional Berghof, quarto 34. Hans Castorp tencionava estreá-los já de tarde. Haviam descido à aldeia depois do café da manh㠖 naturalmente, uma vez que o horário habitual não oferecia nenhuma outra ocasião para esse passeio. Chovia, e a neve depositada nas ruas já se transformara numa espécie de pasta gélida que lhes enlameava as calças. Ao regressarem, encontraram-se com Settembrini, que, sem chapéu, mas com um guarda-chuva, também se encaminhava ao sanatório. O italiano tinha a cara amarelada e andava visivelmente possuído de um humor elegíaco. Num estilo puro e com palavras bem escolhidas, lamentava-se do frio e da umidade que tanto o faziam sofrer. Se, pelo menos, ligassem a calefação! Mas aqueles miseráveis potentados mandavam desligá-la tão logo parava a nevada. Era uma regra estúpida, um insulto a toda inteligência! E quando Hans Castorp objetou que uma temperatura moderada, sem dúvida, fazia parte integrante do regime, talvez para evitar que os pacientes se tornassem amimalhados, Settembrini respondeu com o mais veemente sarcasmo: – Pois sim, o regime! Os princípios sagrados, intangíveis, do regime! Com efeito, o senhor fala deles no tom que convém; o tom de disciplina e submissão. Há apenas uma coisa surpreendente, embora num sentido perfeitamente favorável; é que, entre esses princípios, gozam de respeito ilimitado justamente aqueles que coincidem com os interesses financeiros dos potentados, ao passo que se faz vista grossa diante da violação de outros princípios menos dispendiosos... – Enquanto os primos desatavam a rir, Settembrini, em conexão com o almejado calor, passou a falar de seu saudoso pai. -meu pai – disse pausada e fervorosamente –, meu pai era homem muito fino. Tinha o corpo e a alma igualmente sensíveis. Como adorava, no inverno, o seu bem aquecido gabinete de estudo! Adorava-o e fazia questão que mantivessem ali uma temperatura constante de vinte graus Réaumur. Isto se conseguia por meio de uma pequena estufa vermelha de tanto calor, e quando, em dias de chuva fria ou de tempestade glacial, uma pessoa passava pelo vestíbulo e entrava no gabinete, sentia o calor lhe envolver os ombros como um manto macio, e os olhos enchiam-selhe de lágrimas de bem-estar. A pequena peça estava abarrotada de livros e manuscritos, entre os quais se achavam muitas preciosidades. E no meio desses tesouros do espírito, estava ele, de pé, com seu roupão de flanela azul, diante da estreita escrivaninha, onde se dedicava à literatura. Era baixinho e delgado; media mais de uma cabeça menos do que eu, imaginem! Nas frontes tinha uns espessos tufos de cabelo grisalho, e seu nariz era muito longo e fino... Que romanista, senhores! Um dos mais eminentes da sua época! Conhecedor da nossa língua como poucos houve! Estilista latino como mais ninguém! Um uomo letterato, segundo a concepção de Boccaccio!... Os sábios vinham de longe para falar com ele, um de Haparanda, outro de Cracóvia. Vinham especialmente à nossa cidade de Pádua para lhe demonstrar a sua estima, e ele recebia-os com afável dignidade. Era também poeta emérito, que nas suas horas de lazer compunha novelas na mais elegante prosa toscana. Um mestre do idioma gentile – sintetizou Settembrini com extrema satisfação, saboreando os sons da língua pátria e meneando a cabeça. – Cultivava seu jardim, segundo o exemplo de Virgílio – continuou –, e tudo quanto dizia era belo e sadio. Mas era preciso que fizesse calor, muito calor, no seu gabinete; senão, tremia de indignação e era capaz de verter lágrimas, porque o deixavam padecer frio. E agora imagine, meu caro engenheiro, e o senhor, tenente, o quanto eu, filho de meu pai, sofro neste maldito e bárbaro lugar, onde o corpo, em pleno verão, tirita de frio e as mais humilhantes impressões constantemente atormentam a alma... Ah! É duro! Que tipos esses que nos rodeiam! Esse conselheiro áulico, escravo maluco do Demônio! E Krokowski -settembrini fez como se o nome lhe quebrasse a língua –, Krokowski, o confessor impudico, que me odeia, porque a minha dignidade humana proíbe entregar-me às suas práticas papistas... E meus comensais! Com que companhia estou condenado a tomar as refeições! À minha direita fica um cervejeiro de Halle – chama-se Magnus –, com um bigode que parece um feixe de feno. “Deixe-me em paz com a literatura”, diz ele. “Que é que ela me oferece? Belos caracteres? Que me adiantam belos caracteres? Sou um homem prático, e na vida quase nunca se encontram belos caracteres.” É esta a idéia que ele faz da literatura. Belos caracteres, o madre de Dio! Sua mulher, que costuma sentar-se à sua frente, deixa-se ficar ali, perde proteínas e afunda-se cada vez mais na estupidez. Que sórdida miséria!... Sem que houvessem tido ensejo de trocar opiniões a respeito das palavras de Settembrini, Hans Castorp e Joachim as julgavam do mesmo modo: achavam-nas choramingueiras e desagradavelmente sediciosas, se bem que divertidas e até instrutivas, na sua animosidade atrevida e precisa. Hans Castorp riu-se gostosamente da comparação com o “feixe de feno” e também dos “belos caracteres”, ou melhor, do desespero cômico que Settembrini manifestava. Em seguida disse: – Ora, meu Deus, pode ser que a companhia não seja muito seleta num estabelecimento destes. Nem sempre se pode escolher os vizinhos de mesa. Isso iria longe. À minha mesa há também uma senhora desse tipo, a Srª. Stöhr... Creio que o senhor a conhece. É de uma ignorância pavorosa, não há dúvida, e às vezes a gente não sabe para onde olhar, quando ela se mete a tagarelar. Contudo, lamenta-se essa mulher da sua temperatura e de se sentir tão lassa. Parece, infelizmente, que não se trata de um caso benigno. E isto é estranho, estupidez e doença, não sei se me expresso claramente, mas tenho uma impressão tão esquisita ao ver uma pessoa estúpida que ainda por cima está doente! Essas duas coisas reunidas, acho que são o que há de mais triste neste mundo. Não se sabe como comportar-se, pois todos gostam, afinal, de tratar um enfermo com seriedade e respeito, não é? A doença é, por assim dizer, uma coisa digna de reverência. Mas quando a estupidez, a cada instante, se intromete, dizendo “fómulo” ou “estabelecimento cósmico”, ou outras asneiras do mesmo quilate – francamente, então não sei se devo rir ou chorar. É um dilema para o sentimento humano, e uma situação tão lamentável que nem posso dizer. Na minha opinião, não há coerência nessas duas coisas; elas não combinam; a gente é incapaz de imaginá-las reunidas. Sempre se pensa que uma pessoa estúpida deve ser normalmente sadia; e que a doença torna as criaturas finas e cultas e diferentes. É assim que se pensa em geral, não é? Pode ser que eu diga mais do que posso justificar – concluiu. – É apenas porque, casualmente, tocamos no assunto... – E estacou, confuso. Também Joachim estava um pouco perplexo, e Settembrini permaneceu calado, apenas alçando os sobrolhos, como quem, por cortesia, aguarda o fim da fala de um interlocutor. Na realidade, porém, tinha a intenção de deixar chegar o momento em que Hans Castorp se atrapalhasse todo. Por fim respondeu: – Sapristi, meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo, um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez. O método mais acertado de despertar no senhor repugnância contra ela talvez seja dizer-lhe que é velha e feia. Tem ela a sua origem em épocas supersticiosas, acossadas de remorsos, e nas quais a idéia do humano, privada de toda dignidade, degenerara a ponto de se tornar uma caricatura, épocas angustiadas, que consideravam a harmonia e o bem-estar coisas suspeitas, diabólicas, ao passo que a debilidade equivalia a um passaporte para o Céu. Mas a Razão e o Iluminismo dissiparam essas sombras que pairavam sobre a alma da humanidade; verdade é que ainda não terminaram a sua obra, e a luta continua. Esta luta, meu caro senhor, chama-se trabalho, trabalho terreno, trabalho em prol da Terra, da honra e dos interesses da humanidade. E temperadas, dia a dia, por essa luta, aquelas forças acabarão por libertar o Homem e por guiá-lo pelos caminhos do progresso e da civilização, rumo a uma luz cada vez mais clara, mais sua e mais pura. “Puxa!”, pensou Hans Castorp, espantado e confuso. “Mas isto soa como uma ária de ópera! Como é que provoquei esse discurso? Ele me parece, aliás, um pouco árido. Por que fala o homem constantemente do trabalho? Sempre insiste no trabalho, embora aqui em cima isto venha um pouco fora de propósito.” Finalmente respondeu: – Muito bem, Sr. Settembrini. É mesmo notável como o senhor sabe falar. Essas coisas não poderiam ser ditas de um modo... de um modo mais plástico... – Um retrocesso – prosseguiu Settembrini, enquanto erguia o guarda-chuva por cima da cabeça de um transeunte –, um retrocesso espiritual em direção aos conceitos desses tempos tenebrosos, atormentados... Creia-me, meu caro engenheiro, que isso é uma doença; uma doença explorada a fundo, para a qual a ciência conhece diversas denominações; uma deriva da terminologia estética e psicológica, e a outra, da política. São termos escolares, que nada têm a ver com o nosso tema, e dos quais o senhor pode perfeitamente prescindir. Mas, como tudo se encadeia na vida espiritual, e uma coisa se depreende da outra, como não se pode estender ao Diabo nem sequer o dedo mínimo, sem que ele logo agarre a mão inteira e com ela todo o homem... Como, por outro lado, um princípio são somente pode gerar efeitos sadios, sendo indiferente qual o ponto de partida – queira, pois, o senhor gravar na memória que a doença, longe de ser nobre e por demais digna de reverência para ser compatível com a estupidez, representa, pelo contrário, uma humilhação... Sim, senhor, uma humilhação dolorosa do Homem, um insulto à idéia, um rebaixamento que no caso individual pode merecer tolerância e cuidado, mas que seria uma aberração homenagear espiritualmente – grave isto na memória! –, uma aberração e o início de todas as demais aberrações espirituais. Aquela mulher que o senhor mencionou... Nem quero me lembrar do nome dela... Ah, sim, a Srª. Stöhr, muito obrigado... Bem, não é, ao que me parece, o caso dessa criatura ridícula o que coloca o sentimento humano diante de um dilema, para usar as suas palavras. Estúpido e doente -meu Deus, isto são as peculiaridades da própria miséria; o caso é simples, e nada nos resta a fazer senão sentir compaixão e encolher os ombros. O dilema, meu caro senhor, a tragédia começa onde a Natureza se mostrou bastante cruel para destruir, ou para tornar de antemão impossível, a harmonia da personalidade, associando um espírito nobre e cheio de vitalidade a um corpo pouco apto para a vida. O senhor conhece Leopardi, meu caro engenheiro? Ou o senhor, tenente? Um poeta infeliz da minha terra, um corcunda enfermiço, com uma alma primitivamente grande, mas rebaixada sem cessar pela miséria do seu corpo e arrastada aos abismos da ironia, uma alma cujas lamentações dilaceram o coração. Ouçam isto! E Settembrini pôs-se a recitar em italiano, deixando as sílabas se derreterem na língua, agitando a cabeça e às vezes cerrando os olhos, sem se preocupar com o fato de que seus companheiros não entendiam uma só palavra. O que lhe importava era visivelmente saborear a beleza da sua prosódia e a força da sua memória, e exibi-las diante do auditório. Finalmente disse: – Mas os senhores não compreendem. Estão ouvindo sem perceber o sentido doloroso dos versos. O aleijado Leopardi – é preciso sentir essa desgraça na sua plenitude, cavalheiros – carecia sobretudo do amor das mulheres, e foi isso, antes de mais nada, que o tornou incapaz de impedir o definhamento da sua alma. O esplendor da glória e da virtude empalidecia ante seus olhos; a Natureza afigurava-se-lhe malvada – ela é realmente malvada, estúpida e malvada; neste ponto concordo com ele – e ele caiu no desespero. É horrível dizê-lo: ele desesperou da ciência e do progresso. Eis, meu caro engenheiro, um exemplo de autêntica tragédia. Aqui o senhor encontra o seu “dilema para o sentimento humano”, e não no caso daquela mulher, de cujo nome recuso terminantemente carregar a minha memória... Não me fale da “espiritualização” que pode resultar da enfermidade; por amor de Deus, não faça isto! Uma alma sem corpo é tão desumana e horripilante quanto um corpo sem alma. A primeira é, aliás, uma rara exceção, e o segundo, o mais comum. Via de regra é o corpo que exubera, açambarca toda a vida e toda a importância, e se emancipa da maneira mais asquerosa. Um homem que vive enfermo é corpo e nada mais, e nisto está o anti-humano, o aviltante... Na maioria das vezes não vale mais que um cadáver... – Engraçado! – exclamou Joachim de súbito, inclinando-se para a frente, a fim de olhar o primo, que caminhava do outro lado de Settembrini. – Não faz muito, você disse uma coisa bem parecida. -será? – tornou Hans Castorp. – Bem, pode ser que uma idéia semelhante me tenha passado pela cabeça. Settembrini permaneceu calado durante alguns momentos, antes de dizer: – Tanto melhor, meus senhores. Tanto melhor se assim é. Longe de mim a intenção de lhes expor uma filosofia original. Não é isto o que me cabe fazer. Se o nosso engenheiro, espontaneamente, já chegou a observações análogas, confirma-se a minha opinião segundo a qual ele é um diletante do espírito e simplesmente se entrega, à maneira dos jovens talentosos, a experiências com toda espécie de conceitos possível. Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual tudo já foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseja manifestar-se... Os senhores fizeram compras? – perguntou então num tom diferente. – Não, senhor, nada de especial – respondeu Hans Castorp. – Quer dizer... – Compramos alguns cobertores para meu primo – respondeu Joachim displicentemente. – É para o repouso... Com esse frio de rachar... Dizem que devo observar o regime durante as semanas da minha estadia – explicou Hans Castorp, rindo e baixando os olhos. – Ah? Cobertores! Repouso! – exclamou Settembrini. – Sim, sim, sim! Com efeito: placet experiri – repetiu, com pronúncia italiana. Depois se despediu, pois, cumprimentados pelo porteiro coxo, acabavam de entrar no sanatório. No vestíbulo, Settembrini tomou o caminho para os salões, a fim de ler os jornais antes do almoço, segundo disse. Parecia querer gazear o segundo repouso. – Deus me livre! – desabafou Hans Castorp, quando estava com Joachim no elevador. – É mesmo um pedagogo. Ele já nos disse outro dia que tinha uma veia pedagógica. E a gente deve cuidar-se na presença dele e não dizer uma palavra indevida, senão segue logo uma preleção que não acaba nunca. Mas vale a pena ouvi-lo falar. Cada palavra lhe sai da boca tão arredondada e apetitosa, que sempre me faz lembrar pãezinhos frescos. Joachim deu uma risada. – Não lhe diga isso. Creio que ele ficaria decepcionado se soubesse que você pensa em pãezinhos ao escutar as suas teorias. – Acha mesmo? Ora, não tenho tanta certeza disso. Sempre me parece que ele não se preocupa exclusivamente com as suas teorias, e que estas desempenham um papel secundário. O que lhe interessa mais é o falar em si, o seu modo peculiar de fazer as palavras saltar e rolar... tão elásticas como bolas de borracha... Tenho a impressão de que não lhe é desagradável verificar que os outros notam o efeito. O cervejeiro Magnus disse, indubitavelmente, uma asneira, quando falou dos “belos caracteres”, mas Settembrini nos deveria ter dito o que é, em realidade, o objetivo da literatura. Eu não quis perguntar, para não mostrar a minha ignorância. Não sou nada competente nessas coisas, e até agora nunca vi um literato. Contudo, se o que importa não são os belos caracteres, devem ser as belas palavras. Tal a minha impressão, quando me acho em companhia de Settembrini. Que palavras usa esse homem! Sem o mínimo acanhamento fala de “virtude”, ora essa! Nunca na vida empreguei esse vocábulo. Até mesmo na escola, dizíamos “coragem”, quando líamos “virtus” nos livros. Naquele momento senti um choque; não posso negálo. E depois, fico nervoso quando ele se mete a resmungar sobre o frio e sobre Behrens e sobre a Srª. Magnus, porque ela perde proteínas, sobre tudo o que existe, enfim. É um homem de oposição, como logo percebi. Investe contra qualquer coisa, e uma atitude dessas sempre me dá a impressão de negligência. Não posso evitá-lo. – É o que você pensa – disse Joachim ponderadamente. – Mas, por outro lado, tal atitude revela um certo orgulho que nada tem de negligente. Pelo contrário, Settembrini é um homem que se respeita a si mesmo, ou respeita os homens em geral. E isso me agrada nele, porque, a meu ver, é um sinal de decência. – Tem razão – concordou Hans Castorp. – Ele até me parece um tanto severo. A gente, às vezes, fica constrangido diante dele, porque se sente... como dizer?... controlado. Sim, senhor, é isso mesmo. Você quer acreditar que tenho a impressão de que ele não aprovava a compra dos cobertores para o repouso, que se opunha a ela e até estava escandalizado? – Não – disse Joachim, circunspecto e admirado. – Por que razão? Não posso imaginar... – E com isso se foi, metendo o termômetro na boca e levando todos os seus apetrechos para o repouso, enquanto Hans Castorp começou logo a mudar de roupa e a arrumar-se para o almoço, do qual os separava nem sequer uma hora. Digressão sobre o sentido do tempo Quando voltaram ao quarto de Hans Castorp, depois do almoço, já se encontrava ali, numa cadeira, o embrulho dos cobertores; e nesse dia o jovem serviu-se deles pela primeira vez. Joachim, mais experiente na arte de se agasalhar, que todos exerciam ali em cima e os recémchegados tinham de aprender, mostrou-lhe como fazê-lo. Os cobertores deviam ser estendidos, um após outro, sobre a espreguiçadeira, de maneira que um bom pedaço deles sobrasse no lugar dos pés. A seguir, a gente sentava-se na cadeira e começava a envolver-se no cobertor superior, primeiro de um lado em todo o comprimento, até as axilas, depois na parte de baixo, por cima dos pés, o que requeria que a pessoa se soerguesse, se inclinasse para a frente e apanhasse as camadas da extremidade dobrada, e por fim do outro lado, sendo importante ajustar cuidadosamente a ponta dupla às bordas da cadeira, a fim de se conseguir um máximo de lisura e regularidade. Em seguida, procedia-se da mesma forma com o cobertor de baixo, que era um pouco mais difícil de manejar, Hans Castorp, como noviço desajeitado, não cessava de gemer, enquanto, ora curvado, ora reclinado, treinava os movimentos que Joachim lhe ensinara. – Só mesmo alguns veteranos – disse o primo – sabem jogar simultaneamente os dois cobertores por cima do corpo, com apenas três manobras precisas. É uma habilidade rara e invejada, que exige não somente anos de prática mas também um talento natural. – Essas últimas palavras fizeram com que Hans Castorp estourasse de riso, deixando-se cair para trás, sobre as costas doloridas. Joachim, que no primeiro instante não compreendera o que havia nisso de cômico, olhou-o com um ar incerto, e depois também desatou a rir. – Feito! – disse quando Hans Castorp, exausto de toda essa ginástica, arrumado em forma de cilindro, e como que sem membros, estava estendido na espreguiçadeira, com o rolo elástico por baixo da nuca. -mesmo que fizesse uns vinte graus abaixo de zero, nada lhe poderia acontecer agora. – Com isso desapareceu atrás da divisão de vidro, para se agasalhar a si próprio. Essa coisa dos vinte graus abaixo de zero parecia bastante duvidosa a Hans Castorp, que se ressentia muito do frio. Repetidas vezes, calafrios lhe passaram pelo corpo, enquanto contemplava, através das arcadas de madeira, a umidade que lá fora caía, pingando, garoando, e dando a impressão de estar a ponto de se transformar, de um momento para outro, em nova nevada. Era, porém, estranho que, não obstante o tempo úmido, ele continuasse com o rosto seco e ardente, como se se achasse num quarto superaquecido. Ademais, sentia-se ridiculamente cansado em virtude dos exercícios realizados para envolver-se nos cobertores. Com efeito, o Ocean steamships tremia-lhe nas mãos quando o aproximava dos olhos. Era evidente que a sua saúde não era lá muito boa – “totalmente anêmico”, dissera o Dr. Behrens –, e por isso incomodava-se tanto com o frio. Mas essas sensações desagradáveis eram compensadas pela grande comodidade da sua posição, pelas qualidades insondáveis e quase misteriosas dessa espreguiçadeira, que Hans Castorp já descobrira, entusiasmado, quando da estréia, e que voltavam a comprovar-se de modo sumamente ameno. Fosse devido ao tipo das almofadas, à inclinação conveniente do encosto, à altura e largura acertadas dos braços, ou talvez à consistência apropriada do rolo atrás da nuca – em todo caso era impossível imaginar um método mais humano para garantir o bem-estar de membros em repouso do que os serviços dessa cadeira perfeita. E grande satisfação invadia a alma de Hans Castorp, ao pensar nas duas horas vazias, cheias de paz assegurada, que tinha à sua frente, essas horas sagradas que o regulamento da casa destinava ao repouso principal, e que ele, apesar de ser um simples visitante, aprovava como uma instituição inteiramente adequada ao seu caráter. Pois Hans Castorp era paciente por natureza, e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar. Às quatro horas iria tomar o chá da tarde, com bolo e confeitos; depois haveria um novo repouso na espreguiçadeira; às sete, vinha o jantar, que, como todas as refeições, ofereceria algumas sensações e certos aspectos curiosos, dignos de serem aguardados com prazer; depois, alguns olhares no interior da caixa estereoscópica, no caleidoscópio em forma de luneta, e no tambor cinematográfico... Hans Castorp já sabia de cor o programa do dia, ainda que fosse exagero dizer que já se “aclimatara” perfeitamente. No fundo constitui fenômeno esquisito esse processo de aclimatação num lugar estranho, a adaptação – por mais laboriosa que seja – e a mudança de hábitos à qual as pessoas se submetem só para variar e na intenção firme de abandoná-la imediatamente ou pouco depois de completada, a fim de voltarem ao estado anterior. Intercala-se tal processo como uma espécie de interrupção ou entreato, no curso principal da vida, e isso para fins de “restabelecimento”, quer dizer, para exercitar, renovar e revolucionar o organismo que corria perigo, e já estava a ponto de se amimalhar, de enlanguescer e de entibiar, na desarticulada monotonia da existência rotineira. Mas, qual é a origem desse langor, dessa tibieza, nos casos de continuidade por demais extensa e ininterrupta de uma rotina? Trata-se menos do cansaço e do desgaste físico e espiritual, que causam as exigências da vida – para eles, o simples descanso bastaria como remédio reconstituinte –, do que de algo psíquico: é a consciência do tempo que ameaça perder-se na uniformidade constante, e que liga laços tão estreitos de parentesco e afinidade à própria sensação de vida, que não se pode debilitar uma sem que a outra sofra e definhe também. Com respeito à natureza do tédio encontram-se freqüentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos. O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa – esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento, um reforço, um retardamento da nossa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se “aclimata”, começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana – de quatro, por exemplo – é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo produz efeitos além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão. E o senso de tempo de quem já está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possuiu desenvolvido em alto grau – o que é sinal de pouca força vital –, volta a adormecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu ambiente habitual, e a viagem não passasse do sonho de uma noite. Inserimos aqui essas observações porque o jovem Hans Castorp tinha em mente idéias análogas, quando, depois de alguns dias, disse ao primo, fixando nele os olhos estriados de sangue: – É mesmo curioso como o tempo, no começo, parece longo a quem se encontra num lugar estranho. Quer dizer... Absolutamente não me aborreço; nada disso! Ao contrário, posso afirmar que me divirto esplendidamente. Mas quando olho para trás – em retrospectiva, sabe? – tenho a impressão de estar aqui há não sei quanto tempo já. E de agora até aquele momento em que cheguei a Davos-Dorf e não compreendi que já estava no fim da minha viagem e você me disse: “Pode descer” – lembra-se ainda? –, isto me parece toda uma eternidade. Essas coisas nada têm a ver com medidas e raciocínios. São puramente questão de sentimentos. Claro que seria tolice dizer: “Tenho a impressão de estar aqui há dois meses”; isto seria um absurdo. Só posso dizer: “Há muito tempo já”. – Pois é – disse Joachim, com o termômetro na boca. – Eu também me aproveito disso. De certo modo, posso me segurar em você, desde que está aqui. – E Hans Castorp riu-se de que o primo dissesse isso assim tão simplesmente, sem acrescentar nenhuma explicação. Hans Castorp faz uma tentativa de conversação em francês Não, absolutamente não se aclimatara ainda, nem no que se referia ao conhecimento da vida no sanatório em todas as suas particularidades – conhecimento que seria impossível adquirir em tão poucos dias e (como ele dizia de si para si, e também explicou a Joachim) infelizmente não lhe seria dado adquirir tampouco em três semanas –, nem quanto à adaptação do seu organismo às condições atmosféricas tão peculiares que reinavam “aqui em cima”; pois essa adaptação lhe custava esforços, tremendos esforços, e, como lhe parecia, não estava disposta a realizar-se. O dia normal achava-se claramente subdividido e cuidadosamente organizado. A gente logo chegava a acompanhar-lhe o ritmo e se afazia à rotina, quando se ajustava à engrenagem. Mas, no conjunto da semana e das unidades mais vultosas do tempo, esse dia estava submetido a certas variações regulares que se apresentavam apenas pouco a pouco; uma não aparecia antes da outra já se ter repetido; e também no que dizia respeito à sucessão diária de objetos e vultos individuais, Hans Castorp tinha que aprender a cada passo, observando mais de perto as coisas que antes só olhara superficialmente, e assimilando impressões novas com receptividade juvenil. Aqueles recipientes bojudos, de gargalo curto, por exemplo, que se achavam nos corredores, diante de algumas portas, e nos quais Hans Castorp reparara logo na noite da sua chegada, continham oxigênio, conforme Joachim lhe explicou, em resposta à sua pergunta. Era oxigênio puro, a seis francos o balão, e esse gás vivificante era ministrado aos agonizantes, para lhes dar um derradeiro estímulo e prolongar a duração das suas forças. Sorviam-no por meio de um tubo. Atrás das portas perto das quais se encontravam tais balões havia agonizantes, ou moribundi, como se expressou o Dr. Behrens, certo dia, quando Hans Castorp topou com ele no primeiro andar. Remando com os braços, o conselheiro áulico, de avental branco e faces azuladas, vinha atravessando o corredor, e juntos subiram a escada. – Que tal, meu caro espectador desinteressado? – disse Behrens. – Que é que anda fazendo? Será que a gente pode esperar alguma aprovação de seu olhar crítico? Obrigado, muita honra para nós! Pois é, a nossa temporada de verão está mesmo um bocado boa. É formidável mesmo! Verdade é que não poupei dinheiro para torná-la cada vez mais brilhante. Contudo, é uma lástima que o senhor não queira passar o inverno conosco. Ouvi dizer que tenciona ficar oito semanas apenas. Como? Só três? Ora bolas, três semanas são como uma visita de médico; nem vale a pena tirar o casaco por tão pouco tempo. Bem, isso não é comigo. Mas, realmente, é uma pena que o senhor não esteja aqui durante o inverno. Olhe, a gente da alta, sabe? – disse com uma careta cômica –, a alta-roda internacional só vem a Davos no inverno. O senhor deveria mesmo ver essa turma. Seria muito instrutivo. Quando esses camaradas dão saltos de esqui, que coisa mais gozada! E ainda as damas, Deus meu! Aquelas mulheres multicores como uma ave-doparaíso, lhe digo! E como são galantes!... Bem, está na hora de ver meu moribundus – acrescentou. – É aqui, no 27. Etapa final, compreende? Saída pelo centro. Ontem e ainda hoje se embriagou com cinco dúzias de frascos de oxigênio, esse guloso! Mas acho que até o meio-dia se recolherá ad penates... Pois então, meu caro Reuter – disse ao entrar no quarto. – Que tal se a gente emborcasse mais um?... – Fechou a porta, e as demais palavras perderam-se atrás dela. Por um instante, porém, Hans Castorp enxergara no fundo do quarto, sobre o travesseiro, o perfil de cera de um jovem de barba rala, que lentamente volvia para a porta os grandes olhos esgazeados. Era o primeiro moribundo com que Hans Castorp deparava em sua vida, visto os pais e o avô terem morrido, por assim dizer, pelas suas costas. Quanta dignidade não se expressava na cabeça do jovem que ali jazia sobre o travesseiro, com a barba apontando para cima! Como era significativo o olhar que se via naqueles olhos dilatados, quando, vagarosamente, os dirigiu para a porta! Hans Castorp, ainda absorto na reminiscência daquela visão fugaz, tentou involuntariamente imitar os olhos arregalados, significativos e lentos, do moribundo, enquanto se encaminhava para a escada. Foi com esses olhos que encarou uma senhora que atrás dele abrira uma porta e o alcançou no patamar. Não reconheceu imediatamente Mme.. Chauchat. Ela esboçou um leve sorriso ao ver aqueles olhos e, segurando com a mão a trança que lhe cercava a cabeça levemente caída para a frente, desceu à sua frente pela escada, a passo elástico e silencioso. Durante esses primeiros dias, e mesmo muito tempo após, Hans Castorp não chegou a travar conhecimento com outras pessoas. O programa do dia, no seu conjunto, não favorecia isso. Ademais, Hans Castorp era reservado por natureza e sentia-se ali em cima no papel de um visitante e “espectador desinteressado”, como o chamara o Dr. Behrens. Bastavam-lhe amplamente a conversa e a companhia de Joachim. É verdade que aquela enfermeira do corredor espichava de tal maneira o pescoço atrás deles, cada vez que passavam por ela, que Joachim, que já em outras ocasiões lhe concedera alguns momentos de conversa, não pôde deixar de lhe apresentar o primo. Com o cordão do pincenê atrás da orelha, falava ela não somente de forma rebuscada, mas até com uma afetação penosa. Quem a examinasse mais de perto devia ter a impressão de que a tortura do tédio lhe afetara a inteligência. Era muito difícil desembaraçar-se dela, porque manifestava um medo doentio do fim da palestra, e logo que os jovens se dispunham a prosseguir no caminho, agarrava-se a eles com palavras e miradas pressurosas, e mesmo com um sorriso tão desesperado que, por misericórdia, eles se detinham outra vez. Falava prolixamente do pai, que era jurisconsulto, e do primo, que era médico, na intenção evidente de brilhar e de sublinhar o fato de se ter criado num ambiente culto. Quanto ao seu paciente, lá atrás daquela porta, era o filho de um fabricante de bonecos, de Coburgo, e chamava-se Rotbein. Recentemente, o mal atacara os intestinos do jovem Fritz, e isso era duro para todos os que se interessavam pelo caso, como “os senhores” sem dúvida compreendiam. Era especialmente duro para uma pessoa que descendia de uma família de acadêmicos e possuía a sensibilidade peculiar às classes superiores. E não se podia deixá-lo só, nem um minuto... Fazia alguns dias – era quase incrível! – voltara ela de uma saidinha (apenas fora comprar um pouco de pó dentifrício) e viera encontrar o doente sentado na cama, tendo diante de si um copo de espessa cerveja preta, um salame, um enorme pedaço de pão de centeio e um pepino. Sua família mandara-lhe todas essas especialidades da sua terra, na idéia de fortificá-lo. Claro que no dia seguinte o homem estava mais morto do que vivo. Ele mesmo precipitava o fim. Mas este significaria uma redenção somente para o jovem Fritz, e não para ela. Aproveitou a ocasião para dizer que a chamavam Irmã Berta, se bem que seu verdadeiro nome fosse Alfreda Schildknecht, e acrescentou que ela teria então de cuidar de outro doente, num estado mais ou menos avançado, naquele ou em outro sanatório. Era essa a única perspectiva que se lhe abria, e outra, infelizmente, não existia para ela. – Pois é – disse Castorp, e observou que a profissão de uma enfermeira lhe parecia difícil, sim, mas também bastante honrosa. – Honrosa é, indubitavelmente, mas muito difícil. – Bem, façamos votos pelo restabelecimento do Sr. Rotbein. – E com isso os primos trataram de se afastar. Mas, nesse instante, ela voltou a agarrar-se a eles com palavras e olhares, e seus esforços de cativar a atenção dos dois jovens por mais alguns instantes ofereciam um espetáculo tão lamentável, que teria sido cruel não lhe conceder mais um pequeno prazo. – Ele está dormindo – disse. – Não precisa de mim. Por isso saí ao corredor, só por alguns minutos... – E começou a se queixar do Dr. Behrens e do tom que ele usava ao falar com ela, um tom por demais familiar, se se levava em conta a sua origem. Agradava-lhe muito mais o Dr. Krokowski, a quem qualificava de cheio de alma. Depois tornou a tratar do pai e do primo. Seu cérebro não produzia mais nada. Em vão se empenhava ela em reter os dois jovens por mais alguns instantes, elevando a voz subitamente até quase gritar, cada vez que faziam menção de ir adiante. Mesmo assim, finalmente lhe escaparam. Mas, algum tempo ainda, a enfermeira seguiuos com olhares ávidos, inclinando o tronco para a frente, como se quisesse segurá-los com a força dos olhos. Depois, com um suspiro que lhe irrompeu do peito, voltou ao quarto do seu paciente. A única outra pessoa que Hans Castorp chegou a conhecer nesses primeiros dias foi aquela pálida senhora enlutada, a mexicana alcunhada de “Tous-les-deux”, que ele vira no jardim. E realmente lhe aconteceu ouvir da boca dessa senhora aquela expressão lúgubre que se transformara em apelido. Mas, como já estava prevenido, conseguiu manter uma atitude correta e teve motivos para ficar satisfeito consigo próprio. Os dois primos encontraram a mexicana em frente ao portão principal, quando, após o café da manhã, encetavam o passeio matinal previsto no regulamento. Envolta num xale de lã preta, caminhava ela de joelhos dobrados, a passo longo e irrequieto. Sob o véu negro, enrolado em torno dos cabelos entremeados de fios de prata e amarrado por baixo do queixo, luzia num branco baço o rosto envelhecido, com a boca grande, marcada pelo sofrimento. Joachim, sem chapéu, como de costume, cumprimentou-a com uma mesura, à qual ela respondeu lentamente, enquanto as rugas transversais da sua testa estreita se acentuavam em virtude do esforço de olhar. Ao deparar com um rosto desconhecido, estacou e, meneando levemente a cabeça, aguardou que os dois jovens se aproximassem. Evidentemente lhe parecia necessário saber se o moço estranho lhe conhecia o caso e queria expressar-lhe o seu pesar. Joachim apresentou o primo. Por baixo da mantilha, ela estendeu a mão ao visitante, mão magra, amarelada, de veias salientes, e adornada de anéis. Continuou olhando-o, sacudindo a cabeça. Então veio o inevitável. – Tous les dê, monsieur – disse ela. – Tous les dê, vous savez... – Je le sais, madame – respondeu Hans Castorp, numa voz abafada. – Et je le regrette beaucoup. As bolsas flácidas sob os olhos negros como azeviche eram tão grandes e tão pesadas como Hans Castorp nunca vira iguais. Um perfume suave, murcho, emanava dela. O jovem sentiu uma emoção meiga e grave invadir-lhe o coração. -merci – disse ela com um sotaque rangente, que se harmonizava de modo estranho com o alquebrado da sua aparência, e uma das comissuras da boca pendeu tragicamente. A seguir, tornou a esconder a mão sob a mantilha, inclinou a cabeça e pôs-se a caminhar de novo. Hans Castorp, porém, disse, enquanto prosseguiam no passeio: – Está vendo? Tudo saiu bem. Eu soube lidar com ela. Em geral me parece que me dou bem com esse tipo de pessoas. Sei, por instinto, como tratá-las. Você não acha também? Tenho até a impressão de que, na maioria dos casos, me entendo melhor com gente triste do que com gente alegre; sabe Deus por quê! Talvez seja porque sou órfão e perdi meus pais muito cedo. Mas, quando as pessoas estão sérias e tristes e a morte entra em jogo, não me sinto propriamente deprimido nem acanhado; pelo contrário, tenho a sensação de estar no meu elemento, e em todo caso passo melhor do que num ambiente de festa barulhenta. Isso não suporto. Pensei nesses dias que é uma bobagem da parte daquelas senhoras essa coisa de terem tanto pavor da morte e de tudo o que se relaciona com ela, a ponto de se tornar preciso escondê-la e administrar o Santo Sacramento enquanto a gente está comendo. Isso é ridículo, ora bolas! Você não gosta de ver um caixão? Eu gosto, de vez em quando. Acho que um caixão é um móvel bonito, quando vazio. Mas, quando há alguém dentro, torna-se mesmo solene, a meu ver. Os enterros têm qualquer coisa de edificante. Às vezes tenho matutado que, em vez de irmos à igreja, deveríamos ir a um enterro, para nos edificar. As pessoas vestem-se com boas roupas pretas, tiram os chapéus, olham o féretro e mantêm uma atitude grave e piedosa. Ninguém se atreve a dizer piadas, como em outras circunstâncias. A mim me agrada muito ver pessoas devotas. Freqüentemente já me perguntei a mim mesmo se não deveria ter-me tornado pastor. Creio que, em certo sentido, isso me ficaria bem... Tomara que eu não tenha cometido nenhum erro de francês, naquelas frases que falei com ela. – Não – disse Joachim. – “Je le regrette beaucoup” é para lá de correto. Politicamente suspeita! Surgiam modificações periódicas no programa normal: em primeiro lugar um domingo, e até um domingo com concerto no terraço do sanatório, como só havia de quinze em quinze dias. Tratava-se, pois, do fim da quinzena em cuja segunda metade Hans Castorp chegara. Chegara ele numa terça-feira, de modo que fazia cinco dias que estava hospedado ali. Era um dia de aspecto primaveril, depois daquela fantástica queda de temperatura e recaída no inverno; um dia ameno e fresquinho, com nuvens limpas num céu azul e claro, e com um sol moderado sobre as encostas e o vale, que novamente haviam assumido o verde regulamentar do verão, já que a neve recente estava condenada a derreter-se depressa. Era visível que todo mundo se esforçava por dignificar e distinguir o domingo. A administração e os hóspedes ajudavam-se mutuamente nesse sentido. Logo com o café da manhã já se serviu cuca de amêndoas; junto de cada lugar à mesa havia um pequeno vaso com algumas flores, cravos da montanha e rosas alpinas, que os cavalheiros prendiam à lapela. O Sr. Paravant, promotor público de Dortmund, até vestira para essa ocasião um fraque preto com colete a fantasia. Os vestidos das senhoras tinham caráter festivo e vaporoso. Mme... Chauchat apareceu à hora do café, trajando um amplo robe de rendas com mangas japonesas. Após ter fechado estrondosamente a porta envidraçada, fez uma espécie de continência, para apresentar-se com graça a toda a sala, e só então encaminhou-se, a passo silencioso, para a sua mesa. Esse robe assentava-lhe tão magnificamente, que a vizinha de Hans Castorp, a professora de Königsberg, se mostrava toda entusiasmada. Até mesmo o casal bárbaro da mesa dos “russos ordinários” levava em conta o dia do Senhor; o marido substituíra a jaqueta de couro por uma sobrecasaca curta e as botinas de feltro por sapatos de couro; a esposa, embora usasse também dessa vez o boá de penas pouco limpo, exibia uma blusa de seda verde, com gola pregueada. Ao vê-los, Hans Castorp, de cenho carregado, mudou de cor, o que, nos últimos tempos, lhe acontecia com certa freqüência. Logo depois do café da manhã começou o concerto no terraço. Reuniam-se ali instrumentos de sopro de toda espécie, para tocar alternadamente músicas alegres e solenes, até quase a hora do almoço. Durante o concerto, o repouso não era estritamente obrigatório. Se bem que alguns pensionistas desfrutassem o deleite musical do alto das sacadas e também no alpendre houvesse algumas espreguiçadeiras ocupadas, achava-se a maioria dos hóspedes em torno das mesinhas brancas, na plataforma coberta. Uma turma de alegres vivedores, julgando por demais correto sentar-se numa cadeira, instalara-se nos degraus de pedra da escadaria que conduzia ao jardim, e ali manifestava muita animação. Eram jovens enfermos de ambos os sexos, que Hans Castorp já conhecia em grande parte, ou de nome ou de vista. Hermine Kleefeld pertencia a essa roda, bem como o Sr. Albin, que fazia circular uma grande caixa florida com chocolates, e convidava a todos, enquanto ele próprio nada comia, limitando-se a fumar com ar paternal numerosos cigarros de ponta dourada. Além do rapaz beiçudo da “Sociedade Meio-Pulmão”, viam-se ainda a Srta. Levi, magra e de cor de marfim como sempre, um moço louro, de nome Rasmussen, que deixava pender frouxamente as mãos, quais barbatanas, à altura do peito, e a Srª. Salomon, de Amsterdam, matrona opulenta, de vestido vermelho, e que igualmente se unira à mocidade. Aquele moço alto, de cabelos ralos, que sabia tocar a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão, estava sentado atrás dela, cingindo-a com os braços pontudos e cravando-lhe na nuca trigueira o olhar melancólico. Havia ainda uma mocinha ruiva, de nacionalidade grega; outra, de origem desconhecida, com um perfil de anta; o garoto guloso com os óculos de lentes grossas; outro rapazote de quinze ou dezesseis anos, com um monóculo fincado no olho e que, ao tossir, levava à boca a unha comprida do dedo mindinho, da forma duma colherinha para sal, dando a impressão de ser um perfeito imbecil, e outras pessoas mais. O rapaz de unha comprida – contou Joachim em voz baixa – estava pouco doente ao chegar. Não tivera febre, e seu pai, um médico, mandara-o por mera precaução ao sanatório, onde, segundo a opinião do Dr. Behrens, deveria ficar uns três meses. Agora, porém, decorrido esse prazo, tinha 37,8 a 38 e ia bastante mal. Verdade é que se comportava de modo tão insensato, que merecia umas bofetadas. Os dois primos tinham só para si uma mesinha um pouco distante das demais, visto Hans Castorp fumar um charuto, para acompanhar a cerveja preta que levara consigo depois do café da manhã. De tempo em tempo conseguia achar gosto no tabaco. Um pouco tonto pela cerveja e a música, que, como sempre, fazia com que entreabrisse a boca e inclinasse a cabeça para o lado, contemplava, com os olhos avermelhados, a vida despreocupada de estação de cura que o rodeava. Absolutamente não o incomodava a consciência do fato de que toda essa gente escondia no seu interior um processo de decomposição, com pouca probabilidade de se deter, e que a maioria se achava num estado levemente febril; pelo contrário, esta consciência contribuía para aumentar a singularidade do ambiente e emprestar-lhe um certo encanto intelectual... Bebia-se limonada gasosa em torno das mesinhas. Na escadaria tiravam-se fotografias. Alguns permutavam selos, e a grega ruiva desenhava a lápis, num bloco, o retrato do Sr. Rasmussen; depois, não quis mostrar-lhe o desenho; rindo-se e exibindo os grandes dentes separados, esquivava-se de um para outro lado, de maneira que ele levou muito tempo antes de lhe arrancar o bloco. Hermine Kleefeld, com os olhos semicerrados, quedava-se no seu degrau, batendo, com um jornal enrolado, o compasso da música, enquanto o Sr. Albin lhe prendia na blusa um ramalhete de flores silvestres. O rapaz beiçudo, sentado ao pé da Srª. Salomon, conversava com ela, voltando a cabeça para trás, ao passo que o pianista de cabelos ralos não cessava de fitar a nuca da matrona. Chegaram os médicos e meteram-se entre os hóspedes, o Dr. Behrens no jaleco branco, e o Dr. Krokowski com a sua peculiar blusa preta. Passaram ao longo da fileira de mesinhas, e a cada grupo de hóspedes o conselheiro áulico dizia jovialmente uma pilhéria qualquer, de forma que uma esteira de hilaridade lhe marcava o caminho. A seguir, desceram pela escada, rumo à mocidade, cuja parte feminina, requebrando-se e lançando olhares de soslaio, logo se agrupou em torno do Dr. Krokowski, ao passo que o médico-chefe, em homenagem ao domingo, exibia ao sexo forte o seu truque dos cordões de botina: colocou o pé enorme num degrau superior, desatou a laçada, apanhou os cordões com uma mão só, empregando nisso uma técnica especial, e conseguiu, sem se servir da outra, prendê-lo novamente aos ganchinhos, de forma cruzada; habilidade que despertou a admiração de todos, e que alguns, em vão, tentaram imitar. Mais tarde apareceu também Settembrini no terraço. Apoiando-se na bengala, saiu da sala de refeições. Como sempre, trajava o paletó comprido e as calças amareladas. Com um ar distinto, vivo e crítico, olhou em torno e aproximou-se então da mesa dos primos. – Ah, bravo! – exclamou e pediu licença para sentar-se. – Cerveja, tabaco e música – disse. – Eis a sua pátria! Vejo que o senhor acompanha o espírito nacional, meu caro engenheiro. Folgo em ver que está no seu elemento. Deixe que eu participe do seu harmonioso bem-estar. Hans Castorp corrigiu as feições, o que, aliás, já procurara fazer logo que avistara o italiano. Em seguida respondeu: – O senhor chega tarde ao concerto, Sr. Settembrini. Já está quase no fim. Não gosta de música? – Por ordem superior, não – replicou Settembrini. – Nem quando é ditada pelo calendário. Não simpatizo com ela, quando tem um cheiro de farmácia e me é ministrada pelas autoridades para fins sanitários. Estimo ainda um pouco a minha liberdade, ou pelo menos aquele restinho de liberdade e dignidade humana que sobra a gente como nós. Em ocasiões como esta, costumo comparecer como visitante, assim como o senhor faz aqui em cima. Fico durante um quarto de hora e depois vou-me embora. Isso me dá a ilusão de independência... Não digo que seja mais do que uma simples ilusão; seja como for, a mim causa certa satisfação. Com seu primo, o caso é diferente. Para ele, isto aqui é serviço. Não é, tenente? O senhor considera o concerto como parte dos seus deveres. Ah! Sim, eu sei que o senhor conhece o truque de conservar o seu orgulho em plena escravidão. É um truque desconcertante. Não há muitos na Europa que entendam disso. E a música? O senhor não me perguntou se eu era amante da música? Bem, se o senhor usou a palavra “amante” – Hans Castorp absolutamente não se lembrava de tê-la empregado –, não escolheu mal a expressão, porque ela tem um quê de frivolidade afetuosa. Pois é, estou de acordo. Sim, senhor, sou amante da música, o que não significa que a estime particularmente, assim como estimo e amo, por exemplo, a palavra, o veículo do espírito, o utensílio e o resplandecente arado do progresso... A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente. O senhor talvez me objete que ela pode ser clara. Mas também a Natureza pode ser clara; também um arroio o pode ser, e de que nos adianta isso? Não é essa a clareza verdadeira; é uma clareza sonhadora, despida de significação, uma clareza que a nada obriga nem chega a ter conseqüências; é perigosa porque induz a gente à complacência satisfeita... Suponhamos que a música tome uma atitude de magnanimidade. Bem, nesse caso, ela inflamará os nossos sentimentos. No entanto, o que importa é inflamar a nossa razão. Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter político. A essa altura da conversa, Hans Castorp não pôde deixar de bater com a mão sobre o joelho e de exclamar que nunca na vida ouvira coisa semelhante. -mesmo assim, convém ponderar a idéia – disse Settembrini sorrindo. – A música é inestimável como meio supremo de produzir entusiasmo, como força que faz avançar e subir, mas só para pessoas cujos espíritos já estejam preparados para os seus efeitos. Porém, é indispensável que a literatura a preceda. Sozinha, a música não é capaz de levar o mundo avante. Para a sua pessoa, meu caro engenheiro, ela representa indubitavelmente um perigo. Isto verifiquei logo ao chegar, na sua fisionomia. Hans Castorp começou a rir. – Ora, não olhe o meu rosto, Sr. Settembrini! O senhor não imagina até que ponto me incomoda o ar aqui em cima. Aclimatar-me custa-me muito mais do que eu pensava. – Creio que o senhor se engana. – Mas por quê? Ainda, me sinto cansado e quente como o diabo. – No entanto, me parece que devemos ficar gratos à direção por estes concertos – disse Joachim circunspectamente. – O senhor considera o assunto de um ponto de vista superior, Sr. Settembrini, por assim dizer, como escritor, e nesse sentido não quero contradizê-lo. Mas tenho a impressão de que nós aqui deveríamos aceitar com gratidão um pouquinho de música. Absolutamente não sou um entendido em música, e aquilo que tocam para nós não é grande coisa. As peças não são nem clássicas nem modernas. É uma charanga e nada mais. Mesmo assim, representa uma variação agradável que enche de uma forma decente algumas horas; quero dizer que as assinala e as ocupa, de modo que elas tenham algum valor próprio, ao passo que em geral se desperdiçam aqui horas e dias e semanas de um modo simplesmente pavoroso. Olhe, essas pecinhas insignificantes duram sete minutos, em média, não é? E esses sete minutos têm alguma coisa em particular, têm princípio e têm fim, destacam-se e são, de certo modo, preservados da ameaça de se perderem sem mais nem menos na monotonia geral. Além disso, são ainda muitas vezes subdivididos pelas partes da peça, e estas, por sua vez, se compõem de compassos, de maneira que sempre acontece alguma coisa e cada instante recebe um certo - sentido, ao qual alguém se pode agarrar, ao passo que normalmente... Não sei se me expressei... – Bravo! – gritou Settembrini. – Bravo, tenente! O senhor definiu muito bem um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil... Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita. Settembrini continuou externando idéias desse gênero, e Hans Castorp escutava, sem, no entanto, compreendê-lo perfeitamente, em primeiro lugar por causa do cansaço, e em segundo porque se sentia distraído pela animada atividade dos jovens alegres espalhados pela escadaria. Não o enganavam seus olhos? Que era isso? A senhorita de cara de anta estava ocupada em pregar um botão na presilha de joelho, nos calções de golfe do jovem de monóculo. A asma embargava a respiração da mocinha, enquanto o rapaz tossia, cobrindo a boca com a unha comprida semelhante a uma colherinha de sal. Verdade era que ambos estavam doentes, e todavia essa conduta não deixava de pôr em evidência os costumes estranhos que ali em cima reinavam entre a mocidade. A banda de música tocava uma polca... Hippe Dessa forma se destacou o domingo. Sua tarde foi, além disso, assinalada por excursões de coche que realizaram vários grupos de hóspedes. Depois do chá, diversas parelhas subiram laboriosamente a rampa do sanatório e pararam em frente ao portão principal, para recolher os pensionistas que haviam encomendado os carros. Eram na maioria russos, sobretudo senhoras russas. – Os russos gostam de passear de carro – disse Joachim a Hans Castorp. Os primos estavam diante da entrada e divertiam-se a presenciar a partida das carruagens. – Vão a Clavadell ou ao lago ou ao vale de Flüela ou a Klosters. São esses os passeios que se costuma fazer. Qualquer dia poderíamos também passear de carro, se quiser. Mas acho que por enquanto você terá bastante trabalho para se aclimatar, e não tem necessidade de aventuras. Hans Castorp concordou. Tinha um cigarro na boca e as mãos nos bolsos da calça. Viu como a jovial velhota russa com a sobrinha magra e mais duas outras senhoras – Marusja e Mme.. Chauchat – tomavam assento num coche. Mme.. Chauchat trazia um guarda-pó leve, cinturado, mas não usava chapéu. Sentou-se ao lado da senhora idosa, no fundo do carro, ao passo que as senhoritas ocuparam os assentos da frente. As quatro estavam alegres, e suas bocas não paravam nem um segundo. Tagarelavam naquele seu idioma brando, como que desprovido de ossos. Falavam e riam-se do cobertor de viagem, muito pequeno e que com dificuldade bastava para quatro pessoas, bem como dos bombons russos que a velha tia levava como merenda, numa caixinha de madeira, forrada de algodão e papel rendado, e que já antes da partida fazia circular... Hans Castorp distinguiu com interesse a voz velada de Mme.. Chauchat. Como sempre, quando avistava essa mulher negligente, sentia reafirmar-se aquela semelhança que andara procurando por tanto tempo e finalmente descobrira num dos seus sonhos... O riso de Marusja, porém, o aspecto dos seus olhos redondos e castanhos que vagavam com uma expressão infantil por cima do lencinho que cobria a boca, e seus seios rijos, que interiormente estavam bastante doentes – tudo isso lhe recordava outra coisa, uma visão comovente que tivera havia pouco tempo. Cautelosamente, sem mover a cabeça, olhou para Joachim, a seu lado. Não! Graças a Deus, o seu rosto não tinha a cor terrosa do outro dia, e os lábios também não se crispavam daquele modo doloroso. Mas o primo estava com os olhos fixos em Marusja, numa atitude e com uma fisionomia que seria impossível qualificar de militares, e que, bem ao contrário, pareciam tão tristonhas e descontroladas que era inelutável tachá-las de perfeitamente civis. No entanto, não tardou a dominar-se e lançou um olhar tão rápido a Hans Castorp, que este mal teve tempo para desviar os olhos e dirigi-los para qualquer ponto no ar. Sentiu, simultaneamente, como o seu coração se punha a bater, sem motivo nenhum e por iniciativa própria, como às vezes fazia ali em cima. O resto do domingo não ofereceu mais nada de extraordinário, a não ser a comida, que, embora não pudesse ser mais farta do que de costume, distinguia-se ao menos por um maior requinte nos pratos. (No cardápio do almoço figurava um chaud-froid de galinha, guarnecido de caranguejos e meias cerejas; os sorvetes vieram acompanhados de filhoses, em cestinhos tecidos de fios de açúcar, e por fim surgiram até fatias de abacaxi fresco.) Pela noite, depois de tomar a sua cerveja, Hans Castorp sentiu-se esgotado, com frio e com uma lassidão nos membros ainda maior do que nos dias anteriores. Já às nove horas disse “Boa noite” ao primo, cobriu-se apressadamente com o acolchoado de penas e adormeceu como um fulminado. Mas o dia seguinte, isto é, a primeira segunda-feira que o visitante passou no sanatório, trouxe outra dentre as modificações periódicas do programa normal: uma daquelas conferências que o Dr. Krokowski fazia de quinze em quinze dias na sala de refeições para todos os pensionistas adultos do Berghof que dominassem o idioma alemão. Tratava-se, segundo Hans Castorp soube de Joachim, de uma série de preleções contínuas, espécie de curso científicopopular, sob o título geral de “O amor como fator patogênico”. A palestra didática realizava-se depois do café da manhã, e, também segundo a informação de Joachim, não era lícito, ou pelo menos era muito malvisto, que alguém deixasse de assistir a ela. Por isso considerava-se uma ousadia pasmosa a atitude de Settembrini, que, embora dominando o alemão melhor do que ninguém, não somente nunca comparecia a essas conferências, mas até as criticava em termos sumamente depreciativos. Quanto a Hans Castorp, estava disposto a ir, em primeiro lugar por cortesia, como também por uma curiosidade não dissimulada. Antes, porém, fez uma coisa completamente errada e prejudicial: deu-lhe na veneta empreender, por conta própria, um extenso passeio, de que se saiu sobremodo mal. – Escute – foram as suas primeiras palavras, quando Joachim, pela manhã, entrou no seu quarto. – Eu vejo que não posso continuar desse jeito. Estou farto da vida horizontal. Com esse regime, o sangue adormece nas veias da gente. O seu caso é diferente, claro! Absolutamente não quero tentar você. Mas tenho a intenção de dar, logo depois do café, um bom passeio, se você não me leva a mal essa idéia. Caminharei assim, sem destino, durante algumas horas. Vamos ver se não me sentirei outro homem quando regressar. – Está bem – disse Joachim, ao notar que o outro levava a sério o projeto. – Mas não exagere, ouviu? Aqui as coisas não são como lá embaixo. E procure estar de volta na hora da conferência. Na realidade, as razões que haviam levado o jovem Hans Castorp ao projeto desse passeio não se relacionavam somente com o seu bem-estar físico. Parecia-lhe que sua cabeça quente, o gosto ruim que ele amiúde tinha na boca, e as pulsações caprichosas do seu coração se deviam menos às dificuldades da aclimatação do que a certos fatores, como, por exemplo, as atividades do casal russo no quarto vizinho, a lengalenga que a estúpida e doente Srª. Stöhr proferia durante as refeições, a tosse lamacenta do aristocrata austríaco, que todos os dias se ouvia no corredor, as palavras do Sr. Albin, as impressões que os costumes sociais da mocidade enferma lhe haviam causado, a fisionomia de Joachim quando olhava para Marusja, e outras observações desse tipo. Pensava então que deveria ser saudável subtrair-se ao círculo mágico do Berghof, respirar profundamente ao ar livre e fazer algum exercício, a fim de saber, de noite, por que se sentia tão cansado. E assim se separou de Joachim, quando este, após o café da manhã, começava o seu passeio delimitado pelo regulamento, em direção ao banco junto da calha. Brandindo a bengala, desceu pela estrada de rodagem, para seguir caminhos independentes. Era uma manhã fresquinha e nublada, pelas oito e meia. Tal e qual se propusera, Hans Castorp aspirava profundamente o puríssimo ar matutino, uma atmosfera fresca e leve que se deixava sorver sem esforço, atmosfera sem umidade nem conteúdo nem recordações... Transpôs o curso d'água e os trilhos de bitola estreita, alcançou a rua principal, aqui e ali ladeada de casas, mas logo a abandonou, para tomar um atalho através dos prados, que, depois de um curto trajeto plano, subia, num curso oblíquo e bastante íngreme, a encosta à direita. Essa subida alegrou Hans Castorp. Dilatou-se-lhe o peito. Com o castão da bengala empurrou o chapéu para trás, e quando, de certa altura, lançou um olhar sobre a paisagem e avistou ao longe o espelho do lago, pôs-se até a cantar. Cantou as canções que lhe ocorriam, toda espécie de cantigas sentimentais e populares, como figuram nas antologias para ginasianos. Uma, por exemplo, continha os versos: “Que os bardos cantem o amor e o vinho, Mas antes cantem a virtude...” Começou cantarolando baixinho, mas logo aumentou o volume e por fim cantava com toda a força que tinha. Sua voz de barítono era áspera, mas, nesse momento, pareceu-lhe bonita. Entusiasmava-se cada vez mais, à medida que ia cantando. Quando chegava a notas excessivamente altas, recorria ao falsete, e também este lhe agradava. Às vezes falhava a sua memória, e nesses casos saía-se bem entoando a melodia com quaisquer palavras e sílabas absurdas que no momento lhe ocorriam, e que ele, à maneira dos cantores de ópera, proferia modulando-as com os lábios e carregando nos “r”. Finalmente passou a improvisar tanto o texto como a melodia, acompanhando sua apresentação com gestos teatrais dos braços. Já que é muito cansativo subir e cantar ao mesmo tempo, Hans Castorp em breve perdeu o fôlego. Mas, por idealismo, em prol da beleza do canto, venceu a emergência e, por entre numerosos suspiros, deu tudo o que tinha. Por fim, completamente sem alento, quase cego, com olhos que enxergavam apenas faíscas coloridas, e com o pulso a martelar, deixou-se cair ao pé de um enorme pinheiro. Depois de tamanha emoção, sentiu-se tomado de uma sensação de intenso mal-estar, de uma ressaca que tocava as raias do desespero. Quando, com os nervos mais ou menos tranqüilizados, animou-se a prosseguir o passeio, tremia-lhe veementemente a nuca, de modo que, apesar da sua juventude, sacudia a cabeça da mesma forma como outrora fizera o velho Hans Lorenz Castorp. Ele mesmo sentiu que esse fenômeno lhe recordava simpaticamente o falecido avô, e sem experimentar repugnância, divertiu-se com a imitação daquele gesto de apoiar o queixo sobre o nó da gravata, gesto com o qual o velho procurava evitar o tremor da cabeça, e que tanto agradava ao menino. Subiu ainda mais, em ziguezague. Atraía-o o tilintar dos cincerros das vacas. Passado pouco tempo, avistou um rebanho a pastar nas proximidades de um chalé, cujo telhado estava consolidado com pedras. Dois homens barbudos, com machados no ombro, vinham a seu encontro. Perto dele, despediram-se um do outro. – Pois então, passe bem, e muito agradecido! – disse um dos homens, numa voz profunda, gutural e, mudando o machado de um ombro para o outro, dirigiu-se ao vale, abrindo caminho, a passo ruidoso, por entre os pinheiros. Aquele “Passe bem, e muito agradecido”, que soara estranhamente através da solidão, fez sonhar o espírito de Hans Castorp, ainda tonto pela subida e pelo canto. Repetiu as palavras em voz baixa, procurando arremedar o dialeto gutural, singelo e solene do montanhês. Subiu um bom pedaço além da choça, na intenção de alcançar o limite das árvores. Mas um olhar ao relógio fez com que desistisse do projeto. Dobrou para a esquerda, rumo à aldeia, seguindo uma vereda que começava plana e depois descia. Acolheu-o um bosque de altas coníferas. Ao atravessá-lo, Hans Castorp voltou a cantar um pouco, ainda que cautelosamente. Mesmo assim tremiam-lhe os joelhos durante a descida ainda mais do que antes. Quando saiu do bosque, deteve-se, surpreso, diante de um quadro magnífico que se lhe descortinava, uma paisagem íntima e fechada, de plasticidade tranqüila e grandiosa. Por um leito pedregoso, pouco profundo, precipitava-se um curso d'água pela encosta direita abaixo; saltava, escumando, os rochedos dispostos como que em terraços, e em seguida corria, num fluxo mais calmo, em direção ao vale, passando por baixo de uma pitoresca pontezinha, com um tosco parapeito de madeira. O solo parecia azul pelas flores campanuláceas de um arbusto que crescia em toda parte. Pinheiros sombrios, de troncos gigantescos e bemproporcionados, viam-se ora isolados, ora em grupos, no fundo do desfiladeiro e nas encostas. Um deles, arraigado obliquamente no alcantil à beira do arroio torrentoso, atravessava o panorama numa diagonal torta e excêntrica. Uma solidão cheia de rumores pairava sobre esse sítio isolado e formoso. Do outro lado do regato, Hans Castorp viu um banco que convidava ao repouso. Transpôs a pontezinha e sentou-se, a fim de se divertir com o aspecto da cachoeira de águas espumantes e de lhes escutar o ruído idilicamente palrador, uniforme e todavia cheio de variação íntima. O murmúrio das águas – Hans Castorp adorava-o tanto quanto a música, e talvez ainda mais. Mas, apenas se pusera à vontade, começou a sangrar-lhe o nariz, tão de repente que não pôde evitar que se manchasse a sua roupa. A hemorragia era violenta e obstinada; durante meia hora, pouco mais ou menos, não parou de incomodá-lo, obrigando-o a ir e vir, sem cessar, entre o regato e o banco, para lavar o lenço, aspergir água e voltar a estender-se nas tábuas do assento, com o nariz coberto pelo lenço úmido. Quando finalmente o sangue estancou, permaneceu assim deitado, imóvel, com as mãos presas atrás da cabeça, e com os joelhos fletidos. Tinha os olhos cerrados e os ouvidos cheios de zoadas. Contudo, não se sentia mal, antes acalmado pela copiosa sangria. Achava-se num estado de vitalidade singularmente diminuída; pois, cada vez que expelia o ar, durante algum tempo não experimentava nenhuma necessidade de aspirar outra vez; com o corpo em suspenso, deixava, com toda a calma, que seu coração palpitasse diversas vezes, antes que, tardia e indolentemente, voltasse a tomar fôlego. Eis que, de súbito, se sentiu transportado para aquela fase remota da sua vida, em que se passara a cena original de um sonho remodelado em conformidade com impressões mais recentes, e que tivera poucas noites atrás... Vigorosa, irrestritamente, a ponto de olvidar o espaço e o tempo, sentiu-se ele arrebatado para aquela hora e aquele lugar, com tanta intensidade que se poderia dizer que no banco, junto da cachoeira, jazia um corpo inânime, ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava longe dali, num ambiente e numa época muito distantes – e ainda numa situação que, apesar da sua simplicidade, era para ele arriscada e lhe inebriava o coração. Tinha então treze anos; era aluno do quarto ano do ginásio, um rapazote de calças curtas. Achava-se no pátio da escola, a conversar com outro garoto, aproximadamente da mesma idade, mas que pertencia a outra série. Era por motivos bastante gratuitos que Hans Castorp entabulara essa conversa, que o alegrava sobremodo, posto que seu assunto objetivo e claramente delimitado a obrigasse a um máximo de brevidade. Isso se passava durante o recreio entre a penúltima e a última aula, aulas de história e de desenho, respectivamente, para a série de Hans Castorp. No pátio pavimentado de ladrilhos vermelhos e separado da rua por um muro coberto de telhas e provido de dois portões, os alunos passeavam em filas ou formavam grupos, encostando-se semisentados às saliências azulejadas do edifício. Entrecortavam-se numerosas vozes. Um professor, com um chapéu de abas largas, vigiava a rapaziada, enquanto comia um sanduíche de presunto. O garoto com o qual Hans Castorp conversava chamava-se Hippe, e seu prenome era Pribislav. Acrescia a isso, como detalhe curioso, que o “r” desse prenome se pronunciava como “ch”: dizia-se Pchibislav, e esse nome pouco comum condizia bem com o aspecto do rapaz, cujo tipo, longe de ser normal, era antes bastante exótico. Hippe, filho de um historiador e professor de ginásio, e por conseguinte um aluno modelar, já freqüentava a classe imediatamente acima da de Hans Castorp, se bem que fosse quase da mesma idade. Provinha de Mecklenburg, e sua pessoa constituía, evidentemente, o produto de uma antiga mistura de raças, com uma dose de sangue eslavo num recipiente germânico, ou vice-versa. Seus cabelos, aparados rente ao crânio redondo, eram louros, mas seus olhos, de uma cor entre o azul e o cinzento – era uma cor incerta, ambígua, qual a de uma cordilheira longínqua –, mostravam uma forma singular, estreita e, a rigor, até um pouco oblíqua; e sob esses olhos destacavam-se as maçãs, salientes e fortemente acentuadas. Essas feições, nada feias e mesmo bastante simpáticas, haviam valido a Hippe, entre os colegas, o apelido de “o Quirguiz”1. Hippe já usava calças compridas e uma jaqueta azul, cinturada nas costas e fechada até o pescoço, sobre cuja gola se percebiam habitualmente alguns vestígios de caspa. Acontecia que Hans Castorp, desde muito tempo, fixara a sua atenção nesse Pribislav; escolhera-o em meio ao formigueiro de rostos conhecidos e desconhecidos que enchia o pátio; interessava-se por ele, acompanhava-o com os olhos e -será lícito dizer que o admirava? Em todo caso devotava-lhe um interesse especial e, ao dirigir-se à escola, já se regozijava com a idéia de observá-lo no trato com os companheiros de curso, de vê-lo falar e rir-se, e de distinguir-lhe de longe a voz no meio das outras, aquela voz agradável, velada e um tanto rouca. É forçoso admitir que não havia razão suficiente para essa simpatia, a não ser que se queira considerar como tal o prenome pagão, a qualidade de aluno modelar – cuja influência podemos excluir – ou finalmente os olhos quirguizes, olhos que às vezes (por ocasião de certos relances para o lado, que não se fixavam em nada) eram capazes de se envolver languidamente em trevas misteriosas. Fosse como fosse, Hans Castorp pouco se preocupava com a justificação intelectual dos seus sentimentos e ainda menos com o problema de encontrar uma denominação para eles. Indubitavelmente não se podia falar de amizade, já que ele nem sequer “conhecia” Hippe. Mas, em primeiro lugar, não havia a mínima necessidade de uma denominação, porquanto nem se pensava em falar de um assunto que não se prestava para isso nem requeria palavras. E em segundo lugar, uma denominação representa, se não uma crítica, ao menos uma definição, isto é, uma classificação na 1 Indivíduo dos quirguizes, povo de origem turca que habita a Rússia asiática. (N. do E.) ordem das coisas conhecidas e habituais, ao passo que Hans Castorp estava compenetrado da convicção inconsciente de que um tesouro íntimo como esse devia ser preservado para sempre de tal definição e classificação. Bem ou mal justificados, e em todo caso impróprios para qualquer denominação ou expressão verbal, eram esses sentimentos de tanta força vital, que Hans Castorp, já fazia um ano – pouco mais ou menos, por ser impossível fixar a data do começo –, alimentava-os em silêncio, o que revelava, pelo menos, a fidelidade e a constância do seu caráter, levando-se em conta o lapso enorme de tempo que nessa idade representa um ano. Infelizmente as designações de qualidades de caráter contêm, via de regra, um julgamento moral, quer no sentido de um elogio, quer de uma censura, se bem que todas elas tenham dois aspectos. Quando examinamos, sem emitir nenhuma opinião acerca do seu valor, a tal “fidelidade” de Hans Castorp – da qual ele mesmo não se gabava absolutamente –, consistia ela em certa morosidade, lentidão e persistência do seu espírito, numa mentalidade fundamentalmente conservadora, que lhe afigurava as situações e as circunstâncias da vida tanto mais dignas de estabilidade e de simpatia quanto maior era a sua duração. Também se inclinava a crer na eternidade do estado particular e da disposição de alma em que se achava em determinado momento, e justamente por isso os apreciava, sem almejar nenhuma modificação. Assim se acostumara, no seu íntimo, a essa longínqua e silenciosa relação que o ligava a Pribislav Hippe, tomando-a no fundo por uma instituição permanente da sua vida. Adorava as emoções que ela acarretava, a curiosidade de saber se neste ou naquele dia o outro iria ou não a seu encontro, se passaria perto dele, ou talvez se lhe dirigiria um olhar; adorava essas satisfações tácitas e delicadas com que o brindava o seu segredo; adorava até mesmo as decepções inerentes ao caso, e dentre as quais a maior era verificar que Pribislav faltava à aula; então, o pátio parecia ermo; o dia, privado de todo sabor; e entretanto permanecia viva a esperança no futuro. Isso durou um ano, até alcançar aquele apogeu crítico. Depois, continuou por mais um ano, graças à fidelidade conservadora de Hans Castorp, e por fim terminou, sem que ele notasse mais do afrouxamento e da dissolução dos laços que o ligavam a Pribislav Hippe do que notara da sua formação. Ademais, Pribislav abandonou o ginásio e a cidade, devido a uma transferência de seu pai; mas esse fato, Hans Castorp mal o percebeu. Pode-se dizer que o vulto do “Quirguiz”, desprendendo-se imperceptivelmente de uma névoa, entrou na sua vida, onde ia adquirindo uma nitidez e um relevo cada vez mais intensos, até aquele instante no pátio, que representava o máximo de clareza e de corporeidade; que durante algum tempo se conservou assim no primeiro plano, e por fim, aos poucos, recuou, desaparecendo nas brumas, sem despertar nenhuma tristeza de despedida. Esse instante, porém, a situação arriscada, cheia de aventuras, pela qual Hans Castorp novamente passava neste momento, a conversa, uma verdadeira conversa com Pribislav Hippe, produziu-se da seguinte forma: era antes da aula de desenho, e Hans Castorp verificou que não tinha lápis. Dos seus companheiros de curso, nenhum podia dispensar o seu. Mas, entre os alunos de outras séries, Hans Castorp tinha este ou aquele conhecido que lhe poderia suprir a falta. Dentre todos – achava ele – era Pribislav Hippe quem ele conhecia melhor; era-lhe mais familiar do que os outros esse rapaz com o qual, em silêncio, já se preocupara tantas vezes. E com um impulso alegre de todo o seu ser, resolveu aproveitar a oportunidade – chamava a isso de oportunidade – e pedir a Pribislav Hippe que lhe emprestasse um lápis. Não percebeu que esse ato seria um tanto estranho, visto ele não conhecer Hippe em realidade; pelo menos não se importou com isso, obcecado por uma desconsideração singular. E assim aconteceu que, no meio da azáfama do pátio ladrilhado, se plantou diante de Pribislav Hippe e lhe disse: – Perdão, você poderia emprestar-me um lápis? E Pribislav fitou-o com seus olhos quirguizes, por cima das maçãs salientes. Respondeulhe então na sua voz simpática e velada, falando sem a mínima surpresa, ou, ao menos, sem manifestá-la. – Com muito prazer – disse. – Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula. – Com essas palavras tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis vermelho apontasse do tubo metálico. Hippe explicou o mecanismo simples, enquanto as duas cabeças se inclinavam sobre o objeto. – Cuidado para não quebrá-lo! – acrescentou. Que idéia! Como se Hans Castorp pretendesse não devolver a lapiseira ou até tratá-la com descuido. Depois, olharam-se sorrindo e, como nada mais restasse a dizer, deram lentamente meiavolta e separaram-se. Foi tudo. Mas nunca na vida Hans Castorp sentira-se mais satisfeito do que naquela aula de desenho, ao trabalhar com o lápis de Pribislav Hippe, e com a perspectiva de entregá-lo, mais tarde, ao seu dono, como conseqüência natural e espontânea daquilo que haviam combinado. Tomou a liberdade de apontar o lápis, e das lasquinhas vermelhas que sobraram, guardou três ou quatro durante quase um ano numa gaveta da sua carteira. Ninguém que as visse suspeitaria da sua importância. A devolução realizou-se, de resto, da forma mais simples possível, em perfeita conformidade com as intenções de Hans Castorp, que até se orgulhava um pouco desse fato, displicente e pretensioso que se tornara pela intimidade com Hippe. – Tome – disse. – E muito obrigado. Pribislav não respondeu nada; limitou-se a verificar rapidamente o mecanismo e meteu a lapiseira no bolso. Depois disso, nunca mais voltaram a se falar. De qualquer maneira, porém, haviam se falado uma vez, graças ao espírito empreendedor de Hans Castorp... Abriu os olhos, ainda confuso pela intensidade do seu arrebatamento. “Parece que sonhei!”, pensou. “Pois é, era Pribislav. Faz tempo que não lembro dele. Onde é que foram parar aquelas lasquinhas? A carteira está no sótão, na casa do tio Tienappel. Devem ainda estar na gavetinha esquerda. Não as tirei. Nem sequer lhes prestei a atenção suficiente para jogá-las fora... Era Pribislav, em carne e osso. Eu nunca teria pensado que tornaria a vê-lo tão nitidamente. Como se parecia com ela, com aquela mulher, ali do sanatório. Quem sabe se não é por isso que eu me interesso tanto por ela? Bobagem! Pura bobagem! Em todo caso está na hora de voltar, e bem depressa.” Ainda assim, permaneceu deitado por mais alguns instantes, cismando, absorto em recordações. “Pois então, passe bem, e muito agradecido”, disse e sorriu, com os olhos cheios de lágrimas. A seguir fez uma tentativa de se pôr a caminho. Mas logo tornou a sentar-se, com o chapéu e a bengala na mão, pois verificou que os joelhos não o sustentavam com firmeza. “Epa!”, pensou. “Parece que não dá. Contudo, é preciso que eu esteja às onze em ponto na sala de refeições, para assistir à conferência. Os passeios aqui têm seus atrativos, mas têm também as suas dificuldades. Seja como for, não posso ficar aqui. Estou apenas com as pernas duras por ter ficado deitado durante tanto tempo! Com o movimento, isso vai melhorar.” Tentou mais uma vez pôr-se de pé e, com um sério esforço, conseguiu fazê-lo. Mas, comparado com a partida briosa, o regresso não deixava de ser lamentável. Repetidas vezes, Hans Castorp teve que descansar à beira do caminho, por sentir que seu rosto de súbito empalidecera, que sua testa estava banhada em suor frio, e que as palpitações desregradas do coração lhe tolhiam o fôlego. Penosamente se esfalfou na descida em ziguezague, e quando chegou ao vale, nas proximidades da estância, compreendeu com toda a clareza que lhe seria impossível percorrer com suas próprias forças o extenso trajeto até o Berghof. Como não houvesse condução coletiva, nem se enxergasse nenhum carro de aluguel, fez parar um carroceiro que conduzia rumo à aldeia uma carreta, cheia de caixotes vazios, e pediu-lhe que o deixasse subir. Sentou-se de costas para o homem, com as pernas pendendo para fora do veículo. Os transeuntes contemplavam-no com surpresa e compaixão, enquanto assim se deixava transportar, oscilando sob o efeito das sacudidelas, com a cabeça a balançar de sonolência. Perto da passagem de nível, desembarcou, deu ao carroceiro algumas moedas, sem reparar se eram muitas ou poucas, e galgou apressadamente a rampa sinuosa. – Dépêchez-vous, monsieur – disse o porteiro francês. – La conférence de M. Krokowski vient de commencer. – Hans Castorp atirou o chapéu e a bengala ao moço encarregado do vestiário e, com a língua entre os dentes, esgueirou-se depressa, e todavia cautelosamente, pela porta entreaberta da sala de refeições, onde os pensionistas se haviam agrupado em cadeiras dispostas em filas, enquanto à direita, atrás de uma mesa guarnecida de uma garrafa de água, o Dr. Krokowski, vestido de sobrecasaca, já começara a falar. Análise Perto da porta havia, felizmente, uma vaga no último lugar de uma fila. Sentou-se discretamente e procurou fingir ter ocupado essa cadeira desde o princípio. O público, bebendo as palavras do Dr. Krokowski com a intensa atenção dos primeiros instantes, mal reparou no jovem; ainda bem, porque Hans Castorp oferecia um aspecto terrível. Seu rosto estava lívido como linho, e suas roupas, manchadas de sangue, de modo que ele parecia um assassino que acabara de cometer um crime. A senhora sentada à sua frente voltou, entretanto, a cabeça e examinou-o com uns olhos rasgados. Era Mme.. Chauchat, como Hans Castorp reconheceu com uma espécie de enfado. Com a breca! Não o podiam deixar em paz? Tencionara sentar-se sossegadamente, uma vez o objetivo alcançado, e refazer-se um pouquinho; e agora lhe acontecia estar face a face justamente com essa mulher. Tal casualidade, em outra ocasião, talvez lhe causasse satisfação; mas, exausto e derreado como se sentia, que lhe importava o fato, que apenas fazia novas exigências ao seu coração e o irritaria durante toda a conferência? E os olhos com que ela o olhara eram exatamente os de Pribislav; contemplara-lhe o rosto e as manchas de sangue no casaco, e fizera-o com uma insistência bastante indiscreta e petulante, que se harmonizava bem com as maneiras de uma pessoa que batia a porta com estrondo. Como era desajeitada a postura dela! Completamente diversa daquela que guardavam as senhoras da esfera familiar a Hans Castorp; estas se mantinham eretas na cadeira e dirigiam a cabeça para o vizinho de mesa, enquanto falavam com as pontas dos lábios. Mme.. Chauchat, porém, estava sentada numa atitude lassa, relaxada, com as costas redondas e os ombros caídos, e ainda pendia a cabeça para a frente, a ponto de deixar saliente a vértebra da nuca, por cima do decote da blusa branca. Também Pribislav mantinha a cabeça da mesma forma, mas ele era um aluno modelar que se conduzia com todas as honras – muito embora não fosse este o motivo por que Hans Castorp lhe pedira o lápis –, ao passo que era claro e evidente que a postura negligente de Mme.. Chauchat, o seu jeito de bater a porta e a indiscrição do seu olhar, tinham relação com a sua enfermidade; até mesmo se expressavam em tudo isso aquele desembaraço e aquelas vantagens, talvez pouco honrosas, mas deveras ilimitadas, de que se ufanara o jovem Sr. Albin... Perturbaram-se os pensamentos de Hans Castorp, enquanto fitava as costas indolentes de Mme.. Chauchat. Cessando de ser pensamentos, transformaram-se em devaneios, nos quais penetrava como de longe o barítono arrastado do Dr. Krokowski, com os “r” brandos, pronunciados em surdina. Mas o silêncio que reinava na sala, a profunda atenção que parecia enfeitiçar a todos em redor, exerceram seus efeitos sobre ele e como que o despertaram da sua modorra. Olhou em torno de si... A seu lado achava-se o pianista de cabelos ralos, com a cabeça inclinada para trás, escutando de boca entreaberta e de braços cruzados. A Srta. Engelhart, a professora, sentada a alguma distância, tinha nos olhos uma expressão de avidez, e em ambas as faces manchas avermelhadas – fenômeno que se repetia nos rostos das demais senhoras que Hans Castorp observou. Notou-o nos semblantes da Srª. Salomon, ali, ao lado do Sr. Albin, e da mulher do cervejeiro, Srª. Magnus, aquela que perdia proteínas. Sobre a fisionomia da Srª. Stöhr, um pouco mais para trás, refletia-se um êxtase tão cheio de ignorância que até causava dó, enquanto a Srta. Levi, a da pele de marfim, recostando-se no espaldar, com os olhos semicerrados e as mãos espalmadas no regaço, pareceria uma defunta, não fosse o movimento de vaivém, forte e rítmico, do seu peito, o que lembrava a Hans Castorp uma figura de cera que ele vira tempos atrás num museu, e que tinha um mecanismo interior. Alguns pensionistas punham a mão em concha contra o ouvido, ou, pelo menos, fingiam esse gesto, ficando com a destra erguida em sua direção, como se a atenção os tivesse paralisado no meio do movimento. O Sr. Paravant, promotor público, um homem trigueiro de aparência sumamente robusta, até coçou a orelha com o dedo indicador, para fazer com que ouvisse melhor, e logo voltou a submetê-la à verborréia do Dr. Krokowski. De que falava, afinal, o Dr. Krokowski? Que tema estava desenvolvendo? Hans Castorp procurou concentrar seu espírito, a fim de apanhar o fio da palestra, porém não o conseguiu imediatamente, visto não ter ouvido o princípio e ter perdido ainda outras passagens, depois, ao refletir acerca das costas lassas de Mme.. Chauchat. Tratava-se de uma potência... daquela potência... Numa palavra, tratava-se da potência do amor, “Liebe”. Claro! O assunto estava indicado pelo título geral do ciclo de conferências, e de que mais poderia falar o Dr. Krokowski, desde que esta era a sua especialidade? Verdade é que parecia um tanto estranho a Hans Castorp assistir, assim subitamente, a uma preleção sobre o amor, já que os cursos que ele seguira antes haviam-se ocupado apenas de assuntos como a transmissão de rodas denteadas nas construções náuticas. Como se arranjava o conferencista para expor em pleno dia, a um público de cavalheiros e senhoras, um assunto de natureza tão confidencial e espinhosa? O Dr. Krokowski expunha-o num linguajar misto, entre poético e erudito, rigorosamente científico e, ao mesmo tempo, vibrante como um hino. Esse tom despertava no jovem Hans Castorp a impressão de uma certa falta de ordem, mas talvez fosse justamente ele o que esquentava as faces das damas e fazia os senhores cocarem as orelhas. Em particular, o orador empregava o termo “Liebe” num sentido levemente ambíguo, de modo que nunca ficava claro o que se devia pensar das suas palavras, nem se elas se referiam a um sentimento piedoso ou a uma paixão carnal; vacilação que produzia uma espécie de enjôo. Nunca na vida ouvira Hans Castorp pronunciar esse vocábulo tantas vezes seguidas como nessa hora e nesse lugar, e ao refletir sobre esse fato, até achava que ele próprio jamais se servira dessa palavra e nem a ouvira de boca estranha. Talvez estivesse errado, mas, em todo caso, não lhe parecia que o vocábulo “Liebe” ganhasse com tanta repetição. Pelo contrário, essa sílaba e meia, já em si um tanto escabrosa, com as consoantes lingual e labial, e com a vogal balante no meio, acabou por se lhe tornar bastante repelente. Ligava-se a ela uma representação parecida com leite aguado, qualquer coisa entre branco e azulado, tanto mais insípida em comparação com todas as idéias vigorosas que o Dr. Krokowski estava apresentando a seu respeito. Pois era evidente que, na forma que ele usava, podiam-se dizer coisas bem fortes sem que o público saísse da sala. Absolutamente não se limitava a discutir, com uma espécie de tato inebriante, assuntos comumente conhecidos, mas nos quais a maioria das pessoas prefere não tocar. Destruía ilusões; implacavelmente fazia prevalecer o conhecimento; não deixava espaço para a fé sentimental na dignidade dos cabelos prateados ou na pureza angélica da criança tenra. Trazia, aliás, com a sobrecasaca, o mesmo tipo de colarinho amplo e as sandálias por cima das meias cinzentas, o que dava uma impressão de idealismo e princípios firmes, se bem que Hans Castorp se assustasse um pouco com esse aspecto. Valendo-se de livros e folhas soltas, espalhadas sobre a mesa, documentava o Dr. Krokowski as suas exposições por meio de toda espécie de paradigmas e anedotas, chegando até, às vezes, a recitar versos. Discursava acerca das formas tenebrosas do amor e das variedades excêntricas, dolorosas e sinistras, da sua índole e da sua onipotência. Entre todos os instintos existentes na natureza – disse ele – era o amor o mais vacilante e o mais ameaçado, fundamentalmente propenso à aberração e à perversão fatal. Nesse fato não havia nada de surpreendente, uma vez que esse impulso poderoso não era uma coisa simples, senão que infinitamente composta por natureza. Por mais legítimo que ele parecesse no seu conjunto, o que o compunha era justamente uma série de perversões. Mas, desde que acertadamente – assim continuou o conferencista –, desde que com muita razão se negava que do absurdo das partes fosse deduzido o absurdo do todo, era inevitável a conclusão que atribuía parte daquela legitimidade do todo, senão toda ela, também à perversão que compunha esse todo. Era isso uma exigência da lógica, da qual, segundo o orador, os ouvintes deviam compenetrar-se. Havia resistências íntimas e corretivos psíquicos, instintos decentes e coordenadores, de um caráter que o Dr. Krokowski quase se sentia tentado a qualificar de burguês, e sob o efeito compensador e restritivo desses instintos as partes perversas eram fundidas num todo útil e irrepreensível; processo freqüente e simpático, cujo resultado, porém (como o orador acrescentou com certo desdém), não tinha nenhuma importância para o médico e o filósofo. Em outros casos, entretanto, malograva o referido processo; não havia jeito de levá-lo a bom termo. E quem – assim perguntou o Dr. Krokowski -seria capaz de dizer se esses últimos casos não eram os mais nobres, os psicologicamente mais valiosos? Existia então uma tensão extraordinária, uma paixão que ultrapassava as medidas habituais, burguesas, e essa tensão se fazia sentir entre os dois grupos de forças que eram a necessidade de amor e os impulsos contrários, dentre os quais cumpria mencionar a vergonha e o asco. Travada nos abismos da alma, essa luta impedia, nos ditos casos, que os instintos extraviados chegassem a ser abrigados, protegidos e moralizados, daquele modo que conduzia à harmonia usual e à vida erótica regular. E como terminava esse combate – pois tratava-se de um combate – entre as potências da castidade e do amor? Terminava, aparentemente, com a vitória da castidade. O medo, as conveniências, a repugnância pudica, o trêmulo desejo de pureza – todos eles oprimiam o amor, mantinham-no agriIhoado, nas trevas, davam acesso à consciência e à atividade, quando muito a uma parte, jamais, porém, ao todo múltiplo e vigoroso das suas reivindicações confusas. No entanto, essa vitória da castidade não era mais que aparente, não passava de uma vitória de Pirro, pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas trevas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização, rompia o círculo mágico da castidade e ressurgia, ainda que sob forma metamorfoseada, dificílima de reconhecer... E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição? Assim perguntou o Dr. Krokowski, e deixou o seu olhar passar ao longo das filas, como se esperasse seriamente uma resposta dos seus ouvintes. Ora, essa resposta teria de ser dada por ele mesmo, que já dissera tantas outras coisas. Ninguém, exceto ele, sabia-a; mas ele não falharia, isso se notava na sua expressão. Com os seus olhos ardentes, sua palidez de cera, sua barba negra, e as sandálias de monge por cima das meias de lã cinzenta, parecia simbolizar, na sua própria pessoa, aquela luta entre a castidade e a paixão de que acabava de falar. Ao menos era essa a impressão de Hans Castorp, enquanto, como todos os demais, esperava com suma curiosidade ficar sabendo sob que forma voltava o amor rechaçado. As mulheres mal se atreviam a respirar. O Promotor Paravant mais uma vez cocou a orelha, para que, no instante decisivo, ela se tornasse aberta e acolhedora. Eis o que disse o Dr. Krokowski: – Sob a forma de doença. O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado. Agora sabiam o segredo, se bem que nem todos fossem capazes de apreciá-lo devidamente. Um suspiro percorreu a sala, e o Promotor Paravant meneou a cabeça num gesto significativo de aprovação, enquanto o Dr. Krokowski prosseguia desenvolvendo a sua tese. Hans Castorp, por sua vez, baixou a cabeça, a fim de refletir sobre o que ouvira e de perguntar-se a si próprio se compreendera. Mas ele tinha pouca prática nesse tipo de exercícios mentais e, além disso, pouca presença de espírito, devido àquele passeio infeliz. Assim, sua atenção distraía-se facilmente, e de fato se concentrou logo nas costas de Mme.. Chauchat, que ele via à sua frente, bem como no braço que se elevava e inclinava para trás, para que a mão, diante dos olhos de Hans Castorp, sustentasse, de baixo, os cabelos em trança. Era angustiante ter essa mão tão perto dos olhos. Quisesse ele ou não, tinha de olhá-la, estudá-la com todos os defeitos e particularidades humanas que lhe eram inerentes, como se ela estivesse sob uma lente. Não, não havia nada de aristocrático nessa curta mão de colegial, com as unhas aparadas de qualquer jeito. Nem sequer se tinha certeza de que estivesse perfeitamente limpa nos nós dos dedos, e a pele ao lado das unhas estava roída – a esse respeito não existia a menor dúvida. Hans Castorp fez uma careta, e todavia os seus olhos continuaram fixos na mão de Mme.. Chauchat. Passou-lhe pelo cérebro uma vaga e incompleta lembrança daquilo que dissera o Dr. Krokowski sobre as resistências burguesas que se opunham ao amor... O braço era mais belo, esse braço suavemente dobrado atrás da cabeça, e quase desnudo, já que a fazenda das mangas, uma levíssima cambraia, era mais fina do que a da blusa, de maneira que apenas propiciava uma espécie de vaporosa auréola ao braço, que sem ela talvez fosse menos gracioso. Era ele ao mesmo tempo delicado, gordo e -segundo todas as probabilidades – frio ao tato. No que lhe dizia respeito, absolutamente não entravam em ação as referidas resistências burguesas. Hans Castorp sonhava, os olhos fitos no braço de Mme.. Chauchat. Como se vestiam essas mulheres! Mostravam isso e aquilo da nuca e do peito; glorificavam os braços por meio de gaze transparente... Agiam assim em todo o mundo para excitar o desejo ansioso dos homens. Deus do Céu, que bela era a vida! Era bela justamente pela naturalidade com que as mulheres se vestiam de um modo tão sedutor; pois isso era mesmo natural e de tal forma comum, tão geralmente admitido, que a gente mal o notava e o tolerava inconscientemente, sem fazer grande caso. Mas cumpria pensar nisso – ponderou Hans Castorp – para encontrar um genuíno prazer na vida e não se esquecer que tal modo de trajar era uma instituição deliciosa e, no fundo, quase feérica. Claro que havia uma finalidade definida no fato de as mulheres terem o direito de se vestir dessa forma maravilhosa e mágica, sem que, com isso, infringissem as regras da decência: tratava-se da próxima geração, da procriação da raça humana; sim, senhor! Mas quando a mulher estava interiormente enferma, quando não era, de maneira alguma, apta para a maternidade – que dizer então? Haveria ainda algum sentido no uso de mangas de gaze que despertassem a curiosidade dos homens quanto a um corpo interiormente carcomido? Era evidente que isso era absurdo e deveria ser considerado pouco correto e até mesmo proibido. Pois no interesse de um homem por uma mulher enferma havia tão pouco sentido quanto... bem, quanto houvera naquele interesse silencioso que Hans Castorp sentira por Pribislav Hippe. Essa comparação não deixava de ser estúpida, e a reminiscência, um tanto penosa. Mas elas se haviam apresentado espontaneamente, sem que ninguém as chamasse. De resto, os seus sonhos foram interrompidos nesse ponto, sobretudo porque a sua atenção se sentiu novamente atraída pelo Dr. Krokowski, cuja voz se elevara de forma impressionante. Realmente, lá atrás da mesinha estava ele, com os braços abertos e a cabeça obliquamente inclinada, e apesar da sobrecasaca parecia-se com um Cristo na cruz! Patenteou-se que o Dr. Krokowski, pelo fim da sua conferência, fazia intensa propaganda a favor da dissecação das almas, e com os braços abertos convidava todo mundo para vir a ele. Vinde a mim todos os que estão aflitos e carregados de culpa, disse o orador, embora com outras palavras. E não deixou nenhuma dúvida quanto à sua convicção conforme a qual todos, sem exceção, estavam nessas condições. Falou ainda do sofrimento oculto, do pudor e da mágoa, e dos efeitos benfazejos da análise; celebrou a iluminação do inconsciente, preconizou a reconversão da doença em um sentimento consciente, exortou à confiança e prometeu a cura. A seguir deixou cair os braços, ergueu a cabeça, juntou a papelada de que se servira durante a conferência, apanhou a pilha com a mão esquerda, e apertando-a ao ombro direito, com um gesto tipicamente professoral, afastou-se pelo corredor. Todos se levantaram, empurrando as cadeiras para trás, e começaram a dirigir-se lentamente para a mesma saída pela qual o doutor abandonara a sala. Era como se todos, num movimento concêntrico, convergissem para ele, de todos os lados, hesitantes, involuntariamente, e todavia numa unanimidade surda, como a multidão que seguia atrás do flautista de Hamelin. Hans Castorp permaneceu parado no meio da torrente, agarrando com a mão o espaldar da sua cadeira. “Estou aqui só de visita”, pensou. “Ando bem de saúde e, graças a Deus, essas coisas não me dizem respeito. Quando se realizar a próxima conferência, já não estarei aqui...” Viu como Mme.. Chauchat saía a passo arrastado, com a cabeça caída para a frente. “Será que ela também se submete ao bisturi do analista?”, pensou, enquanto o seu coração se punha a martelar... Com isso, nem notou que Joachim se aproximava dele através das cadeiras, de modo que estremeceu nervosamente quando o primo lhe dirigiu a palavra. – Você chegou no último instante – disse Joachim. – Foi muito longe? Que tal o passeio? – Oh, bonzinho – respondeu Hans Castorp. – Caminhei bastante longe, sim senhor! Mas devo confessar que o passeio me trouxe menos do que eu esperava. Talvez fosse prematuro ou até prejudicial para mim. Por enquanto não farei outro. Joachim não perguntou se a conferência lhe agradara ou não. Hans Castorp também não emitiu a sua opinião sobre esse ponto. Como por acordo tácito, nem então nem depois aludiram à conferência. Dúvidas e ponderações Na terça-feira já fazia uma semana que o nosso herói se achava ali em cima. Por isso encontrou uma conta no seu quarto, ao regressar do passeio matinal; a conta do sanatório, relativa à sua primeira semana, um documento comercial de execução cuidadosa, apresentado num envelope verde, e cujo cabeçalho era enfeitado com uma vista sedutora do edifício do Berghof, ao passo que à esquerda uma coluna estreita apresentava um pequeno excerto do prospecto, destacando-se em negrito a referência ao “tratamento psíquico segundo os princípios mais modernos”. Os itens, redigidos caligraficamente, davam um total de cento e oitenta francos redondos: doze francos por dia pela pensão e os cuidados médicos, e oito pelo quarto; acresciam a isso vinte francos de “entrada” e dez pela desinfecção do quarto; outras despesas menores, referentes a roupa, cerveja e ao vinho tomado por ocasião do primeiro jantar, arredondavam a soma. Ao conferir a conta em companhia de Joachim, Hans Castorp não encontrou nada de que reclamar. – É verdade que não faço uso dos cuidados médicos – disse. – Mas isso é comigo. Estão compreendidos no preço da pensão e não posso exigir que os descontem. Como poderiam fazêlo?... Quanto à desinfecção, são meio careiros. Não é possível que tenham gasto dez francos de H2CO, para fumigar os vestígios da americana. Mas, em geral, acho que é antes barato do que caro, em consideração ao que oferecem. – Foram, pois, antes do café da manhã, à “administração”, a fim de liquidar a conta. A “administração” achava-se no rés-do-chão. Quem seguia além do vestíbulo o corredor que passava ao lado do vestiário, das cozinhas e das despensas, não se podia enganar de porta, tanto mais que esta se distinguia por uma placa de porcelana. Com grande interesse, Hans Castorp travou ali conhecimento com o centro comercial da empresa. Era um verdadeiro pequeno escritório. Uma datilógrafa se achava em plena atividade, e três funcionários estavam inclinados sobre as escrivaninhas, enquanto na saleta ao lado um senhor que devia ocupar o posto de chefe ou gerente trabalhava numa secretária colocada no meio da peça, limitando-se a lançar por cima dos óculos um olhar frio e calculista sobre os pensionistas. Estes foram despachados num guichê, onde um funcionário trocou uma nota, pôs o dinheiro na caixa e passou o recibo. Enquanto isso, os primos guardavam aquela atitude séria e modesta, silenciosa e até submissa, que convém a jovens alemães, acostumados a testemunhar a qualquer escritório o respeito devido a autoridades e repartições. Mas, depois de terem saído da “administração” a caminho do café da manhã, e mais tarde, no decorrer do dia, conversaram um pouco sobre a organização da empresa Berghof. Joachim, na sua qualidade de “indígena” informado, soube responder às perguntas de Hans Castorp. O Dr. Behrens não era de maneira alguma proprietário nem arrendatário do estabelecimento, se bem que à primeira vista se pudesse ter essa impressão. Acima e atrás dele havia potências invisíveis que se manifestavam somente até certo ponto, sob a forma do escritório. Existia um conselho fiscal, uma sociedade anônima, da qual seria alto negócio fazer parte, uma vez que, segundo a informação fidedigna de Joachim, distribuía anualmente polpudos dividendos aos acionistas, e isso apesar dos salários muito altos dos médicos e dos princípios bastante liberais de administração. O conselheiro áulico não era, por conseguinte, autônomo; não passava de um agente, de um funcionário, de um “parente” das potências superiores, embora sendo o primeiro e o supremo; era a alma do estabelecimento e exercia uma influência decisiva sobre toda a organização, inclusive a intendência, ainda que, na função de médico-diretor, ficasse isento de qualquer ocupação com a parte comercial do sanatório. Natural do noroeste da Alemanha, chegara, fazia anos, a essa posição, contra o seu gosto e plano de vida. Fora levado para Davos por sua mulher, cujos restos mortais havia muito repousavam no cemitério da aldeia, aquele cemitério pitoresco de Davos-Dorf, situado na encosta da direita, ali, mais atrás, perto da entrada do vale. Devia ter sido uma mulher encantadora, ainda que astênica e com olhos excessivamente grandes, a julgar pelas fotografias que se encontravam em toda parte na moradia do médico, e pelos retratos a óleo, devidos ao pincel diletante do marido e espalhados pelas paredes. Depois de lhe ter dado um casal de filhos, seu corpo franzino, acossado pela febre, sentira-se atraído para essas regiões, onde, dentro de poucos meses, sucumbira à consunção. Dizia-se que Behrens, que a adorara, fora de tal forma ferido por esse golpe que, durante algum tempo, tomado de melancolia e esquisitice, chamara a atenção do público na rua pelos seus risinhos, monólogos e gestos descontrolados. Nunca mais regressara ao seu ambiente primitivo, mas ficara ali, decerto porque não queria afastar-se do túmulo. Mas talvez a razão determinante fosse de caráter menos sentimental: a enfermidade atacara a ele próprio, e segundo a sua convicção científica, o lugar que lhe cabia era ali mesmo. Por isso instalara-se em Davos, como um daqueles médicos que são companheiros do infortúnio de quem recebe os seus cuidados, que não combatem a enfermidade, independentes dela, na plenitude da sua liberdade e inteireza pessoal, embora estejam, eles mesmos, marcados pela doença; caso estranho, sem dúvida, mas que não é muito raro e tem inegavelmente suas vantagens e seus inconvenientes. A camaradagem entre o médico e o enfermo merece plena aprovação, e pode-se admitir que só quem sofre é capaz de ser salvador e guia dos que sofrem também. Mas será possível um verdadeiro domínio espiritual sobre uma potência, exercido por uma pessoa que, ela própria, se conta entre os seus escravos? Pode dar liberdade quem está avassalado? Para o sentimento ingênuo, o médico enfermo não deixa de ser um paradoxo, um fenômeno problemático. Quem sabe se a experiência pessoal não lhe turva e confunde o conhecimento científico da doença, tanto quanto o enriquece e firma moralmente? Não encara a enfermidade face a face, com o olhar franco de um adversário; vê-se coibido, não toma uma posição clara, e, com toda a cautela que o tema exige, deve-se ventilar a questão de saber se uma pessoa que pertence ao mundo da doença pode interessar-se pela cura ou ao menos pela conservação de outrem na mesma medida que um homem sadio... Foi uma parte dessas dúvidas e ponderações que Hans Castorp externou à sua maneira, enquanto conversava com Joachim acerca do Berghof e do seu diretor-médico. Mas Joachim objetou que não se sabia se o Dr. Behrens ainda estava enfermo; provavelmente já se curara. Havia muito tempo que começara a clinicar ali; no início como médico particular, adquirindo logo boa reputação como auscultador de ouvido fino e especialista muito seguro de pneumotomia. Depois, o Berghof procurara a sua colaboração: o estabelecimento ao qual o Dr. Behrens se ligara estreitamente fazia mais de um decênio... Ali, nos fundos, ao extremo da ala noroeste do sanatório, ficava situada a sua habitação – o Dr. Krokowski residia não longe dele – e aquela senhora da antiga nobreza, a enfermeira-chefe, à qual Settembrini se referira daquela forma sarcástica, e que Hans Castorp só conhecia de vista, dirigia a casa do viúvo. De resto, o conselheiro áulico vivia sozinho, pois o filho estudava em universidades alemãs, e a filha casara-se com um advogado, na parte francesa da Suíça. O jovem Behrens vinha às vezes de visita durante as férias, o que já ocorrera uma vez desde a chegada de Joachim ao sanatório. O primo contou que, quando isso acontecia, havia grande agitação entre as damas do estabelecimento; as temperaturas subiam; ciumeiras provocavam disputas e querelas nos alpendres de repouso, e na ficha especial do Dr. Krokowski aumentava a freqüência... Para a sua clínica particular, o assistente recebera uma peça especial, que se encontrava – como a grande sala de consulta, o laboratório, a sala de operações e o serviço de radiografia – no bem iluminado subsolo do edifício. Falamos de subsolo, porque a escada de pedra que conduzia do rés-do-chão para ali despertava realmente a idéia de que se descia a uma espécie de porão, o que, no entanto, era um engano, pois, em primeiro lugar, o rés-do-chão estava situado bastante alto, e ademais o Berghof estava construído num terreno em declive, na encosta da montanha; assim, as peças que compunham esse porão davam para o jardim e o vale. Essas circunstâncias contradiziam e compensavam, em certo modo, o efeito e o sentido daquela escada: quem pensava descer pelos seus degraus, para um lugar mais baixo do que o nível do solo, encontrava-se depois da descida ainda ao nível da terra ou, quando muito, alguns pés abaixo dele – impressão que divertiu Hans Castorp, quando, certa tarde, em que seu primo quis fazer-se pesar pelo massagista, acompanhou-o a essa esfera “subterrânea”. Reinava ali uma claridade e um asseio de hospital; tudo era branco sobre branco, e as portas cintilavam com a alvura do esmalte, inclusive a que conduzia ao gabinete de consultas do Dr. Krokowski, na qual o cartão de visita do sábio se achava fixado por meio de um percevejo. Para chegar a essa porta, era preciso descer mais dois degraus, a partir do corredor, de maneira que a peça situada atrás dela tinha um caráter de calabouço. Ficava ela à direita da escada, na extremidade do corredor, e Hans Castorp observavaa com atenção especial, enquanto ia de cá para lá, esperando por Joachim. Viu sair uma pessoa. Era uma senhora, chegada recentemente, cujo nome ele ainda não conhecia, mulher baixinha, graciosa, com franjas na testa e com brincos de ouro. Ao subir os dois degraus, inclinou-se profundamente, arregaçando a saia, ao passo que a outra mão, adornada de anéis, apertava contra a boca um lencinho. Os olhos grandes, turvos, assustados, olhavam para cima, sem nada ver. Assim se dirigiu apressadamente para a escada, a passos curtos, com a saia a farfalhar. De repente estacou, como se se lembrasse de alguma coisa. A seguir pôs-se novamente a andar e desapareceu na escadaria, sempre inclinada para a frente e sem tirar o lencinho dos lábios. Quando a porta se abriu, tornou-se patente que a peça, atrás dela, estava muito mais escura do que o corredor branco. A luminosidade de hospital, evidentemente, não chegava até ali. Conforme Hans Castorp verificou, reinava no gabinete analítico do Dr. Krokowski uma meia-luz velada, um profundo crepúsculo. Conversas à mesa Durante as refeições, na sala pintalgada, o jovem Castorp sentiu certo embaraço ao notar que daquele passeio, realizado por conta própria, lhe ficara o referido tremor de cabeça peculiar ao avô. Justamente à mesa, esse tique se produzia com certa regularidade; não havia jeito de impedi-lo, e era difícil ocultá-lo. Além do recurso de apoiar o queixo dignamente na gravata, do qual afinal não se podia servir a todo instante, Hans Castorp inventou todo tipo de meios de disfarçar esse seu fraco. Por exemplo, mantinha a cabeça em constante movimento, conversando com as vizinhas ora da direita ora da esquerda; ou, quando levava a colher à boca, fincava o antebraço esquerdo na mesa, a fim de firmar a sua postura; também apoiava o cotovelo na mesa, nos intervalos entre os pratos, e escorava a cabeça com a mão, se bem que a ele mesmo essa atitude se afigurasse como uma falta de educação, admissível, apenas e a rigor, num ambiente desregrado de enfermos. Mas tudo isso não deixava de ser penoso, e pouco faltava para que lhe tirasse por completo o gosto das refeições, que ele normalmente apreciava muito, em virtude das sensações e coisas notáveis que acarretavam. No entanto, esse fenômeno ignominioso contra o qual Hans Castorp tanto lutava, não era – ele mesmo o sabia bem – de origem simplesmente física; não o provocara apenas o ar alpino, nem o esforço de aclimatação; ele expressava uma agitação íntima e estava ligado, de um modo direto, a certas sensações e episódios marcantes. Mme.. Chauchat chegava quase sempre com atraso à mesa, e enquanto ela não estava presente, Hans Castorp não podia ficar sentado e manter os pés tranqüilos, porque esperava o estrondo da porta de vidro, que invariavelmente acompanhava a entrada da moça, e não ignorava que naquele momento se sobressaltaria e sentiria seu rosto gelar-se, como de fato acontecia com a mais absoluta regularidade. No começo, nunca deixara de voltar furiosamente a cabeça; seguia com olhares irados o caminho da desleixada retardatária até a mesa dos “russos distintos”; às vezes também murmurava, entre dentes, qualquer praga ou exclamação indignada. A essa altura dos acontecimentos já não fazia nada disso; limitava-se a inclinar a cabeça sobre o prato, mordendo os lábios, ou com um movimento propositado e artificial voltava-a para outro lado, pois parecia-lhe que já não tinha direito de encolerizar-se; não se sentia bastante livre para censurar; pelo contrário, tinha a impressão de ser cúmplice da conduta escandalosa, de participar da responsabilidade perante os demais – em poucas palavras: estava com vergonha; teria sido inexato dizer que se envergonhava do comportamento de Mme.. Chauchat; não, ele, individualmente, sentia vergonha perante as outras pessoas, o que, aliás, era mais que desnecessário, visto ninguém na sala se preocupar com o relaxamento de Mme.. Chauchat, nem tampouco com a vergonha de Hans Castorp, com exceção, talvez, da professora, a Srta. Engelhart, sua vizinha da direita. Essa criaturinha ridícula compreendera que, graças à sensibilidade de Hans Castorp relativa a portas fechadas com estrondo, se originara uma certa relação afetiva entre o seu jovem companheiro de mesa e aquela russa; sabia, além disso, que pouco importava o caráter de tal relação, contanto que ela existisse, e que a indiferença fingida de Hans Castorp – bastante mal fingida por falta de prática e talento de ator – não significava um enfraquecimento, senão um reforço dos laços, uma fase mais avançada dessa relação. Sem ter, para a sua própria pessoa, as mínimas pretensões ou esperanças, a Srta. Engelhart expandia-se incessantemente em encômios desinteressados a Mme.. Chauchat. O estranho era que Hans Castorp perfeitamente notou e reconheceu, senão logo, ao menos com o tempo, o caráter atiçador dessa insistência, que até lhe causava repulsa; mas, apesar disso, deixava-se docilmente influenciar e seduzir por ela. – Pronto! – disse a solteirona. – Aí está ela. Nem é preciso levantar os olhos para saber quem entrou. Claro, ali vai ela. Que jeito engraçado de andar! Exatamente como um gato que se encaminha para o prato de leite! Eu gostaria de trocar de lugar com o senhor, para que lhe fosse possível contemplá-la tão desembaraçada e comodamente como eu. Compreendo que o senhor não pode virar a cabeça a cada instante para olhá-la. Deus sabe o que ela acabaria imaginando se o notasse... Agora cumprimenta a sua gente... O senhor deveria ver isso; é delicioso observá-la. Quando ela sorri e conversa como neste momento, tem uma covinha na face, mas só quando ela quer. Sim, senhor, é mesmo um encanto de mulher, uma criaturinha muito mimada, e isso explica seu relaxamento. A gente tem de adorar pessoas assim, queira-se ou não. Mesmo que nos aborreçam pelo seu desleixo, a própria irritação é um motivo a mais para simpatizarmos com elas. É uma grande felicidade, essa de exasperar-se e de se ver forçado a amar, apesar de tudo... Assim murmurava a professora, tapando a boca com a mão, para que os outros não pudessem ouvi-la, e o rubor héctico das suas bochechas de solteirona manifestava a temperatura anormal de seu corpo. O palavrório excitante penetrava o pobre Hans Castorp até a medula. Uma certa falta de iniciativa, que lhe era peculiar, criava nele a necessidade de ouvir confirmar por um terceiro que Mme.. Chauchat era uma mulher sedutora. Ademais, desejava o jovem ser animado, da parte de uma pessoa estranha, a entregar-se a sentimentos aos quais a sua razão e a sua consciência opunham uma resistência incômoda. Por outro lado, essas conversas eram pouco fecundas em informações positivas. Conquanto tivesse as melhores intenções do mundo, a Srta. Engelhart era incapaz de contar pormenores exatos a respeito de Mme.. Chauchat; não sabia mais do que todos os outros no sanatório; não a conhecia, nem sequer tinha amigos em comum com ela, e a única coisa que lhe poderia dar vantagem aos olhos de Hans Castorp era ser natural de Königsberg, perto da fronteira russa, e entender algumas palavras de russo – méritos insignificantes, mas que Hans Castorp estava disposto a considerar como uma espécie de relação longínqua com Mme.. Chauchat. – Ela não usa anel – disse ele. – Não usa aliança, como vejo. A senhora me explique isso. Não me disse que é casada? A professora parecia em apuros, como se estivesse metida num beco sem saída e precisasse desculpar-se. Tão responsável se sentia por Mme.. Chauchat perante Hans Castorp! – O senhor não deve ligar a isso – disse então. -sei de boa fonte que ela é casada. A esse respeito não pode haver a mínima dúvida. Se ela se faz tratar por madame, não é para se dar ares de importância, como é hábito de certas senhoritas estrangeiras, quando já passaram da primeira juventude. Nós todos sabemos positivamente que ela tem um marido em algum lugar da Rússia. É fato conhecido em toda parte. Seu nome de solteira é diferente, é um nome russo e não francês, qualquer coisa em anov ou ukov. Já me disseram, mas me esqueci. Se o senhor quiser, vou me informar. Com certeza há pessoas por aqui que sabem. Uma aliança? Não, ela não usa aliança; eu também já reparei nisso. Meu Deus, talvez não lhe assente bem, talvez lhe faça a mão larga demais. Ou pode ser que ela julgue o uso da aliança costume muito burguês. Andar assim com uma argola lisa no dedo – só falta o molho de chaves num cestinho... Não, senhor, ela é muito moderna para isso. Eu sei positivamente que todas as mulheres russas têm no seu modo de ser qualquer coisa de liberdade e desembaraço. E esse tipo de anel é tão prosaico, tão negativo! É, por assim dizer, um símbolo da servidão. Dá às mulheres um quê de freira, faz delas umas florzinhas não-me-toques. Não me admiro de que Mme.. Chauchat não queira ser assim... Uma mulher encantadora, na flor da idade!... Provavelmente não tem vontade nem vê motivos para mostrar os seus laços conjugais a todo cavalheiro que lhe aperte a mão... Deus do céu! Com que ardor defendia a professora a causa de Mme.. Chauchat! Hans Castorp olhou-a assustado, mas ela lhe sustentou o olhar, entre acanhada e teimosa. Depois, ambos permaneceram calados durante alguns momentos, como para se refazerem. Hans Castorp comia, procurando reprimir o tremor da cabeça. Finalmente disse: – E o marido? Não se preocupa com ela? Não vem nunca visitá-la? Que é que ele faz? – É funcionário público, na administração russa, e vive numa região perdida, em Daghestan, sabe? Fica muito para o leste, além do Cáucaso. Foi mandado para lá. Não, senhor, eu já lhe disse que ninguém jamais o viu aqui em cima, e já faz três meses desde que ela voltou para cá. – Não é então a primeira vez que ela está aqui? – Oh, não! É a terceira. E nos intervalos vai a lugares semelhantes... Não, o que se dá é justamente o contrário: às vezes ela faz uma visita ao marido; não com muita freqüência; só uma vez por ano passa algum tempo com ele. Pode-se dizer que vivem separados, e que ela apenas o visita de vez em quando. – Claro, se ela está doente... – Está doente, sim. Mas não a tal ponto que haja necessidade de viver constantemente em sanatórios e separada do marido. Devem existir outras razões mais decisivas. Pode ser que ela não goste de Daghestan, um ermo selvagem e distante, para lá do Cáucaso. Nisso não há nada de surpreendente. Mas também o marido deve ter alguma culpa por ela não se sentir bem a seu lado. Embora tenha um nome francês, é um funcionário público russo, e esses funcionários russos, o senhor pode acreditar, são uns tipos bastante rudes. Certa vez encontrei um deles, que tinha suíças grisalhas e uma cara bem vermelha... São venais ao extremo, e todos eles têm um fraco pela vodca, aquela aguardente deles, sabe? ... A fim de guardar as aparências fazem-se servir qualquer coisinha para comer, uns cogumelos avinagrados ou um pedacinho de esturjão, e acompanham isso com imensas quantidades de bebidas alcoólicas. É o que chamam de “colação”... – A senhora descarrega toda a culpa sobre ele – disse Hans Castorp. – Mas nós aqui ignoramos se não é também devido a ela que os dois não se acertam. Temos que ser justos. Quando a vejo aí e me lembro daquele hábito de bater a porta... Ora, ela não me parece ser um anjinho. Não me leve a mal essa opinião, mas desconfio dela. A senhora não é imparcial. Está cheia até aqui de preconceitos a favor dessa mulher... De vez em quando, ele expressava-se dessa maneira. Com uma astúcia no fundo alheia à sua natureza, fingia crer que o entusiasmo que a Srta. Engelhart manifestava por Mme.. Chauchat não era o que era em realidade, embora soubesse muito bem o contrário; fazia como se esse entusiasmo constituísse um fato engraçado, sui generis, do qual ele mesmo, o independente Hans Castorp, pudesse servir-se para mexer com a pobre solteirona, a uma distância fria e humorística. E como tivesse certeza de que a sua cúmplice admitiria e toleraria essa atrevida desfiguração das coisas, não se arriscava demais. – Bom dia, senhorita – dizia, por exemplo. – Passou bem a noite? Espero que tenha sonhado com a sua bela Minka... Vejam só, basta mencionar esse nome e logo a senhorita está toda corada. Está completamente caidinha por ela; não vale a pena negá-lo... E a professora, realmente ruborizada, inclinava-se profundamente sobre a xícara e cochichava com o canto esquerdo da boca: – Não, senhor, isso não se faz, Sr. Castorp! Realmente não é gentil da sua parte embaraçar-me desse jeito com as suas alusões. Todo mundo já repara que estamos falando dela e que o senhor me diz coisas que me fazem corar. Que jogo estranho, esse ao qual se entregavam os dois vizinhos de mesa! Ambos sabiam que estavam mentindo dupla e triplamente, que Hans Castorp caçoava da professora só para poder falar de Mme.. Chauchat, e no entanto encontrava um prazer mórbido e indireto nas gracinhas que dirigia à solteirona; esta, por sua vez, admitia-as, primeiro por um instinto de medianeira, segundo porque, para agradar ao jovem, de fato se apaixonara um pouco por Mme.. Chauchat, e finalmente porque sentia uma satisfação mesquinha quando Hans Castorp mexia com ela e a fazia corar. Ambos sabiam disso, sabiam um do outro, sabiam também que nenhum deles ignorava os pensamentos do outro; e tudo isso era complexo e pouco limpo. Mas, embora Hans Castorp em geral sentisse repugnância de coisas complexas e pouco limpas, e a sentisse também nesse caso particular, continuava, sem embargo, a chafurdar nesse elemento turvo, tranqüilizando-se com a idéia de estar ali em cima de visita e de partir dentro em breve. Com uma objetividade afetada, falava, à maneira de um conhecedor, sobre o físico da mulher “negligente”, constatando que ela era muito mais bonita e mais jovem vista de frente do que de perfil; que seus olhos estavam demasiado distantes entre si, e que a sua postura deixava muito a desejar, ao passo que seus braços eram realmente formosos e de “linhas suaves”. E ao dizer essas coisas, procurava disfarçar o tremor da cabeça e verificava ao mesmo tempo que a professora se dava conta dos seus esforços vãos. Teve até o máximo desgosto de notar que ela também ficava com a cabeça a tremer. Fora por mera política, por uma astúcia pouco natural, que ele chamara Mme.. Chauchat de “bela Minka”, pois que assim tinha uma oportunidade para fazer novas perguntas: – Eu disse “Minka”, mas como se chama ela em realidade? Quero dizer, qual é o primeiro nome? A senhorita, que está apaixonada por ela, deveria sabê-lo. A professora pôs-se a refletir. – Espere um pouco – disse. – Eu sabia o nome. Não era Tatiana? Não, não era, e Natacha tampouco. Natacha Chauchat? Não, não foi isso que me disseram. Agora sei! Ela se chama Avdótia, e se não é assim, é qualquer coisa parecida. Tenho certeza de que não é nem Kátienka nem Ninotchka. Francamente, não me lembro mais. Mas será fácil eu me informar, se o senhor fizer questão... Com efeito, no dia seguinte ela sabia o nome. Pronunciou-o na hora do almoço, quando a porta envidraçada se fechou com estrondo. A Srª. Chauchat chamava-se Clávdia. Hans Castorp não compreendeu imediatamente. Fez repetir e soletrar o nome, antes de gravá-lo na memória. Depois repetiu-o diversas vezes, enquanto fitava Mme.. Chauchat com os olhos injetados, como para ver se lhe ficava bem. – Clávdia? – disse ele. – Sim, sim, é bem possível que ela se chame assim. O nome combina com ela. – Não dissimulou o prazer que lhe causava essa informação de caráter íntimo. Dali por diante só falava de “Clávdia” ao referir-se a Mme.. Chauchat. – Parece-me que a sua “Clávdia” faz bolinhos de pão. Não acho isso muito distinto – dizia então, e a professora respondia: – Depende de quem os faz. Em Clávdia fica bem. Sim, essas refeições na sala das sete mesas tinham um extraordinário encanto para Hans Castorp. Lastimava quando terminava uma delas, mas consolava-se com o pensamento de que em breve, dentro de duas horas ou pouco mais, voltaria a esse mesmo lugar, e quando se via novamente sentado, era como se nunca se tivesse levantado. Que acontecia no intervalo? Nada. Um rápido passeio até o curso d'água ou ao bairro inglês, e algum repouso na espreguiçadeira. Isso não representava nenhuma interrupção séria, nenhum obstáculo que fosse difícil vencer. Seria diferente se se interpusessem trabalhos ou preocupações ou dificuldades que não se deixassem menosprezar nem afastar do pensamento. Mas nada disso existia no plano inteligente e feliz da vida no Berghof. Ao levantar-se de uma refeição tomada em comum, Hans Castorp já se podia alegrar imediatamente com o antegozo da próxima – contanto que seja próprio o verbo “alegrar-se” para aquele tipo de expectativa com que ele sempre aguardava o novo encontro com Mme.. Chauchat, e não se lhe dê um sentido por demais leviano, jovial, ingênuo e vulgar. Talvez o leitor se incline a admitir e a julgar adequadas unicamente expressões de caráter jovial e vulgar, quando se trata da pessoa de Hans Castorp e da sua vida íntima; lembramos-lhe, porém, que o nosso herói, como jovem sensato e consciencioso, não podia simplesmente “alegrar-se” com a vista e a proximidade de Mme.. Chauchat. Sabendo desse fato, constatamos que, se alguém tivesse formulado essa idéia na sua presença, ele, dando de ombros, teria rejeitado o referido verbo. Há ainda um pormenor digno de menção: ele começou a tratar com desdém certos meios de expressão. Com as faces ardendo, andava a cantar; cantarolava de si para si, pois o seu estado de alma era sensitivo e musical. Trauteava uma cançãozinha que ouvira, Deus sabe onde, numa reunião social ou num concerto de beneficência, cantada por uma voz de soprano pouco volumosa. Era uma terna ninharia que começava assim: “No fundo de minha alma ecoa A mais milagrosa canção...” E ele já estava a ponto de acrescentar: “De teus lábios ela voa E entra em meu coração” quando, subitamente, encolhia os ombros, dizendo: – Ridículo! – Chamando a delicada canção de insípida, piegas e adocicada, condenava-a com certa severidade mesclada de melancolia. Em tal cantiga cheia de ternura podia encontrar satisfação e prazer qualquer rapaz que, após ter “dado” – como se costuma dizer – “o seu coração”, num impulso lícito, sossegado e esperançoso, a uma pequena sadia, lá de baixo, se abandonasse, dali por diante, a sentimentos igualmente lícitos, futurosos, razoáveis e, no fundo, bem alegres. Quanto a ele, porém, e à sua relação com Mme.. Chauchat – a palavra “relação” vai por conta de Hans Castorp, e declinamos de toda responsabilidade – decididamente não lhes convinha uma cantiga dessas. Estendido na sua cadeira, sentia-se disposto a sentenciá-la com o veredicto estético de “Bobagem!” No meio da canção cessava de cantar, torcendo o nariz, se bem que não soubesse outra melhor. Mas havia uma coisa que lhe proporcionava prazer, quando se achava assim deitado e observava o seu coração, o coração corporal, que palpitava rápida e audivelmente através do silêncio, esse silêncio regulamentar que reinava em todas as dependências do Berghof durante o repouso principal. Seu coração batia com tenacidade e indiscrição, como sucedia quase sempre, desde que ele se encontrava ali em cima. Mas Hans Castorp deixara de ligar a esse fato tamanha importância como nos primeiros dias. Já não se podia dizer que o coração batia à toa, sem motivo e sem relação com a alma. Tal relação existia ou, pelo menos, não era difícil estabelecê-la. A atividade exaltada do corpo justificava-se facilmente por meio de uma emoção correspondente. Bastava que Hans Castorp pensasse em Mme.. Chauchat – e pensava nela – para encontrar o sentimento que lhe explicasse o martelar do coração. Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo O tempo era horrível. Neste ponto, Hans Castorp não teve sorte durante os poucos dias da sua permanência nessa região. Não caía neve, propriamente, mas chovia dias a fio, uma chuva pesada e feia; nuvens espessas cobriam o vale, e com estrondos arrastados e retumbantes descarregavam-se trovoadas ridiculamente supérfluas, dado o frio, tão intenso, que se fez necessário acender a calefação da sala de refeições. – Que lástima! – disse Joachim. – Eu pensava que a gente pudesse um dia levar uma merenda e ir a Schatzalp, ou fazer qualquer outra excursão. Mas parece que não será possível. Espero somente que sua última semana seja melhor. No entanto, Hans Castorp respondeu: – Deixe disso. Não estou com ânimo empreendedor. A minha primeira aventura não me saiu muito bem. Descanso melhor, quando vivo assim calmamente, sem muitas distrações. Distrações são para os veteranos, mas eu, com minhas três semanas, para que preciso de distrações? Com efeito, ele sentia-se ocupado e absorto com o que havia no lugar onde estava. Se abrigava esperanças, tanto a sua realização como uma possível decepção aguardavam-no aqui e não num Schatzalp qualquer. O que o atormentava não era tédio; pelo contrário, começava a recear que o fim da sua estadia chegasse com demasiada pressa. A. segunda semana já estava avançada; dois terços do seu tempo em breve teriam passado, e quando começasse o último terço, já seria tempo de arrumar as malas. Aquela primeira revitalização do senso de tempo de Hans Castorp havia muito que se passara; os dias já começavam a voar, e isso conquanto cada um deles se estirasse sob o efeito de uma expectativa sempre renovada e abundasse de experiências silenciosas e secretas... Sim, o tempo é um enigma singular, difícil de resolver. Será necessário pormenorizar aquelas experiências secretas que, ao mesmo tempo, retardavam e aceleravam o curso dos dias de Hans Castorp? Mas ninguém as ignora; tratava-se de experiências absolutamente comuns, na sua insignificância sentimental; e num caso mais razoável e mais futuroso, que permitisse a aplicação daquela cançãozinha “No fundo de minha alma ecoa...”, tampouco se teriam desenrolado de outra forma. Era impossível que Mme. Chauchat nada percebesse dos fios que se estendiam entre determinada mesa e a sua. E era justamente intenção desenfreada de Hans Castorp que ela notasse alguma coisa e até o máximo possível desses fios. Dizemos “desenfreada”, porque ele próprio estava perfeitamente a par da insensatez de seu caso. Mas quem se encontra no estado a que ele chegara, ou melhor, em que estava a ponto de entrar, deseja que a outra parte tome conhecimento desse estado, ainda que a coisa não tenha nem pé nem cabeça. Isso é apenas humano. Mme. Chauchat voltara-se duas ou três vezes, durante as refeições, para aquela mesa, ou por casualidade ou sob o efeito de algum magnetismo, e sempre dera com os olhos de Hans Castorp. Na quarta vez, fê-lo com premeditação, e de novo os encontrou atentos. Na quinta ocasião, não lhe surpreendeu o olhar, porque ele abandonara o seu posto de vigia. Mas Hans Castorp sentiu imediatamente que ela o observava, e seus olhos lhe responderam tão fervorosamente, que Mme. Chauchat, sorrindo, desviou o olhar. Se ela o julgava pueril, estava enganada. Sua necessidade de refinamento era considerável. Assim, na sexta vez, quando pressentiu, adivinhou, recebeu uma mensagem íntima de que ela o contemplava, fingiu examinar com insistente desgosto a cara pustulosa de uma senhora que se aproximara da sua mesa para falar com a tia-avó, e não desistiu disso antes de ter certeza de que os olhos “quirguizes”, lá do outro lado da sala, se haviam desviado dele – estranha comédia que Mme. Chauchat não somente podia mas até devia perceber, para que a sutileza e o autodomínio de Hans Castorp a fizessem refletir... E as coisas se adiantaram até o seguinte episódio: num intervalo entre dois pratos, Mme. Chauchat virou-se indolentemente e inspecionou a sala. Hans Castorp estava no seu posto de vigia, e seus olhares entrechocaram-se. Enquanto se encaravam – a enferma de um modo vagamente escrutador e irônico, e Hans Castorp com uma firmeza excitada, que o fez cerrar os dentes, a fim de sustentar os olhos da mulher –, o guardanapo de Mme. Chauchat começou a deslizar e já estava a ponto de cair ao chão. Estremecendo nervosamente, ela procurou agarrá-lo; mas o jovem também se sobressaltou, levantou-se da cadeira e fez menção de se precipitar cegamente em seu socorro, através do espaço de oito metros que os separava, e contornando uma mesa que estava de permeio, como se fosse uma catástrofe se o guardanapo chegasse a tocar o chão... Ela conseguiu ainda apanhá-lo, a poucos centímetros acima do assoalho. Mas nessa posição oblíqua, agachada, com a ponta do guardanapo entre os dedos e com o rosto anuviado, visivelmente aborrecida por aquele pequeno pânico absurdo que acabava de invadi-la, e do qual ela parecia culpar Hans Castorp – nessa atitude, pois, lançou ao jovem mais um olhar, observou como ele, com as sobrancelhas cerradas, se dispunha a atirar-se numa corrida, e esboçando um sorriso, virou-lhe as costas. Hans Castorp abandonou-se todo à sensação de triunfo que esse incidente originara nele. Mas a reação não se fez esperar, já que, no decorrer dos dois dias seguintes, quer dizer, durante dez refeições, Mme. Chauchat não se voltou para olhar a sala e até renunciou ao seu hábito de “apresentar-se” ao público no momento da entrada. Era duro. Como, porém, essas modificações na sua conduta indubitavelmente se endereçavam a ele, era evidente a existência de uma relação entre ambos, se bem que de forma negativa; e isto era o que lhe bastava. Hans Castorp compreendia bem que Joachim tivera toda a razão ao observar que ali não era fácil travar conhecimento com outras pessoas, com exceção dos comensais. Pois, durante a escassa hora depois do jantar – a única que dava regularmente ocasião a uma espécie de vida social, mas amiúde se reduzia a uns vinte minutos – Mme. Chauchat achava-se sempre em companhia dos membros de seu círculo habitual, o cavalheiro de tórax côncavo, a mocinha humorística, com os cabelos lanosos, o taciturno Dr. Blumenkohl e os jovens de ombros caídos. Todos eles ocupavam o fundo do pequeno salão que parecia reservado à mesa dos “russos distintos”. Acrescia a isso que Joachim nunca deixava de ter pressa de sair do salão, a fim de não abreviar o repouso, como dizia, e talvez também por outros motivos dietéticos que não mencionava, mas que Hans Castorp adivinhava e respeitava. Acabamos de tachar de “desenfreados” os seus desejos, mas qualquer que fosse o seu rumo, o que ele almejava não eram relações sociais com Mme. Chauchat, e no fundo estava de acordo com as circunstâncias que se lhes opunham. As relações vagamente tensas que seus olhares e gestos haviam estabelecido entre ele e a russa não tinham caráter social, não obrigavam a nada e não deviam, de modo algum, obrigar. Era perfeitamente compatível com elas uma vasta série de argumentos reprovadores, da sua parte, e o fato de seu coração palpitar com o pensamento em “Clávdia” não era nem de longe suficiente para abalar no neto de Hans Lorenz Castorp a convicção de que entre ele e aquela estrangeira, que passava a vida separada do marido e sem aliança no dedo, em toda espécie de estações de cura, cuja postura deixava a desejar, que batia estrondosamente as portas, fazia bolinhas de migalhas de pão, e sem dúvida roia as unhas – a convicção, pois, de que entre ele e Mme. Chauchat não podia em realidade – isto é, fora dessas suas relações secretas – haver nada em comum; abismos profundos separavam a sua existência da dela, e ele sentia-se incapaz de enfrentar, ao lado de “Clávdia”, qualquer das autoridades que reconhecia. Hans Castorp era por demais sensato para ter a mínima presunção pessoal; mas uma altivez de natureza mais geral e de origem mais longínqua achava-se gravada na sua fronte e em torno dos olhos um tanto sonolentos, e o resultado dessa altivez era aquele sentimento de superioridade do qual o jovem não podia nem queria desfazer-se em presença do ser e do jeito de Mme. Chauchat. É estranho que esse sentimento de proveniência tão afastada se lhe tenha tornado consciente com uma intensidade particular, e possivelmente pela primeira vez, quando, um belo dia, ouviu Mme. Chauchat falar em alemão. Achava-se ela na sala, depois do fim de uma refeição; estava de pé, com as mãos nos bolsos do suéter, e conversava com outra enferma, provavelmente uma companheira do alpendre de repouso. Ao passar por ela Hans Castorp percebeu os esforços, aliás encantadores, que ela fazia para lidar com o idioma alemão, a sua própria língua materna, como ele de repente notou com um orgulho nunca antes experimentado, embora ao mesmo tempo se sentisse inclinado a sacrificar esse orgulho ao deleite que lhe inspiravam aquelas palavras graciosamente desfiguradas. Numa palavra: na sua relação muda com esse membro negligente da sociedade do Berghof, não via Hans Castorp senão uma aventura de férias, que, perante o tribunal da Razão – da sua própria consciência raciocinadora –, não podia reclamar nenhuma aprovação; antes de tudo, porque Mme. Chauchat estava enferma, lassa, febril e interiormente carcomida, circunstância estreitamente relacionada com o caráter duvidoso de toda a sua existência, e que também contribuía muito para inspirar a Hans Castorp certos sentimentos de distância e de reserva... Não, pretender seriamente entabular com ela relações reais era uma idéia que não lhe ocorria, e quanto àquela relação muda – ela acabaria, bem ou mal, dentro de semana e meia, quando começasse o seu estágio na Casa Tunder & Wilms. Verdade é que por enquanto se acostumara a considerar como o autêntico objetivo e o genuíno conteúdo das suas férias todas essas emoções, tensões, satisfações, decepções, provenientes da sua delicada relação com a enferma; habituara-se a entregar-se totalmente a elas e a deixar depender o seu humor do seu desenvolvimento próspero ou não. As circunstâncias favoreciam o seu culto com a maior benevolência, uma vez que viviam um perto do outro, num espaço limitado, e com um programa do dia preestabelecido e obrigatório para todo mundo. Ainda que Mme. Chauchat morasse num outro andar, o primeiro, e fizesse a cura de repouso no terraço do sótão, o mesmo onde o Capitão Miklosich havia pouco apagara a luz, existia contudo a possibilidade e até a inevitabilidade de constantes encontros, da manhã à noite, pelo simples fato de haver cinco refeições. E isso, tanto quanto a ausência de preocupações e dificuldades, parecia sumamente simpático a Hans Castorp, ainda que lhe causasse certa angústia a sensação de estar preso na mesma cela com a quase-oportunidade favorável. Mesmo assim, ele acelerava ainda um pouco a marcha dos acontecimentos; fazia cálculos e punha o seu cérebro a serviço da causa da sua felicidade. Visto Mme. Chauchat chegar habitualmente atrasada à mesa, Hans Castorp esforçou-se por se atrasar também, a fim de encontrá-la no caminho. Vestia-se com vagar, de modo que não estava pronto quando Joachim vinha buscá-lo, pedia ao primo que descesse sem ele e dizia que o seguiria imediatamente. Dirigido pelo instinto peculiar ao seu estado de alma, aguardava determinado momento que lhe parecia indicado. Então descia correndo ao primeiro piso; a partir dali, não continuava a servir-se da mesma escada pela qual chegara, mas percorria quase toda a extensão do corredor até o patamar da outra escada, passando por uma porta que havia muito conhecia, a do quarto número 7. Durante esse caminho, ao longo do corredor, de uma escada à outra, cada passo oferecia, por assim dizer, uma probabilidade, pois a qualquer instante podia abrir-se a referida porta, e repetidas vezes isto se deu de fato. Estrondosamente fechava-se ela atrás de Mme. Chauchat, que, por sua vez, saía silenciosamente, e silenciosamente se encaminhava para a escada... E logo descia diante dele, segurando a trança com a mão, ou Hans Castorp ia à sua frente, sentindo-lhe o olhar na nuca e experimentando nos membros como que uma cãibra e nas costas a sensação de um formigueiro. Mas, no desejo de fingir que lhe ignorava a presença e vivia uma vida individual vigorosamente independente, enterrava as mãos nos bolsos do paletó, encolhia os ombros ou pigarreava sem necessidade, batendo no peito com o punho – tudo isso para patentear a sua indiferença. Em duas ocasiões, levou a manha ainda mais longe. Quando já se achava sentado à mesa, disse, entre perplexo e irritado, apalpando os bolsos com as mãos: – Ora essa, esqueci o meu lenço! Preciso subir outra vez. – E subiu, para que ele e “Clávdia” se encontrassem, o que constituiria um acontecimento diferente, mais perigoso, cheio de atrativos mais picantes do que ir à frente ou atrás dela. A primeira vez que realizou essa façanha, Mme. Chauchat mediu-o com os olhos, de cima a baixo, a certa distância, e de modo bastante atrevido, livre de qualquer acanhamento; mas quando foram se aproximando, desviou o rosto com displicência e passou por ele de tal maneira, que ao resultado desse episódio não merecia ser atribuído grande valor. Da segunda vez, porém, encarou-o, e não só de longe; encarou-o durante todo o tempo com ar firme e até um pouco sombrio, e quando seus caminhos se encontraram, chegou mesmo a virar a cabeça para ele. O pobre Hans Castorp sentiu-se penetrado até a medula. Por outro lado não convém lastimá-lo, já que fora ele próprio que quisera tudo isso. Esse encontro causou-lhe, todavia, um veemente abalo, enquanto ocorria e sobretudo posteriormente; pois, quando tudo já pertencia ao passado, foi que percebeu com precisão o que se dera. Nunca antes tivera o rosto de Mme. Chauchat tão perto dele, tão nitidamente distinto em todos os seus pormenores. Pudera divisar os cabelinhos curtos que se desprendiam do emaranhado da trança loura, de um tom metálico, arruivado, e que estava simplesmente enrolada em volta da cabeça. Houvera apenas uns poucos palmos de distância entre o seu próprio rosto e o dela, rosto de feições esquisitas e todavia tão familiares, que lhe agradavam como mais nada no mundo; feições estranhas e cheias de caráter – pois só o estranho nos parece ter caráter –, de um exotismo nórdico misterioso, que induzia à análise, visto suas particularidades e proporções não serem fáceis de determinar. A característica essencial eram, sem dúvida, as maçãs salientes, altas e acentuadas que comprimiam os olhos descomunalmente distantes entre si e situados quase à flor do rosto; até lhes impunham uma certa obliqüidade e ao mesmo tempo originavam o suave côncavo das faces, que, por sua vez, e indiretamente, causava a exuberância dos lábios um tanto grossos. Mas antes de tudo havia os próprios olhos – esses olhos quirguizes, de corte estreito e, conforme a opinião de Hans Castorp, simplesmente mágico, olhos cuja cor cambiava entre azul e cinzento, qual a de uma cordilheira longínqua, e que às vezes, por ocasião de certos relances para o lado, que não se fixavam em nada, eram capazes de se envolver, languidamente, em trevas misteriosas – os olhos de Clávdia, afinal, que o haviam contemplado atrevida e um tanto sombriamente, de muito perto, e que, na sua posição, cor e expressão, se pareciam de modo surpreendente e mesmo assustador com os de Pribislav Hippe. “Pareciam” nem é sequer a expressão adequada; não!, eram os mesmos olhos, e também a largura da parte superior do rosto, o nariz levemente achatado, tudo, até a brancura rosada da pele e a tez sadia, que em Mme. Chauchat apenas dava a ilusão de saúde, e, como nos casos dos demais pensionistas, não passava de um resultado superficial do repouso ao ar livre – tudo isso era tal qual o rosto de Pribislav, e o olhar com que este o contemplava no pátio da escola, quando um passava perto do outro, tampouco era diferente. Era inquietante sob todos os aspectos. Hans Castorp estava entusiasmado pelo encontro que acabava de ter, e ao mesmo tempo sentia qualquer coisa como um temor nascente, uma angústia semelhante àquela que lhe causava a sensação de estar preso na mesma cela com a quaseoportunidade favorável: também o fato de Pribislav, havia muito olvidado, vir-lhe ao encontro ali em cima, na pessoa de Mme. Chauchat, fitando-o com aqueles olhos quirguizes, também isso fazia com que Hans Castorp se sentisse preso em companhia do inevitável e do irremovível – irremovível num sentido venturoso e atemorizador. Era um fato auspicioso, mas ao mesmo tempo fatídico, apavorante mesmo, e o jovem Hans Castorp sentiu algo como uma necessidade de socorro. No seu íntimo operavam-se movimentos vagos e instintivos que poderíamos qualificar de olhares, tateios e gestos em busca de apoio, conselho e ajuda. Sucessivamente, pensou em diversas pessoas, das quais, talvez, lhe fosse útil recordar-se. Havia ali, a seu lado, Joachim, o bondoso e honrado Joachim, cujos olhos, no decorrer desses últimos meses, tinham assumido uma expressão melancólica, e que às vezes encolhia os ombros daquele jeito desdenhoso e violento que em outros tempos não lhe fora peculiar; Joachim, com o “Joãozinho Azul” no bolso, para empregarmos o termo com que esse recipiente era designado pela Srª. Stöhr, cuja fisionomia obstinadamente descarada nunca deixava de causar horror a Hans Castorp... Havia, pois, o brioso Joachim, atormentando e maçando o Dr. Behrens, a fim de obter a licença de partir e de fazer o almejado serviço na “planície”, na “baixada”, como os que viviam aqui em cima chamavam, com leve mas nítido desprezo, o mundo das pessoas sadias. Para que chegasse mais rapidamente ali e poupasse um pouquinho daquele tempo que aqui se gastava tão generosamente, dedicava-se com o máximo rigor à cura regulamentada; faziao para recuperar a saúde, sem dúvida, mas também, como Hans Castorp adivinhava de vez em quando, por amor ao próprio regime, que, afinal de contas, era um serviço como qualquer outro, e cumprir esse dever era cumprir seu dever. Por isso acontecia todas as noites que Joachim, ao cabo de um quarto de hora, já insistia com ele em que abandonassem a reunião dos pensionistas e se recolhessem ao repouso noturno, e isso tinha as suas vantagens, pois a pontualidade militar do primo acudia ao espírito civil de Hans Castorp, que sem ela talvez preferisse demorar-se por muito tempo a contemplar, sem proveito nem esperança, a saleta ocupada pelos russos. No entanto, o fato de Joachim ter tanta pressa de abreviar a vida social no salão era também devido a outro motivo de natureza secreta, mas que Hans Castorp compreendia perfeitamente, desde que conhecia tão bem aquela palidez terrosa de Joachim e o modo particularmente doloroso com que a boca do primo se crispava em determinados momentos. Ora, Marusja, a sempre risonha Marusja com o pequeno rubi no formoso dedo, com o perfume de flor de laranjeira e com os seios opulentos, mas carcomidos, também costumava estar presente às reuniões sociais, e Hans Castorp percebeu que essa circunstância afugentava Joachim, precisamente porque o atraía em excesso, de uma forma pavorosa. Joachim também se sentia “preso numa cela”, e de modo ainda mais opressivo e angustiante do que ele próprio, pois Marusja, com seu lencinho perfumado, não comia cinco vezes por dia à mesma mesa que eles? Em todo caso achava-se Joachim por demais ocupado consigo mesmo para que a sua existência pudesse significar uma ajuda íntima para Hans Castorp. Sua fuga da sala de reuniões, que se repetia diariamente, sem dúvida o honrava, mas o seu efeito era pouco tranqüilizador para Hans Castorp, que por momentos tinha a impressão de descobrir aspectos perigosos no bom exemplo que lhe oferecia Joachim quanto ao cumprimento rigoroso dos deveres do regime, e nas instruções de perito que o primo lhe dava. Não fazia ainda nem sequer duas semanas que Hans Castorp estava no Berghof, mas parecia-lhe muito mais tempo, e o programa do dia, ali em cima, esse programa que ele via Joachim observar com tanto zelo piedoso, começara a adquirir a seus próprios olhos um quê de intangibilidade sagrada e natural, tanto assim que a vida lá de baixo, na baixada, vista assim de cima, se lhe afigurava quase anormal e errada. Já chegara a um alto grau de habilidade no manejo dos dois cobertores, mediante os quais a gente, nos dias frios, se transformava, por ocasião do repouso, num pacote simétrico, parecido com uma verdadeira múmia; pouco faltava para que igualasse a destreza de Joachim na arte de envolver-se segundo as regras; quase que se admirava ao pensar que lá embaixo, na planície, ninguém sabia dessa arte. Pois é, isso era estranho, mas ao mesmo tempo Hans Castorp sentia estranheza diante do fato de que assim lhe parecia, e novamente nascia nele o desassossego que o fazia perscrutar o seu íntimo em busca de um conselho ou de um apoio. E ele pensou no Dr. Behrens e no seu conselho, oferecido sine pecunia, de viver exatamente como os pacientes e até de tomar a temperatura; lembrou-se também de Settembrini, que desatara a rir às gargalhadas ao ficar sabendo desse conselho, e depois citara qualquer coisa da Flauta mágica. Sim, nesses dois também pensou a título de experiência, para ver se essa recordação lhe trazia algum proveito. O Dr. Behrens era um homem de cabelos brancos, poderia ser o pai de Hans Castorp. Além disso, era o diretor do estabelecimento, a mais alta autoridade que existia por ali, e era justamente de autoridade paterna que o coração do jovem Hans Castorp, na sua inquietude, sentia necessidade. E todavia, por mais que tentasse, não conseguia recordar-se do conselheiro áulico com confiança filial. O médico enterrara ali a esposa, sofrendo um golpe que passageiramente o tornara um tanto esquisito. Depois permanecera em Davos, porque o túmulo o retinha, e também por estar ele mesmo atacado pela enfermidade. Quem sabia se isso já passara? Gozava o Dr. Behrens de boa saúde, e estava sinceramente decidido a curar as pessoas para que pudessem sem demora regressar à planície e voltar ao serviço? Suas faces estavam sempre azuis, e ele dava a impressão de estar febril. Mas talvez fosse isso apenas uma ilusão, e a cor do seu rosto se devesse ao ar das alturas. O próprio Hans Castorp experimentava todos os dias um ardor seco, sem que tivesse febre, ao menos pelo que se podia julgar sem termômetro. Mas, quando se ouvia o conselheiro falar, tinha-se, às vezes, novamente a impressão de ele estar com temperatura elevada; alguma coisa não parecia certa na sua maneira de expressar-se; embora as suas palavras soassem enérgicas, corretas e joviais, havia nelas qualquer coisa singular, exaltada, sobretudo para quem observava ao mesmo tempo as faces azuis e os olhos lacrimosos que faziam acreditar que ele ainda chorava a mulher. Hans Castorp lembrou-se do que Settembrini dissera da “melancolia” e dos “vícios” do conselheiro áulico, a quem chamara de “alma atarantada”. Nisso podia haver malícia ou leviandade, e contudo Hans Castorp achava muito pouco reconfortante a recordação do Dr. Behrens. Mas havia ainda esse Settembrini, o oposicionista doidivanas e “homo humanus”, como se definia a si próprio, o homem que o censurara com abundantes palavras enfáticas, porque qualificara a combinação de estupidez e enfermidade, de contradição e de dilema para o sentimento humano. Que tal era ele? Era proveitoso ocupar-se com esse homem? Hans Castorp sabia ainda muito bem o quanto, em diversos daqueles sonhos excessivamente agitados que aqui em cima lhe enchiam as noites, exasperara-se por causa do sorriso fino e seco do italiano, que se esboçava sob a bonita curva do bigode; recordava-se de o ter tratado de tocador de realejo e de haver procurado afastá-lo do lugar, porque lhe parecia demais ali. Mas isso se passara num sonho, e Hans Castorp acordado era diferente, menos livre de inibições do que quando sonhava. Em estado de vigília, tudo isso podia ser de outro modo; talvez fizesse bem tentando conformar-se intimamente com essa maneira de ser, completamente nova para ele, que representava Settembrini; quem sabia se não eram dignas de ser estudadas sua rebeldia e sua crítica, posto fossem choramingueiras e gárrulas? O próprio Settembrini chamara-se de pedagogo. Evidentemente desejava exercer influência, e o jovem Hans Castorp anelava por alguém que o influenciasse. Naturalmente não era preciso levar a docilidade a ponto de se deixar induzir por Settembrini a arrumar as malas e a partir antes do tempo, conforme a sugestão que este lhe dera recentemente com toda a seriedade. Placet experiri, pensou sorrindo: pois, para isso, sabia bastante latim, ainda que não se pudesse qualificar de homo humanus. Assim, não perdia Settembrini de vista e escutava com gosto, embora com atenção crítica, tudo quanto o italiano produzia no decorrer das entrevistas que se realizavam ocasionalmente, durante os comedidos passeios prescritos pelo regime, até o banco na encosta da montanha ou até Davos-Platz. Havia também outras oportunidades para fazê-lo, quando Settembrini, após a refeição, era o primeiro a levantar-se e, com as suas calças xadrez e com um palito entre os dentes, atravessava indolentemente a sala, a fim de fazer, em completo desacordo com o regulamento e os costumes, uma visitinha à mesa dos dois primos. Postava-se então diante deles, numa atitude graciosa, com os pés cruzados, e palestrava gesticulando com o palito. Ou talvez puxasse uma cadeira, para instalar-se num canto entre Hans Castorp e a professora, ou então entre o jovem e Miss Robinson, e para observar como os nove comensais comiam a sobremesa à qual ele mesmo parecia ter renunciado. – Peço que me admitam nesta roda ilustre – dizia, apertando as mãos dos primos e abrangendo as demais pessoas numa única reverência. – Esse cervejeiro aí... para nem mencionar o aspecto desolador da senhora cervejeira... Mas esse Sr. Magnus acaba de fazer uma conferência etnopsicológica. Querem saber pormenores? “Nossa querida Alemanha é um grande quartel; não há dúvida. Mas ela encerra muita energia, e eu não trocaria as nossas sólidas virtudes pela cortesia dos outros. Que me adianta a cortesia, se me enganam pela frente e por trás?” E outras coisinhas nesse estilo, que simplesmente não agüento mais. Além disso, tenho à minha frente uma pobre criatura com rosas de cemitério nas faces, uma solteirona da Transilvânia, que não pára de falar de seu “cunhado”, um homem do qual ninguém sabe nada nem quer saber. Numa palavra, não agüentei mais. Preferi bater em retirada. – Pois é, em debandada, o senhor se pôs a fugir – disse a Srª. Stöhr. – Posso imaginar. – Exatamente! – exclamou Settembrini. – Fugi! Estou vendo que aqui sopram outros ventos. Não há dúvida, cheguei a bom porto. Sim, senhora, em debandada... Ah, se todos soubessem cunhar frases assim!... Posso informar-me dos progressos da saúde da prezada senhora? Era horroroso observar a afetação da Srª. Stöhr. – Ah, meu Deus! – disse ela. – É sempre a mesma coisa; o senhor sabe muito bem. Damos dois passos para a frente e três para trás. Cada vez que a gente acaba de cumprir cinco meses da pena, vem o velho acrescentar mais meio ano. Ai de mim, são verdadeiros suplícios de Tântalo! Vai-se empurrando, empurrando, e quando se pensa que a pedra está em cima... – Ah, como a senhora é gentil! Concede a esse coitado do Tântalo uma pequena mudança de ocupação. Para variar, deixa-o rolar o famoso bloco de mármore. É o que se pode chamar de genuína bondade da alma... Bem, talvez me possa explicar uma coisa: passam-se histórias misteriosas em torno da senhora. Já ouvi falar de sósias, de corpos astrais, mas nunca acreditei nessas coisas. No entanto, o caso da senhora me faz duvidar... – Parece-me que o senhor quer se divertir à minha custa. – Nem um pouquinho. Não penso nisso. A senhora me tranqüilize, antes de mais nada, quanto a certas facetas obscuras da sua existência e logo poderemos pensar em diversões. Ontem à noite, entre as nove e meia e dez horas, saí ao jardim, para fazer um pouco de exercício. Meus olhos vagaram ao longo da fachada, e notei que a lampadazinha elétrica na sacada da senhora luzia através da escuridão. Concluí que a senhora estava observando o repouso, como ordenam o dever, a razão e o regulamento. “Ali jaz a nossa bela doente”, disse eu de mim para mim, “obedecendo fielmente às prescrições, para que possa o mais depressa possível voltar aos braços do Sr. Stöhr.” E, faz poucos minutos, que ouço? Que àquela mesma hora e senhora foi vista no cinematógrafo – o Sr. Settembrini pronunciava essa palavra à italiana, com o acento na quarta sílaba – no cinematógrafo da colunata do estabelecimento termal, e depois na confeitaria, com vinho doce e merengues, e dizem... A Srª. Stöhr retorcia os ombros de tanto rir; afogava risinhos no guardanapo; dava cotoveladas em Joachim Ziemssen e no taciturno Dr. Blumenkohl; piscava um olho de modo entre astucioso e petulante, e demonstrava de todas as formas possíveis a mais idiota satisfação consigo própria. Para esquivar-se do controle, costumava colocar na sacada a lampadazinha acesa. Então fugia em busca de algumas distrações no bairro inglês. Enquanto isso, seu marido, em Cannstatt, estava à sua espera. Por outro lado, não era ela a única paciente que tinha esse hábito. – ... e dizem – continuou Settembrini – que a senhora saboreava esses merengues em companhia... de quem? Em companhia do Capitão Miklosich, de Bucareste. Há quem afirme que ele usa espartilho, mas, meu Deus, que importância pode ter isto, no nosso caso? Por amor de Deus, madame, onde estava a senhora? É acaso capaz de se desdobrar? Sem dúvida, achava-se dormindo, e enquanto a parte terrestre da sua existência se entregava ao repouso solitário, a parte espiritual espairecia em companhia do Capitão Miklosich e de outras coisas doces... A Srª. Stöhr requebrava-se e gesticulava como se alguém lhe fizesse cócegas. – Não se sabe se convém desejar o contrário – acrescentou Settembrini –, quer dizer, que a senhora tivesse saboreado sozinha aquelas coisas doces e feito o repouso com a assistência do Capitão Miklosich... – Hi, hi, hi... – Conhecem os senhores a história de anteontem? – perguntou o italiano, sem transição. – Alguém foi raptado, levado pelo Diabo, ou mais precisamente pela senhora sua mãe, uma dama muito enérgica, que me agradou bastante. Trata-se do jovem Schneermann, Anton Schneermann, que tinha o seu lugar ali na mesa da Srta. Kleefeld. Como os senhores vêem, está vazio. Será preenchido daqui a pouco; não me preocupo com esse problema. Mas Anton desapareceu nas asas da tempestade, num abrir e fechar de olhos e bem de repente. Achava-se aqui havia um ano e meio, com as suas dezesseis primaveras, e justamente agora acabavam de impor-lhe mais seis meses. E que aconteceu então? Não sei quem teria dado certas informações à Srª. Schneermann. Em todo caso, ela ficou sabendo das relações de seu filhinho com Baco et cceteris. Sem aviso prévio entra em cena uma matrona, três palmos mais alta do que eu, encanecida e furiosa. Administra, sem dizer nada, uma porção de bofetadas ao Sr. Anton, segura-o pelo pescoço e mete-o no trem. “Se ele deve ir a pique”, grita ela, “pode muito bem fazê-lo na planície.” E lá se vão... Riram-se todos os que podiam ouvir o Sr. Settembrini, pois contara a história com muita graça. Manifestou-se que o italiano andava bem informado sobre as últimas notícias, ainda que considerasse com crítico sarcasmo a vida coletiva dali de cima. Estava a par de tudo. Conhecia os nomes e grande parte do passado dos recém-chegados. Relatou que ontem Fulano ou Fulana sofrerá uma ressecção de costelas. Sabia de fonte fidedigna que a partir do outono próximo já não seriam admitidos doentes que tivessem temperaturas acima de 38,5°. Segundo a sua afirmação, dera-se à noite passada o seguinte incidente: o cachorrinho da Srª. Kapatsoulias, de Mitilene, sentara-se sobre o botão do sinal luminoso no criado-mudo da sua dona. Desse fato haviam resultado muitas correrias e grande tumulto, tanto mais que a Srª. Kapatsoulias não fora encontrada sozinha, mas sim em companhia do assessor Düstmund, de Friedrichshagen. Nem sequer o Dr. Blumenkohl pôde deixar de sorrir ao escutar essa história. A bela Marusja esteve a ponto de se asfixiar com o seu lencinho perfumado de flor de laranjeira, e a Srª. Stöhr soltou uns gritos estridentes, comprimindo o seio esquerdo com ambas as mãos. Mas, aos dois primos, Lodovico Settembrini falava bem de si próprio e da sua origem, quer nos passeios, quer por ocasião das reuniões noturnas ou depois do almoço, quando a maioria dos pensionistas já saíra da sala e os três cavalheiros permaneciam ainda sentados por alguns instantes à extremidade da mesa, enquanto as criadas tiravam os pratos e Hans Castorp fumava o Maria Mancini, cujo sabor, no decorrer da terceira semana, tornara a agradar-lhe um pouco. Com atenção crítica e freqüentemente com estranheza, embora disposto a aceitar a influência do italiano, escutava o jovem essas palavras que lhe abriam um mundo singular, completamente novo. Settembrini falava de seu avô, que fora advogado em Milão, mas antes de tudo grande patriota, uma mistura de agitador público, orador e publicista. Também ele pertencera à oposição, tal qual o neto, mas praticara a coisa num estilo mais elevado, mais audacioso. Ao passo que Lodovico, como ele mesmo observava com amargura, via-se reduzido a escarnecer a vida e a condição do pessoal do Sanatório Internacional Berghof, a castigá-las com críticas zombeteiras e protestar contra elas em nome de uma humanidade bela e cheia de atividade, dera o avô muito que fazer aos governos, conspirando contra a Áustria e a Santa Aliança, que naquela época haviam oprimido a sua despedaçada pátria, reduzindo-a a uma pesada servidão. Fora ele membro fervoroso de certas sociedades secretas, difundidas na Itália – um carbonário, como explicou Settembrini, abaixando de repente a voz, como se ainda fosse perigoso falar dessas coisas. Numa palavra, segundo os relatos do neto, afigurava-se esse Giuseppe Settembrini aos dois ouvintes como um indivíduo sombrio, apaixonado, insurgente, um rebelde e um conjurado. Não obstante o respeito que os primos, por motivos de cortesia, procuravam sentir, não conseguiram apagar por completo das suas feições uma expressão de antipatia desconfiada e até de repugnância. Verdade é que se tratava de um caso especial: o que ouviam passara-se numa época remota, fazia quase cem anos, pertencia à história, e do ensino de história, sobretudo da antiga, era-lhes teoricamente familiar a mentalidade em questão, o fenômeno do apego desesperado à liberdade e do ódio inflexível à tirania, se bem que nunca esperassem entrar em contato tão direto com esse espírito. Além disso houvera, como ficaram sabendo, na natureza revolucionária e conspiradora desse avô, um grande amor à pátria, que ele desejava ver livre e unida. Com efeito, a sua atividade sediciosa fora o fruto e a emanação desse sentimento respeitável, e por estranha que parecesse a cada um dos primos essa mistura de rebeldia e patriotismo – já que estavam acostumados a identificar o espírito patriótico com um senso de ordem conservador –, tinham de admitir, no seu íntimo, que, sob as circunstâncias especiais daquela época e daquele país, podia ter havido identidade entre insurreição e dever cívico, de um lado, e do outro entre comedimento leal e indiferença preguiçosa, quanto à causa pública. Mas o avô de Settembrini não fora somente um patriota italiano, senão também um concidadão e um irmão em armas de todos os povos sedentos de liberdade. Pois, após o malogro de certa tentativa de golpe de mão e de golpe de Estado, empreendida em Turim, e da qual ele participara com palavras e ações, escapando só por milagre aos esbirros do Príncipe Metternich, empregara seus anos de desterro a lutar e derramar seu sangue, ora na Espanha, em prol da Constituição, ora na Grécia, para a independência do povo helênico. Ali é que viera ao mundo o pai de Settembrini – talvez fosse por isso que ele chegara a ser um grande humanista e adorador da Antigüidade clássica. Nascera, aliás, de mãe de sangue alemão, pois Giuseppe casara-se com uma moça suíça e levara-a consigo em todas as suas andanças ulteriores. Mais tarde, depois de dez anos de exílio, pudera regressar à sua terra. Exercera em Milão a profissão de advogado, mas absolutamente não renunciara ao direito de concitar a nação pela palavra falada e escrita, em versos e em prosa, à liberdade e à instauração da república unida, de esboçar, com um brio passional e imperioso, programas revolucionários, e de proclamar, num estilo claro, a unificação dos povos libertados em prol da felicidade universal. Um pormenor mencionado por Settembrini, o neto, impressionou sobremaneira o jovem Hans Castorp: durante toda a sua vida, o avô Giuseppe mostrara-se aos seus compatriotas vestido de preto, alegando que usava luto pela Itália, sua pátria, que definhava na miséria e na escravidão. Ao ouvir isso, Hans Castorp voltou a fazer uma comparação que já fizera diversas vezes mentalmente: lembrou-se de seu próprio avô, que também, durante todo o tempo em que o neto o conhecera, sempre usara roupas pretas, mas com um espírito totalmente diferente do que animara esse outro avô; recordou os trajes fora de moda, mediante os quais a natureza genuína de Hans Lorenz Castorp, aquela que pertencia a uma época remota, se adaptara ao presente, a título provisório e com acentuação da antipatia que os tempos modernos lhe inspiravam, até o dia em que, no seu leito de morte, assumira solenemente a sua forma verdadeira e própria, com a golilha pregueada do tamanho de um prato. Havia deveras uma profunda diferença na maneira de ser dos dois avôs. Hans Castorp refletia sobre ela, enquanto o seu olhar se fixava no vazio, e meneava a cabeça de uma forma cautelosa que tanto podia significar um sinal de admiração por Giuseppe Settembrini quanto uma manifestação de surpresa e desgosto. Por outro lado, esforçava-se lealmente para não condenar o que lhe parecia estranho, procurando não ir além da comparação e do exame dos fatos. Diante dele, na sala, surgia o rosto comprido do velho Hans Lorenz, que, pensativo, se inclinava sobre a concavidade redonda, levemente dourada, da pia batismal, a relíquia da família na sua progressão imutável; e a boca do avô formara as sílabas “bis, tris, tetra”, esses sons surdos e piedosos que evocavam a lembrança de lugares onde as pessoas avançavam num andar reverente, cadenciado. E ao mesmo tempo via Hans Castorp como Giuseppe Settembrini, segurando a bandeira tricolor numa das mãos e brandindo um sabre na outra, erguia, num juramento sagrado, os olhos negros ao céu e se lançava à frente de um grupo de defensores da liberdade contra a falange do despotismo. Ambas essas atitudes tinham, sem dúvida, sua beleza e seu valor, pensava Hans Castorp, empenhando-se em ser justo, tanto mais que, pessoalmente, ou com parte do seu ser, se sentia um pouco parcial. Pois o avô de Settembrini combatera com o fim de obter direitos políticos, ao passo que a seu próprio avô ou, pelo menos, aos antepassados dele, haviam pertencido, originariamente, todos os direitos, e fora a canalha que lhos arrancara no decorrer de quatro séculos, por meio da violência e de chavões... Eis que um e outro tinham andado vestidos de preto, o avô do norte e o do sul, cada qual com o objetivo de interpor uma rigorosa distância entre si mesmo e o malvado presente. Mas um agira assim por piedade, em homenagem ao passado e à morte, para os quais pendia a sua natureza; o outro, ao contrário, por rebeldia, a fim de honrar um progresso inimigo da piedade. “Certamente, isto são dois mundos, dois pontos cardeais”, disse Hans Castorp de si para si, e enquanto o Sr. Settembrini prosseguia contando, o jovem viu-se, por assim dizer, colocado entre eles, lançando olhares examinadores ora a um ora a outro. Parecia-lhe então que uma coisa semelhante já lhe ocorrera antes. Recordou um solitário passeio de barca, ao crepúsculo, num lago de Holstein, passeio que fizera em fins de verão, alguns anos atrás. Fora perto das sete horas; o sol já se pusera e a lua quase cheia se elevara a leste, por cima das margens do lago cobertas de arbustos. E durante dez minutos, enquanto Hans Castorp sulcava, remando, as águas silenciosas, reinara uma constelação perturbadora, fantástica qual um sonho. A oeste resplandecera, como em pleno dia, uma luz vítrea, prosaica, decidida; mas bastara voltar a cabeça para deparar com uma paisagem de luar, igualmente típica, entremeada de brumas úmidas e cheia de mágico encanto, Esse contraste esquisito durara um quarto de hora, pouco mais ou menos, antes de se completar o triunfo da noite e da lua. Com um pasmo alegre, os olhos deslumbrados e confundidos de Hans Castorp haviam passado de uma iluminação e de uma paisagem à outra, do dia para a noite e da noite para o dia. E nesse instante, ao comparar os dois avôs, não pôde deixar de se lembrar daquela impressão. Fosse como fosse – continuou ele na marcha dos seus pensamentos –, era impossível que o advogado Settembrini, ao levar uma vida dessas e em face de tão vastas atividades, houvesse chegado a ser um grande jurisconsulto. Mas, segundo as afirmações plausíveis de seu neto, fora o princípio geral da justiça o que o animara desde a infância até o fim da vida. Hans Castorp, embora não tivesse, nesse momento particular, a cabeça sobremodo lúcida e sentisse o seu organismo ocupado com a digestão dos seis pratos de uma refeição do Berghof, procurou compreender o que Settembrini queria dizer ao chamar esse princípio de “fonte da liberdade e do progresso”. Essa última palavra significara para Hans Castorp, até então, qualquer coisa parecida com o desenvolvimento dos guindastes no decorrer do século XIX. Agora verificava que o Sr. Settembrini não desprezava essas coisas, seguindo nesse ponto, evidentemente, o exemplo do avô. O italiano rendia à pátria dos seus dois ouvintes uma grande homenagem em vista do fato de terem sido inventados ali a pólvora, que fizera ferro-velho das armaduras do feudalismo, e o prelo, que possibilitara a difusão democrática das idéias, quer dizer, a difusão das idéias democráticas. Quanto a isso, elogiava a Alemanha, e também pelo que se referia ao passado dela, se bem que lhe parecesse de justiça conceder a palma ao seu próprio país, uma vez que este fora o primeiro a desfraldar a bandeira do esclarecimento, da cultura e da liberdade, enquanto os demais povos ainda vegetavam presos na superstição e na servidão. Porém, se Settembrini tratava a técnica e o tráfego – o campo de trabalho propriamente dito de Hans Castorp – com tanta reverência como já demonstrara por ocasião do primeiro encontro com os primos, junto ao banco na encosta da montanha, aparentemente não o fazia por amor a essas forças, senão por causa da importância que elas tinham para o aperfeiçoamento moral dos homens, e que ele constatava com satisfação. A técnica – expôs Settembrini – subjugava cada vez mais a natureza, pelas comunicações que criava, pelas redes de estradas e telégrafos que construía, e pelas vitórias que conquistava sobre as diferenças de clima; dessa forma apresentava-se como o meio mais seguro para aproximar os povos, para favorecer o contato entre eles, para levá-los a acordos humanos, para destruir os preconceitos existentes, e, finalmente, para estabelecer a união universal. A raça humana tinha a sua origem na escuridão, no medo e no ódio, mas avançava e subia por um caminho brilhante, rumo a um estado terminal de simpatia, luminosidade íntima, bondade e felicidade. O veículo mais apropriado para transpor esse caminho era a técnica, declarou Settembrini. Mas, ao falar assim, associava, num abrir e fechar de olhos, categorias que Hans Castorp até então imaginara separadas por um largo abismo. “Técnica e moral”, disse o italiano, e a seguir entrou mesmo a falar do Salvador cristão, que fora o primeiro a revelar o princípio da igualdade e da união; depois, o prelo viera favorecer poderosamente a divulgação desse princípio, e por fim a grande Revolução Francesa fizera dele uma lei. Por razões pouco definíveis, mas muito reais, parecia isso sumamente confuso ao jovem Hans Castorp, se bem que o Sr. Settembrini o formulasse em palavras tão claras e tão belas. Uma vez – contou o italiano – uma única vez na vida, ao começo da sua maturidade, o avô sentira-se plenamente feliz: foi ao receber a notícia da Revolução de Julho em Paris. Em altos brados e publicamente proclamara então que todos os homens, um dia, equiparariam aqueles três dias de Paris aos seis dias da Criação. Nesse instante, Hans Castorp não pôde evitar bater com o punho na mesa e experimentar uma surpresa extraordinária. Achava um pouco forte colocar os três dias de verão do ano de 1830, durante os quais os parisienses haviam dado a si próprios uma nova Constituição, ao lado dos seis dias no decorrer dos quais Deus, Nosso Senhor, separara a terra firme da água e criara as luzes eternas do firmamento, bem como as flores, as árvores, as aves, os peixes e tudo quanto vive; e ainda mais tarde, ao conversar a sós com seu primo Joachim, disse expressamente que essa afirmação lhe parecia muito forte e até mesmo chocante. Mas estava disposto a deixar-se influenciar, no sentido do provérbio segundo o qual era agradável experimentar. Assim refreou o protesto que sua piedade e seu bom gosto faziam contra a concepção settembriniana das coisas, ponderando que aquilo que se lhe afigurava blasfêmia podia ser qualificado de audácia, e que as aparentes banalidades talvez tivessem sido manifestações de generosidade e nobre entusiasmo, pelo menos naquele país e naquela época, como, por exemplo, quando o avô de Settembrini chamara as barricadas “o trono do povo” e declarara que cumpria “consagrar a lança do cidadão sobre o altar da humanidade”. Hans Castorp sabia por que escutava os discursos do Sr. Settembrini; não que fosse capaz de explicar os motivos com clareza, mas sabia-os. Havia entre eles uma espécie de senso do dever, além daquela ausência de responsabilidade, peculiar às férias de um viageiro e visitante, que não se fecha a nenhuma impressão e deixa as coisas se aproximarem, na certeza de que amanhã ou depois abrirá as asas e voltará à ordem habitual. Era, por conseguinte, como que uma voz da consciência, e para ser exato, o preceito e a exortação da sua consciência pesada, o que o induzia a prestar atenção ao italiano -sentado de pernas cruzadas, a fumar o Maria Mancini, ou subindo com ele e o primo pela estrada que conduzia do bairro inglês ao Berghof. Segundo as digressões de Settembrini, havia dois princípios que disputavam a.posse do mundo: a força e o direito, a tirania e a liberdade, a superstição e a ciência, o princípio da estagnação e o do movimento efervescente, do progresso. Podia-se chamar a um o princípio asiático e ao outro o europeu, visto ser a Europa a terra da rebelião, da crítica e da atividade transformadora, ao passo que o continente oriental encarnava a imobilidade, o repouso inerte. Não existia a menor dúvida quanto à questão de saber qual das duas forças terminaria por triunfar; só poderia ser a da luz, a do aperfeiçoamento guiado pela razão. Pois a humanidade arrastava mais e mais povos pelo seu caminho brilhante; ganhava cada vez mais terreno na própria Europa e estava a ponto de penetrar na Ásia. No entanto, faltava ainda muito para que a sua vitória fosse completa, e grandes, magnânimos esforços eram exigidos dos homens de boa vontade, dos que haviam recebido a luz, até que raiasse o dia em que desmoronassem as monarquias e as religiões também naqueles países que na verdade nunca tinham gozado o seu século XVIII nem seu ano de 1789. Mas esse dia haveria de chegar, disse Settembrini, esboçando um fino sorriso sob a curva do bigode. Se não chegasse pelos pés das pombas, chegaria sobre as asas das águias. Nasceria como a aurora da confraternização geral dos povos sob o signo da razão, da ciência e do direito. Acarretaria a santa aliança da democracia dos cidadãos, em esplêndido contraste com aquela três vezes infame aliança dos príncipes e dos gabinetes, cujo inimigo mortal foi o avô Giuseppe; numa palavra, a República Universal. Mas, para alcançar esse objetivo final era, antes de mais nada, necessário ferir o princípio asiático, o princípio servil da inércia, no centro e no nervo vital da sua resistência, que era Viena. Tratava-se de vencer, de aniquilar a Áustria, primeiro para tirar desforra das suas façanhas do passado, e depois para encaminhar o reino da justiça e da felicidade sobre a terra. Esse último rumo e essa conclusão das altissonantes expansões de Settembrini já não interessavam a Hans Castorp. Causavam-lhe desagrado e até o chocavam porque via neles a expressão de um rancor pessoal ou nacional, cada vez que se repetiam. No que tocava a Joachim Ziemssen – quando ele ouvia o italiano discorrer dessa forma, voltava mesmo a cabeça, de cenho carregado, e cessava de escutar; às vezes também dizia que estava na hora do repouso ou tentava mudar de assunto. Hans Castorp tampouco se sentia obrigado a prestar atenção a idéias tão extravagantes, que, evidentemente, ultrapassavam os limites das influências que a voz da sua consciência lhe aconselhava admitir, a título de experiência; e essa voz era todavia tão forte que ele próprio se punha a pedir ao Sr. Settembrini lhe explanasse as suas idéias, sempre que o italiano ia sentar-se à mesa dos primos ou os acompanhava durante um passeio. Essas idéias, esses ideais e essas aspirações, observou Settembrini, faziam parte das tradições da sua família. Pois os três lhe haviam consagrado a vida e as forças do espírito: o avô, o pai e o neto, cada qual à sua maneira, o pai não menos que o avô, se bem que não tivesse sido, como este, um agitador político e um paladino da liberdade, senão um sábio quieto e delicado, um humanista que vivia amarrado à sua escrivaninha. Mas, que era afinal o humanismo? Era o amor aos homens, nada mais, nada menos, e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana. .Haviam censurado ao humanismo o apreço exagerado da forma; mas ele cultivara a bela forma unicamente por amor à dignidade humana, em esplêndida oposição à Idade Média, que vivia não só entregue à misantropia e à superstição, como também enfeada por uma ignominiosa falta de forma. Desde os seus inícios, defendera a causa do homem, os interesses terrenos, a liberdade do pensamento e o prazer de viver, opinando que o céu, por motivos de eqüidade, pertencia aos pardais. Ah, Prometeu! Fora ele o primeiro humanista e idêntico àquele Satã, ao qual Carducci dedicara o seu hino... Oh, meu Deus, se os primos pudessem ouvir como o velho inimigo da Igreja, em Bolonha, maldizia e zombava da sensibilidade cristã do Romantismo! Dos hinos sacros de Manzoni! Da poesia de sombras e luares dos românticos, que ele comparava à “Lua, a pálida monja celeste!” Per Bacco, que prazer sublime, escutar esse homem! E também deveriam ter ouvido Carducci interpretando Dante: celebrara-o como cidadão de uma metrópole, que defendia, contra a ascese e a negação do mundo, a força ativa que revolucionava e melhorava o mundo. Ora vejam, não era a sombra enfermiça e mística de Beatriz a quem o poeta honrava sob o nome de “donna gentile e pietosa”; pelo contrário, assim designava a esposa que no poema representava o princípio do conhecimento das coisas deste mundo e da atividade prática na vida. Dessa maneira, Hans Castorp aprendia isto e aquilo sobre Dante, e da melhor das fontes. Não se fiava irrestritamente nesses seus novos conhecimentos, dado o espírito estouvado de quem lhe servia de intermediário. Mesmo assim, valia a pena saber que Dante fora um cidadão de uma metrópole e tivera um espírito vivaz. E a seguir, Hans Castorp prestava atenção ao que Settembrini contava de si próprio. Declarava o italiano que no neto Lodovico, isto é, em sua pessoa, se haviam combinado as tendências dos seus ascendentes imediatos, a cívica do avô e a humanística do pai. Assim ele se tornara um literato, um escritor livre. Pois a literatura não era outra coisa senão isto: a associação de humanismo e política, associação que se realizava com a maior naturalidade, visto o próprio humanismo ser política e a política significar humanismo... A essa altura das explanações, Hans Castorp escutava com grande atenção, esforçando-se por compreender tudo direitinho; pois esperava aprender finalmente em que consistia a crassa ignorância do cervejeiro Magnus e ficar sabendo por que a literatura era outra coisa que não “belos caracteres”. Settembrini perguntou se os primos já tinham ouvido falar de Brunetto, Brunetto Latini, escrivão municipal de Florença, por volta de 1250, e autor de um livro sobre as virtudes e os vícios. Esse mestre fora o primeiro a esmerilar a cultura dos florentinos e a ensinarlhes a oratória bem como a arte de dirigir a sua república conforme as regras da política. – Aí está, meus senhores! – exclamou Settembrini. – Aí está! – E passou a falar do “verbo”, do culto do verbo, da eloqüência, que qualificou de humanidade. Pois o verbo era a honra dos homens, e só ele tornava a vida digna de seres humanos. Não somente o humanismo, mas também a humanidade em geral, toda dignidade humana, todo respeito pelos homens e toda estima que eles sentiam de si próprios, eram inseparáveis do verbo, e por conseguinte, da literatura... (– Está vendo? – disse Hans Castorp mais tarde ao primo. – Está vendo que na literatura o que importa são as belas palavras? Eu percebi logo...) – E dessa forma, prosseguiu o italiano, achava-se também a política ligada à literatura, ou melhor, tinha a sua origem na aliança, na fusão de humanidade e literatura, já que a bela palavra gerava a bela ação. Faz dois séculos, disse Settembrini, vivia no país dos senhores um velho poeta, um excelente conservador, que atribuía suma importância à beleza da caligrafia, porque, segundo a sua opinião, esta conduzia à beleza do estilo. Devia ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz a belas ações. Pois escrever bem já era quase pensar bem, e daí a agir bem não havia muita distância. Toda moralidade e todo aperfeiçoamento moral derivava do espírito da literatura, desse pundonor humano que era ao mesmo tempo o espírito da humanidade e da política. Sim, tudo isso era uno e indivisível, era uma e a mesma força e idéia, e podia ser resumido num único termo. Qual era esse termo? Ora, ele se compunha de sílabas familiares cujo significado e cuja majestade os primos, sem dúvida, nunca haviam compreendido. Seu nome era: civilização! E ao pronunciar essa palavra, Settembrini ergueu a amarelada mãozinha direita como quem faz um brinde. O jovem Hans Castorp achava tudo isso digno de ser escutado -sem compromisso e a título de experiência apenas, mas em todo caso digno de atenção. Foi nesse sentido que falou com Joachim Ziemssen, o qual, porém, por andar com o termômetro na boca, não podia responder senão indistintamente, e que a seguir se mostrou por demais ocupado em decifrar os graus e inscrevê-los na papeleta, para que pudesse formular uma opinião acerca dos pontos de vista de Settembrini. Hans Castorp, porém, inteirava-se, cheio de boa vontade, dessas opiniões e abria-lhes o seu íntimo, a fim de estudá-las; o que deixa ver quanta vantagem leva o homem acordado sobre o homem que dorme estupidamente – pois, nos seus sonhos, já acontecera diversas vezes a Hans Castorp tratar o Sr. Settembrini, à queima-roupa, de tocador de realejo, e procurar empurrá-lo com toda a força, porque “era demais ali”. Mas, como homem acordado, ouvia-o atenta e cortesmente e esforçava-se com muita imparcialidade por suavizar e diminuir a oposição que nele desejava levantar-se contra as idéias e as exposições do seu mentor. Não se pode negar que tal oposição existia na sua alma; baseava-se em resistências antigas que sempre haviam operado ali e também em outras, resultantes da situação presente, das experiências ora indiretas ora secretas que Hans Castorp fazia ali em cima. Que é o homem, e com quanta facilidade pode ser ludibriada a sua consciência! Como é perito na arte de perceber na própria voz do dever a licença para se entregar à paixão! Era por um senso de dever, por eqüidade, pela necessidade de um contrapeso, que Hans Castorp escutava os discursos do Sr. Settembrini, examinando, com muita complacência, as suas considerações quanto à razão, à república e à beleza do estilo, e dispondo-se a deixar-se influenciar por elas. Tanto mais lícito lhe parecia depois dar livre curso aos seus pensamentos e aos seus sonhos, a fim de que rumassem numa direção diferente e até oposta – e para formularmos desde já o resultado total do que suspeitamos ou adivinhamos, seja dito que escutava o Sr. Settembrini com a finalidade exclusiva de obter da sua consciência plenos poderes que esta primitivamente não lhe quisera outorgar. Mas, o que ou quem é que se encontrava do lado oposto ao patriotismo, à dignidade humana e às belas-letras, desse lado onde Hans Castorp pensava ter reconquistado o direito de dirigir seus pensamentos e seus atos? Ali se achava Clávdia Chauchat, indolente, carcomida, com seus olhos de quirguiz, e enquanto Hans refletia sobre ela – a palavra “refletir” é, aliás, muito mansa para expressar o modo como, no seu íntimo, se ocupava com ela –, era novamente como se andasse de barca por aquele lago de Holstein e dirigisse os olhos deslumbrados e confundidos pela luminosidade vítrea da margem ocidental, para a noite de luar, entremeada de brumas, dos céus do Oriente. O termômetro A semana de Hans Castorp ia de terça a terça-feira, visto ele ter chegado numa terça-feira. Já fazia alguns dias que liquidara a conta da segunda semana – com a importância modesta de uns cento e sessenta francos, razoável e justificada segundo a sua própria opinião, mesmo que deixassem de ser consideradas as vantagens impagáveis da estadia ali, justamente por ser impossível pagar por elas, e embora figurassem nela certos suplementos que poderiam ser faturados, se assim o quisessem, como, por exemplo, o concerto bimensal e as conferências do Dr. Krokowski. O total de cento e sessenta francos referia-se exclusivamente à pensão propriamente dita, ao que oferecia o hotel como tal, à hospedagem confortável e às cinco refeições reforçadíssimas. – Não é caro, não; é até barato, e você não pode se queixar de ser explorado aqui em cima – disse o visitante ao morador antigo. – Você gasta, em média, uns seiscentos e cinqüenta francos por mês com o quarto e a comida, e nisso já está incluído o tratamento médico. Muito bem! Admitamos que você gaste ainda uns trinta francos por mês em gorjetas, porque quer mostrar-se generoso e faz questão de ver em toda parte caras sorridentes. Temos então seiscentos e oitenta francos. Você vai me dizer que existem ainda extras e despesas por fora. Vai-se algum dinheiro para bebidas, para cosméticos e charutos; de vez em quando se faz uma excursão, um passeio de carro, e um dia vem a conta do alfaiate ou do sapateiro. Perfeitamente! Mas com tudo isso, você não consegue, nem querendo, ir além de mil francos por mês. Não são nem sequer oitocentos! O total não chega a dez mil francos por ano. Disso não passa. É o que você gasta... – Grau dez em cálculo mental – disse Joachim. – Eu nem sabia que você era tão forte nisso. E acho mesmo generoso da sua parte fazer logo a conta do ano inteiro. Mas você exagerou a despesa. Eu não fumo charutos e não tenciono chegar à situação de precisar de roupas novas aqui; não, senhor! – Bem, então é ainda menos – disse Hans Castorp um tanto confuso. Mas, fossem quais fossem os motivos que o haviam induzido a incluir na conta do primo charutos e roupas novas, a rapidez do seu cálculo mental não passava de uma ilusão, e Joachim se enganara a respeito dos dons naturais do primo. Pois, nesse terreno como em todos os outros, Hans Castorp era antes lerdo e pouco inspirado. No caso em apreço, não se tratava de uma improvisação, realizada com tamanha facilidade, senão do produto de um trabalho executado por escrito: uma noite, durante o repouso – pois também ele acabara por deitar-se depois do jantar, já que todo mundo o fazia –, levantara-se especialmente da sua magnífica espreguiçadeira e, obedecendo a um súbito impulso, fora ao quarto buscar papel e um lápis para calcular. Dessa forma verificara que seu primo – ou melhor, que um pensionista do sanatório – precisava, tudo incluído, de uns doze mil francos por ano, e convencera-se, assim por brincadeira, de que ele próprio estava financeiramente mais do que à altura das despesas exigidas ali em cima, uma vez que dispunha de dezoito a dezenove mil francos por ano. Sua segunda conta semanal fora, portanto, liquidada havia três dias, e ele recebera o devido recibo e agradecimento. Significava isso que Hans Castorp alcançara a metade da terceira e, segundo os seus planos, da última semana da sua estadia. No domingo próximo assistiria a mais um dos concertos quinzenais; na segunda-feira escutaria outra das conferências igualmente bimensais do Dr. Krokowski – assim disse de si para si e também o declarou a Joachim. Mas na terça ou quarta-feira partiria e deixaria o primo sozinho, o pobre do Joachim, a cuja pena Radamanto voltara a acrescentar sabe Deus quantos meses, e cujos olhos meigos e negros se cobriam de um véu melancólico, cada vez que se falava da partida iminente de Hans Castorp. Cruzes! Como tinham corrido essas férias! Haviam voado, fugido, evaporado – não se podia dizer como. Eram, afinal de contas, vinte e um dias que os dois primos deviam passar em companhia um do outro, uma longa série cujo fim, no início, parecia muito distante. E agora, de repente, não sobravam mais que três ou quatro míseros dias, um resto insignificante, que, na verdade, se tornava um pouco mais importante pelas duas variantes periódicas do programa habitual, mas sobre o qual já pesava o pressentimento da arrumação das malas e da despedida. Três semanas não representavam quase nada ali em cima – todos o haviam prevenido desse fato. A menor unidade de tempo era ali o mês – dissera Settembrini, e como a estadia de Hans Castorp no Berghof não chegasse a tanto, era uma permanência de nada; não passava de uma visita de médico, como a qualificara o Dr. Behrens. Talvez fosse devido ao aumento da combustão geral que o tempo corria ali tão vertiginosamente? Tal rapidez de vida podia, afinal, servir de consolo a Joachim, quando ele pensava nos cinco meses que tinha à sua frente, contando que não houvesse mais do que isso. Mas, durante essas três semanas deveria ter prestado maior atenção ao curso do tempo, assim como se fazia ao tomar-se a temperatura, quando os sete minutos regulamentares se convertiam num lapso de tempo considerável... Hans Castorp sentia sincera compaixão pelo primo, em cujos olhos se podia ler a mágoa de perder em breve o companheiro; com efeito, experimentava a mais viva compaixão, pensando em que o coitado permaneceria dali por diante sem ele, que tornaria a viver na planície e trabalharia a serviço da técnica das comunicações que ligavam os países. Era uma compaixão tão ardente que em certos momentos lhe doía o coração, e tão viva que às vezes o fazia perguntar seriamente a si mesmo se teria a coragem de deixar Joachim sozinho ali em cima. E justamente por ser esse sentimento tão ardente, Hans Castorp evitava o mais possível falar da sua partida. Era Joachim quem de vez em quando dirigia a conversa para ela, pois Hans Castorp, como já acabamos de dizer, pareceu, por tato e delicadeza naturais, esquivar-se a esse assunto até o último instante. – Tomara – disse Joachim – que você ao menos tenha descansado aqui, e que lá embaixo se sinta mais forte. – Sim, vou dar lembranças a todo mundo – respondeu Hans Castorp – e dizer que você voltará daqui a cinco meses, o mais tardar. Você disse “descansado”? Se eu descansei bem nestes poucos dias? Acho que sim. Creio que mesmo um tempo tão curto deve fazer bem à gente. É verdade que as impressões que recebi aqui foram muito estranhas, estranhas sob todos os pontos de vista, e assim lhes devo grande número de idéias novas; mas também foram fatigantes, tanto para o corpo como para o espírito. Não me parece que já digeri tudo isso e que me aclimatei, o que seria a base de todo descanso. O Maria, graças a Deus, voltou a ter o mesmo sabor de antes. Faz alguns dias que gosto dele novamente. Mas acontece ainda às vezes, quando me assôo, que meu lenço se tinja de vermelho, e este maldito ardor do rosto junto com aquelas absurdas palpitações não me abandonarão, ao que penso, até o fim da minha estadia. Não, senhor! Não se pode falar, no meu caso, de aclimatação. E nem é possível com tão pouco tempo! Seria preciso uma permanência mais longa para a gente se adaptar e assimilar as impressões novas, antes que se possa começar com o descanso e o tal acúmulo de proteínas. É uma lástima! Digo “lástima”, porque certamente foi um erro da minha parte não ter reservado mais tempo para esta viagem, porque era fácil consegui-lo. Assim me parece que lá em casa, na planície, terei antes de mais nada de descansar deste descanso. Vou dormir três semanas a fio, tão esgotado estou. E infelizmente tenho ainda este catarro... Com efeito, Hans Castorp parecia fadado a regressar à planície com um resfriado de primeira classe. Constipara-se, provavelmente durante o repouso, e para fazermos uma segunda conjetura, durante o repouso noturno, do qual participava havia uma semana, apesar do tempo frio e úmido, que não dava mostras de melhorar antes da sua partida. Mas ficara sabendo que esse tempo não era considerado mau. O conceito de mau tempo não existia, propriamente, ali em cima; não se temia tempo nenhum; mal se preocupavam com a sua qualidade; e com a docilidade elástica peculiar à juventude, com toda a sua facilidade de adaptação às idéias e aos hábitos do ambiente ao qual se achava transferido, Hans Castorp pusera-se a imitar essa indiferença. Quando chovia a cântaros, não se devia pensar que por isso o ar fosse menos seco. E não parecia mesmo sê-lo, pois a gente continuava a ter a cabeça em brasa, como se se achasse numa peça superaquecida ou tivesse tomado muito vinho. No que se refere ao frio, que era forte, teria sido insensato refugiar-se no quarto para escapar dele. Enquanto não nevasse, não se acendia a calefação central, e sentar-se no quarto não era mais confortável do que ficar deitado no compartimento da sacada, agasalhado com um sobretudo de inverno e envolto, conforme as regras, em dois bons cobertores de pêlo de camelo. Bem ao contrário, essa última posição era infinitamente mais cômoda; era, nem mais nem menos, a posição mais prazenteira que Hans Castorp se recordava já ter experimentado – opinião que não mudaria pelo fato de um literato e carbonário a qualificar, com uma segunda intenção equívoca e maliciosa, de posição “horizontal”. Principalmente à noite, ela lhe agradava muito, quando a lampadazinha acesa luzia na mesinha a seu lado, e Hans Castorp, bem embrulhado nos cobertores cálidos, tendo entre os dentes o Maria Mancini, de sabor reencontrado, entregava-se ao gozo das vantagens dificilmente definíveis que oferecia esse tipo de cadeira; gozava-as, embora com a ponta do nariz gelada e as mãos que seguravam um livro – ainda o Ocean steamships – rígidas e avermelhadas pelo frio, olhando através dos arcos da loggia para o vale cada vez mais escuro, com as luzes ora dispersas ora aglomeradas, e escutando a música que dali vinha quase todas as noites durante uma hora, sons agradavelmente abafados, familiares e melodiosos: fragmentos de óperas – trechos de Carmen, do Trovador, do Freischütz –, valsas ligeiras, marchas que faziam com que a gente marcasse o ritmo com a cabeça, e alegres mazurcas. Mazurca? Em realidade ela se chamava Marusja, a mocinha com o pequeno rubi, e no compartimento vizinho, atrás da espessa parede de vidro opaco, jazia Joachim. De vez em quando, Hans Castorp trocava com ele algumas palavras em voz baixa, procurando não incomodar os outros “horizontais”. No seu compartimento, Joachim achava-se tão bem instalado quanto Hans Castorp, se bem que não entendesse de música e não soubesse achar prazer nos concertos noturnos. Tanto pior para ele! Em vez disso, lia provavelmente a sua gramática russa. Hans Castorp, porém, deixava o Ocean steamships descansar sobre o cobertor e saboreava com sincera simpatia os sons da música, sondando completamente a profundeza translúcida do seu feitio e encontrando tão franco deleite em determinada invenção musical cheia de caráter e de graça, que só com hostilidade recordava as coisas que Settembrini dissera a respeito da música, considerações irritantes, no sentido de ser ela politicamente suspeita, e que, realmente, não valiam mais do que o dito do avô Giuseppe sobre a Revolução de Julho e os seis dias do Gênese... Joachim não participava, portanto, do gozo musical e ignorava também a distração aromática do tabaco. Mas, fora isso, estava no seu compartimento igualmente agasalhado, estendido num abrigo pacato. Terminara o dia, terminara tudo por essa vez, e podia-se ter certeza de que nada mais se produziria, que já não haveria emoções, que mais nenhum esforço se exigiria do músculo cardíaco. Mas ao mesmo tempo não havia dúvida de que no dia seguinte tudo voltaria a repetir-se e recomeçaria, com toda a probabilidade que acarretava essa existência monótona, garantida e regular. E essa dupla segurança era sumamente reconfortante; unida à música e ao sabor ressuscitado do Maria, fazia com que o repouso da noite representasse para Hans Castorp um estado de verdadeira felicidade. Mas tudo isso não impedira que o visitante e noviço pouco resistente se houvesse gripado violentamente durante o repouso ou em qualquer outra ocasião. Anunciava-se um intenso resfriado, que se instalara na cavidade frontal, comprimindo-a. A úvula estava irritada e dolorida. O ar não passava normalmente pelo canal que a natureza destinava a esse fim; atravessava-o, frio, com dificuldade, provocando incessantes acessos de tosse. A voz de Hans Castorp adquirira de um dia para outro a tonalidade de um contrabaixo surdo, como que macerado por bebidas fortes. Segundo ele dizia, não pregara olho durante a noite, porque uma secura sufocante da garganta o sobressaltara de quando em quando. – É bem desagradável – disse Joachim. – É quase escandaloso. Você deve saber que aqui em cima os resfriados não são permitidos, que se nega a sua existência. Oficialmente, são impossíveis, com esse ar seco, e um paciente que se apresentasse ao Behrens como gripado seria muito mal recebido. Bem, com você o caso é diferente. Você, afinal, pode se permitir uma coisa dessas. Seria bom se conseguíssemos cortar a gripe. Lá na planície há métodos de fazê-lo, mas aqui... Não acho que o seu caso vá despertar grande interesse. É preferível não adoecer aqui, porque ninguém se preocupa com a gente. Isto é uma velha regra que você pode aprender ainda antes de partir. Quando cheguei aqui, havia uma senhora que durante uma semana a fio tapou a orelha com a mão e gemeu de dor. Finalmente, o Behrens foi examiná-la. “A senhora pode ficar completamente tranqüila”, disse ele. “Isso não vem da tuberculose.” E nisso ficou a coisa. Sim, senhor! Temos que dar um jeito. Amanhã falarei com o massagista, quando ele vier ao meu quarto. Com ele começa a via hierárquica, e dali o caso passará pelos canais regulamentares. E, talvez, acabem fazendo qualquer coisa por você. Assim falou Joachim, e a via hierárquica foi brilhantemente posta à prova. Na sexta-feira, quando Hans Castorp regressou do passeio matinal, bateram à sua porta, e daí resultou uma oportunidade para travar conhecimento pessoal com a enfermeira-chefe, Srta. von Mylendonk, ou Superiora, como a chamavam. Até então, enxergara apenas de longe essa personagem aparentemente muito ocupada; vira-a sair do quarto de um enfermo, para atravessar o corredor e entrar em outro quarto do lado oposto; ou ouvira-lhe a voz coaxante, durante uma das suas rápidas passagens pela sala de refeições. Desta vez, porém, a visita destinava-se a ele próprio. Atraída pela sua gripe, dera com os ossudos dedos rápidas batidas à porta do aposento. Transpôs o limiar, ainda antes de ele dizer “Entre”, e deteve-se por um instante, para certificar-se do número do quarto. – Trinta e quatro – coaxou sem abafar a voz. – Está certo. Escute, rapaz, on me dit que vous avez pris froid. I hear you have caught a cold. Wy, cajetsia, prostudilisj – e continuou em alemão: – Ouvi dizer que está resfriado. Qual é a língua que compreende? Ah, já vejo que é alemão. Pois é, a visita do jovem Ziemssen, já sei. Estão esperando por mim na sala de operações, por causa de um indivíduo que será anestesiado e acaba de comer salada de feijão. Quando a gente não tem os olhos em toda parte... Então, rapaz, acha mesmo que se resfriou aqui? Hans Castorp ficou perplexo ante esse linguajar de uma senhora da alta aristocracia. Enquanto ela falava, parecia passar por cima das suas próprias palavras, voltando a cabeça de cá para lá, num movimento irrequieto, circular, e erguendo o nariz, como para farejar, assim como fazem as feras na jaula. A mão direita sardenta, apenas cerrada, com o polegar levantado, bamboleava no punho, como para dizer: “Depressa, depressa! Não escute o que eu digo! Fale, afinal, para que eu possa sair”. Era uma quarentona, de reduzida estatura, sem formas atraentes, vestida de jaleco branco, cinturado, de hospital, e trazia sobre o peito uma cruz adornada de granadas. Sob a touca de enfermeira apareciam uns escassos cabelos arruivados; o olhar parecia inseguro, e num dos olhos congestionados, de um azul aquoso, havia um terçol bastante adiantado. O nariz era arrebitado, e a boca tinha algo de sapo, enquanto o lábio inferior avançava obliquamente e fazia, ao falar, um movimento de pá. Hans Castorp, não obstante, contemplou a Srta. von Mylendonk com toda a afabilidade singela, cheia de indulgência e confiança, que lhe era peculiar. – Que tipo de resfriado é esse? – voltou a enfermeira-chefe a perguntar, esforçando-se por dar a seus olhos uma insistência penetrante, o que no entanto não conseguiu, porque seu olhar se desviava logo. – Não gostamos de resfriados. Resfria-se com freqüência? Seu primo também se resfria a cada instante, não é? Que idade tem o senhor? Vinte e quatro? É uma idade perigosa. Só agora chegou aqui e já se resfriou? Num caso desses não convém falar de resfriado, meu prezado rapaz. Isto é lero-lero lá embaixo. – A palavra “lero-lero” soava horrorosa e extravagante na sua boca, proferida com aquele movimento de pá do lábio inferior. – O senhor tem um belíssimo catarro nas vias respiratórias; isso não se discute, basta ver os seus olhos. – E de novo ela fez a estranha tentativa de encará-lo com um olhar penetrante, sem que dessa vez tivesse melhor êxito. – Mas catarros não vêm do frio. Eles vêm é de uma infecção para a qual a gente está predisposta. Agora resta apenas saber se se trata ou não de uma infecção inofensiva. Todo o resto é lero-lero. – Mais uma vez essa palavra repugnante! – É bem possível que no seu caso a predisposição tenha caráter inócuo – acrescentou fitando-o de um modo inexplicável, com o terçol adiantado. – Aqui tenho um simples anti-séptico, pode ser que lhe faça bem. – Com isso tirou da bolsa de couro negro, que lhe pendia do cinturão, um pequeno embrulho que colocou na mesa. Era Formaminto. – Mas o senhor me parece corado, como se tivesse febre. – Ela não parava de fitá-lo, com um olhar que sempre se afastava do seu alvo. – Já tomou a temperatura? Hans Castorp disse que não. – Por que não? – perguntou, e o lábio inferior, avançado obliquamente, permaneceu nessa posição... Ele não respondeu. O bom Hans Castorp era ainda muito jovem e conservara o hábito do silêncio, próprio dos colegiais que se plantam na carteira, nada sabem e por isso se calam. – O senhor não toma nunca a sua temperatura? – Tomo, Srª. Superiora; quando estou com febre, tomo. – Olhe, meu rapaz, a gente toma a temperatura justamente para ver se tem ou não tem febre. E segundo a sua opinião não está com febre, no momento? – Não sei, Srª. Superiora. Não tenho certeza. Desde que cheguei aqui já sinto ao mesmo tempo calor e frio. – Hum, hum! E onde está o seu termômetro? – Não trouxe nenhum comigo, Srª. Superiora. Para quê? Eu vim aqui apenas de visita. Estou bem de saúde. – Lero-lero! O senhor me mandou chamar porque está bem de saúde? – Não, senhora – riu-se ele cortesmente. – Mas porque estou um pouco... – ...resfriado. Já vi muito resfriado desses. Aqui, tome! – disse ela e pôs-se novamente a mexer na bolsa. Por fim retirou dois estojos alongados, de couro, um preto e outro vermelho, que colocou igualmente na mesa. – Este custa três francos e este custa cinco. Claro que o senhor fica melhor servido com o de cinco. É para toda a vida, se o manejar com cuidado. Sorrindo, Hans Castorp tirou da mesa o estojo vermelho. Abriu-o. Faceiro como uma jóia, jazia o utensílio de vidro na concavidade exatamente adaptada à sua forma e forrada de veludo encarnado. Os graus completos eram marcados com riscas vermelhas, e os décimos, com riscas pretas. Os números eram vermelhos. A parte inferior, que ia se adelgaçando, estava cheia de cintilante mercúrio. A coluna aparecia baixa, marcando uma temperatura muito inferior ao grau normal do calor animal. Hans Castorp não ignorava o que devia a si mesmo e ao seu prestígio. – Vou comprar este – disse, sem prestar a mínima atenção ao outro. – O de cinco. Será que lhe posso... – Feito! – coaxou a enfermeira-chefe. – Não convém fazer economias quando se trata de compras importantes. Não há pressa, que vão pô-lo na conta. Deixe-me vê-lo. Para começar, vamos fazê-lo descer completamente, assim. – Tirou-lhe o termômetro da mão e agitou-o repetidas vezes no ar, fazendo com que a coluna de mercúrio parasse abaixo de 35. – Já vai subir, o mercúrio, já vai subir – acrescentou. – E agora tome a sua aquisição. Sem dúvida já sabe como se procede aqui. Debaixo da sua prezada língua, durante sete minutos, quatro vezes por dia, e mantenha bem fechadinhos os seus simpáticos lábios. Adeusinho, meu rapaz. Desejo-lhe um bom resultado. – E saiu do quarto. Hans Castorp, que fizera uma mesura, quedava-se junto à mesinha, e seu olhar passava da porta pela qual saíra a enfermeira-chefe ao instrumento que ela deixara. “Então é essa a Srta. von Mylendonk”, disse de si para si. “Settembrini não gosta dela, e realmente ela tem seus lados ruins. O terçol não é nada bonito, mas isso, com certeza, não é permanente. Mas por que me chama sempre de ‘rapaz’? Que rudeza estranha! E logo me vendeu um termômetro. Anda sempre com alguns na bolsa. Parece que aqui há termômetros em toda parte, em qualquer loja, inclusive nos lugares onde ninguém os esperaria encontrar, segundo afirma Joachim. Ora, eu nem tive o trabalho de procurar um, pois já me caiu nas mãos.” Tirou do estojo o frágil objeto, contemplouo e pôs-se a andar nervosamente pelo quarto. Seu coração batia depressa e violentamente. Lançou um olhar para a porta aberta da sacada. A seguir fez menção de se encaminhar à do quarto, na intenção de ir ter com Joachim. Mas desistiu disso e deixou-se ficar de pé, perto da mesa, pigarreando, para verificar a rouquidão. Depois tossiu francamente. “Pois é, agora vou ver se o resfriado me deu febre”, falou com os seus botões, enquanto introduzia, num movimento rápido, o termômetro na boca, com a ponta de mercúrio sob a língua, de modo que o instrumento, apontando obliquamente para cima, saía por entre os lábios que ele cerrava bem para não dar entrada ao ar. Feito isso, olhou o relógio de pulso. Eram nove e trinta e seis. E começou a esperar que decorressem sete minutos. “Nem um segundo a mais”, pensou, “nem um a menos. Em mim podem ter confiança, nas duas direções. Não há necessidade de me dar uma ‘irmã muda’, como àquela criatura de que falou Settembrini, a tal Ottilie Kneifer.” A seguir pôs-se a passear pelo quarto, comprimindo o instrumento com a língua. O tempo ia se arrastando. O prazo parecia infinito. Somente dois minutos e meio haviam passado quando ele olhou os ponteiros, receando ter ultrapassado o momento marcado. Fez então um sem-número de coisas: agarrou objetos e os recolocou no lugar, saiu à sacada, procurando esquivar-se à atenção do primo, deixou que os olhos vagassem por sobre a paisagem, esse vale situado a grande altura, já profundamente familiar ao seu espírito, em todas as suas formas, com seus picos, cordilheiras e paredes rochosas, onde, do lado esquerdo, avançava o platô de Brämenbühl, cuja encosta se inclinava para a aldeia e cujos flancos eram cobertos pelo matagal agreste dos prados alpinos, com as formações das montanhas, à direita, cujos nomes aprendera também, e com a Alteinwand que, vista do lugar onde se achava Hans Castorp, parecia fechar o vale do lado do sul. E seu olhar passava por sobre as veredas e os canteiros do terraço ajardinado, com a gruta rupestre e o abeto. Escutava um murmúrio que subia do alpendre, onde alguns pensionistas se entregavam ao repouso. Voltou então ao quarto, enquanto procurava melhorar a posição do instrumento na boca. A seguir avançou o braço, para afastar a manga do pulso e aproximar o relógio do rosto. Com muito trabalho e esforço, por assim dizer sob o efeito de empurrões, golpes e pontapés, haviam decorrido seis minutos. Mas, como então se deixasse estar no quarto e se abandonasse a devaneios, dando livre curso aos seus pensamentos, passou despercebido o último minuto, como nas patas silenciosas de um gato até que um novo movimento do braço lhe revelasse a sua fuga clandestina. E já era um pouco tarde; a terça parte do oitavo minuto já se escoara, quando Hans Castorp, dizendo consigo que isso não tinha importância, não fazia mal nem modificava o resultado, tirou o termômetro da boca e cravou nele os olhos desorientados. Não conseguiu decifrar imediatamente a indicação do instrumento. O brilho do mercúrio confundia-se com o reflexo luminoso do achatado tubo de vidro. A coluna parecia ora ter subido muito ora não existir de todo. Hans Castorp achegou o termômetro aos olhos, virou-o de um lado para outro e não distinguiu nada. Finalmente, depois de um movimento feliz, a imagem tornou-se nítida; ele reteve-a e submeteu-a depressa ao trabalho da sua inteligência. Com efeito, o mercúrio dilatara-se, dilatara-se consideravelmente. A coluna subira bastante alto e parará a vários décimos acima do limite normal. Hans Castorp tinha 37,6. Em pleno dia, entre as dez e as dez e meia, 37,6 era demais; era temperatura elevada, era uma febre que resultava de uma infecção à qual estava predisposto, e restava apenas saber de que tipo de infecção se tratava. 37,6! O próprio Joachim não tinha mais; ninguém ali tinha mais, com exceção daqueles que se achavam acamados por estarem gravemente enfermos ou até moribundos; nem a Kleefeld, com o seu pneumotórax, nem... nem tampouco Mme. Chauchat. Naturalmente, no seu caso particular não era a mesma coisa; ele tinha o que lá embaixo chamava de uma simples gripezinha. Mas seria difícil estabelecer uma diferença clara. Hans Castorp não sabia com certeza desde quando andava com essa temperatura, e se era somente desde que se resfriara. Lamentou não ter interrogado o mercúrio mais cedo, logo no início da sua estadia ali, como lhe aconselhara o Dr. Behrens. Era um conselho bem sensato, como se manifestava agora, e Settembrini fizera muito mal ao rir-se dele daquele modo ruidoso e zombeteiro – aquele Settembrini com sua república e seu belo estilo! Hans Castorp desprezava a república e o belo estilo, enquanto examinava uma e outra vez a indicação do termômetro, que não raro se lhe esquivava, em virtude dos reflexos, e que então ele voltava a apanhar, virando e revirando fervorosamente o instrumento. Eram 37,6, e isso de manhã! Experimentou uma violenta emoção. Pôs-se a atravessar o quarto de um lado para outro, com o termômetro na mão, que mantinha horizontalmente, a fim de evitar o mínimo abalo por uma sacudidela em sentido vertical. Depois colocou-o com todo o cuidado no anteparo do lavatório e, pegando o sobretudo e os cobertores, foi entregar-se ao repouso. Sentado, envolveuse nos cobertores, assim como aprendera, pelos dois lados e por baixo, manejando-os um após outro com a habilidade já adquirida. A seguir permaneceu imóvel até a hora do café da manhã, à espera da entrada de Joachim. Às vezes sorria, e era como se sorrisse a alguém. Às vezes levantava-se-lhe o peito num tremor angustiado, o que o fazia tossir, com o peito opresso pelo catarro. Joachim encontrou-o ainda deitado, quando, às onze horas, depois das badaladas do gongo, foi buscá-lo para a refeição. – Então? – perguntou admirado, aproximando-se da espreguiçadeira. Hans Castorp permaneceu calado durante um momento, olhando apenas para a frente. Por fim respondeu: – Quer saber da última? Estou com uma temperatura um pouco elevada. – Que significa isso? – perguntou Joachim. – Você tem a impressão de estar com febre? Hans Castorp mais uma vez demorou um pouco a dar a resposta, antes de replicar com certa indolência: – Olhe, meu caro, já faz tempo que me sinto febril, desde que estou aqui. Desta vez não se trata de impressões subjetivas, mas de uma verificação exata. Tirei a temperatura. – Você tirou a temperatura? Com quê? – gritou Joachim, assustado. – Com um termômetro, ora essa – respondeu Hans Castorp, com um ar irônico e severo. – Comprei um da enfermeira-chefe. O que não sei é por que ela trata a gente de “rapaz”. Pelo menos não acho isso muito correto. Mas me vendeu a toda pressa um ótimo termômetro, e se você quiser convencer-se da temperatura que ele indica, pode ver ali dentro, no lavatório. É uma elevação insignificante. Joachim deu bruscamente meia-volta e entrou no quarto. Quando saiu outra vez, disse num tom hesitante: – Pois é, são 37,5. – Nesse caso baixou um pouco – tornou Hans Castorp imediatamente. – Eram 37,6. – Não se pode dizer que isso seja insignificante, já pela manh㠖 opinou Joachim. – É uma bonita surpresa – acrescentou, plantando-se em frente da espreguiçadeira do primo, como para admirar a “bonita surpresa”, com as mãos à cintura, e com a cabeça baixa. – Você terá de ficar na cama. Hans Castorp já estava com a resposta preparada. – Não vejo nenhum motivo – retrucou – para ficar deitado com 37,6 quando você e tantos outros que têm a mesma temperatura andam passeando livremente. – Mas isso é diferente – disse Joachim. – No seu caso trata-se de uma coisa aguda e inofensiva. Você tem febre porque está resfriado. – Primeiro – replicou Hans Castorp, subdividindo o seu discurso em “primeiro” e “segundo” –, não compreendo por que com uma febre inofensiva – admitamos que exista uma coisa dessas – por que com uma febre inofensiva a gente deva ficar na cama, e com outra febre não. E segundo, já lhe disse que o resfriado não me fez mais quente do que eu estava antes. Na minha opinião – concluiu – 37,6 é igual a 37,6. Se vocês podem passear com uma temperatura dessas, eu também posso. – Mas quando cheguei aqui tive que permanecer deitado durante quatro semanas – objetou Joachim. – E só quando verificaram que a cama não fazia desaparecer a febre foi que me deram licença para levantar-me. Hans Castorp sorriu. – E daí? – perguntou. – Eu pensava que o seu caso fosse diferente. Tenho a impressão de que você se contradiz a si mesmo. Primeiro estabelece uma diferença e logo depois equipara. Isto é lero-lero... Joachim deu meia-volta sobre os calcanhares, e quando novamente se dirigiu ao primo, viu que seu rosto trigueiro se tornara ainda mais escuro. – Não, senhor – disse ele. – Não equiparo nada. Quem faz confusão é você. Eu acho apenas que você anda resfriadíssimo. Basta ouvir a sua voz. E você deveria meter-se na cama para abreviar a coisa, uma vez que tenciona partir na semana que vem. Mas, se não quiser... quer dizer, se não tiver vontade de ficar na cama, deixe. Eu não lhe dou ordens. Em todo caso está na hora do segundo café da manhã. Ligeiro, já estamos atrasados. – Perfeitamente. Vamos então – disse Hans Castorp, afastando os cobertores. Entrou no quarto, para arrumar o penteado com a escova. Enquanto o fazia, Joachim foi ao lavatório a fim de olhar mais uma vez o termômetro, como Hans Castorp observou de longe. Depois desceram, sem falar, e voltaram a instalar-se nos seus lugares, na sala de refeições, que, como sempre a essa hora, resplandecia branca de tanto leite. Quando a anã levou a Hans Castorp a cerveja Kulmbach, este a recusou com um ar de grave renúncia. Preferia hoje não tomar cerveja; não beberia nada, obrigado; quando muito, um copo d'água. Isso causou surpresa a seu redor. Mas como? Que novidades eram aquelas? Por que não queria cerveja? – Tenho uma temperatura levemente elevada – disse Hans Castorp displicentemente. – 37,6. Coisa insignificante. Eis que todos o advertiram com o dedo. Era estranho de ver. Tornavam-se engraçadinhos, inclinavam a cabeça para o lado, piscavam um olho e coçavam a orelha com o indicador, como para ouvirem melhor as coisas escabrosas, picantes, a respeito de alguém que até então se fingira inocente. – Ora, ora, meu amigo! – disse a professora, e suas faces ruborizaram-se, enquanto o advertia sorrindo. – Ouve-se cada coisa! Vejam só! – Imaginem! – gritou a Srª. Stöhr, enquanto erguia o curto dedo avermelhado à altura do nariz. – Ele tem tempus, o nosso visitante. Essa é boa! Que grande gozador! A própria tia-avó, na outra extremidade da mesa, advertiu-o com o dedo, irônica e manhosamente, quando a novidade chegou até ela. A bela Marusja, que até então mal prestara atenção a ele, inclinou-se para enxergá-lo melhor e olhou-o com seus grandes olhos redondos, apertando contra os lábios o lencinho perfumado de flor de laranjeira. Também o Dr. Blumenkohl, ao qual a Srª. Stöhr acabava de comunicar o fato, não pôde deixar de fazer o gesto que todos faziam. Unicamente Miss Robinson mostrou-se indiferente e reservada como sempre. Joachim, numa atitude muito correta, mantinha os olhos baixos. Hans Castorp, satisfeito pelo interesse que despertava, acreditou ser do seu dever desmenti-los modestamente. – Não, senhores – disse –, estão enganados. A minha febre é a coisa mais inofensiva que se pode imaginar. Estou apenas resfriado. Estão vendo: meus olhos lacrimejam, tenho o peito opresso, e ando tossindo a noite toda. É bastante desagradável. – Mas eles não aceitaram as suas desculpas; riam-se, e com a mão faziam-lhe sinais, para que deixasse de insistir, enquanto gritavam: – Sim, sim, sim! É conversa fiada! Já se conhece essa do resfriado, já se conhece! – E todos exigiram subitamente que Hans Castorp se apresentasse sem demora a um exame médico. Essa notícia excitara-os. Dentre as sete mesas foi esta, durante o café da manhã, a mais animada. Sobretudo a Srª. Stöhr, com o estúpido rosto todo vermelho por cima do jabô, e com pequenas gretas na pele das faces, demonstrou uma loquacidade quase frenética. Pôs-se a fazer digressões a respeito da natureza fascinante da tosse. Sim, era mesmo uma distração e um prazer sentir como no fundo do peito se intensificava e crescia o prurido, que as pessoas procuravam, por assim dizer, pegar, esforçando-se convulsivamente e comprimindo-se para acalmar a irritação. E um divertimento análogo era oferecido pelo espirro, quando o desejo de soltá-lo aumentava poderosamente e se tornava irresistível, a ponto de a gente, como que inebriada, fazer algumas respirações violentas, antes de se entregar com delícia, esquecendo o resto do mundo ante a felicidade da explosão. E essa delícia podia produzir-se duas ou três vezes seguidas. Eram esses os prazeres gratuitos da vida, entre os quais também figurava o de coçar as frieiras, na primavera, quando elas picavam tão docemente – coçar-se com um fervor cruel, até sair sangue, abandonando-se à raiva e ao gozo, e quem, por acaso, se olhasse no espelho, num momento desses, depararia com uma careta diabólica. Com essa minúcia horrorosa, a inculta Srª. Stöhr discursou até o fim da curta mas substanciosa refeição intermediária. Então, os dois primos começaram o seu segundo passeio matinal, que os levaria a Davos-Platz. Joachim andava meio absorto e Hans Castorp, gemendo de tão resfriado que estava, dava pigarros do fundo do peito enferrujado. Ao regressarem, Joachim disse: – Vou lhe fazer uma proposta. Hoje é sexta-feira. Amanhã, depois do almoço, tenho o meu exame mensal. Não se trata de um exame geral; o Behrens percute um pouquinho e manda o Krokowski tomar notas. Você poderia me acompanhar e pedir que aproveitem a ocasião para auscultá-lo rapidamente. É mesmo ridículo... Se isso lhe acontecesse em casa, mandaria chamar o Heidekind. E aqui onde temos dois especialistas, você dá passeios, sem ter idéia a quantas anda nem a que ponto vai a infecção; nem sequer sabe se não seria melhor meter-se na cama. – Ótimo! – disse Hans Castorp. – Boa idéia! Claro que posso fazer isso. Será até interessante para mim assistir a um exame médico. Estava, pois, tudo combinado, e, quando chegaram ao sanatório, quis o acaso que encontrassem o Dr. Behrens em pessoa. Assim tinham uma oportunidade favorável para formular imediatamente o seu pedido. Da ala avançada do edifício saía o alto vulto de Behrens, com o pescoço vigoroso, as faces azuladas e os olhos saltados. Tinha o chapéu-coco atirado para trás e um charuto na boca. Parecia em plena atividade, a ponto de se dirigir para a aldeia, a fim de visitar sua clientela particular. Segundo declarou, acabava de trabalhar na sala de operações. – Salve, cavalheiros! – exclamou. -sempre passeando, hein? Que tal o mundo grã-fino? Eu volto justamente de um duelo desigual, a faca e serra. Um caso sério, sabem? Ressecção de costelas. Antigamente ficavam na mesa uns cinqüenta por cento. Agora temos mais jeito, mas ainda acontece que o prazer se acabe antes do fim, mortis causa. Bem, o de hoje não era nenhum desmancha-prazeres. Por enquanto agüenta firme... Uma coisa louca, um tórax humano que já se foi todo. É uma pasta mole, sabem? Nada bonito! Por assim dizer, uma leve adulteração da idéia!... Bem, e os senhores? Como vai a prezada constituição? A existência é mais divertida a dois; não é, Ziemssen, velha raposa? Mas, por que está chorando, senhor turista? – acrescentou, dirigindo-se de repente a Hans Castorp. – É proibido chorar em público. É contra o regulamento da casa. Se todo mundo fizesse isso... – É por causa do meu resfriado, doutor – respondeu Hans Castorp. – Não sei onde o peguei, mas estou com uma gripe terrível. Tenho também tosse, e meu peito está opresso... – Vejam só! – exclamou Behrens. – Nesse caso, talvez fosse conveniente consultar um bom médico. Os dois desataram a rir, e Joachim explicou, juntando os calcanhares: – É o que tencionávamos fazer, senhor conselheiro. Amanhã é o dia do meu exame, e queríamos justamente pedir-lhe que tivesse a bondade de auscultar meu primo na mesma ocasião. Trata-se. de saber se ele poderá partir na terça-feira. – S.a.o. – disse Behrens. -sempre às ordens! Com o maior prazer. Já deveríamos ter feito isso há muito tempo. Quem está aqui em cima não deve deixar de aproveitar a oportunidade. Mas, afinal de contas, a gente não quer insistir. Pois então, amanhã às duas, logo depois da bóia. – É que tenho também um pouco de febre – recomeçou Hans Castorp. – Não diga! – gritou Behrens. – O senhor me conta uma grande novidade. Pensa que não tenho olhos para ver? – E com o formidável indicador apontou para os dois bugalhos injetados, lacrimosos, de um azul úmido. – A propósito, qual é a sua temperatura? Hans Castorp disse-a timidamente. – Já de manhã? Nada mau! Para um principiante não lhe falta talento. Pois é, está combinado, amanhã às duas apareçam os dois. Será uma grande honra para mim. Boa digestão! – E com os joelhos dobrados, remando com as mãos, pôs-se a descer pelo caminho íngreme, enquanto a fumaça do charuto se desfraldava atrás dele. – Está tudo arranjado como você desejava – disse Hans Castorp. – Não podia, ser melhor. Agora tenho hora marcada. No meu caso, ele não poderá fazer grande coisa. O máximo que me prescreverá será um xarope ou um peitoral, mas de qualquer jeito é agradável receber um pouco de reconforto por parte de um médico, para quem se sente tão mal como eu. Só queria saber por que ele usa essa linguagem exagerada e cínica. No começo me diverti com isso, mas agora não acho mais graça nenhuma. “Boa digestão!” Horrível! Pode-se dizer: “Bom proveito!” “Proveito” é uma palavra de certo cunho poético, assim como “o pão nosso de cada dia”, e se harmoniza bem com o adjetivo “bom”. Mas “digestão” é termo puramente fisiológico, e fazer votos pelo seu desenvolvimento feliz parece-me pura blasfêmia. Também não me agrada ver como ele fuma. Isso me deixa nervoso, porque sei que o charuto não lhe faz bem e o põe melancólico. Settembrini diz que a jovialidade de Behrens é forçada, e Settembrini é, indiscutivelmente, um homem crítico, de juízo seguro. Eu mesmo deveria, talvez, formar com mais freqüência uma opinião própria, em vez de aceitar as coisas como se apresentam. Nesse ponto, ele tem toda a razão. Mas acontece, então, que enquanto se está disposto a julgar, a criticar, a escandalizar-se, de repente se intromete qualquer coisa completamente diversa, que nada tem a ver com o juízo, e logo se acaba a indignação moral, e a república e o belo estilo só nos parecem insípidos... Murmurou ainda algumas palavras indistintas. Tinha-se a impressão de que ele mesmo não sabia com clareza o que queria dizer. O primo limitou-se a olhá-lo de lado e disse: – Até logo. – E ambos se dirigiram aos seus quartos e às respectivas espreguiçadeiras. – Quanto? – perguntou Joachim depois de algum tempo, em voz abafada, apesar de não ter observado como Hans Castorp tornara a consultar o termômetro. Este respondeu num tom indiferente: – Nada de novo. Com efeito, apenas entrara no quarto, tirara de cima do lavatório a elegante aquisição da manhã; por meio de sacudidelas verticais apagara os 37,6 que já haviam desempenhado seu papel, e qual um veterano iniciara o repouso com o charuto de vidro na boca. Mas, contrariando todas as expectativas ambiciosas, e embora ele conservasse o instrumento sob a língua durante oito minutos inteiros, o mercúrio não se dilatara além dos mesmos 37,6 – o que, afinal, era febre, se bem que não mais alta do que a que tivera pela manhã. Depois do almoço, a coluna cintilante subiu a 37,7. À noite, quando o paciente estava muito cansado depois das sensações e emoções do dia, parou em 37,5, e na madrugada do dia seguinte marcou apenas 37, para alcançar novamente a posição do dia anterior, por volta do meio-dia. Com tudo isso chegou o almoço do sábado, e, ao seu fim, a hora marcada para o exame. Mais tarde, Hans Castorp recordou-se de que Mme. Chauchat usara, durante essa refeição, um suéter amarelo-dourado com grandes botões e bolsos bordados, e que era novo, pelo menos para ele. Quando ela chegara, um pouco atrasada como sempre, apresentara-se na sala daquele modo que Hans Castorp bem conhecia. Depois encaminhara-se a passo silencioso para a sua mesa, como sucedia cinco vezes por dia; instalara-se na cadeira com movimentos lânguidos e, palestrando, começara a comer. Como todos os dias, mas dessa vez com uma atenção particular, Hans Castorp vira-a mover a cabeça, enquanto ela falava, e novamente notaralhe a curva da nuca e a postura lassa das costas, quando seu olhar buscava a mesa dos “russos distintos”, por sobre o ombro de Settembrini, que estava sentado na mesa colocada transversalmente entre eles. Mme. Chauchat, porém, não se voltara durante o almoço nem uma única vez para a sala. Mas, depois da sobremesa, quando o grande relógio de pêndulo, colocado no lado estreito da sala, à direita, junto da mesa dos “russos ordinários”, dera as duas horas, acontecera o seguinte, causando uma emoção misteriosa a Hans Castorp: enquanto ressoavam as duas badaladas – uma e duas – a graciosa enferma virara lentamente a cabeça e também parte do tronco; por cima do ombro olhara clara e abertamente para a mesa de Hans Castorp, e não somente para essa mesa em geral; não, de um modo inequívoco e cruel fixara o olhar nele pessoalmente, esboçando um sorriso em torno dos lábios cerrados e nos olhos rasgados, semelhantes aos de Pribislav, como se quisesse dizer: “Pois então? Está na hora. Você vai ou não vai?” (Pois, quando os olhos falam, tratam-nos por “você”, ainda que a boca não tenha jamais empregado a terceira pessoa.) Fora esse um incidente que transtornara e enchera de espanto o âmago do coração de Hans Castorp. Mal confiara nos seus sentidos. Consternado fitara o rosto de Mme. Chauchat, e depois, levantando os olhos, acima da sua testa e dos seus cabelos, encarara o vazio. Sabia ela que às duas horas ele devia ir ao exame? Assim parecia, e entretanto isso era quase tão pouco provável como se ela soubesse que nesse mesmo instante, no minuto que acabava de escoar, ele se perguntara a si próprio se não deveria mandar Joachim dizer ao Dr. Behrens que seu resfriado já ia melhor, e que ele considerava o exame supérfluo; idéia cujas vantagens acabavam de definhar sob esse sorriso perscrutador, para transformarem-se em puro tédio dos mais repulsivos. Um segundo após, Joachim já pusera na mesa o guardanapo enrolado, e com as sobrancelhas alçadas dera-lhe um sinal. Inclinara-se então para os vizinhos e se afastara da mesa. E Hans Castorp, vacilando interiormente, se bem que de passo firme, e com a sensação de que aquele olhar e aquele sorriso continuavam pousados nele, seguira atrás do primo, em direção à saída. Desde a manhã do dia anterior, não haviam voltado a falar do projeto, e ainda nesse instante caminhavam um ao lado do outro, num acordo tácito. Joachim apressava-se. Já passara a hora marcada, e o conselheiro áulico exigia pontualidade. O seu caminho conduzia-os da sala de refeições, pelo corredor do rés-do-chão, passando ao lado da administração e descendo pela escada limpa, coberta de linóleo, até o porão. Joachim bateu à porta fronteira à escada, porta que uma placa de porcelana indicava ser a entrada do consultório. – Entre! – gritou Behrens, arrastando fortemente a primeira sílaba. Achava-se no centro da peça, vestido de avental, e tinha na mão direita o estetoscópio preto com o qual dava umas palmadinhas na perna. – Vamos, vamos! – disse, com os olhos esbugalhados fitos no relógio de parede. – Un poco più presto, signori! Não estamos aqui ao serviço exclusivo de Vossas Senhorias. O Dr. Krokowski estava sentado diante da dupla escrivaninha, junto à janela, pálido, com sua blusa de alpaca preta, apoiando os cotovelos na tábua da mesa; numa das mãos tinha a caneta e com a outra cofiava a barba; à sua frente jaziam papéis, provavelmente as fichas do paciente. Olhou os jovens que entravam com a expressão vaga de uma pessoa que se acha presente apenas para ajudar. – Então, deixe ver o boletim – disse o conselheiro áulico, em resposta às desculpas de Joachim. Tirou-lhe da mão a papeleta de temperatura, para examiná-la, enquanto o enfermo se apressava a desnudar o tronco, suspendendo as roupas despidas no cabide ao lado da porta. Ninguém se ocupava de Hans Castorp. Durante algum tempo, ele permaneceu de pé, contemplando os outros. Depois, sentou-se numa poltrona de estilo antigo, guarnecida de borlas nos braços, e que se encontrava ao lado de uma mesinha com uma garrafa de água. Estantes carregadas de volumosas obras de medicina e de pastas cheias de documentos de casos estendiam-se ao longo das paredes. Fora disso, a mobília constava só de uma chaise longue, revestida de branco, que podia ser levantada e baixada mediante uma manivela, e cuja cabeceira estava coberta com um guardanapo de papel. – Vírgula 7, vírgula 9, vírgula 8 – disse Behrens, folheando as fichas semanais, onde Joachim registrara fielmente as temperaturas tomadas cinco vezes por dia. – Ainda um pequeno excesso de animação, meu caro Ziemssen. O senhor não pode pretender que ficou mais calmo, desde o outro dia. (O “outro dia” fora quatro semanas atrás.) Não está desintoxicado, não, senhor! – acrescentou. – Ora, isto não se consegue de um dia para outro. Afinal de contas, não somos feiticeiros. Joachim fez que sim com um gesto de cabeça e encolheu os ombros desnudos, se bem que pudesse objetar que não se achava no sanatório precisamente desde a véspera. – E como vão aquelas pontadas no hilo direito, onde sempre havia anomalias? Melhor? Bem, venha cá! Vamos bater humildemente à sua porta. – E com isso começou o exame. O Dr. Behrens, com as pernas separadas e o tronco inclinado para trás, meteu o estetoscópio sob o braço e começou a percutir a parte superior do ombro direito de Joachim; batia servindo-se do poderoso dedo médio da mão direita como martelo e apoiando-se na mão esquerda. Depois desceu pela omoplata e apalpou lateralmente a parte central e inferior das costas, feito o quê, Joachim, bem amestrado, levantou o braço para que o médico pudesse explorar também a região axilar. Tudo isso se repetiu então no lado esquerdo. A seguir, o conselheiro áulico deu ordem de meia-volta, para examinar o peito. Percutiu a zona logo abaixo do pescoço, junto à clavícula, bateu acima e abaixo do peito, primeiro à direita e depois à esquerda. Após ter percutido suficientemente, pôs-se a auscultar, colocando o estetoscópio nas costas e no peito de Joachim e apertando a orelha contra a concha; dessa forma foi percorrendo todas as regiões anteriormente apalpadas. Ao mesmo tempo era preciso que Joachim ora respirasse com vigor ora tossisse artificialmente, o que parecia fatigá-lo muito, pois ofegava e seus olhos enchiam-se de lágrimas. O Dr. Behrens, porém, comunicava tudo quanto ouvia em palavras breves e precisas ao assistente sentado à escrivaninha, de modo que Hans Castorp não pôde deixar de pensar numa sessão no alfaiate, quando o elegante artífice toma as medidas para um traje e, numa ordem tradicional, vai colocando a fita métrica aqui e ali em volta do corpo e dos membros do freguês, para então ditar as cifras assim obtidas ao oficial que, de costas encurvadas, se empenha em anotá-las. “Sopróide”, “diminuído”, ditava o Dr. Behrens. “Vesicular”, dizia, e outra vez “vesicular” – parecia que isso era um bom sinal. “Rude”, continuava, fazendo uma careta. “Muito rude.” “Estalido.” E o Dr. Krokowski ia tomando nota, como um aprendiz faz com os centímetros ditados pelo alfaiate. Hans Castorp, com a cabeça inclinada para o lado, acompanhava os acontecimentos, perdendo-se numa contemplação pensativa do torso de Joachim, cujas costelas – graças a Deus não faltava ainda nenhuma – levantavam-se com as arfadas sob a pele tesa e ressaltavam alto por cima do estômago reentrante. Estudava esse corpo esbelto, de efebo, com a epiderme trigueiroamarelada e os pêlos negros na zona do esterno e nos braços musculosos, um dos quais exibia em volta do pulso uma corrente de ouro. “São braços de ginasta”, pensava Hans Castorp. “Ele sempre gostou de cultura física, ao passo que eu nunca achei graça nisso. Era devido à sua predileção pelas armas. Sempre se preocupou com o corpo, muito mais do que eu, ou pelo menos de outra forma; pois eu nunca deixei de ser civil, e mais me importavam banhos quentes e boas comidas e bebidas, enquanto ele se dedicava a esforços e exercícios viris. E agora o seu corpo passou para o primeiro plano, mas de um modo muito diverso; tornou-se independente e tomou ares de importância, em virtude da doença. Está ‘animado’ e não quer ‘desintoxicar-se’ e ficar ‘calmo’, por mais que o pobre Joachim deseje ser soldado, lá na planície. Imaginem! Ele tem uma compleição perfeita, tal qual o Apolo de Belvedere, com exceção dos pêlos. Mas interiormente está enfermo e por fora demasiado aquecido pela doença. Pois a doença faz o homem mais corporal, torna-o corpo e nada mais...” E ao ventilar essas idéias, assustou-se e enviou um olhar rápido e perscrutador do tronco nu de Joachim para os seus olhos negros e meigos, que a respiração forçada e a tosse artificial haviam enchido de lágrimas, e que durante o exame olhavam, melancólicos, por cima do espectador, perdendo-se no vazio. Nesse ínterim, o Dr. Behrens terminara o seu trabalho. – Está bem, Ziemssen – disse. – Tudo em ordem, dentro das possibilidades. Na próxima vez (era dentro de quatro semanas) acho que estará um pouco melhor. – Quanto tempo pensa o senhor conselheiro que... – Tem pressa, outra vez? Nesse estado de intoxicação, o senhor não pode brincar com os seus bichinhos. Meio ano, foi o que lhe disse naquele dia. Quanto a mim, pode contar a partir de então, mas considere isso como o mínimo. Afinal de contas, pode-se viver aqui, tenha paciência. Isso não é nenhum calabouço, não é uma... uma mina siberiana. Ou quer o senhor pretender que o nosso estabelecimento se pareça com uma coisa dessas? Está bem, Ziemssen. Pode ir. O seguinte, faz favor, se mais alguém tiver vontade... – exclamou, olhando para o teto. Estendendo o braço, passou o estetoscópio ao Dr. Krokowski, que se levantou e o apanhou, a fim de proceder com Joachim a um pequeno exame de assistente. Também Hans Castorp erguera-se de um pulo, e fixando os olhos no conselheiro áulico, que, com as pernas separadas e a boca aberta, se quedava absorto pelos próprios pensamentos, aprontou-se a toda a pressa. Precipitava-se; não conseguiu imediatamente sair da camisa pontilhada, quando a tirava pela cabeça. E finalmente encontrou-se à frente do Dr. Behrens, branco, louro e delgado – visivelmente de um tipo mais civil do que Joachim Ziemssen. Mas o conselheiro, continuando abstrato, deixou-o esperar. O Dr. Krokowski já voltara a sentar-se, e Joachim começara a se vestir, quando Behrens resolveu, finalmente, reparar na pessoa que “ainda tinha vontade”. – Ah! Sim, é o senhor – disse então, agarrando o braço de Hans Castorp com a gigantesca manzorra. Afastou-o um pouquinho de si e passou por ele um olhar penetrante. Não lhe estudava o rosto, assim como se faz com um ser humano, senão o corpo. Virou-o como se vira um corpo, e contemplou-lhe também as costas. – Hum! – murmurou. – É isso. Vamos ver o que o senhor vai revelar aos meus dedos. – E começou a percuti-lo, procedendo da mesma forma que antes. Explorou os mesmos lugares como no exame de Joachim Ziemssen, repetindo a percussão em diferentes pontos. Durante certo tempo insistiu, para fins de comparação, em golpear alternadamente em cima, junto da clavícula esquerda, e um pouco mais abaixo. – Está ouvindo? – perguntou, dirigindo-se ao Dr. Krokowski... Este, sentado em frente da escrivaninha, a cinco passos de distância, confirmou por um movimento de cabeça que estava ouvindo: com ar grave inclinou o queixo para o peito, de tal modo que a barba se comprimiu e as pontinhas se levantaram. – Respire profundamente! Agora tussa! – ordenou o conselheiro, que tornara a pegar o estetoscópio, e Hans Castorp esfalfou-se, durante uns oito ou dez minutos, enquanto o médico escutava sem proferir nenhuma palavra, não fazendo mais do que colocar o instrumento aqui e ali e auscultar, cuidadosa e repetidamente, vários lugares nos quais já insistira quando da percussão. A seguir enfiou o estetoscópio por baixo do braço, juntou as mãos nas costas e olhou o chão entre si e Hans Castorp. – Pois é, Castorp – disse enfim, e era a primeira vez que chamava o jovem simplesmente pelo sobrenome. – O resultado é praeter-propter, como eu esperava desde o princípio. Observei o senhor com um olho vigilante, Castorp (agora posso dizê-lo), desde o dia em que tive a imerecida honra de conhecê-lo, e cheguei à opinião bastante firme de que o senhor era, clandestinamente, um dos nossos e acabaria por perceber esse fato, como fizeram tantos outros que vieram aqui para divertir-se, estudaram o ambiente, torcendo o nariz, e um belo dia ficaram sabendo que seria conveniente para eles, e não apenas conveniente – o senhor entenda-me bem! –, abandonar a atitude de curiosidade displicente e passar aqui uma temporada extensa. Hans Castorp empalideceu e Joachim, a ponto de abotoar os suspensórios, imobilizou-se e escutou... – O senhor tem aí um primo tão bonzinho e tão simpático – prosseguiu o conselheiro, com um gesto de cabeça em direção a Joachim, enquanto se balançava alternadamente nos calcanhares e nas pontas dos pés –, um primo do qual espero que possa dizer, daqui a pouco, que um dia “esteve” doente. Ora, mesmo que chegássemos a esse ponto, não deixaria de ser uma realidade que o senhor seu primo irmão teve uma vez uma doença, e isso lança a priori, como dizem os filósofos, uma certa luz sobre o senhor, meu caro Castorp... – Mas ele não é meu primo irmão, senhor conselheiro. -será possível que o senhor queira renegar seu primo? Primo irmão ou não, em todo caso é um consangüíneo. Por que lado? – Pelo lado de minha mãe, senhor conselheiro. Ele é filho de um meia ir... – E a senhora sua mãe anda bem de saúde? – Não, senhor. Ela não vive mais. Morreu quando eu ainda era menino. – Ah! sim? De quê? – De uma embolia, senhor conselheiro. – Embolia? Bem, isso aconteceu faz muito tempo. E o senhor seu pai? – Morreu de pneumonia – disse Hans Castorp. – E meu avô também – acrescentou. – Ah, o avô também? Hum, deixemos então os seus ascendentes. Quanto ao senhor, creio que foi sempre meio anêmico, não é? Mas, e o trabalho físico ou intelectual nunca o cansou? Pelo contrário? E o senhor costuma ter palpitações? Só recentemente? Muito bem, e além disso parece existir uma decidida tendência para catarros nas vias respiratórias. O senhor sabe que já esteve enfermo? – Eu? – Sim, é à sua prezada pessoa que me refiro. Pode ouvir a diferença? – E o conselheiro áulico pôs-se a percutir a região esquerda do peito, ora em cima, ora mais embaixo. – Ali, o som é um pouco mais surdo do que aqui – disse Hans Castorp. – Ótimo! O senhor deveria tornar-se especialista. Ali há portanto uma maciez, e tal maciez tem sua origem em focos antigos que já se esclerosaram, ou se assim lhe agrada melhor, já cicatrizaram. O senhor é um doente veterano, Castorp, mas não convém censurar ninguém por não lhe ter comunicado esse fato. O diagnóstico na fase precoce é muito difícil, sobretudo para os senhores nossos colegas na planície. Eu nem quero dizer, precisamente, que nós aqui temos ouvidos mais finos, embora a especialização e a prática influam bastante. É o ar que nos ajuda a ouvir, sabe? Esse ar rarefeito e seco das alturas. – Claro, compreendo – disse Hans Castorp. – Muito bem, Castorp! E agora preste atenção, meu filho. Vou lhe dizer algumas palavras de ouro. Se no seu caso houvesse apenas isso (o senhor me entenda bem!) e tudo se limitasse àquela maciez e cicatrizes no interior do seu odre de Éolo e a esses corpos estranhos de substâncias calcáreas, eu mandaria o senhor para seus lares e penates e não me preocuparia nem um pouquinho com a sua saúde, compreende? Mas, assim sendo, e em face dos fatos que verifiquei além disso, e considerando que o senhor já se encontra aqui entre nós, não vale a pena regressar, Hans Castorp, pois dentro em breve teria de apresentar-se novamente. Hans Castorp voltou a sentir o sangue lhe afluir ao coração, fazendo com que ele martelasse violentamente. Joachim continuava de pé, com as mãos nos botões traseiros da calça, e tinha os olhos baixos. – Olhe, além da maciez – disse o conselheiro áulico –, tem o senhor à esquerda, bem em cima, uma respiração rude que toca as raias de um ruído bolhoso e provém, indubitavelmente, de um lugar novo. Não quero dizer que já se trata de um estado de fusão, mas não há dúvida nenhuma de que é um lugar úmido, e se o senhor continuasse a viver daquele jeito na planície, então lhe garanto, meu caro amigo, que mais dia menos dia todo o lóbulo iria água abaixo. Hans Castorp quedava-se imóvel; sua boca estremecia singularmente, e via-se com absoluta nitidez como o seu coração batia contra as costelas. Seu olhar vagou até Joachim, cujos olhos, no entanto, não encontrou, e dali novamente ao rosto do Dr. Behrens, com os esbugalhados olhos azuis, as faces azuladas e a boca com o bigodinho torto de um lado. – Como confirmação objetiva – continuou o conselheiro – temos ainda a sua temperatura: 37,6 às dez da manhã, o que corresponde, pouco mais ou menos, às observações acústicas. – Eu pensei – disse Hans Castorp – que essa febre viesse simplesmente do catarro. – E o catarro? – retrucou o médico. – De onde vem? Permita-me que lhe diga uma coisa, Castorp, e abra os ouvidos. Ao que saiba, o senhor dispõe de circunvoluções cerebrais em número suficiente. Bem, o ar que temos aqui é bom contra a enfermidade. Não é isso o que o senhor pensa? E com razão. Mas, ao mesmo tempo, este ar é bom para a enfermidade; compreende? No começo acelera o seu curso, revoluciona o corpo, fomenta a irrupção da doença latente, e tal irrupção é, com a sua licença, o seu catarro. Eu não sei se o senhor na planície já era propenso a febres, mas aqui, em todo caso, o senhor está febril desde o primeiro dia da sua permanência, e não somente em virtude desse seu catarro, se quiser ouvir a minha opinião. – Sim, sim – disse Hans Castorp –, é o que acho também. – Provavelmente sentiu-se logo estonteado – confirmou o conselheiro. – É a obra dos venenos solúveis que os micróbios produzem. Eles têm efeito inebriante sobre o sistema nervoso central, compreende o senhor? E daí vêm as bochechas alegremente rosadas. Bem, Castorp, o senhor vai se meter na cama; assim podemos ver se algumas semanas de repouso total bastam para desembriagá-lo. Então se falará sobre o resto. Tiraremos uma vista bonita do seu interior; o senhor gostará de espiar para dentro da sua própria pessoa. Mas já lhe digo uma coisa: um caso como o seu não se cura de hoje para depois de amanhã. Não há lugar para êxitos de propaganda e curas milagrosas. Eu tive logo a impressão de que o senhor seria um paciente melhor e teria mais talento para a doença do que esse general-de-brigada que deseja safar-se cada vez que tem uns décimos a menos. Como se “descansar armas” não fosse um comando tão bonito quanto “ombro armas”. A calma é o primeiro dever do cidadão, e a impaciência apenas o prejudica. Trate de não me decepcionar, Castorp, e eu faço questão que não desminta os meus conhecimentos psicológicos! E agora, marche-marche, para o estábulo. Com essas palavras, o conselheiro áulico deu por terminada a entrevista e sentou-se à escrivaninha, a fim de aproveitar, como homem atarefado que era, o intervalo até o próximo exame, para fazer alguns trabalhos escritos. O Dr. Krokowski, porém, ergueu-se do seu lugar, aproximou-se de Hans Castorp e, com a cabeça inclinada para trás, esboçou um sorriso cordial que descortinava no meio da barba os dentes amarelados. Pôs a mão esquerda no ombro do jovem e apertou energicamente a mão direita de Hans Castorp. CAPÍTULO V Sopa eterna e clareza repentina Achamo-nos à frente de um fenômeno a cujo respeito o narrador faz bem expressando a sua própria surpresa, para evitar que o leitor, por sua vez, o estranhe excessivamente. Com efeito, ao passo que o nosso relatório referente às três primeiras semanas da permanência de Hans Castorp ali em cima – vinte e um dias de verão a que esta, segundo todas as previsões, devia limitar-se – requereu uma extensão no espaço e no tempo que confirmava bastante bem a nossa própria maldisfarçada expectativa, a descrição das próximas três semanas da sua visita a esse lugar apenas exigirá tantas linhas, tantas palavras e tantos momentos quantas folhas, páginas, horas e jornadas aquele relatório ocupou; num abrir e fechar de olhos – como já se pode prever – liquidaremos e sepultaremos esse segundo lapso de tempo. Talvez isso pareça surpreendente; e todavia está bem assim, corresponde às leis que vigoram para quem narra e para quem escuta. Está bem e corresponde às ditas leis que o tempo se torne para nós tão longo ou tão curto, que se afigure à nossa experiência tão vasto ou tão reduzido como apareceu ao herói da nossa história, o jovem Hans Castorp, que o destino requisitou de modo inesperado. E pode ser proveitoso prepararmos o leitor, em presença do mistério que constitui o tempo, para outros milagres e fenômenos que iremos encontrar em companhia de Hans Castorp. Por enquanto, basta que todos se lembrem da rapidez com que decorre uma “longa” série de dias para o doente que os passa acamado. É o mesmo dia que se repete uma e outra vez; mas, justamente por se tratar sempre do mesmo dia, parece no fundo pouco adequado o termo “repetição”. Melhor seria falar de invariabilidade, de um presente parado ou de eternidade. Trazem-te a sopa à hora do almoço, assim como a trouxeram ontem e a trarão amanhã. E ao mesmo tempo te sentes presa de uma sensação singular que vem não sabes de onde nem por quê: és invadido por uma espécie de vertigem, enquanto a sopa se aproxima de ti; os tempos confundem-se, misturam-se no teu espírito, e o que se te revela como verdadeira forma da existência é um presente sem extensão, no qual eternamente te trazem a sopa. Seria, entretanto, paradoxal falar de fastio, quando se trata de eternidade, e queremos evitar quaisquer paradoxos, sobretudo em companhia desse nosso herói. Achava-se, pois, Hans Castorp acamado desde a tarde de sábado, porque o Dr. Behrens, a autoridade suprema do mundo que nos encerra, assim decidira. Jazia ali, com o monograma no bolsinho da camisola, as mãos juntas atrás da cabeça, na sua cama branca e limpinha, leito de morte da americana e, provavelmente, de muitas outras pessoas. Com olhos ingênuos, azuis, turvos pelo resfriado, fixava o teto do quarto, meditando sobre a singularidade da sua situação. Por outro lado, não cabe admitir que sem o resfriado os seus olhos tivessem lançado olhares claros, luzentes e inequívocos, visto que o aspecto do seu interior, por singela que fosse a sua natureza, não se apresentava dessa forma, senão muito pelo contrário, bastante perturbado, confuso, indistinto, semi-sincero e cheio de dúvidas. Às vezes, um riso louco de triunfo subia-lhe do fundo da alma e lhe sacudia o peito, enquanto seu coração estacava, dolorido, sob o efeito de uma desmedida e até então ignorada alegria e esperança; outras vezes, porém, empalidecia de susto e desassossego, e eram os golpes da sua própria consciência que o coração, numa cadência acelerada, errática, repetia, batendo-lhe nas costelas. No primeiro dia, Joachim deixou-o em completa paz, evitando qualquer discussão. Discretamente, entrou algumas vezes no quarto do doente, saudou-o com um aceno da cabeça e perguntou, por mera cortesia, se lhe faltava alguma coisa. Era-lhe, aliás, muito fácil compreender e respeitar o temor que Hans Castorp sentia por qualquer controvérsia, uma vez que ele próprio o compartilhava e, na sua opinião, até se achava numa situação mais penosa do que o primo. Mas, na manhã de domingo, ao regressar do passeio matinal que fizera sozinho, como antigamente, já não adiou por mais tempo a conversa com Hans Castorp, destinada a resolver os assuntos mais urgentes e mais necessários. Postando-se ao pé da cama, disse com um suspiro: – Pois é, não adianta fugir à realidade. É preciso tomar algumas resoluções. Estão esperando você lá em casa. – Ainda não – respondeu Hans Castorp. – Hoje talvez não, mas nos próximos dias, na quarta ou na quinta-feira. – Olhe – tornou Hans Castorp –, eles não contam comigo num dia certo. Têm mais que fazer do que aguardar-me e contar os dias até a minha volta. Quando chegar, muito bem, tio Tienappel vai dizer: “Pois então, já voltou?” E tio James dirá: “Como foi de viagem?” E se eu não regressar, levará muito tempo antes que alguém dê pela minha ausência; isso lhe garanto. Claro que qualquer dia devo avisá-los... – Você pode acreditar – continuou Joachim, dando mais um suspiro – que essa história é sumamente desagradável para mim. Que é que vai acontecer agora? Naturalmente me sinto um pouco responsável. Você vem aqui, para me visitar, é introduzido por mim, e agora está preso e não sabemos quando poderá partir e ocupar o seu lugar. Você deve compreender que isso é sumamente penoso para mim. – Perdão! – disse Hans Castorp, sempre com as mãos atrás da cabeça. – Por que você se preocupa assim? É absurdo. Será que vim aqui para lhe fazer uma visita? Foi também por isso, mas em primeiro lugar para descansar, a conselho de Heidekind. Bem, e agora se torna manifesto que necessito de muito mais descanso do que eu e todos nós tínhamos imaginado. Acho que não sou o primeiro que pensava passar aqui um fim de semana, e para quem as coisas saíram de outro modo. Lembre-se, por exemplo, do segundo filho de “Tous-les-deux”, que levou aqui um golpe muito mais forte. Eu nem sei dizer se ele vive ainda; talvez já o tenham levado durante uma refeição. Verdade é que o fato de eu estar um pouco doente constitui para mim uma surpresa. Ainda preciso familiarizar-me com a idéia de ser paciente e pertencer à roda de vocês, em vez de me sentir apenas como visitante. Mas, por outro lado, a surpresa não é tão grande assim, pois nunca tive a impressão de gozar de saúde esplêndida, e quando penso nos meus pais que morreram ambos muito jovens... donde viria afinal o esplendor? Não há como negar que você tem uma pequena lesão, embora ela esteja mais ou menos boa agora, e me parece bem possível que haja na nossa família uma tendência para isso. Behrens fez uma alusão nesse sentido. Seja como for, desde ontem estou deitado aqui e me ocupo em analisar os sentimentos que tive o tempo todo, e a atitude que tomei em relação às coisas, sabe?, em face da vida e das suas exigências. Na minha natureza houve sempre certa inclinação para a seriedade e uma determinada antipatia contra manifestações robustas e barulhentas. Faz pouco tempo que falamos a esse respeito, e eu mencionei que às vezes quase tive vontade de ser pastor, por gosto pelas coisas tristes e edificantes... Por exemplo, um pano preto, sabe?, com uma cruz de prata em cima ou com as letras R.I.P.... “Requiescat in pace” é no fundo uma bela frase e me parece infinitamente mais simpática do que “Vivat, crescat, floreat”, com sua alegria ruidosa. Creio que tudo isso se deve ao fato de que eu mesmo ando atacado pela doença e tenho, desde o começo, familiaridade com ela, como agora se torna evidente. Mas, se realmente é assim, posso dizer que fiz muito bem em ter vindo para cá e em submeter-me a um exame. Você absolutamente não precisa ter remorsos por causa disso. Não ouviu que, se eu tivesse continuado por mais algum tempo com aquela minha vida na planície, poderia ter acontecido que todo o lóbulo do pulmão fosse por água abaixo? – Disso ninguém pode ter certeza – disse Joachim. – É justamente isso o que não se sabe. Dizem que você já teve em outras ocasiões focos com os quais nunca ninguém se preocupou, e que se curaram por si mesmos, de maneira que nada deles sobrou a não ser um incômodo respiratório sem importância. É bem possível que o mesmo se teria dado com aquele lugar úmido do qual eles falam agora, se você não me tivesse visitado casualmente aqui em cima. É disso que não se pode ter certeza. – Não, a gente não pode ter certeza de nada – respondeu Hans Castorp. – E por essa razão não temos o direito de supor o pior, tampouco no que se refere ao tempo que terei de permanecer aqui como paciente. Você diz que ninguém sabe quando poderei partir, para começar a trabalhar nos estaleiros, mas disse essas palavras num sentido pessimista, e isso me parece precipitado, justamente porque não se pode saber nada. O Behrens não fixou nenhum prazo; é um homem circunspecto e não faz o papel de um adivinho. Ainda não foram feitas a radioscopia e as chapas radiográficas que lhe permitirão tirar conclusões objetivas. Quem sabe se elas apresentarão um resultado importante! Pode ser que até então eu já esteja sem febre e diga adeus a vocês. Creio que não convém dar o alarme antes do tempo e contar ao pessoal lá em casa, sem mais nem menos, histórias da carochinha. Basta escrevermos qualquer dia – eu mesmo posso fazê-lo, com a caneta-tinteiro, me soerguendo um pouco – para avisá-los de que estou fortemente resfriado, com febre e acamado, e que no momento ainda não posso viajar. Quanto ao resto, veremos depois. – Está bem – disse Joachim. – Por enquanto é suficiente. Nesse caso poderemos esperar algum tempo também com respeito às outras disposições. – Que outras disposições? – Não seja tão imprevidente! Você se preparou apenas para uma estadia de três semanas, com essa sua maleta. Vai precisar de roupas, roupa-branca, casacos de inverno, e de calçados. E afinal de contas será necessário que lhe mandem dinheiro. -se... – disse Hans Castorp -se eu precisar de tudo isso. – Bem, aguardemos os resultados. Mas convém... Não! – prosseguiu Joachim, caminhando nervosamente pelo quarto. – Não deveríamos iludir-nos. Há bastante tempo que estou aqui e entendo disso. Quando o Behrens diz que você tem um lugar com uma respiração rude que toca as raias de um ruído bolhoso... Contudo, podemos esperar, naturalmente... E assim ficou, por enquanto. As variantes semanais e quinzenais do dia normal recuperaram os seus direitos, e Hans Castorp participava delas, também na sua situação atual, desfrutando-as, senão diretamente, pelo menos através das informações que lhe dava Joachim, quando ia vê-lo e se sentava por um quarto de hora na beira da cama. A bandeja com a qual na manhã de domingo lhe apresentaram o café estava ornada com um pequeno vaso de flores, e não haviam esquecido de lhe enviar alguns dos biscoitos finos que nesse dia eram servidos na sala. Mais tarde, animava-se o movimento no jardim e no terraço, quando se iniciava, com o alarido dos clarins e o som fanhoso das clarinetas, o concerto bimensal, durante o qual Joachim permaneceu ao lado do primo. Assistia ao programa no compartimento da sacada, cuja porta ficava aberta, enquanto Hans Castorp, semi-sentado na cama, com a cabeça inclinada para um lado e com um olhar abandonado a uma sensação entre terna e fervorosa, escutava as harmonias que se arrojavam sobre ele e o faziam recordar, com um certo desdém íntimo, os discursos de Settembrini acerca da música “politicamente suspeita”. De resto, como já dissemos, inteirava-se por intermédio de Joachim dos acontecimentos e dos aspectos desses dias. Interrogou-o sobre se no domingo haviam aparecido vestidos elegantes, robes de renda ou coisa que o valha (mas fazia frio excessivo para robes de renda). Quis também saber se, pela tarde, haviam feito excursões de coche (com efeito, a Sociedade Meio-Pulmão fora in corpore até Clavadel). Na segunda-feira quis ser informado sobre a conferência do Dr. Krokowski, quando Joachim voltou dela, e, antes de começar o repouso da tarde, foi ter com ele. Joachim mostrou-se taciturno e pouco disposto a relatar pormenores da conferência, como tampouco haviam discutido a anterior. Mas Hans Castorp insistiu em conhecê-los. – Fico aqui no meu quarto e pago o preço integral – disse. – Quero também participar do que oferecem. – Relembrou a segunda-feira de duas semanas atrás, com aquele passeio que dera por conta própria e de que não se saíra muito bem. Formulou a hipótese de que fora, no fundo, esse passeio o que provocara a revolução no seu corpo e causara a irrupção da enfermidade latente. – Mas como fala o pessoal daqui! – exclamou. – A gente do povo! Com quanta dignidade e solenidade! Às vezes soa como poesia. “Pois então, passe bem, e muito agradecido!” – repetiu, procurando imitar a fala do lenhador. – Foi o que ouvi no mato e em toda a minha vida não o esquecerei. Tais coisas associam-se a outras impressões e reminiscências, sabe?, e guardam-se no ouvido até o fim dos nossos dias... O Krokowski falou outra vez do “amor”? – perguntou, fazendo uma careta ao pronunciar essa palavra. – Lógico – respondeu Joachim. – De que mais falaria? Este é, afinal, seu tema. – E que disse hoje? – Ora, nada de especial. Você já ficou sabendo, da outra vez, como ele costuma expressar-se. – Mas que novidades contou? – Nada de especialmente novo... Pois é; o que ele contou hoje foi química pura – relatou Joachim de má vontade. “Aquilo” representava uma espécie de intoxicação, de auto-intoxicação do organismo, segundo a opinião do Dr. Krokowski, tendo a sua origem na decomposição de uma substância ainda desconhecida, espalhada por todo o corpo. Os produtos dessa decomposição exerciam um efeito inebriante sobre certos centros da medula espinhal, o mesmo que sucederia no caso do consumo habitual de tóxicos, como cocaína ou morfina. – E daí vêm as tais “bochechas alegremente rosadas” – disse Hans Castorp. – Vejam só! Isso é notável! Quanta coisa não sabe aquele sujeito! É para lá de sábio, esse doutor. Espere um pouco, que qualquer dia ele acabará descobrindo a tal substância desconhecida que está espalhada por todo o corpo, e se mete a fabricar os tóxicos solúveis que embriagam o centro, para que possa embriagar a gente de um modo todo especial. Quem sabe se em outros tempos não se conseguiu isso? Ao ouvir essas coisas, pode-se acreditar que haja alguma verdade nas histórias de filtros de amor e em outras fábulas semelhantes que se encontram nos livros de lendas antigas... Você já vai? – Sim, senhor – disse Joachim. – É absolutamente necessário que me deite um pouco. Minha curva anda subindo desde ontem. O seu caso parece que mexeu com meus nervos... Assim se passaram o domingo e a segunda-feira. E fez-se manhã e tarde, e foi o terceiro dia da permanência de Hans Castorp no “estábulo”, um dia de semana sem distinção nenhuma, a terça-feira. Era, entretanto, o dia da sua chegada ali em cima, de maneira que estava em Davos havia três semanas. Assim, sentiu-se obrigado a redigir a referida carta para casa e a informar seus tios, pelo menos superficial e provisoriamente, a respeito da sua situação. Recostado no travesseiro de plumas, escreveu sobre uma folha de papel com o cabeçalho do estabelecimento, comunicando que sua partida, contra toda expectativa, seria atrasada. Contou que estava acamado com uma gripe e com febre, e que o Dr. Behrens, em virtude de um excesso de cuidado, insistia em levar a coisa a sério, já que a relacionava com a constituição geral do paciente. Pois, desde a sua primeira entrevista, o médico-chefe achara-o muito anêmico. Em suma, o prazo que ele, Hans Castorp, preestabelecera para o seu descanso, não fora julgado suficiente por essa autoridade. Acrescentou que outros pormenores seguiriam em breve... “Assim está bem”, pensou Hans Castorp. “Não há nenhuma palavra a mais e basta por algum tempo.” A carta foi entregue ao criado, que a levou diretamente ao trem, evitando a demora da caixa do correio. Com isso, as coisas essenciais pareciam bem arranjadas ao nosso herói aventuroso. De espírito tranqüilo, ainda que atormentado pela tosse e pelo nariz entupido por causa do resfriado, começou a viver do dia para o dia, acomodando-se a esse programa multiplamente subdividido em numerosos pedacinhos, do dia normal, nem fastidioso nem interessante, que era sempre o mesmo, na sua monotonia prefixada. Pela manhã, após ter batido vigorosamente à porta, entrava o massagista, um indivíduo musculoso de nome Turnher: com as mangas da camisa arregaçadas, exibia as veias avultadas dos antebraços; expressando-se com dificuldade numa linguagem gutural, friccionava Hans Castorp com álcool e tratava-o, como todos os demais enfermos, pelo número do quarto. Logo depois da sua saída aparecia Joachim, já completamente vestido, para dar o bom-dia ao primo, para inteirar-se da temperatura das sete da manhã e para comunicar a sua própria. Enquanto Joachim tomava o café lá embaixo, fazia Hans Castorp o mesmo, com o travesseiro de plumas nas costas e com o apetite voraz que uma mudança de situação costuma provocar. Mal o incomodava a irrupção pressurosa e puramente profissional dos médicos, que a essa hora já haviam atravessado a sala de refeições e se desempenhavam, a passo acelerado, da sua ronda pelos quartos dos acamados e dos moribundos. Com a boca repleta de geléia, Hans Castorp afirmava ter dormido muito bem, observava por cima da borda da xícara como o conselheiro, as mãos apoiadas na mesa central, examinava depressa a folha de temperatura, ali preparada, e com uma voz displicentemente arrastada retribuía a saudação de despedida. Depois acendia um cigarro e apenas começava a pensar que Joachim devia ter iniciado o passeio obrigatório da manhã, quando já o via voltar. Novamente conversavam sobre isto e aquilo, e o lapso de tempo até o segundo café da manh㠖 Joachim, nesse ínterim, entregava-se ao repouso – era tão curto que mesmo um perfeito cretino ou débil mental não chegaria a aborrecer-se. E muito menos ocorria isso a Hans Castorp, bastante ocupado com a digestão das impressões que lhe haviam trazido as três primeiras semanas da sua estadia ali em cima, e que além disso tinha muito que meditar acerca da sua situação presente e sobre o fim a que ela iria levar. Assim, sequer tinha necessitado dos dois grossos volumes de uma revista ilustrada que pertenciam à biblioteca do sanatório e jaziam no seu criado-mudo. E o mesmo se aplica ao intervalo durante o qual Joachim ia dar o seu segundo passeio a Davos-Platz, intervalo de uma hora, quando muito. Depois, o primo entrava de novo no quarto de Hans Castorp, para contar algumas coisinhas que lhe tinham despertado o interesse durante a caminhada, e permanecia algum tempo de pé ou sentado junto da cama, antes de se recolher ao repouso do meio-dia. E quanto tempo durava essa parte do programa? Apenas uma hora. A gente mal chegava a juntar as mãos atrás da cabeça e a mirar um pouquinho o teto do quarto, entregando-se aos seus pensamentos, e já ressoava o gongo convidando todos que não estivessem nem acamados nem moribundos a se prepararem para a refeição principal. Ia-se Joachim e vinha a “sopa do almoço”. Era essa uma denominação de simbolismo ingênuo, em consideração àquilo que traziam. Pois Hans Castorp não fora sujeito a um regime de enfermo. Para que serviria tal regime? Uma alimentação parca, de doente, não era de maneira alguma indicada para o seu caso. O que lhe serviam ali, na eternidade parada dessa hora, não era uma simples “sopa de almoço”, mas sim o cardápio do Berghof com seus seis pratos, completo e sem a mínima restrição, uma refeição opulenta nos dias de semana, e nos domingos um festim de gala, de luxo e de espetáculo, preparado por um chefe de cozinha de formação européia. A criada cuja função era atender os doentes acamados trazia-o sobre travessas niqueladas e em apetitosas caçarolas. Empurrava até ele a mesa de doente, essa maravilha unipedal de construção bemequilibrada, que também chegara recentemente a seu quarto; colocava-a por cima da cama, e Hans Castorp regalava-se como no conto de fadas o filho do alfaiate diante da mesinha mágica. Apenas terminada a refeição, Joachim aparecia de novo, e até que este se encaminhasse ao seu compartimento na sacada e o silêncio do grande repouso começasse a pairar sobre o Berghof, já eram aproximadamente duas e meia. Talvez faltasse ainda um pouquinho; para sermos exatos, eram apenas duas horas e quinze minutos. Mas não convém levar em conta tais quartos de hora supranumerários que ultrapassam as unidades redondas; são absorvidos despercebidamente, sobretudo num ambiente generoso em matéria de tempo, como, por exemplo, em viagem, ao passarmos muitas horas no trem, ou em outras ocasiões que acarretam um estado vazio de prolongada espera, fazendo com que todos os nossos esforços e toda a nossa existência fiquem reduzidos à tarefa de vencer o tempo. Duas e quinze equivalem então a duas e meia; equivalem até mesmo a três horas, pelo fato de estarem bem encaminhadas. Os trinta minutos, considerados como um prelúdio à hora que vai das três às quatro, são descontados intimamente, como se costuma fazer nessas circunstâncias. E dessa forma a duração do grande repouso reduzia-se, afinal de contas e em definitivo, a uma hora apenas, que, além do mais, se via diminuída, aparada e, por assim dizer, apostrofada pouco antes do seu fim. O apóstrofo era o Dr. Krokowski. Sim; durante a ronda que o Dr. Krokowski fazia sozinho à tarde, já não contornava o quarto de Hans Castorp. O jovem figurava agora no balanço; deixara de ser intervalo e hiato; fazia parte dos pacientes; era preciso interrogá-lo, em vez de negligenciá-lo, como lhe acontecera durante tanto tempo, para o seu descontentamento ligeiro e secreto, mas quotidiano e sensível. Fora na segunda-feira que o Dr. Krokowski aparecera pela primeira vez no quarto do nosso herói. Usamos o termo “aparecer” como adequado, dada a impressão estranha e mesmo um tanto horrível que Hans Castorp não pôde evitar naquela ocasião. Abandonara-se ele a um cochilo, ou meio cochilo, quando, num sobressalto, deu pela presença do assistente, que se achava no quarto sem ter entrado pela porta, e se aproximava dele, vindo de fora. Pois o médico tomara o caminho, não pelo corredor, mas sim pela sacada, entrando pela porta aberta, de maneira que dava a idéia de ter chegado pelos ares. Em todo caso, surgira de repente ao pé da cama de Hans Castorp, pálido, vestido de preto, espadaúdo e atarracado, o apóstrofo da hora, e por entre a barba bipartida haviam-se exibido, num sorriso enérgico, os dentes amarelados. – O senhor parece surpreendido em me ver aqui, Sr. Castorp – dissera o Dr. Krokowski com uma brandura de barítono, arrastando as palavras e falando, inegavelmente, de modo um tanto afetado, com um erre exótico, palatal, no qual não carregava, mas que emitia com um simples golpe de língua logo atrás dos incisivos superiores. – Limito-me a cumprir um dever agradável, verificando se tudo vai bem por aqui. Suas relações conosco entraram numa nova fase. Da noite para o dia, o visitante transformou-se num camarada. – A palavra “camarada” causara em Hans Castorp uma leve inquietação. – Quem teria pensado... – gracejou o Dr. Krokowski jovialmente – quem teria pensado nisso, da primeira vez que tive a honra de saudá-lo e o senhor corrigiu minha opinião errônea – era, então, errônea –, dizendo que gozava a mais perfeita saúde! Acho que, naquela ocasião, manifestei qualquer coisa parecida com uma dúvida, mas asseguro-lhe que não quis aludir a uma coisa dessas. Não desejo fazer-me mais clarividente do que sou. Não tinha em mente nenhum lugar úmido; falava num sentido diferente, mais geral, mais filosófico. Expressei as minhas dúvidas quanto à possibilidade de serem compatíveis os conceitos “homem” e “saúde perfeita”. E ainda hoje, mesmo após o resultado do seu exame, não posso, segundo as minhas opiniões, e discordando do meu prezado chefe, conceder a esse lugar úmido aí – e tocou com a ponta do dedo levemente o ombro de Hans Castorp – o primeiro plano do nosso interesse. Para mim, ele não passa de um fenômeno secundário... O que é orgânico é sempre secundário... Hans Castorp estremecera. – ...e por isso é a sua gripe, aos meus olhos, um fenômeno de terceira ordem – acrescentou o Dr. Krokowski com muita displicência. – Como vai ela? O descanso na cama terá, certamente, um efeito rápido e benéfico. Quais são as suas temperaturas de hoje? – E dali em diante, a visita do Dr. Krokowski assumira o caráter de uma simples e inofensiva formalidade, caráter que guardaram todas as demais visitas, nos dias e nas semanas que a seguiram. O Dr. Krokowski chegava faltando quinze para as quatro ou um pouquinho mais cedo, entrava pela sacada, cumprimentava à sua maneira enérgica e jovial o paciente acamado, fazia as mais rudimentares perguntas profissionais, entabulava, às vezes, uma breve conversa de natureza mais pessoal, largava algumas pilhérias cheias de camaradagem – e embora tudo isso não deixasse de encerrar uma certa dose de algo problemático, terminamos por nos acostumar, quando se mantém nos limites convenientes. Assim, Hans Castorp dentro em breve não encontrava mais nada a objetar às aparições periódicas do Dr. Krokowski, uma vez que faziam parte do dia normal e apostrofavam a hora do grande repouso. Eram, pois, quatro horas, quando o assistente se retirava pela sacada; quatro horas, isto é, plena tarde. De súbito, achava-se Hans Castorp em plena tarde, que, por sua vez, não se demorava em avizinhar-se da quase noite: quando acabavam de tomar o chá, na sala de refeições e no quarto 34, já eram perto de cinco horas, e até que Joachim voltasse do seu terceiro passeio obrigatório, e fosse novamente ter com o primo, já seria tão próximo das seis, que, numa conta redonda, o repouso até o jantar se limitaria, mais uma vez, a uma hora apenas, de forma que o tempo constituía um adversário facílimo de vencer, para quem tivesse a cabeça repleta de pensamento e dispusesse, além disso, de todo um Orbis pictus na mesinha-de-cabeceira. Joachim despedia-se para ir comer. Traziam o jantar. O vale, havia muito, enchera-se de sombras, e enquanto Hans Castorp comia, espalhava-se a olhos vistos a escuridão pelo quarto branco. Terminada a refeição, permanecia ele recostado no travesseiro, diante da mesinha de conto de fadas, então vazia, e contemplava o crepúsculo que se acentuava rapidamente, o crepúsculo desse dia que dificilmente se deixava distinguir do da véspera e do de oito dias atrás. Já era noite, e mal passara a manhã. O dia subdividido, artificialmente abreviado, desagregara-se, desvanecera-se à vista dele, conforme verificava, cheio de agradável surpresa, ou talvez um tanto pensativo; pois ainda não se achava na idade em que a gente se horroriza ante essa descoberta. Para ele era apenas como se nunca tivesse deixado de contemplar esse mesmo crepúsculo. Um dia – podia ser o décimo ou o décimo segundo, desde que Hans Castorp se deitara na cama –, a essa hora, isto é, antes que Joachim tivesse voltado do jantar e da reunião, bateram à porta do quarto. À ordem de “Entre!”, que Hans Castorp deu em voz curiosa, surgiu no limiar Lodovico Settembrini, e de golpe se fez no quarto uma claridade deslumbrante. Pois o primeiro movimento do visitante, ainda antes de fechar a porta, fora acender a luz do teto, que, refletida pelo branco das paredes e dos móveis, envolvia imediatamente o aposento numa luminosidade trêmula. Dentre todos os pensionistas, o italiano era o único de quem Hans Castorp, nesses dias, pedira especial e expressamente notícias a Joachim. Este não deixava de lhe relatar as pequenas ocorrências e modificações da vida quotidiana do estabelecimento, cada vez que se sentava, por dez minutos, na beira da cama, o que se dava dez vezes por dia. As perguntas que Hans Castorp lhe fizera haviam sido de caráter geral e impessoal. A curiosidade de jovem solitário levava-o a perguntar se, porventura, tinham chegado novos hóspedes, ou se partira uma das fisionomias conhecidas; parecia satisfazê-lo a resposta de que só aquilo sucedera. Chegara um “novo”, um moço de rosto esverdeado e cavo, que recebera um lugar à mesa da Srª. Iltis e da Srta. Levi, aquela da tez de marfim, logo à direita da mesa dos primos. Ora, Hans Castorp esperaria pacientemente a oportunidade para vê-lo. Então, não se fora ninguém? Joachim disse que não, baixando os olhos. Mas teve que responder a essa pergunta repetidas vezes, de dois em dois dias, pouco mais ou menos, e isso apesar de ter acabado por constatar, de uma vez por todas, e com alguma impaciência na voz, que segundo estava informado ninguém tencionava partir, e que não era costume ali partir assim sem mais nem menos. No que tocava a Settembrini, porém, Hans Castorp solicitara informações especiais. Desejara saber o que ele “dissera disso”. Disso o quê? “De eu estar deitado aqui e ser tratado como doente, ora essa!” Com efeito, Settembrini manifestara uma opinião, ainda que laconicamente. Logo no dia do desaparecimento de Hans Castorp, aproximara-se de Joachim, a fim de saber onde se achava o visitante; parecera disposto a receber a notícia da sua partida. Ao ouvir as explicações de Joachim, proferira apenas duas palavras italianas; dissera primeiro “Ecco!” e depois “Poveretto!”, o que significava “Está vendo?”e “Coitadinho!” (não eram precisos maiores conhecimentos de italiano do que possuíam os dois jovens para compreender o sentido dessas exclamações). “Por que poveretto?”, perguntara Hans Castorp. “Afinal, ele também se acha amarrado aqui em cima, com a sua literatura que consta de humanismo e de política, e pouca coisa pode fazer em prol dos interesses da vida terrena. Que ele deixe de se compadecer de mim do alto da sua importância. Voltarei à planície ainda antes dele.” E agora achava-se o Sr. Settembrini no quarto bruscamente iluminado. Hans Castorp, que se apoiara sobre um cotovelo e se virará em direção à porta, reconheceu-o, piscando os olhos, e corou ao fazê-lo. Como sempre, Settembrini usava o seu espesso paletó com as grandes lapelas, um colarinho meio puído, e as calças de tecido xadrez. Tendo apenas terminado a refeição, trazia, conforme o seu hábito, um palito entre os dentes. As comissuras da boca, por baixo da bela curva do bigode, entesaram-se, exibindo o conhecido sorriso fino, seco e crítico. – Boa noite, engenheiro! O senhor me dá licença para visitá-lo? Sim? Nesse caso é indispensável a luz... Desculpe a minha arbitrariedade! – disse apontando para a lâmpada do teto com um gesto elegante da mãozinha. – O senhor estava meditando? Absolutamente não lhe quero perturbar os pensamentos. Acho mesmo uma tendência para a reflexão plenamente justificada no seu caso, e para conversar o senhor dispõe, afinal de contas, do seu primo. Bem vê que tenho perfeita consciência da minha superfluidade. Contudo, estamos convivendo aqui num espaço exíguo, e assim se cria uma simpatia de homem para homem, uma simpatia espiritual, uma simpatia do coração... Já faz uma semana inteira que não o vejo. Realmente, eu já pensava que o senhor tivesse partido, quando vi o seu lugar vazio, lá embaixo, no refeitório. O tenente me informou melhor – ou devo dizer pior, sem pecar pela falta de cortesia... Numa palavra, como vai o senhor? Que anda fazendo? Como se sente? Espero que não esteja muito abatido. – Ah! Sr. Settembrini, é o senhor? É muito amável da sua parte. “No refeitório”? Ah, ah! Já está gracejando outra vez. Sente-se, por favor. Absolutamente não me incomoda. Eu estava deitado assim e me deixara levar pelos pensamentos – talvez seja até exagerado falar de pensamentos. Era simples preguiça o que me impedia de acender a luz. Muito obrigado, subjetivamente sinto-me mais ou menos bem. O repouso na cama curou-me quase completamente aquele resfriado, mas, conforme todos me dizem, isso era apenas um fenômeno secundário. A temperatura, por sua vez, ainda não é normal, às vezes 37,5, outras 37,7. Nesse ponto, nada se modificou nos últimos dias. – O senhor mede regularmente a temperatura? – Sim, senhor. Seis vezes por dia, como todos aqui em cima. Ah, ah! O senhor me desculpe, mas eu me rio ainda da denominação de “refeitório” que deu à nossa sala de refeições. Assim a chamam nos conventos, não é? Com efeito, isto aqui tem qualquer coisa de um convento. Nunca estive num convento, mas creio que deve ser bastante parecido. Também já sei as “regras” de cor e observo-as minuciosamente... – Como um frade piedoso. Pode-se dizer que o senhor terminou o noviciado e acaba de professar. Meus mais solenes votos de felicidade! O senhor já fala de “nossa sala de refeições”! Aliás, não quero ferir sua dignidade de homem, mas o senhor me lembra antes uma freirazinha do que um monge, uma pequena noiva de Cristo, recém-tonsurada, inocentinha, com os grandes olhos de uma vítima imolada. Em outros tempos já vi esse tipo de ovelhinhas, e nunca... nunca sem me entregar a um certo sentimentalismo. Ah, sim, sim! O senhor seu primo me contou. O senhor se fez examinar no último instante. – Porque me sentia febril... Veja, Sr. Settembrini, com um catarro destes, eu teria chamado o nosso médico, lá na planície. E aqui, onde a gente se acha por assim dizer na fonte, onde há dois especialistas na casa... teria sido ridículo... – Claro, claro! E o senhor já tinha tomado a temperatura antes que recebesse ordem de fazê-lo. De resto já lhe haviam dado um conselho nesse sentido logo depois da sua chegada. Foi a Mylendonk quem lhe impingiu o termômetro? – Impingiu, como? Já que eu tinha necessidade de termômetro, comprei um. – Compreendo. Um negócio absolutamente correto. E quantos meses lhe pespegou o chefe?... Grande Deus, esta pergunta já lhe fiz uma vez! O senhor se lembra? Acabava de chegar. Respondeu-me com tanta segurança... – Claro que me lembro, Sr. Settembrini. Depois, passei por muitas experiências novas, mas ainda me lembro como se fosse hoje. O senhor estava tão divertido... Nomeou o Dr. Behrens juiz do inferno... Radamés... Não, espere! o nome era diferente... – Radamanto? Pode ser que, de passagem, o tenha chamado assim. Não me lembro de tudo o que em determinada ocasião brota da minha cabeça. – Radamanto, isso mesmo! Minos e Radamanto! Aquela vez também nos falou em Carducci... – Perdão, meu caro amigo, deixemos este nome de lado. No momento, ele soa muito estranho na sua boca. – Como quiser – riu-se Hans Castorp. – Em todo caso foi por seu intermédio que aprendi muita coisa a respeito dele. Sim, então eu não suspeitava ainda de nada, e respondi ao senhor que tencionava passar três semanas aqui; não tinha nenhuma idéia do resto. A Kleefeld acabava de me assobiar com o pneumotórax, e eu estava boquiaberto. E logo naquele primeiro dia já tinha a impressão de estar com febre, pois o ar daqui é bom não somente contra a doença, mas também para ela. Às vezes precipita a sua irrupção, e quem sabe se isso não é necessário para que se realize a cura. – Uma hipótese fascinante! Será que o Dr. Behrens também lhe falou daquela teuto-russa que tivemos aqui durante cinco meses no ano passado... não, no ano retrasado? Não? É o que deveria ter feito. Uma senhora simpática, de origem teuto-russa, casada, jovem mãe. Vinha do leste, linfática, anêmica, e parece que havia também qualquer coisa mais grave. Bem, ela passa aqui um mês e logo começa a lamentar-se de que se sente mal. Paciência, paciência! Decorre outro mês, e ela continua afirmando que, longe de estar melhor, anda cada vez pior. Explicaramlhe que unicamente o médico era capaz de julgar como o paciente anda; ela só podia dizer como se sentia, e isso tinha pouca importância. E quanto ao seu pulmão, os doutores disseram estar satisfeitos. Ora, ela se cala, prossegue com o tratamento, e perde peso, semana após semana. No quarto mês desmaia durante os exames. “Não faz mal”, declara Behrens. “Estou muito contente com o estado do pulmão.” Mas, no quinto mês, ela se sente incapaz de caminhar, e escreve uma carta ao marido, lá longe no leste, e Behrens recebe uma carta dele, com as palavras “pessoal” e “urgente” no envelope, numa letra enérgica. Eu mesmo vi. “Pois é”, diz o Behrens então, dando de ombros, “parece que ela não suporta o nosso clima.” A mulher ficou fora de si. “O senhor deveria ter-me dito isso antes”, gritou. “Sempre tive essa impressão. Eu me arruinei aqui!” Esperemos que em companhia do marido, lá no leste, ela tenha recobrado as forças. – Que maravilha! O senhor narra admiravelmente bem, Sr. Settembrini. Cada palavra é mesmo plástica. Também ri muitas vezes a sós da história que nos contou sobre aquela mocinha que tomou um banho no lago, e à qual tinham que dar a “irmã muda”. Sim, senhor, acontece muita coisa neste mundo! A gente nunca pára de aprender. Quanto ao meu próprio caso, não existe ainda nenhuma certeza. O conselheiro diz que encontrou uma coisinha no meu pulmão. Eu mesmo ouvi, quando me percutiu, os lugares antigos onde estive enfermo sem saber. E agora parece que descobriu outro foco fresco, não sei onde... Acho, aliás, que a palavra “fresco” soa meio esquisita com relação a essas coisas. Mas, por enquanto, só se trata de observações acústicas, e não chegaremos a um diagnóstico seguro antes que eu volte a levantar-me e se proceda à radioscopia e à radiografia. Então, sim, teremos um resultado definitivo. – Acha mesmo? O senhor sabe que a chapa fotográfica apresenta, freqüentemente, manchas que são interpretadas como cavernas, embora sejam apenas sombras, e que em lugares onde há alguma coisa às vezes não mostra mancha nenhuma? Madonna, a chapa fotográfica! Esteve aqui um jovem numismata que tinha febre, e como tivesse febre, foram vistas, nitidamente, umas cavernas na chapa fotográfica. Pretenderam até tê-las ouvido. Trataram-no como se tivesse tísica, e no decorrer do tratamento, morreu. A autópsia demonstrou que seu pulmão estava intacto, e que falecera não sei de quê. – Ora veja, Sr. Settembrini, o senhor fala logo de autópsia. Espero que eu ainda não tenha chegado a esse ponto. -meu caro engenheiro, o senhor é um pândego! – E o senhor é muito crítico e muito cético, isto não se discute! Não acredita nem sequer na ciência exata. E a sua própria chapa mostra manchas? – Mostra, sim. – E o senhor está realmente um pouco enfermo? – Sim, infelizmente ando bastante enfermo – tornou o Sr. Settembrini, baixando a cabeça. Fez-se uma pausa, durante a qual tossiu levemente. Hans Castorp, da sua posição de repouso, contemplou o visitante reduzido ao silêncio. Era como se, com aquelas perguntas muito simples, tivesse refutado e silenciado muita coisa, inclusive a República e o belo estilo. Da sua parte, não fez nada para reavivar a conversa. Depois de algum tempo, o Sr. Settembrini ergueu-se de novo, sorrindo. – Diga-me, engenheiro – perguntou –, como é que a sua família recebeu a notícia? – Que notícia? A do adiamento do meu regresso? Ora, minha família, sabe?, minha família, lá em casa, consta de três tios, um tio-avô e seus dois filhos, cujas relações comigo são, antes, de primos. Outra família não tenho. Sou órfão de pai e mãe desde muito cedo. Como receberam a notícia? Bem, ainda não sabem muita coisa, não sabem mais do que eu mesmo. Logo no começo, quando tive de me meter na cama, escrevi-lhes uma carta, dizendo que estava fortemente resfriado e não podia viajar. E ontem, como já tivesse passado um certo tempo, escrevi outra vez, avisando que a minha gripe despertou a atenção do Dr. Behrens a respeito do meu pulmão, e que ele insistia em que eu prolongasse a minha estadia até que se esclarecesse o caso. Acho que eles se inteiraram de tudo isso com a mais completa calma. – E o seu emprego? O senhor me falou de um campo de atividades práticas ao qual tencionava dedicar-se em breve. – Sim, como voluntário. Pedi que por enquanto me desculpassem lá nos estaleiros. O senhor compreende que ninguém vai se desesperar por causa disso. Eles podem muito bem arranjar-se sem um voluntário. – Ótimo! Sob esse ponto de vista, tudo está em perfeita ordem. Fleuma em toda a linha! Em geral são muito fleumáticos, lá no seu país, não é? Mas também enérgicos. – Ah, sim, enérgicos também, muito enérgicos – confirmou Hans Castorp. Examinou, à distância, a mentalidade da sua terra e verificou que o seu interlocutor a qualificara com acerto. – Fleumáticos e enérgicos, isso mesmo. – Bem! – continuou Settembrini. – No caso de o senhor permanecer aqui por mais tempo, não nos faltará uma oportunidade para conhecer o senhor seu tio, quer dizer, o tio-avô. Sem dúvida ele virá certificar-se do seu estado. – Nem pense nisso! – exclamou Hans Castorp. – Nunca na vida! Nem dez cavalos conseguiriam arrastá-lo até aqui em cima. Meu tio é de constituição muito apoplética e quase não tem pescoço. Não, senhor! Ele precisa de uma pressão atmosférica razoável. Aqui se sentiria ainda muito pior do que aquela sua senhora teuto-russa; teria toda espécie de chiliques. – Isso me decepciona. Apoplético, foi o que disse o senhor? Que adiantam então a fleuma e a energia?... Seu tio é rico, não é? O senhor é rico também? Todos são ricos na sua terra. Hans Castorp sorriu diante dessa generalização do Sr. Settembrini. A seguir tornou a contemplar, da sua posição de repouso, aquele mundo distante, a esfera familiar à qual fora arrebatado. Recordava, esforçava-se por formar uma opinião imparcial, e a isso a distância animava-o e o tornava capaz. Por fim respondeu: – Ou se é rico, ou não se é. Tanto pior para os que não o são. Eu? Não sou milionário, mas o que possuo está garantido. Sou independente e tenho de que viver. Mas deixemos de falar de mim. Se o senhor tivesse dito: “É preciso ser rico, lá embaixo”, eu estaria de acordo. Pois quando alguém não é rico ou deixa de sê-lo... ai dele! “Aquele sujeito? Será que ainda tem dinheiro?”, perguntam então, textualmente e com essa mesma cara. Ouvi essas palavras umas quantas vezes, e vejo que se gravaram na minha memória. Agora vejo que as estranhei, embora me fossem familiares, pois do contrário não as recordaria. Que acha o senhor? Não, não creio que, por exemplo, o senhor, um homo humanus, se sentisse bem entre nós. Até eu, que, afinal de contas, me criei ali, fiquei às vezes chocado, como percebo agora, apesar de pessoalmente não ter sofrido com isso. Quem não faz servir nos seus banquetes os mais seletos e os mais caros vinhos não vê a sua casa freqüentada e não consegue casar suas filhas. Aquele pessoal é assim. Deitado aqui como estou, e observando as coisas de certa distância, fico mesmo chocado. Que palavras usou o senhor? Fleumáticos e...? Enérgicos. Sim, senhor, mas que significa isso? Isso significa duro, frio. E que significa duro e frio? Significa cruel. A atmosfera, lá embaixo, é cruel, é inexorável. Quando alguém está deitado como eu, e olha as coisas de longe, sente-se horrorizado. Settembrini ouviu-o, meneando a cabeça. Continuou assim, até que Hans Castorp chegasse a um término provisório da sua crítica e cessasse de falar. Depois disse com um suspiro: – Não quero disfarçar as formas particulares que a crueldade natural da vida assume no seio da sociedade do seu país. Seja como for, a acusação de crueldade é uma acusação bastante sentimental. Lá embaixo, o senhor dificilmente a teria empregado, por receio de parecer ridículo perante si mesmo. Com toda a razão abandonou o seu uso aos covardes da vida. Que o senhor se sirva dela agora revela esta desambientação que eu não gostaria de ver intensificar-se, pois quem se habitua ao emprego de tais qualificativos pode facilmente acabar ficando perdido para a vida e para a forma de existência que lhe é inata. Sabe o senhor, meu caro engenheiro, o que quer dizer “estar perdido para a vida”? Eu, sim, sei. Vejo isso todos os dias aqui. Ao cabo de seis meses, o mais tardar, o jovem que chega aqui (e são quase sempre jovens os que chegam) já não tem outra coisa na cabeça que não o flerte e a temperatura. E depois de um ano, quando muito, nunca mais será capaz de pensar em outra coisa e julgará “cruel”, ou melhor, defeituoso e ignorante qualquer outro pensamento. O senhor gosta de histórias. Eu poderia contar-lhe algumas. Poderia falar-lhe de certo filho e marido que passou onze meses aqui, e a quem conheci. Era um pouco mais velho que o senhor, acho eu, talvez até bastante mais velho. Como ele melhorasse aqui, deram-lhe alta, a título de experiência, e o homem voltou aos braços dos seus. Não eram tios; eram a mãe e a esposa. Durante todo santo dia ficava deitado com o termômetro na boca, e não sabia falar de outra coisa. “Vocês não compreendem isso”, dizia. “É preciso ter vivido lá em cima para saber como as coisas devem ser. Aqui embaixo não existem os conceitos básicos.” Essas queixas só terminaram quando a mãe decidiu o caso. “Volte lá para cima”, disse ela. “Você não presta para mais nada.” E ele voltou mesmo, regressou à “sua terra”. Pois o senhor deve saber que chamam isso aqui de “nossa terra”, os que viveram algum tempo aqui. O homem alienara-se completamente da esposa. Ela não tinha os “conceitos básicos” e preferiu renunciar. Entendeu que ele encontraria na “sua terra” uma companheira com os mesmos “conceitos básicos” e lá ficaria. Hans Castorp escutara distraidamente. Tinha ainda o olhar cravado na lâmpada cintilante no quarto branco, como em busca da distância. Riu-se um tanto atrasado e disse: – Ele falou da “sua terra”? Realmente, isso é mesmo um pouco sentimental, como o senhor o qualificou. Pois é, o senhor conhece inúmeras historietas. Eu continuava pensando naquilo que dizíamos, pouco atrás, sobre a dureza e a crueldade. São coisas que, nesses últimos dias, me passaram pela cabeça diversas vezes. Veja, a gente precisa ter uma pele bastante grossa para concordar completamente com a mentalidade do pessoal lá de baixo, na planície, e com perguntas como “Será que ele ainda tem dinheiro?” e com a cara que as acompanha. Quanto a mim, nunca deixei de achar isso pouco natural, embora não seja, propriamente, um homo humanus. Percebo agora que sempre impliquei com esse comportamento. Talvez haja uma relação entre essa minha atitude e a minha tendência inconsciente para a doença. Eu mesmo ouvi como o Behrens percutiu os lugares antigos, e agora afirma ele ter encontrado um pequeno foco recente. Essa descoberta surpreendeu-me um pouco, não há como negá-lo, e todavia não posso dizer que me espantei muito. Nunca me senti firme como um rochedo, e como meus pais morreram tão cedo... Sou órfão de pai e mãe, desde criança, sabe? A cabeça, os ombros e as mãos do Sr. Settembrini esboçaram um gesto contínuo, que, de uma forma jovial e polida, devia representar a pergunta: “Pois então? E daí?” – O senhor é escritor – prosseguiu Hans Castorp –, é literato. Deve, portanto, ter experiência disso e compreender que, sob essas circunstâncias, não se pode ter um espírito muito bruto e achar perfeitamente natural a crueldade da gente – das pessoas comuns, sabe?, que passeiam e riem e ganham dinheiro e enchem a pança... Não sei se me expressei... Settembrini fez uma reverência. – O senhor quer dizer – explanou – que o contato prematuro e repetido com a morte produz uma disposição fundamental da alma que nos torna sensíveis e melindrosos no que se refere às durezas e às crueldades da indiferente vida coletiva, ou, digamos, ao seu cinismo. – Exatamente! – gritou Hans Castorp com sincero entusiasmo. – Uma formulação admirável! O senhor pôs os pontos nos ii, Sr. Settembrini. “Com a morte...” Eu sabia que o senhor, como literato... Settembrini estendeu o braço, inclinando a cabeça para um lado e fechando os olhos, num gesto belo e suave, destinado a interromper o jovem e a pedir-lhe mais uns instantes de atenção. Manteve-se durante vários segundos assim, mesmo depois de Hans Castorp já se ter calado. Este aguardava com certo acanhamento o que aconteceria. Finalmente reabriu os olhos negros, os olhos de tocador de realejo, e disse: – Permita-me. Permita-me, engenheiro, que lhe diga e inculque que a única maneira sadia e nobre, aliás, também, como acrescento expressamente, a única maneira religiosa de encarar a morte é compreendê-la e senti-la como uma parte, como um complemento, como uma condição inviolável da vida, ao invés de – o que seria o contrário de sadio, nobre, sensato e religioso -separá-la espiritualmente da vida, de pô-la em oposição a ela e de usá-la como argumento contra ela. Os antigos adornavam os seus sarcófagos de símbolos da vida e da procriação, e até de símbolos obscenos. Para religiosidade antiga freqüentemente coincidiam o sagrado e o obsceno. Esses homens sabiam honrar a morte. A morte é venerável como berço da vida, como regaço da renovação. Mas, separada da vida, torna-se um fantasma, um bicho-papão, e coisa pior ainda. Pois a morte como potência espiritual independente é sumamente devassa, seu atrativo perverso é, sem dúvida, muito forte, e seria, também sem a mínima dúvida, a mais horrorosa aberração do espírito humano querer simpatizar com ela. Nesse ponto calou-se o Sr. Settembrini. Parou ao chegar a essa generalização e terminou num tom decidido. Levava o assunto a sério, e não falara só para manter a conversação. Evitara dar ao interlocutor uma oportunidade para apanhar o fio e replicar, e, baixando a voz ao fim das suas afirmações, fizera um ponto final. Permanecia sentado, a boca fechada, as mãos postas no colo, mantendo cruzadas as pernas revestidas com a calça de tecido xadrez, e limitando-se a fazer bambolear o pé de cima, que fitava com um olhar severo. Diante disso, Hans Castorp ficou calado também. Recostando-se no travesseiro de plumas, voltou a cabeça para a parede e tamborilou levemente as pontas dos dedos sobre o acolchoado. Era como se tivesse recebido uma lição, como se o houvessem chamado à ordem e mesmo repreendido. No seu silêncio havia qualquer coisa de obstinação pueril. A interrupção da conversa estendeu-se por bastante tempo. Finalmente, o Sr. Settembrini reergueu a cabeça e disse com um sorriso: – O senhor se lembra, engenheiro, de que já tivemos uma discussão semelhante, ou até a mesma? Naquela ocasião – acho que foi durante um passeio – falávamos sobre a doença e a estupidez, cuja combinação o senhor considerava paradoxal, e isso devido ao respeito que devotava à doença. Eu qualifiquei esse respeito de desatino sinistro, com o qual se desonra o pensamento humano, e para grande prazer meu, o senhor não me pareceria totalmente avesso a levar em conta as minhas objeções. Tratamos também da neutralidade e da incerteza intelectual da mocidade, da sua liberdade de escolha, da sua tendência para fazer experiências com todo tipo de pontos de vista, e constatamos que não era nem lícito nem necessário considerar tais experiências opções definitivas, válidas para o resto da vida. Quer o senhor... – e o Sr. Settembrini, com um sorriso, inclinou-se para a frente, na cadeira, com os pés juntos no chão e com as mãos comprimidas entre os joelhos, avançando levemente a cabeça, numa posição oblíqua... – quer o senhor permitir-me também no futuro... – prosseguiu, e na sua voz vibrava uma ligeira emoção – que o auxilie um pouco nas suas tentativas e experiências e que exerça uma função de corretivo, quando porventura houver o perigo de determinações funestas? – Mas como não, Sr. Settembrini! – respondeu Hans Castorp, apressando-se a abandonar a sua atitude tímida e um tanto recalcitrante. Cessou de tamborilar sobre o acolchoado e dirigiuse ao visitante com amabilidade um tanto perplexa: – Acho sumamente gentil da sua parte... Pergunto-me, de fato, se eu... Quer dizer, se no meu caso... – Sine pecunia, sabe? – citou o Sr. Settembrini, levantando-se. – Não quero ser menos generoso do que os outros. – Riram-se ambos. Ouviu-se abrir a porta de fora, e um momento após girou a maçaneta da porta interior. Era Joachim que voltava da reunião da noite. Ao ver o italiano, corou, como acontecera a Hans Castorp pouco antes, e a pele tostada do seu rosto adquiriu um matiz mais escuro. – Ah, tem visita – disse. – Que bom para você! Fiquei retido lá embaixo. Obrigaram-me a jogar uma partida de bridge. É o que chamam de bridge, oficialmente – acrescentou, dando de ombros. – Em realidade era outra coisa. Ganhei cinco marcos... – Tomara que você não pegue esse vício! – disse Hans Castorp. – Hum, hum... O Sr. Settembrini fez-me passar o tempo agradavelmente, enquanto eu esperava pela sua volta. “Agradavelmente” é aliás uma expressão pouco própria que, a rigor, se pode aplicar ao seu falso bridge. Não, o Sr. Settembrini ocupou-me o tempo de um modo muito mais elevado... Uma criatura decente deveria fazer todos os esforços para sair daqui o mais depressa possível, mesmo porque vocês já começaram a entregar-se à jogatina... Mas, a fim de ter oportunidade de ouvir o Sr. Settembrini com mais freqüência, e para deixar-me ajudar pela sua conversa, quase desejaria ter febre por um tempo indefinido e ficar preso aqui... Qualquer dia acabarão por dar-me uma irmã muda, para que eu não possa enganá-los. – Eu repito, engenheiro, que o senhor é um pândego – disse o italiano. Despediu-se do modo mais cortês. Ficando a sós com o primo, Hans Castorp deu um suspiro. – Que mestre-escola! –- exclamou... – Um mestre-escola humanista, não há como negar. A cada instante me corrige, ora por meio de historietas, ora de forma abstrata. E a conversa com ele leva a tantos assuntos diferentes! Eu nunca teria pensado que se pudesse falar sobre eles ou mesmo compreendê-los. E se o tivesse encontrado lá embaixo, na planície, tenho certeza de que não os compreenderia – acrescentou. Àquela hora, Joachim costumava permanecer algum tempo em companhia do primo. Sacrificava para isso dois ou três quartos de hora do seu repouso noturno. Às vezes jogavam xadrez na mesinha de Hans Castorp; Joachim trouxera um jogo e um tabuleiro. Depois, ia buscar seus apetrechos e, com o termômetro na boca, instalava-se na sacada, enquanto também Hans Castorp tomava a temperatura pela última vez, ao acompanhamento de música ligeira, cujos sons subiam de longe ou de perto através do vale perdido na noite. Às dez horas terminava o repouso. Ouvia-se Joachim; ouvia-se também o casal da mesa dos “russos ordinários”... E Hans Castorp deitava-se de lado, à espera do sono. A noite representava a metade mais difícil da jornada, pois Hans Castorp despertava freqüentemente e não raras vezes permanecia acordado durante longas horas, fosse porque o calor anormal de seu sangue o impedia de dormir, fosse porque sua disposição e sua capacidade para o adormecimento eram diminuídas devido à sua existência constantemente horizontal. Em compensação, as horas de sono vinham animadas por sonhos variados e cheios de vida, sonhos nos quais podia continuar devaneando depois de desperto. Se o dia se tornava breve pela múltipla subdivisão, à noite era a monotonia amorfa do progresso das horas o que produzia o mesmo efeito. Quando chegava a manhã, constituía uma distração observar como o quarto pouco a pouco se tornava cinzento e se revelava, como os objetos se salientavam e depunham o véu que os envolvera, e como a luz lá fora se acendia com um esplendor ora alegre ora avermelhado e turvo. E assim, inopinadamente, vinha outra vez o momento em que o massagista, batendo à porta com seu enérgico punho, anunciava o reinicio do programa do dia. Hans Castorp não levara um calendário na viagem, e por isso nem sempre tinha noção exata das respectivas datas. De tempos em tempos pedia ao primo informações a esse respeito, mas Joachim tampouco andava bem orientado nesse sentido. Os domingos, principalmente o do concerto bimensal, o segundo que Hans Castorp passava ali em cima, constituíam, todavia, pontos de referência. Uma coisa era certa: que nesse ínterim o mês de setembro avançara consideravelmente e estava próximo do meio. Desde que Hans Castorp se achava na cama, o tempo frio e nublado dera lugar, lá fora no vale, a uns belos dias de fim de verão, inúmeros dias desses, uma série inteira, de modo que Joachim entrava todas as manhãs de calças brancas no quarto do primo, que não podia reprimir uma sensação de sincera contrariedade, uma contrariedade de sua alma e de seus jovens músculos, diante do fato de se ver impedido de desfrutar um tempo maravilhoso assim. A meia voz dizia até que era uma vergonha deixá-lo inaproveitado. Mas, para acalmar-se, raciocinava então que, mesmo que se levantasse, não poderia passar esse tempo de modo mais prazenteiro, visto a experiência lhe proibir excesso de movimento. E a ampla e escancarada porta da sacada oferecia-lhe, pelo menos, um sabor do brilho quente do ar livre. No entanto, ao final do prazo que lhe fora imposto, o tempo mudou novamente. Do dia para a noite tornou-se brumoso e frio. O vale desapareceu numa nevada úmida, e o hálito seco da calefação a vapor encheu o quarto. Assim estava o dia em que Hans Castorp, à visita matinal dos médicos, lembrou o conselheiro áulico de que fazia três semanas desde que se acamara, e pediu licença para levantar-se. – Puxa! Já terminou? – disse Behrens. – Deixe ver! Realmente é exato. Meu Deus, como a gente envelhece! Bem, durante todo esse tempo o senhor não fez grandes progressos. Como? Ontem esteve normal? Sim, com exceção da temperatura das seis da tarde. Pois então, Castorp, não quero ser cruel. Vou devolvê-lo à sociedade humana. Levante-se e passeie, meu amigo. Dentro dos limites indicados, naturalmente! Dentro em breve faremos um retrato do seu interior. Tome nota! – acrescentou ao sair, dirigindo-se ao Dr. Krokowski, enquanto com o polegar enorme apontava por cima do ombro para Hans Castorp e fitava o assistente pálido, com os olhos azuis, injetados e lacrimosos... E Hans Castorp abandonou o “estábulo”. Com a gola do sobretudo levantada e com galochas nos pés, voltou a acompanhar o primo até o banco ao lado do curso de água, e no regresso, não sem ventilar o problema de saber por quanto tempo o Dr. Behrens o teria deixado na cama, se ele mesmo não o tivesse avisado do fim do prazo. E Joachim, com olhar melancólico, abriu a boca como para proferir um lamento desesperado, e fez no ar um gesto indefinido. “Deus meu, eu vejo!” Passou-se uma semana antes que Hans Castorp fosse convidado, por intermédio da Superiora, a Srta. von Mylendonk, a apresentar-se no gabinete de radiologia. Não quisera apressar o curso das coisas. Reinava grande azáfama no Berghof. Os médicos e o pessoal tinham, evidentemente, muito que fazer. Nos últimos dias haviam chegado novos pensionistas: dois estudantes russos com bastas cabeleiras e com camisas negras, fechadas, que não deixavam a descoberto a menor parte da roupa-branca; um casal holandês, que recebera lugares à mesa de Settembrini; um mexicano corcunda, que assustava os comensais com seus espantosos ataques de dispnéia, durante os quais se agarrava, com mãos de ferro, aos vizinhos, homem ou mulher, forçando-os, apesar de toda a resistência horripilada que lhe opusessem, e dos gritos de socorro que lançassem, a participarem da sua própria angústia. Numa palavra, a sala de refeições estava quase repleta, se bem que a temporada de inverno não começasse antes de outubro. E a pouca gravidade do caso de Hans Castorp, seu grau de enfermidade, mal lhe davam o direito de exigir atenção especial. A Srª. Stöhr, por exemplo, por mais estúpida e inculta que fosse, estava indubitavelmente muito mais enferma do que ele, e nem era bom falar do Dr. Blumenkohl. Seria faltar a todo senso de hierarquia e de distância não observar, no caso de Hans Castorp, uma reserva modesta, tendo-se ainda em conta que tal mentalidade estava de acordo com o espírito da casa. Os doentes leves não gozavam de muita consideração, como Hans Castorp deduzira de conversas que ouvira. Falava-se deles com desdém, conforme a escala de valores ali usada; eram olhados de través, não só por parte dos doentes graves e gravíssimos, senão também por aqueles que eram igualmente “leves”. Agindo assim, menosprezavam na verdade a si próprios, mas ao mesmo tempo salvaguardavam sua dignidade, por se submeterem à referida escala de valores. Isso é apenas humano. “Bah, esse sujeito!”, diziam um do outro. “Ele não sofre de nada, no fundo. Mal tem o direito de achar-se aqui. Não tem sequer uma caverna...” Tal era o espírito que reinava no sanatório; era, em certo sentido, aristocrático, e Hans Castorp inclinava-se diante dele, por um inato respeito à lei e à ordem, fosse qual fosse a sua natureza. Cada terra com seu uso, reza o provérbio. Manifestam pouca cultura os viajantes que zombam dos costumes e dos conceitos dos povos que os acolhem; há muitos tipos de qualidades suscetíveis de conferir honra a quem as possui. Mesmo em relação a Joachim, Hans Castorp observava um certo respeito e um quê de cerimônia, não só por ser o primo paciente mais antigo e seu guia e cicerone nesse mundo novo, mas antes de tudo por se tratar, sem a menor dúvida, do caso mais grave. Assim sendo, era compreensível a tendência de todos de tirar o maior efeito possível das particularidades do seu caso, até mesmo exagerando sua gravidade, na intenção de pertencer à aristocracia ou de se avizinhar dela. O próprio Hans Castorp, quando interrogado à mesa, acrescentava alguns décimos à temperatura verificada”, e não deixava de se sentir lisonjeado quando o advertiam com o dedo, como a um grande espertalhão. Mas, não obstante essa pequena gabolice, ainda continuava sendo personagem secundária, de maneira que paciência e discrição constituíam a atitude que lhe convinha. Reassumira, ao lado de Joachim, o estilo de vida das três primeiras semanas, aquele estilo já familiar, monótono e estritamente regulamentado; e tudo corria à maravilha desde o primeiro dia, como se jamais tivesse sofrido uma interrupção. Com efeito, esta fora insignificante, como Hans Castorp notou logo por ocasião do seu reaparecimento à mesa. Verdade é que Joachim, ligando deliberadamente uma importância especial a esse tipo de fatos marcantes, empenhara-se em adornar com algumas flores a mesa do primo ressuscitado. Mas a recepção por parte dos comensais foi pouco festiva e não se distinguiu quase em nada de outras, anteriores, precedidas de uma separação de três horas e não de outras tantas semanas. Não porque sentissem indiferença para com a sua pessoa singela e simpática, nem porque estivessem por demais ocupados consigo próprios, isto é, com seus tão interessantes corpos, mas somente pelo fato de não terem consciência do intervalo. E Hans Castorp podia segui-los sem esforço por esse caminho, já que se encontrava no seu lugar à extremidade da mesa, entre a professora e Miss Robinson, da mesma forma como se aí tivesse comido pela última vez na véspera. Se em sua própria mesa não se fazia grande caso do fim do seu retiro, como poderia preocupar-se com ele o resto da sala? Ali absolutamente ninguém o percebera, com a única exceção de Settembrini, que ao final da refeição se aproximara para uma saudação amistosa e brincalhona. Hans Castorp sentia-se, na verdade, inclinado a ver ainda uma exceção, a cujo respeito não nos arriscamos a opinar. Afirmava de si para si que Clávdia Chauchat dera pelo seu reaparecimento, logo quando entrara, atrasada como sempre, após ter batido a porta envidraçada; tinha certeza de que os olhos estreitos da russa o haviam fitado com um olhar ao qual ele respondera com outro; apenas se sentara, Mme. Chauchat voltara-se de novo para o lado dele, sorrindo por cima do ombro, como fizera três semanas atrás, antes de ele ter ido ao exame médico. E esse gesto fora tão pouco dissimulado, tão desprovido de consideração – tanto de consideração para com ele quanto para com os demais pensionistas –, que Hans Castorp vacilava sobre se devia sentir-se deliciado ou tomar essa atitude por um sinal de desprezo e irritar-se por causa dela. Fosse como fosse, seu coração contraíra-se convulsivamente sob a influência desses olhares, que de um modo fantástico e inebriante tinham negado e desmentido as conveniências segundo as quais se ignoravam mutuamente; contraíra-se quase que dolorosamente, já no momento em que se fechara com estrondo a porta envidraçada, momento esse que Hans Castorp aguardara com respiração ofegante. Para completarmos o nosso relato, convém acrescentar que as relações interiores entre Hans Castorp e a enferma da mesa dos “russos distintos”, a parte que seus sentidos e seu espírito modesto tomavam nessa pessoa de estatura média, de andar felino e de olhos de quirguiz, numa palavra, sua paixão -seja permitido o emprego dessa palavra, embora ela constitua um termo lá de baixo, da planície, e possa despertar a idéia de ser aplicável ao nosso caso aquela cançãozinha “No fundo de minha alma ecoa...” –, convém acrescentar, pois, que as referidas relações haviam feito grandes progressos durante o seu retiro. A imagem de Mme. Chauchat pairara diante dos olhos do jovem, quando, acordado de madrugada, contemplara o quarto que lentamente se delineava, ou quando, de tardezinha, fixara o olhar no crepúsculo cada vez mais denso – no próprio momento em que Settembrini entrara ali, acendendo subitamente a luz, flutuara essa imagem à sua frente com a mais absoluta nitidez, e fora por isso que Hans Castorp corara ao ver o humanista. Durante as diversas horas do dia subdividido, os pensamentos do enfermo haviam girado em torno da boca de Mme. Chauchat, das maçãs de seu rosto, de seus olhos, cuja cor, forma e posição lhe laceravam a alma, de suas costas lânguidas, da vértebra da nuca, que ressaltava no decote da blusa, dos braços aureolados pela finíssima gaze – e se silenciamos sobre o fato de ele se ter servido desse meio para fazer as horas passar tão depressa, foi porque participamos, simpaticamente, do desassossego de consciência que assomava em meio à assustadora felicidade causada por essas imagens e visões. Sim, existiam mesclados com ela o susto, o abalo psíquico, a esperança que se perdia no infinito, no vago, na mera aventura, existiam alegria e medo, um medo indefinível, mas que, às vezes, comprimia o coração do jovem – o coração no sentido próprio e fisiológico –, fazendo com que ele levasse uma das mãos à altura desse órgão e a outra à testa, qual,uma viseira por cima dos olhos, e murmurasse: – Deus meu! Pois, por trás da fronte havia pensamentos ou semi-pensamentos, aos quais as ditas imagens e visões deviam, na realidade, sua excessiva doçura, e que se referiam à negligência e à desconsideração de Mme. Chauchat, à sua situação de enferma, ao relevo e à acentuação que seu corpo recebia em virtude da doença, à corporificação de todo o seu ser, igualmente produzida pela enfermidade. E Hans Castorp, por decisão do médico, ia daí em diante participar desse efeito corporificador. Compreendia, por trás de sua fronte, a liberdade aventurosa com que Mme. Chauchat, ao voltar-se e sorrir para ele, ignorava o fato de eles não terem sido apresentados um ao outro, segundo as conveniências sociais, como se ambos não fossem seres sociais e não sentissem necessidade de se falar... Era precisamente isso que o assustava, que o apavorava da mesma forma como naquele instante quando, no gabinete de consultas, tirara os olhos do torso de Joachim e buscara os do primo; mas então foram a compaixão e a solicitude que lhe haviam causado esse susto, ao passo que agora experimentava emoções muito diferentes. Assim, a vida do Berghof, tão confortável e tão bem regulamentada, recobrara o seu curso monótono, em seus estreitos limites. Hans Castorp, à espera da radiografia, continuava compartilhando-a com o bom Joachim e fazendo, hora por hora, as mesmas coisas que o primo, cuja vizinhança poderia ser considerada favorável ao nosso herói. Pois, embora se tratasse apenas de uma afinidade de enfermos, havia nela uma boa parte de honradez militar; uma honradez, na verdade, que despercebidamente já estava a ponto de achar satisfação no serviço representado pelo tratamento, de modo que esse serviço se tornava, por assim dizer, um sucedâneo do cumprimento do dever lá de baixo, e uma profissão substituta. Hans Castorp não era tão estúpido que não notasse claramente essa evolução. Mas sentia muito bem o efeito refreador que ela exercia sobre sua mentalidade de civil. Talvez fosse até essa vizinhança – o exemplo que dava e o controle que exercia – o que o livrava de passos imprudentes e de empresas precipitadas. Não lhe escapava o quanto o correto Joachim sofria por causa de determinado perfume de flor de laranjeira que o envolvia diariamente, e cuja atmosfera abrangia um par de olhos castanhos, redondinhos, um pequeno rubi, muita alegria risonha, pouco justificada, e uns seios exteriormente bem-formados. E a preocupação da honra e da razão, que fazia com que Joachim temesse e evitasse a influência dessa atmosfera, comovia Hans Castorp, impunha-lhe certa disciplina e certa ordem, e impedia-o, por assim dizer, de pedir à mulher de olhos estreitos que “lhe emprestasse um lápis”. Sem o corretivo dessa vizinhança – assim o indica a experiência – talvez se houvesse disposto a fazer o contrário. Joachim nunca falava da risonha Marusja, e esse fato proibia a Hans Castorp falar de Clávdia Chauchat na presença dele. Achava compensação à mesa, trocando secretamente opiniões com a professora sentada à sua direita; esforçava-se por corar as faces da solteirona, mediante algumas piadas a respeito do seu fraco pela graciosa enferma, e ao fazê-lo imitava aquela atitude com que o velho Castorp apoiava dignamente o queixo no nó da gravata. Insistia também com ela para que o inteirasse de novos e interessantes pormenores relativos à situação particular de Mme. Chauchat, à sua origem, ao seu marido, à sua idade e ao caráter da sua doença. Queria saber se ela tinha filhos. Não, senhor, não tinha. Que faria com filhos uma mulher como essa? Provavelmente estava proibida de tê-los, e por outro lado, que espécie de filhos teria? Hans Castorp teve que lhe dar razão. Opinou com uma objetividade forçada que agora já era um pouco tarde. Às vezes, o perfil de Mme. Chauchat lhe parecia um pouco rígido. Já teria ela passado dos trinta anos? A Srta. Engelhart protestou violentamente. Clávdia, trinta anos? Quando muito, vinte e oito. E no que se referia a seu perfil, como podia o vizinho dizer uma coisa dessas? O perfil de Clávdia era de uma delicadeza e de uma suavidade puramente juvenis, se bem que fosse um perfil interessante e não o de qualquer pequena sadia. E para castigá-lo, a Srta. Engelhart acrescentou sem transição que Mme. Chauchat recebia freqüentemente visitas de senhores, em particular de um patrício dela que morava em Davos-Platz e entrava à tarde no quarto dela. Essas palavras acertaram no alvo. O rosto de Hans Castorp crispou-se apesar de todo o seu esforço, e também era forçada a maneira como proferiu as frases “Imaginem” e “Vejam só”, para passar por cima da novidade. Incapaz de dar pouca importância à existência desse compatriota, como fingira no começo, voltou a falar dele sem cessar, de lábios trêmulos. Era um homem moço? – Moço e bem-apessoado, segundo ouvi dizer – respondeu a professora. – Não tive ocasião de julgar com meus próprios olhos. – Doente? – Quando muito, ligeiramente. – Tomara –disse Hans Castorp sarcasticamente – que ele mostre um pouco mais da roupa-branca do que os seus patrícios da mesa dos “russos ordinários”. – E a Srta. Engelhart, ainda para castigá-lo, respondeu que podia garantir o contrário. Hans Castorp, terminando por admitir que esse era um assunto que merecia exame cuidadoso, encarregou-a seriamente de se informar sobre aquele compatriota que com tanta freqüência visitava Mme. Chauchat. Mas, ao invés de trazer notícias a respeito desse ponto, ela comunicou-lhe alguns dias após um fato completamente diverso. Havia a Srta. Engelhart descoberto que alguém pintava Cláudia Chauchat, que ela se deixava retratar, e perguntou a Hans Castorp se ele sabia. Podia estar certo de que a notícia procedia de fonte fidedigna. Desde algum tempo já, Mme. Chauchat posava no próprio Berghof, e quem era que lhe fazia o retrato? O conselheiro áulico! O Dr. Behrens recebia-a, para esse fim, quase diariamente no seu apartamento particular. Essa novidade emocionou Hans Castorp ainda mais que as anteriores. Daí por diante passou a fazer a seu respeito uma porção de pilhérias forçadas. Ora, ninguém ignorava que o doutor pintava a óleo. Que queria a professora? Não era coisa proibida, e todo mundo podia fazê-lo. E isso se passava nos aposentos do viúvo? Era de esperar que, pelo menos, a Srta. von Mylendonk assistisse às sessões. – Ela não tem tempo para isso. – Mas o Behrens não deveria ter mais tempo que a Superiora – ponderou Hans Castorp com severidade. Essa observação soava definitiva, mas ele estava longe de abandonar o assunto. Fez toda uma série de perguntas, para saber pormenores acerca do retrato. Quis saber-lhe as dimensões, se era de meio corpo ou de corpo inteiro. A que horas posava Mme. Chauchat? Também nesse ponto a Srta. Engelhart mostrou-se incapaz de lhe oferecer outras particularidades e pediu-lhe que esperasse com paciência os resultados das investigações ulteriores. Depois de se ter inteirado dessa notícia, Hans Castorp teve 37,7. Muito mais do que as visitas que Mme. Chauchat recebia, atormentavam-no e inquietavam-no as que ela fazia. A própria existência particular e pessoal de Mme. Chauchat, independentemente do seu conteúdo, já começara a causar-lhe sofrimento e desassossego, e quanto não se intensificariam essas sensações no momento em que ficasse sabendo de circunstâncias duvidosas relacionadas com esse conteúdo? Ainda que parecesse perfeitamente possível que as relações entre o visitante russo e a sua compatriota fossem de natureza banal e inocente, Hans Castorp sentia-se desde algum tempo inclinado a considerar a banalidade e a inocência como “lero-lero”. E tampouco podia decidir-se a formar uma opinião diferente quanto à pintura a óleo como base de relação entre um viúvo de vocabulário robusto e uma moça de olhos rasgados e andar felino. O gosto que o médico manifestara na escolha do seu modelo correspondia por demais ao seu próprio para que pudesse acreditar no caráter desinteressado da relação, e a recordação das faces azuladas e dos olhos proeminentes, estriados de vermelho, do conselheiro áulico, nada contribuía para diminuir o seu ceticismo. Um fato que Hans Castorp observou nesses dias, casualmente e por conta própria, exerceu sobre ele um efeito diferente, posto que novamente se tratasse de uma confirmação do seu gosto. À mesa colocada transversalmente à da Srª. Salomon e do colegial voraz de óculos, à esquerda da mesa dos primos e nas proximidades da porta lateral, havia um enfermo natural de Mannheim, como Hans Castorp ouvira dizer. Era um moço de trinta anos mais ou menos, com cabelos ralos e dentadura cariada, e que falava acanhadamente, o mesmo que de vez em quando tocava piano durante a reunião noturna, e quase sempre a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão. Diziam que era muito devoto – espírito que, por motivos óbvios, se encontrava freqüentemente ali em cima. Hans Castorp soubera também que o moço assistia todos os domingos ao serviço religioso em Davos-Platz e lia durante o repouso livros edificantes, com um cálice ou um ramo de palmeira na capa. E esse rapaz – foi o que Hans Castorp notou um belo dia – dirigia seus olhares ao mesmo ponto que ele próprio; cravava-os na pessoa flexível de Mme. Chauchat, e isso de um modo entre tímido e indiscreto que tocava as raias do canino. Hans Castorp, após ter observado essa atitude pela primeira vez, não pôde deixar de verificá-la com muita freqüência. Via o moço pela noite, na sala de jogo, entre os pensionistas, melancólico e absorto pelo aspecto da mulher formosa, apesar de contaminada, que se achava sentada ali, no sofá do pequeno salão, a conversar com Tamara (assim se chamava a moça extravagante de cabelos lanosos), com o Dr. Blumenkohl e com os cavalheiros de peito para dentro e ombros caídos da sua mesa. Via-o voltar-se, ir à toa de cá para lá, e virar de novo a cabeça lentamente por cima do ombro, em direção a Mme. Chauchat, olhando-a de esguelha, com uma contração lamentável do lábio superior. Via-o empalidecer e baixar os olhos, que imediatamente depois levantava outra vez, sempre que se cerrava a porta envidraçada e Mme. Chauchat deslizava até seu lugar. E observou diversas vezes como o coitado se plantava, após a refeição, entre a saída e a mesa dos “russos distintos”, para deixar que Mme. Chauchat passasse bem perto dele e para devorar, com os olhos cheios de tristeza até o fundo da alma, a mulher que nem dava pela sua presença. Também essa descoberta impressionou consideravelmente o jovem Hans Castorp, embora a mísera indiscrição do rapaz de Mannheim não o pudesse inquietar da mesma forma como as relações particulares entre Clávdia Chauchat e o Dr. Behrens, esse homem que lhe era tão claramente superior em anos, em personalidade e na posição que ocupava na vida. Clávdia absolutamente não se preocupava com o moço de Mannheim. Se fosse diferente, o fato não teria escapado à atenção aguçada de Hans Castorp. Não era, portanto, a pontada antipática do ciúme que ele sentia no coração. Mas o jovem experimentava todas as sensações que costuma experimentar um homem ébrio e apaixonado quando descobre no mundo exterior sua própria imagem, sentimento que formam a estranha mescla de repugnância e solidariedade. É impossível analisar e estudar tudo isso, se é que desejamos levar avante a nossa narrativa. Seja como for, aquilo que a observação do moço de Mannheim dava a pensar ao pobre Hans Castorp era muito forte para o seu estado de alma. Assim se passaram os oito dias até o da radioscopia de Hans Castorp. Ele não soubera que este seria o prazo, mas quando, certa manhã, na hora do café, a Superiora – ela outra vez tinha um terçol, que não podia ser o mesmo; parecia que esse mal inofensivo, mas desfigurador, tinha origem na sua constituição – deu-lhe ordem de se apresentar à tarde no laboratório, haviam decorrido precisamente oito dias. Hans Castorp devia comparecer em companhia do primo, meia hora antes do chá, pois ao mesmo tempo se tiraria um novo retrato do interior de Joachim, visto a última radiografia dele ter sido tirada havia muito tempo. Cortaram, pois, nesse dia, uns trinta minutos do repouso principal e desceram às três e meia em ponto pela escadaria de pedra até o porão fictício. Lado a lado, estavam sentados na pequena sala de espera que separava o gabinete de consultas do laboratório de radioscopia. Joachim, para quem essas coisas não representavam nada de novo, parecia completamente calmo; Hans Castorp, porém, achava-se numa expectativa um tanto febril, já que, até esse momento, nunca haviam lançado olhares à vida interior do seu organismo. Não estavam sós. Quando entraram, já se encontravam na peça alguns pensionistas, com revistas surradas sobre os joelhos, e que esperavam como eles; havia lá um jovem gigante sueco, que na sala de refeições tinha o seu lugar à mesa de Settembrini, e do qual se dizia que, na época da sua chegada, em abril, estivera tão doente que haviam hesitado em admiti-lo; desde então, porém, engordara trinta e seis quilos e estava a ponto de receber alta como totalmente curado; além dele, estava lá uma senhora da mesa dos “russos ordinários”, uma mãe de mísero aspecto, com seu filho ainda mais mísero, um garoto feio e narigudo de nome Sacha. Essas pessoas esperavam havia mais tempo do que os primos. Evidentemente, entrariam antes deles. Decerto se produzira algum atraso no gabinete de radioscopia, e disso resultaria chá frio para os primos. No gabinete estavam ocupados. Ouvia-se a voz do Dr. Behrens, que dava ordens. Já haviam passado as três e meia, quando a porta foi aberta – quem a abriu foi um assistente técnico que trabalhava nessa seção. Mandaram entrar o gigante sueco, aquele felizardo. Sem dúvida, seu antecessor fora-se por outra porta. Desse momento em diante, as coisas desenrolaram-se mais depressa. Ao cabo de dez minutos já se ouviam os vigorosos passos do escandinavo completamente curado, essa publicidade ambulante do lugar e do sanatório, que se afastava pelo corredor. Foi, então, recebida a mãe russa com Sacha. Mais uma vez, como por ocasião da entrada do sueco, notou Hans Castorp que na sala de radioscopia reinava penumbra, isto é, uma meia-luz artificial, exatamente como do outro lado, no gabinete analítico do Dr. Krokowski. As janelas estavam cobertas de cortinas; a luz do dia estava excluída, e luziam apenas algumas lâmpadas elétricas. Enquanto eram introduzidos Sacha e sua mãe e Hans Castorp os acompanhava com os olhos, descerrou-se, nesse preciso momento, a porta do corredor, e o enfermo seguinte entrou na sala de espera. Chegava muito cedo, em vista do atraso dos exames. Era Mme. Chauchat. Era mesmo Clávdia Chauchat que, de repente, se achava na exígua peça. Hans Castorp, de olhos arregalados, reconheceu-a, e sentiu perfeitamente como o sangue lhe fugia do rosto e o maxilar inferior se lhe afrouxava, a ponto de forçá-lo a abrir a boca. A entrada de Clávdia efetuara-se de modo despercebido, inopinado, e de chofre compartilhava ela com os primos aquele recinto, onde um segundo antes não estivera ainda. Joachim lançou um olhar rápido para Hans Castorp, e logo após não somente baixou os olhos, mas tornou a tirar da mesa a revista ilustrada que depusera ali pouco antes, e escondeu o rosto atrás das folhas desdobradas. Hans Castorp não teve bastante energia para fazer o mesmo. Depois de empalidecer, corou violentamente, e o coração pulsava-lhe descompassado. Mme. Chauchat sentou-se junto à porta do laboratório, numa poltronazinha redonda, de braços um tanto estropiados, como que rudimentares. Recostando-se, cruzou ligeiramente as pernas e olhou para o vazio, enquanto seus olhos de quirguiz, nervosamente desviados pela sensação de ser observada, pareciam quase vesgos. Usava suéter branco e saia azul e tinha sobre os joelhos um livro da biblioteca do estabelecimento. Batia levemente no chão com os pés. Já depois de um minuto e meio mudou de atitude. Olhou em redor de si. Levantou-se com a expressão de quem está indeciso e não sabe aonde dirigir-se. E começou a falar. Perguntou alguma coisa. Dirigiu a palavra a Joachim, muito embora este parecesse absorto na leitura da revista, ao passo que Hans Castorp ali se achava sem nada fazer. Formava palavras na boca, emprestando-lhes a voz que saía da garganta branca. Era aquela voz pouco grave, um tanto áspera, agradavelmente velada, que Hans Castorp conhecia – conhecia desde muito tempo e já ouvira uma vez, a seu lado, no dia em que lhe dissera: “Com muito prazer. Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula”. Mas aquelas frases haviam sido proferidas com mais fluência e com maior decisão. Desta vez, porém, chegavam as palavras um pouco arrastadas e trôpegas. A que falava não tinha um direito natural de usá-las; tomava-as apenas de empréstimo, como Hans Castorp já diversas vezes a ouvira fazer, experimentando um certo sentimento de superioridade, envolvido em humilíssimo deleite. Com uma das mãos no bolso do casaquinho de lã e a outra na nuca, perguntou Mme. Chauchat: – Por favor, qual é a hora que marcaram para o senhor? E Joachim, após ter relanceado os olhos para o primo, respondeu, juntando os calcanhares, mas permanecendo sentado: – Três e meia. Ela voltou a falar: – A minha hora é três e quarenta e cinco. Que é que há? São quase quatro horas. Alguém entrou agora, não é? – Sim, duas pessoas – explicou Joachim. – As que estavam à nossa frente. O serviço está atrasado. Parece que o atraso é de meia hora. – Isto é desagradável – disse ela, apalpando o penteado num gesto nervoso. – Bastante – tornou Joachim. – Nós também já esperamos há quase meia hora. Assim conversaram, e Hans Castorp escutava-os como que num sonho. Que Joachim falasse com Mme. Chauchat era quase como se ele mesmo o fizesse -se bem que, por outro lado, fosse muito diferente. Aquele “bastante” chocara Hans Castorp; a resposta parecia-lhe petulante ou pelo menos estranhamente fria, em vista das circunstâncias. Mas, afinal, Joachim podia falar assim – podia, em geral, falar com ela, e talvez até se gabasse desse atrevido “bastante”, com o mesmo ar de importância que assumira Hans Castorp perante Joachim e Settembrini, quando, ao lhe perguntarem quanto tempo pretendia permanecer em Davos, respondera: “Três semanas”. Dirigira ela a palavra a Joachim, ainda que este escondesse o rosto atrás do jornal. Sem dúvida fizera-o por ser o primo o pensionista mais antigo, a quem conhecia de vista havia mais tempo. Mas também por outra razão: entre ela e Joachim tinham cabimento relações civilizadas e uma troca de palavras articuladas; nada de selvagem, profundo, terrível e misterioso existia entre eles. Se uma certa pessoa de olhos castanhos, com um anel de rubi e com um perfume de flor de laranjeira houvesse esperado ali, perto deles, teria cabido a Hans Castorp tomar as rédeas da conversa e dizer “bastante”, independente e puro como se sentia em relação a ela. “Com efeito, bastante desagradável, senhorita”, teria dito e talvez, com um gesto desenvolto, tivesse tirado o lenço do bolso do paletó a fim de se assoar. “Tenha paciência, por favor. Estamos todos no mesmo barco.” E Joachim teria admirado sua leviandade – provavelmente sem experimentar o desejo sério de substituí-lo. Não, dada a situação, Hans Castorp tampouco tinha ciúmes de Joachim, não obstante ser o primo quem teve oportunidade de falar com Mme. Chauchat. Estava de acordo com o fato de ela se ter dirigido a Joachim. Assim fazendo, ela levara em conta as circunstâncias e demonstrara ter consciência delas... E o coração do jovem martelava. Após o tratamento displicente que Mme. Chauchat recebera da parte de Joachim, e no qual Hans Castorp até notara certa hostilidade contra a companheira de enfermidade, hostilidade que o fez sorrir apesar de toda a sua emoção, “Clávdia” tentou dar um passeio pela peça. Mas como faltasse espaço para isso, aproximou-se também da mesa, tirou dela uma revista ilustrada e voltou à poltrona dos braços rudimentares. Hans Castorp permanecia sentado, a contemplá-la, imitando o jeito do avô de apoiar o queixo na gravata, a ponto de se parecer ridiculamente com o velho. Mme. Chauchat tornara a cruzar as pernas, de maneira que a esbeltez das linhas, do joelho para baixo, tornava-se nítida sob a saia de tecido azul. Era de estatura apenas mediana, uma estatura agradável e harmoniosa aos olhos de Hans Castorp, mas tinha as pernas relativamente compridas e as cadeiras pouco largas. Já não se recostava na poltrona, mas, fincando na coxa mais elevada os antebraços cruzados, inclinava-se para a frente, com as costas convexas e os ombros tão avançados, que se salientavam as vértebras da nuca e quase se delineava, sob o suéter muito justo, a espinha dorsal, ficando comprimidos, de ambos os lados, os seios, que não eram opulentos e altos como os de Marusja, mas pequenos como os de uma menina. De súbito Hans Castorp lembrou-se de que também ela se achava à espera da radioscopia. O conselheiro áulico pintava-a, reproduzia sobre uma tela, por meio de óleo e corantes, sua aparência exterior. Dentro em breve, porém, dirigiria na penumbra sobre ela os raios que lhe revelariam o interior do corpo. E ao pensar nisso Hans Castorp voltou a cabeça com um ensombramento pudico da sua fisionomia e com aquele ar de discrição e reserva que lhe parecia adequado a essa visão. Não permaneceram os três reunidos por muito tempo na salinha de espera. Lá dentro, evidentemente, não haviam feito grandes cerimônias para liquidar os casos de Sacha e de sua mãe. Apressavam-se para recuperar o tempo perdido. Novamente a porta foi aberta pelo técnico de jaleco branco. Levantando-se, Joachim atirou a revista sobre a mesa, e Hans Castorp seguiu-o em direção à porta, não sem uma hesitação íntima. Despertaram nele escrúpulos cavalheirescos, bem como a tentação de dirigir, apesar de tudo, uma palavra convencional a Mme. Chauchat e de lhe oferecer a precedência, talvez até em francês, se isso fosse realizável. Apressadamente procurou os vocábulos e ponderou a sintaxe. Mas ignorava se esse tipo de galanteria estava em uso ali. Era possível que a ordem estabelecida ficasse acima de todo cavalheirismo. Joachim devia sabê-lo, e como não fizesse menção de ceder o seu lugar à senhora presente, apesar dos olhares comovidos e insistentes de Hans Castorp, este seguiu os passos do primo e atravessou a porta do laboratório, depois de ter passado por Mme. Chauchat, que continuava na sua posição inclinada e mal levantara os olhos. Estava ele por demais atordoado pelo que deixava atrás de si e pelas aventuras dos dez últimos minutos, para que a transferência do seu corpo ao gabinete de radioscopia pudesse produzir também uma modificação imediata do seu estado de alma. Não via nada ou apenas tinha percepções muito vagas nessa meia-luz artificial. Ouvia ainda a voz agradavelmente velada de Mme. Chauchat, quando dissera: “Que é que há?... Alguém entrou agora, não é?... Isto é desagradável...” E o som dessa voz lhe descia docemente pelas costas, fazendo-o estremecer. Via o joelho delineado sob o pano da saia; via as vértebras do pescoço salientarem-se na nuca curvada, por baixo dos curtos cabelos arruivados que nesse lugar pendiam frouxos, sem terem sido presos na trança, e um novo tremor passou-lhe pelo corpo. Deparou com o Dr. Behrens, de costas para os recém-entrados, de pé diante de um armário ou de uma estante saliente, ocupado em examinar uma chapa escura que mantinha, com o braço estendido, nas proximidades da fosca lâmpada do teto. Passando ao lado dele, chegaram ao fundo da sala, precedidos pelo técnico que fazia os preparativos para o exame. Pairava ali um cheiro esquisito. Uma espécie de ozônio deteriorado enchia a atmosfera. Entre as janelas vendadas de preto, a estante dividia o gabinete em duas partes desiguais. Distinguiam-se aparelhos de física, lentes côncavas, quadros de distribuição, instrumentos para medir, mas também uma caixa parecida com uma máquina fotográfica sobre uma armação de rodas, e dispositivos de vidro, embutidos em fileiras na parede. Não se sabia onde se estava, se no ateliê de um fotógrafo, se numa câmara escura, se na oficina de um inventor ou na cozinha de um bruxo tecnológico. Sem perder tempo, Joachim começou a desnudar-se até a cintura. O técnico, um jovem suíço atarracado, de faces rosadas, pediu a Hans Castorp que fizesse o mesmo. Acrescentou que os exames eram feitos rapidamente e que logo a seguir seria a vez dele... Enquanto Hans Castorp despia o colete, Behrens saiu da parte menor do recinto e foi ter com eles, na outra, mais espaçosa. – Olá! – disse. – Vejam só os nossos Dióscuros! Castor e Pólux!... Rogo-lhes a fineza de suprimirem quaisquer gritos lancinantes! Esperem um pouco, num instante vamos passar luz através dos dois. Parece, Castorp, que o senhor tem medo de nos revelar o seu interior. Fique tranqüilo, que tudo se passará segundo as regras da estética. Olhe aí, já viu a minha galeria particular? – E tomando Hans Castorp pelo braço, conduziu-o àquelas fileiras de vidros escuros, e dando volta a um comutador, acendeu a luz atrás delas. Eis que os vidros, iluminando-se, mostraram as suas imagens. Hans Castorp viu membros – mãos, pés, rótulas, pernas, coxas, braços e partes de bacias. Mas a forma viva, arredondada, daqueles fragmentos do corpo humano era fantasmagórica e de contornos vagos; circundava, como uma névoa ou uma aura pálida, o núcleo que ressaltava clara, minuciosa e decididamente: o esqueleto. – Muito interessante – disse Hans Castorp. – É de fato interessante – retrucou o conselheiro áulico. – Uma lição prática sumamente útil para a rapaziada. Anatomia de raios X, compreende? Um triunfo dos tempos modernos. Isto aqui é um braço de mulher, como o senhor pode perceber pela sua delicadeza. É com isso quê nos cingem nas horas de amor, sabe? – E pôs-se a rir, o que fazia levantar-se de um lado o lábio superior com o bigodinho aparado. Em seguida apagaram-se as chapas. Hans Castorp dirigiu-se para onde estavam preparando a radiografia de Joachim. Isso se dava à frente daquela saliência a cujo outro lado se achara momentos antes o Dr. Behrens. Joachim sentara-se numa espécie de tamborete de carpinteiro, diante de uma tábua contra a qual apertava o peito, e que ao mesmo tempo abraçava. O técnico corrigiu-lhe a posição com movimentos moldadores, avançando ainda mais as espáduas de Joachim e fazendo-lhe massagem nas costas. Depois, encaminhou-se para trás da máquina fotográfica, para focalizar, encurvado e de pernas separadas, como um fotógrafo qualquer, a vista a tirar; expressou então a sua satisfação e, afastando-se, recomendou a Joachim que inalasse o ar profundamente e prendesse a respiração até que a chapa fosse batida. Dilataram-se e a seguir imobilizaram-se as costas arredondadas de Joachim. Nesse momento, o técnico fez a manobra adequada no quadro de distribuição. Durante dois segundos operaram energias terríveis cujo esforço era necessário para atravessar a matéria, correntes de milhares de volts, de cem mil, como Hans Castorp julgava lembrar-se. Apenas dominadas, em prol do seu objetivo, as forças procuraram escapar por um desvio. Descargas estouravam como disparos. Chispas azuis dançavam num aparelho de medição. Relâmpagos compridos passavam, crepitando, pela parede. Em qualquer parte, uma luz vermelha, semelhante a um olho, mirava o recinto, impassível e ameaçadora. Um frasco, nas costas de Joachim, enchia-se de qualquer substância verde. Depois, tudo sossegou. Desapareceram os fenômenos luminosos, e com um suspiro Joachim soltou o ar retido nos seus pulmões. Estava tudo terminado. – O próximo réu! – chamou Behrens, dando uma cotovelada em Hans Castorp. – Não faça cera! O senhor vai ganhar uma cópia gratuita, Castorp. Assim poderá projetar os segredos do seu peito na parede, para divertir seus filhos e netos. Joachim retirara-se, e o técnico já estava mudando a chapa. O conselheiro instruiu pessoalmente o novato acerca do modo de se sentar e se agarrar. – Abraçar! – disse. – Dê um abraço à tábua! Quanto a mim pode imaginar qualquer coisa diferente. E aperte o peito firmemente contra ela, como se experimentasse sensações voluptuosas! Muito bem! Respire! Não se mexa! – ordenou. – E agora sorria! – Hans Castorp esperava de olhos piscos, com os pulmões repletos de ar. Atrás dele irrompeu a tempestade, estourando, pipocando, crepitando e amainando. A objetiva contemplara o seu interior. Ergueu-se, perturbado e aturdido pelo que acabava de lhe acontecer, ainda que a penetração nem de leve se lhe tivesse tornado sensível. – Ótimo! – elogiou o conselheiro áulico. – Agora vamos ver com os nossos próprios olhos. – E Joachim, como homem experimentado, já se encaminhara mais ao fundo da sala, para se colocar nas proximidades da porta de saída, junto a uma armação. Tinha às costas o volumoso aparelho, em cuja parte traseira se notava uma ampola de vidro, semicheia de água, com um tubo de evaporação. Diante dela, à altura do peito, achavase um anteparo emoldurado, suspenso em roldanas. À sua esquerda, no meio de um quadro de distribuição e de outro instrumental, elevava-se um globo vermelho com uma lâmpada, que foi acesa pelo Dr. Behrens, a cavaleiro sobre o tamborete à frente do anteparo. Apagou-se a luz do teto, e somente a vermelha iluminava a cena. Com um rápido gesto, o mestre fez desaparecer também esta, e profundas trevas envolveram as pessoas presentes. – Antes de tudo os olhos têm de se adaptar – ouviu-se a voz do conselheiro áulico através da escuridão. – É preciso que nossas pupilas se alarguem imensamente, como as dos gatos, para que possamos enxergar o que queremos descobrir. Os senhores compreendem que não poderíamos ver bem nitidamente com os nossos olhos ordinários, habituados à luz. Antes de começarmos, devemos esquecer o dia claro com suas imagens alegres. – Lógico – disse Hans Castorp, que se achava de pé atrás do médico. Fechou os olhos, pois tanto fazia tê-los abertos ou cerrados, tão negra era a noite. – É necessário que os olhos tomem um banho de escuridão, para que possam enxergar uma coisa dessas. Entende-se. Acho até conveniente e indicado que a gente aproveite esse tempo para se concentrar um pouco, por assim dizer, numa prece silenciosa. Estou aqui de olhos fechados e sinto uma sonolência agradável. Mas que cheiro é esse? – Oxigênio – explicou o conselheiro; – é o oxigênio que o senhor sente no ar. O produto atmosférico da nossa tempestade particular, compreende?... E agora abra os olhos! – acrescentou. – Já vai começar a evocação. – Hans Castorp obedeceu depressa. Ouviu-se a mudança de uma alavanca de lingüeta. Um motor sobressaltou-se, pôs-se a cantar furiosos agudos, mas foi logo regulado por uma segunda manobra. O chão vibrava ritmicamente. A luzinha vermelha, oblonga e vertical, encarava-os, como uma ameaça muda. Em qualquer parte crepitou um relâmpago. E lentamente, com um brilho leitoso, qual uma janela que se iluminasse, ressaltou das trevas o pálido retângulo do anteparo luminoso, diante do qual o Dr. Behrens cavalgava o seu tamborete de sapateiro, com as coxas escancaradas, e com os punhos fincados nelas, apertando o nariz achatado contra a vidraça que lhe permitia a visão interior de um organismo humano. – Está vendo, rapaz? – perguntou... Hans Castorp inclinou-se por cima do ombro dele, mas tornou a levantar a cabeça para olhar na direção onde supunha estarem, no meio da escuridão, os olhos de Joachim, que provavelmente tinham aquela mesma expressão meiga e triste do último exame. E perguntou ao primo: – Você permite? – Pois não – respondeu Joachim generosamente de dentro das trevas. O chão continuava vibrando, e as energias em ação estalavam e rumorejavam, enquanto Hans Castorp, curvado, espiava pela lívida janela, espiava através da ossatura vazia de Joachim Ziemssen. O esterno confundia-se com a espinha dorsal numa espécie de coluna escura, cartilaginosa. A fileira anterior das costelas estava entremeada pela das costas, que parecia mais pálida. As clavículas, em elegante curva, bifurcavam-se mais acima, para ambos os lados, e na suave auréola dos contornos da carne exibia-se, seco e nítido, o esqueleto dos ombros, a juntura dos úmeros de Joachim. Era muito clara a cavidade do peito, mas distinguia-se um sistema de veias, manchas escuras, uma negrejante aspereza. – Imagem clara – disse o conselheiro áulico. – É a magreza decente da mocidade militar. Já tive aqui panças impenetráveis. Não havia meio de distinguir a menor coisa que fosse. Seria preciso descobrir antes os raios capazes de atravessar tal camada de banha... Este aqui, sim, é um trabalho limpo. Pode ver o diafragma? – perguntou, apontando com o dedo para o arco escuro que subia e descia na parte inferior da janela... – Está vendo, à esquerda, essas bossas, essas protuberâncias? É a pleurisia que ele teve faz quinze anos... Respire profundamente! – ordenou. – Mais! Eu disse: “Profundamente!” – E o diafragma de Joachim erguia-se, trêmulo, o mais alto que podia. Notava-se um clareamento nas regiões superiores do pulmão, mas o conselheiro não estava satisfeito. – Insuficiente – observou. – O senhor vê os hilos? Veja as aderências! Está vendo as cavernas? É daí que vêm os tóxicos que o: embriagam. – Mas a atenção de Hans Castorp achava-se toda absorvida por alguma coisa parecida com um saco, qualquer massa estranha, como que animalesca, que aparecia, escura, atrás da coluna central, na sua maior parte à direita do espectador – massa que regularmente se dilatava e se contraía, um pouco à maneira de uma medusa a nadar. – O senhor vê o coração? – perguntou o conselheiro, desprendendo novamente a manzorra da coxa e designando com o indicador aquele saco palpitante... Grande Deus! Era o coração o que Hans Castorp contemplava, o orgulhoso coração de Joachim. – Estou vendo o seu coração – disse com voz estrangulada. – Pois não – tornou Joachim, e sem dúvida sorria, resignado, ali na escuridão. Mas o médico mandou-os calar-se e deixar de trocar sentimentalismos. Estudou as manchas e as linhas, aspereza preta na cavidade interior do peito, e enquanto isso, Hans Castorp tampouco se cansava de olhar a forma sepulcral de Joachim, o seu esqueleto, essa armação descarnada, esse escanifrado memento. Sentia-se cheio de devoção e de terror. – Sim, sim, eu vejo – disse diversas vezes. – Deus meu! Eu vejo! – Ouvira falar de uma mulher, uma parenta, havia muito falecida, da família Tienappel, distinguida pelo dom, ou talvez pela desgraça, de uma visão sinistra, que suportara com toda a humildade: as pessoas que morreriam em breve apareciam-lhe sob a forma de esqueletos. Deste modo é que Hans Castorp via o bom Joachim, embora com a ajuda e por meio da aparelhagem da ciência física e óptica, de maneira que isso não queria dizer grande coisa e nada havia de sobrenatural, tratando-se ainda de um espetáculo que o primo lhe permitira expressamente. Sem embargo, sentiu-se de repente tomado de uma profunda compreensão do destino melancólico daquela tia visionária. Violentamente emocionado pelo que via, ou, no fundo, pelo fato de o ver, tinha a alma acossada por secretas dúvidas, a ponto de se perguntar se tudo aquilo se passava de forma lícita, se sua visão, naquelas trevas vibrantes e chispantes, era de fato inocente; e no seu peito mesclava-se o angustiante prazer da indiscrição com os sentimentos de comoção e de piedade. Mas, poucos minutos após, ele mesmo se achava no pelourinho, em plena tempestade, enquanto Joachim vestia o seu corpo que tornara a ser opaco. De novo olhava o conselheiro áulico através da vidraça leitosa; dessa vez esquadrinhava o interior de Hans Castorp, e das suas observações feitas à meia voz, de certos resmungos abruptos e de algumas expressões vagas, parecia deduzir-se que o resultado correspondia às suas expectativas. Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a própria mão através do anteparo luminoso. E Hans Castorp viu o que devia ter esperado, mas que, em realidade, não cabe ver ao homem, e que jamais teria crido poder ver: lançou um olhar para dentro do seu próprio túmulo. Viu, antecipado pela força dos raios, o futuro trabalho da decomposição; viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente, no meio da qual se destacava o esqueleto minuciosamente plasmado da sua mão direita, e em torno da primeira falange do dedo anular pairava, preto e frouxo, o anel-sinete que o avô lhe legara, um objeto duro desta terra, com o qual os homens adornam o seu corpo destinado a desfazer-se por baixo dele, para que fique novamente livre e se possa enfiar em outra mão que o use durante algum tempo. Com os olhos daquela parenta da família Tienappel, contemplou uma parte familiar do seu corpo, estudou-a com olhos videntes e penetrantes, e pela primeira vez na vida compreendeu que estava destinado a morrer. Enquanto isso, sua fisionomia tomou aquela expressão que costumava assumir quando ouvia música – expressão bastante tola, sonolenta e piedosa, com a boca entreaberta e a cabeça inclinada para um ombro. O conselheiro disse: – Fantasmagórico, hein? Sim, senhor, inegavelmente há nisso qualquer coisa de fantasmagoria. E mandou sustar a energia. O chão serenou; esvaíram-se os fenômenos luminosos; a janela mágica voltou a envolver-se em trevas. A luz do teto foi acesa. E enquanto também Hans Castorp se vestia, Behrens dava aos jovens alguns esclarecimentos a respeito das suas observações, levando em conta os reduzidos conhecimentos de leigos dos dois. No que se referia a Hans Castorp, o resultado óptico confirmou o acústico com toda a precisão que a honra da ciência podia exigir. Haviam sido visíveis os lugares antigos tanto como outros, recentes, e partindo dos brônquios estendiam-se cordões muito adentro do órgão – cordões com nozinhos. Hans Castorp poderia verificá-los com seus próprios olhos no pequeno diapositivo que lhe seria entregue em breve. – Por conseguinte, calma, paciência, disciplina de homem! Comer, tirar a temperatura, repousar, esperar, não ter pressa. – Com isso voltou-lhes as costas. Foram-se os primos. Hans Castorp, ao sair atrás de Joachim, olhou por cima do ombro. Introduzida pelo técnico, Mme. Chauchat entrou no laboratório. Liberdade Quais eram, afinal, as impressões do jovem Hans Castorp? Parecia-lhe que as sete semanas que ele, comprovada e indubitavelmente, acabava de passar ali em cima não eram mais que sete dias? Ou parecia-lhe, pelo contrário, que já vivia nesse lugar havia muito, mas muito mais tempo do que em realidade se passara? Ele mesmo ventilava esse problema, tanto de si para si, como também interpelando Joachim, sem, no entanto, chegar a resolver a questão. Uma coisa e outra, provavelmente, eram verdade: ao seu olhar retrospectivo, o tempo ali passado afigurava-se tanto excessivamente longo como excessivamente breve. Um único aspecto desse tempo, entretanto, escapava-lhe sempre: sua duração real – admitindo-se ser o tempo um fenômeno natural e ser lícito relacionar com ele o conceito da realidade. Fosse como fosse, o mês de outubro estava prestes a começar; podia chegar a qualquer instante. Era fácil para Hans Castorp fazer as contas; além do mais, as conversas dos seus companheiros de enfermidade, que escutava por acaso, chamavam-lhe a atenção sobre esse fato. – Vocês sabem que daqui a cinco dias será novamente o fim do mês? – ouviu Hermine Kleefeld dizer, dirigindo-se a dois rapazes da sua turma, o estudante Rasmussen e aquele indivíduo beiçudo, de nome Gänser. Estavam tagarelando depois da refeição principal, entre as mesas, por cima das quais pairava um cheiro de comida. Ainda hesitavam em se recolher e em começar o repouso. – Primeiro de outubro – continuou a moça. – Eu mesma vi na folhinha do escritório. É o segundo da mesma espécie que passo neste oásis de prazer. Bem, acabou-se o verão, se é que tivemos verão. A gente sente-se roubada, como nos roubaram a vida, sob todos os pontos de vista. – E soltou um suspiro do seu meio pulmão, sacudindo a cabeça e fitando o teto com os olhos velados pela estupidez. – Ânimo, Rasmussen! – acrescentou, dando uma palmada no ombro caído do companheiro. – Conte-nos algumas anedotas! -sei muito poucas – replicou Rasmussen, com as mãos pendentes como barbatanas, à altura do peito. – E não consigo contá-las bem, estou sempre muito cansado. – Nem um cachorro – murmurou Gänser entre dentes – gostaria de viver assim, ou de um modo semelhante, por muito tempo. – E todos riram, dando de ombros. Também Settembrini, com seu palito entre os lábios, andava por perto, e ao saírem disse a Hans Castorp: – Não lhes dê crédito, engenheiro. Nunca lhes dê crédito quando resmungam. Todos o fazem, sem exceção, se bem que se sintam aqui como em casa, mais do que em casa, mais do que lhes convém. Levam uma vida de vadios e ainda exigem compaixão. Julgam-se com o direito de serem amargos, irônicos, cínicos. “Neste oásis de prazer!” Acaso não é isto um oásis de prazer? A mim, parece-me que é, e isso no sentido mais equívoco da palavra. “Roubada”, disse essa fêmea, “roubaram-me a vida neste oásis de prazer!” Mas dê-lhe alta e mande-a para a planície, e a vida que ela levará lá embaixo manifestará apenas uma única coisa: seu ardente desejo de voltar para cá o mais depressa possível. Sim, senhor, a ironia! Acautele-se com o tipo de ironia que cultivam aqui, meu caro engenheiro! Acautele-se, em geral, com essa atitude de espírito! Onde ela não é um meio correto e clássico da eloqüência, perfeitamente compreensível a qualquer intelecto sadio, chega a ser licenciosidade, torna-se um obstáculo à civilização, um namorico escabroso com a estagnação, com o vício, com o oposto do espírito. Uma vez que a atmosfera em que vivemos favorece altamente o desenvolvimento dessa flor dos pântanos, posso esperar ou devo até temer que o senhor me compreenda. Com efeito, as palavras do italiano eram de tal gênero que, se Hans Castorp as tivesse ouvido seis semanas antes na “planície”, teriam representado para ele sons vazios de significado. Mas a permanência ali em cima fizera-lhe o espírito mais receptivo; receptivo no sentido de uma compreensão intelectual, sem implicar ao mesmo tempo o da simpatia, o que talvez seja ainda mais significativo. Sentia-se intimamente satisfeito, porque Settembrini, depois de tudo o que acontecera, ainda continuava falando com ele à sua maneira, continuava dando-lhe instruções e advertências e procurava influenciá-lo; e todavia a sua receptividade intelectual se refinara de tal modo, que era capaz de formar uma opinião acerca das palavras do italiano e negar-lhes, pelo menos até certo ponto, a sua aprovação. “Imaginem”, disse de si para si, “ele fala da ironia quase da mesma forma como da música. Só falta que a chame de ‘politicamente suspeita’, a partir do momento em que ela deixe de ser ‘um meio de ensino correto e clássico’. Mas uma ironia que em nenhum instante desse lugar e equívocos – que ironia seria essa? – pergunto eu, uma vez que se trata de dar a minha opinião. Seria árida e cheiraria a mestre-escola!” Eis a ingratidão da juventude em formação! Aceita presentes, para logo criticar-lhes os defeitos. No entanto, achava muito arriscado expressar essas suas idéias recalcitrantes. Limitou suas objeções ao juízo que o Sr. Settembrini fizera de Hermine Kleefeld, juízo que lhe parecia injusto ou que, por certos motivos, queria que fosse tal. – Mas essa moça está enferma – disse –, está, realmente e fora de dúvida, muito doente e tem toda a razão de se desesperar. Que quer o senhor que ela faça? – A doença e o desespero – retrucou Settembrini – são muitas vezes apenas formas da licenciosidade. “E Leopardi?”, pensou Hans Castorp. “Ele desesperou abertamente da ciência e do progresso. E o nosso próprio mestre-escola? Não está também enfermo e volta para cá uma e outra vez? Carducci gostaria muito pouco da vida que ele leva.” Em voz alta, porém, disse: – Essa é boa! Qualquer dia destes aquela moça pode bater as botas, e o senhor fala de licenciosidade! Precisa me explicar isso um pouco mais claramente! Se o senhor afirmasse que a doença é às vezes uma conseqüência da licenciosidade, seria plausível... – Muito plausível – aparteou Settembrini. – Ora bolas! Será que o senhor se daria por satisfeito se eu não fosse além dessa afirmação? – ...ou se dissesse que a doença muitas vezes serve de pretexto à licenciosidade, eu aceitaria também isso. – Grazie tanto! – Mas a doença como forma da licenciosidade? Quer dizer que ela não é um produto da licenciosidade, mas é, ela própria, licenciosidade? Isso me parece paradoxal – Por favor, engenheiro, nada de imputações levianas! Desprezo os paradoxos, detestoos! Tome nota de que tudo quanto lhe disse sobre a ironia se aplica também ao paradoxo, e ainda outras coisas mais! O paradoxo é a erva venenosa do quietismo, a irisação do espírito apodrecido, a maior licenciosidade de todas! Verifico, aliás, que o senhor volta a defender a enfermidade... – Não, o que o senhor diz me interessa muito. Está me trazendo à memória certas idéias que o Dr. Krokowski explana nas suas conferências de segunda-feira. Ele também considera a doença orgânica um fenômeno secundário. – Um idealista pouco limpo. – Que tem o senhor contra ele? – Justamente isto. – O senhor não gosta da análise? – Depende. Gosto dela muito ou pouco, alternadamente, meu caro engenheiro. – Como devo compreender o que o senhor disse agora? – A análise é boa como instrumento do esclarecimento e da civilização; é boa, quando abala convicções estúpidas, dissipa preconceitos naturais e solapa a autoridade; é boa, em outros termos, enquanto liberta, refina, humaniza e prepara os escravos para a liberdade. É má, muito má mesmo, quando estorva a ação, quando prejudica as raízes da vida e se mostra incapaz de lhe dar forma. A análise pode ser uma coisa pouco apetitosa, repugnante como a morte, à qual talvez pertença, afinal de contas, sendo afim do túmulo e da sua anatomia mal-afamada... “Bem urrado, Leão!”, não pôde Hans Castorp deixar de pensar, como sempre quando o Sr. Settembrini explanava um assunto pedagógico. Mas limitou-se a dizer: – Recentemente estudamos anatomia de raios, lá no subsolo. É o termo que Behrens empregou, quando fez a nossa radioscopia. – Ah, o senhor já passou por essa etapa também? E então? – Vi o esqueleto de minha mão – disse Hans Castorp, procurando evocar as sensações que lhe despertara aquele espetáculo. – O senhor também pediu que lhe mostrassem a sua? – Não, senhor. Não me interessa nem um pouquinho ver o meu esqueleto. E qual é o diagnóstico médico? – Ele encontrou cordões. Cordões com pequenos nós. – Que sujeito diabólico! – Não é a primeira vez que o senhor chama assim o Dr. Behrens. Que quer dizer com isso? – Fique certo que se trata de um termo eufemístico. – Não, Sr. Settembrini, o senhor é injusto. Admito que o homem tenha seus defeitos. Sua maneira de falar, com o tempo, foi se tornando desagradável para mim. Tem qualquer coisa de forçado, principalmente para quem se recorda de que ele teve aqui o grande desgosto de perder sua mulher. Mas, afinal de contas, o Dr. Behrens é homem de méritos e digno de respeito. Tratase de um benfeitor da humanidade sofredora! Faz poucos dias encontrei-o, quando ele acabava de operar; vinha de uma ressecção de costelas, uma intervenção durante a qual a vida do enfermo estava por um fio. Causou-me profunda impressão vê-lo voltar do seu trabalho complicado e útil, de que entende com tanta perfeição. Parecia ainda muito excitado, e como prêmio do seu esforço acendeu um charuto. Tive inveja dele. – Muito bonito da sua parte! Mas qual é a pena que impôs ao senhor? – Ele não estabeleceu nenhum prazo fixo. – Nada mal! Pois então, engenheiro, vamos deitar-nos. Ocupemos os nossos postos. Separaram-se diante do número 34. – E o senhor sobe ao telhado, Sr. Settembrini? Deve ser mais divertido ficar deitado em companhia do que estar a sós. A gente conversa lá em cima? Há pessoas interessantes entre os seus companheiros de repouso? – Oh, há apenas partos e citas. – Quer dizer russos? – E russas – tornou o Sr. Settembrini, enquanto se entesava uma das comissuras da sua boca. – Adeusinho, engenheiro. Indubitavelmente, essas palavras tinham sido ditas de propósito. Hans Castorp estava confuso quando entrou no quarto. Sabia Settembrini o que se passava com ele? Provavelmente o espiara com intenções pedagógicas, e lhe seguira a direção dos olhos. Hans Castorp encolerizavase contra o italiano e contra si próprio, porque, não sabendo dominar-se, provocara a alfinetada. Enquanto procurava pena e papel, a fim de levá-los consigo ao repouso – pois já não era conveniente esperar e tinha de ser escrita uma terceira carta para casa-–, continuava a exasperarse. Murmurou qualquer coisa contra aquele doidivanas e criticastro, que se intrometia no que não era da sua conta, e todavia assobiava, ele mesmo, para as moças na rua. Hans Castorp não se sentia disposto a escrever. Esse tocador de realejo, com suas indiretas, estragara-lhe todo o bom humor. Mas, fosse como fosse, era preciso ter trajes de inverno, dinheiro, roupa-branca, calçados – em suma, tudo o que Hans Castorp teria trazido se tivesse imaginado que passaria ali não somente umas três semanas de pleno verão, mas um prazo... um prazo ainda indeterminado, que, em todo caso, ocuparia boa parte do inverno, ou, tendo-se em conta as idéias que “entre nós, aqui em cima” vigoravam a respeito do tempo, se prolongaria até o seu fim. Era justamente isso que urgia comunicar à família, pelo menos como possibilidade. Era necessário fazer, desta vez, um trabalho completo, dizer ao pessoal de casa a verdade nua e crua, e não manter neles possíveis ilusões... Assim disposto, começou a escrever, servindo-se da técnica que diversas vezes vira Joachim empregar: deitado na espreguiçadeira com a caneta-tinteiro na mão e a pasta de viagem sobre os joelhos dobrados. Utilizou uma folha de papel de cartas do estabelecimento, das quais havia uma boa provisão na gaveta da sua mesa. Dirigiu a carta a James Tienappel, que lhe era o mais íntimo dentre os seus três tios. Pediu-lhe informasse o cônsul. Falou de um contratempo desagradável, de receios que se haviam confirmado, da necessidade, verificada pelos médicos, de permanecer ali em cima durante parte do inverno, ou mesmo durante toda a estação fria, visto casos como o seu serem freqüentemente mais persistentes do que outros de aparência mais impressionante. Afirmou tratar-se de intervir com energia e precaver-se em tempo. Sob esse ponto de vista – opinou –, era uma verdadeira sorte e um acaso feliz ter ele subido e aproveitado o ensejo de se submeter a um exame; caso contrário, poderia ter acontecido que ignorasse, por muito tempo ainda, o seu estado, e mais tarde, talvez, ficasse sabendo dele de uma forma mais penosa. Quanto à duração provável do tratamento, não seria de estranhar se tivesse de desperdiçar com ele o inverno todo e não voltasse à planície antes de Joachim. Os conceitos de tempo eram ali diferentes dos que se aplicavam à permanência normal numa estação balneária. O mês era, por assim dizer, a menor unidade de tempo, e um só não seria absolutamente levado em conta... Fazia frio, e Hans Castorp escrevia agasalhado com o sobretudo e envolto num cobertor. De vez em quando tirava os olhos do papel que se ia enchendo de frases razoáveis e convincentes, e levantava-os para contemplar a paisagem familiar, cuja presença já quase deixara de perceber, aquele vale alongado, com a cordilheira de cumes – nesse dia de uma palidez vítrea – à sua saída, com o fundo claro, salpicado de casas, que às vezes resplandecia ao sol, e com as encostas cobertas de mato ou de pradaria, de onde vinha o tilintar de cincerros de vacas. Hans Castorp escrevia com uma facilidade cada vez maior, e não compreendia como pudera ter receio da redação dessa carta. Enquanto a redigia, persuadia-se a si próprio de que não podia haver coisa mais concludente do que as suas explicações, as quais sem dúvida encontrariam em casa a mais completa aprovação da parte dos seus tios. Jovens da sua classe e da sua situação financeira cuidavam da saúde, quando isso lhes parecia conveniente, e aproveitavam as comodidades especialmente preparadas para pessoas da sua condição. Se tivesse partido para casa, era certo que o teriam mandado de volta, ao ouvirem o que ele tinha que contar. Hans Castorp pediu que lhe enviassem as coisas de que necessitava. Terminou solicitando a remessa regular do dinheiro de que precisava; oitocentos marcos por mês seriam suficientes para cobrir todas as despesas. Assinou. Estava feito o trabalho. Essa terceira carta esgotava o assunto e teria um efeito duradouro – não segundo os conceitos de tempo que reinavam lá embaixo, mas segundo os dali de cima. Consolidaria a liberdade de Hans Castorp. Era essa a palavra que ele empregava, não expressamente, e nem sequer formando as sílabas no seu íntimo, mas sentindo-lhe o significado mais amplo, assim como o aprendera ali, significado que pouco tinha que ver com aquele que Settembrini dava à palavra. A isso, uma onda de espanto e de emoção, sentimento já conhecido dele, percorreu-lhe o interior, arrancou-lhe um suspiro e lhe fez estremecer o peito. Sentia a cabeça congestionada de tanto escrever, e suas faces ardiam. Tirou o termômetro da mesinha com a lâmpada e mediu a temperatura, como para aproveitar uma ocasião. O mercúrio subia a 37,8. “Estão vendo?”, pensou Hans Castorp. Acrescentou o seguinte pós-escrito: “Esta carta me cansou. A minha temperatura é 37,8, neste momento. Vejo que, por enquanto, devo levar uma vida muito quieta. Desculpem se escrever só raras vezes!” Feito isso, permaneceu deitado e elevou a mão contra o céu, com a palma para fora, assim como fizera diante do anteparo luminoso. Mas a luz celeste deixou intacto o seu aspecto de vida. Diante da sua clareza, a matéria da mão até se tornou mais opaca e mais escura, e somente os contornos afiguravam-se numa vaga iluminação vermelha. Era a mão viva, que Hans Castorp estava habituado a ver, a lavar, a usar, e não aquela armação estranha com que se defrontara através do anteparo. A cova analítica, que então vira aberta, voltara a se fechar. Caprichos do mercúrio Começou outubro como costumam começar os meses. Sua entrada é, no fundo, bem discreta e completamente silenciosa, sem sinais nem fogueiras; os meses insinuam-se sem fazer ruído, de um modo que facilmente escapa à atenção de quem não esteja muito alerta. Em realidade, o tempo não tem marcas; não há trovões nem trombetas ao início de um novo mês ou de um novo ano; e na própria estréia de um novo século somos unicamente nós, os homens, que soltamos foguetes e repicamos os sinos. No caso de Hans Castorp, o primeiro dia de outubro não diferiu em nada do último de setembro. Estava igualmente frio e desabrido, e os dias seguintes passaram-se da mesma forma. No repouso eram necessários o sobretudo de inverno e os cobertores de lã de camelo, não só à noite, mas também durante o dia. Os dedos com que Hans Castorp segurava o livro estavam úmidos e enregelados, se bem que as faces lhe ardessem num calor seco. Joachim sentia-se tentado a recorrer ao saco de peles, mas desistiu, para não se mimar antes do tempo. Alguns dias mais tarde, porém, ainda no decorrer da primeira quinzena do mês, mudou tudo e irrompeu um veranico atrasado de tamanho esplendor, que o espanto foi geral. Com muita razão ouvira Hans Castorp elogiar o mês de outubro dessas paragens. Durante duas semanas e meia, aproximadamente, um céu magnífico estendeu-se por cima do vale; cada dia ultrapassava o anterior na pureza do azul, e o sol irradiava com uma intensidade, tão veemente, que todos se viram induzidos a ir buscar os trajes mais leves de verão, já relegados às malas; ressurgiram, pois, os vestidos de musselina e as calças de linho, e nem sequer o grande guarda-sol de lona, que, mediante um engenhoso mecanismo – um sarrafo de diferentes furos –, se fixava no braço da espreguiçadeira, oferecia ao meio-dia um abrigo suficiente contra o astro abrasador. – Que sorte eu poder ainda desfrutar este tempo – disse Hans Castorp ao primo. – Tivemos às vezes dias tão ruins! E agora quase parece que o inverno já passou e se aproxima a boa estação. –- Tinha razão. Poucos sinais indicavam a verdadeira época do ano, e também estes eram insignificantes. Excetuando-se alguns bordos plantados em Davos-Platz, onde levavam uma existência penosa, e que fazia muito tempo haviam desoladamente deixado cair as suas folhas, não existiam por ali árvores frondosas, cujo estado imprimisse à paisagem o cunho da estação. Somente o alno alpestre, árvore híbrida, de agulhas macias, que as perde como se fossem folhas, mostrava a calvície outonal. As demais árvores da região, as altas tanto como as mirradas, eram coníferas sempre verdes, resistentes ao inverno, que, na falta de limites distintos, pode distribuir as suas nevadas pelo ano inteiro. Eram apenas os diversos matizes de um vermelho ferrugíneo, nas copas da floresta, que, apesar do ardor estivai do céu, revelavam o declínio do ano. Verdade é que, para o olhar mais atento, havia ainda as flores dos prados a anunciar o mesmo fato, na sua linguagem suave. Já não se viam o salepo, parente das orquídeas, e os arbustos da aqüilégia, que na época da chegada do visitante tinham adornado as encostas; também o cravo silvestre desaparecera. Unicamente a genciana e os caules curtos do lírio verde eram visíveis e testemunhavam certa frescura íntima da atmosfera superficialmente aquecida, um frio capaz de penetrar de súbito a própria medula do homem deitado, quase que tostado exteriormente, assaltando-o tal como um calafrio ataca o enfermo abrasado pela febre. Quanto a Hans Castorp, não observara interiormente aquela ordem com que o homem, ao lidar com o tempo, controla o seu curso, dividindo, contando e denominando as suas unidades. Não prestara atenção ao silencioso início do décimo mês. Somente o impressionava o que lhe feria os sentidos, o ardor do sol que ocultava uma secreta frescura e lhe causava uma sensação nova na sua intensidade, e que o induzia a uma comparação culinária: fazia-o pensar, conforme disse a Joachim, numa “omelette surprise” que continha quaisquer coisas geladas sob a espuma quente dos ovos. Externava freqüentemente idéias desse gênero, falando com rapidez e fluência, numa voz emocionada, como faz quem treme de frio apesar de ter a pele ardente. Verdade é que houve também intervalos durante os quais se mostrava taciturno, para não dizer ensimesmado, pois sua atenção continuava dirigida para fora, concentrada embora num único ponto, ao passo que tudo o mais – pessoas tanto como objetos -se diluía numa espécie de bruma, originária do seu próprio cérebro, e que os doutores Behrens e Krokowski sem dúvida alguma teriam qualificado de “produto de venenos solúveis”, como o jovem repetia a si mesmo, sem que essa percepção lhe proporcionasse a capacidade, e nem sequer o desejo, de se libertar da sua embriaguez. Tratava-se de uma ebriedade que tinha o seu objetivo em si mesma e à qual nada se afigurava mais odioso e menos almejável do que o desembriagamento. Esse estado defendia-se também contra quaisquer impressões que lhe pudessem enfraquecer a força; não as admitia, a fim de se conservar intacto. Hans Castorp sabia e mencionara, ele mesmo, em outras ocasiões, que Mme. Chauchat não era favorecida quando vista de perfil. Seu rosto parecia então um tanto rígido e muito menos jovem. E a conseqüência? Evitava olhá-la de perfil. Cerrava literalmente os olhos, quando, porventura, ela oferecia esse aspecto que o magoava. Por quê? Sua razão deveria ter exultado por ter uma oportunidade para impor-se. Que querem? Hans Castorp empalideceu de encanto quando Clávdia, num desses dias radiosos, na hora do café da manhã, voltou a apresentar-se com seu rolo de rendas, que usava em dias de calor, e no qual ficava extraordinariamente graciosa – quando assim entrou, atrasada, batendo a porta com estrondo, e risonha, com os braços ligeiramente erguidos a alturas desiguais, enfrentou a sala, para se exibir. Mas o que o encantava era menos o fato de ela aparecer tão bonita, do que a sensação de que isso reforçava a doce névoa que pairava na sua cabeça, aquela ebriedade que se bastava a si mesma e desejava ser justificada e alimentada. Um perito da mentalidade de Lodovico Settembrini, à vista de tamanha falta de boa vontade, teria talvez falado de licenciosidade, ou de uma de suas formas. Hans Castorp recordava às vezes as idéias literárias que o italiano expressara acerca “da enfermidade e do desespero”, e que ele mesmo achara ou fingira achar incompreensíveis. Contemplava Clávdia Chauchat, a lassidão das suas costas, a posição avançada da sua cabeça; via como ela chegava atrasada à mesa, sem razão nem desculpa, exclusivamente por falta de ordem e de energia civilizada; via como, em virtude dessa mesma falta, batia atrás de si cada porta por que entrava ou saía; via como formava bolinhas de miolo de pão e roia de vez em quando os lados das pontas dos dedos e surgia nele um pressentimento tácito: se ela estava doente – o que ela estava sem dúvida, e quiçá sem esperança, já que se vira forçada a viver ali em cima repetidas vezes e por muito tempo –, sua doença era, senão toda, ao menos em grande parte de natureza moral, e efetivamente, como dissera Settembrini, não se tratava nem da causa nem do efeito da sua “negligência”, senão de uma coisa inerente a ela. Hans Castorp relembrava também o gesto desdenhoso que fizera o humanista ao falar dos “partos e citas”, cuja companhia tinha de suportar durante o repouso; um gesto de desprezo e de repúdio naturais e espontâneos, que não necessitavam de justificativa, e eram muito familiares a Hans Castorp, em outros tempos, quando ele, que à mesa mantinha uma postura bem tesa, odiava as portas fechadas com estrondo, e jamais se sentia tentado a roer as unhas (por dispor, em vez disso, do recurso do Maria Mancini), se escandalizara gravemente com a má educação de Mme. Chauchat e não pudera evitar uma sensação de superioridade, ao ouvir a forasteira de olhos rasgados procurar expressar-se na sua própria língua natal. Mas, a essa altura dos acontecimentos, Hans Castorp, devido ao estado íntimo do seu espírito, abandonara quase totalmente esse modo de sentir. Era antes o italiano que o irritava, por ter falado, na sua sobranceria, de “partos e citas”, sem sequer se referir a pessoas da mesa dos “russos ordinários”, onde os estudantes de cabelos extraordinariamente bastos e de roupa-branca invisível discutiam sem cessar no seu idioma exótico, o único evidentemente que conheciam, e cujo caráter desprovido de ossos fazia pensar num tórax sem costelas, como aquele que o Dr. Behrens acabava de descrever. Era inegável que os hábitos dessa gente eram capazes de despertar num humanista vivos sentimentos de distância. Comiam com a faca e sujavam a privada de forma inenarrável. Settembrini afirmava que um dos membros dessa roda, um acadêmico já adiantado no curso de medicina, mostrara-se absolutamente ignorante em matéria de latim; nem soubera, por exemplo, o que era um vacuum. E segundo a própria experiência diária de Hans Castorp, não mentia a Srª. Stöhr quando contava, à mesa, que o casal do número 32 recebia o massagista, quando de manhã este se apresentava para ministrar a fricção, ambos deitados na mesma cama. Tudo isso podia ser verdade, e não fora inutilmente que se instituíra a separação manifesta entre os “distintos” e os “ordinários”. Hans Castorp afirmava a si próprio que apenas o fazia dar de ombros aquele propagandista da república e do belo estilo, que altiva e prosaicamente – sobretudo prosaicamente, embora também ele andasse febril e embriagado – abarcava o pessoal das duas mesas sob a denominação de “partos e citas”. O jovem Hans Castorp compreendia muito bem em que sentido Settembrini usara essas palavras. Não começara ele também a compreender a relação existente entre a enfermidade de Mme. Chauchat e a sua “negligência”? Mas dera-se o que ele próprio descrevera, certo dia, a Joachim: no início a gente se escandaliza e experimenta sentimentos de distância, mas de repente “intromete-se qualquer coisa completamente diversa”, que “nada tem que ver com o juízo”, e logo se acaba a indignação moral, a ponto de as pessoas se tornarem quase inacessíveis a influências pedagógicas de natureza republicana ou eloqüente. Mas que é isso? – perguntamos, provavelmente de acordo com a mentalidade de Lodovico Settembrini. Qual é essa coisa duvidosa que, intrometendo-se, paralisa e elimina o juízo dos homens, privando-os do direito de o usarem, ou melhor, fazendo com que renunciem ao seu uso com um entusiasmo insensato? Não perguntamos pelo nome dessa coisa, porquanto todos o conhecem. Indagamos acerca da sua índole moral e – confessamo-lo francamente – não esperamos resposta muito otimista. No caso de Hans Castorp, essa índole manifestou-se de tal maneira, que ele não somente deixou de usar o seu juízo, mas também se pôs a experimentar, ele próprio, aquele gênero de vida que o preocupava. Tentou saber que tal era a sensação de quem, à mesa, ficava sentado relaxadamente, com as costas lassas, e verificou que isso constituía grande alívio para os músculos da bacia. Além disso, procurou não fechar, meticulosamente, a porta que atravessava, mas batê-la atrás de si, e também esse método mostrou-se bastante cômodo e adequado, expressando, mais ou menos, a mesma coisa que aquele hábito de dar de ombros que ele notara em Joachim, logo da sua chegada, na estação, e que reencontrara muitas vezes entre as pessoas dali de cima. Para empregarmos palavras simples – o nosso herói estava agora apaixonado até a raiz dos cabelos por Clávdia Chauchat. Usamos novamente esse termo, uma vez que pensamos ter feito o necessário para evitar o mal-entendido que ele poderia originar. Não era, portanto, uma melancolia amavelmente sentimental, no sentido da já referida cançãozinha, o que constituía a essência da sua paixão. Era antes uma variante bem perigosa e erradia daquela fascinação, mescla de frio e calor, qual o estado de um homem febril ou um dia de outubro nas regiões elevadas; e o que lhe faltava era precisamente um elemento sentimental que ligasse os componentes extremos. Por um lado, referia-se, com um imediatismo que fazia o jovem empalidecer e lhe crispava as feições, ao joelho de Mme. Chauchat, às suas costas, às vértebras da sua nuca e aos seus braços que comprimiam os pequenos seios – referia-se, numa palavra, ao seu corpo, esse corpo lânguido e intensificado, ao qual a doença dava uma acentuação exagerada, convertendo-o duplamente em corpo. E por outro lado, era essa paixão algo sumamente volátil e vasto, uma idéia, não, um sonho, o sonho temeroso e infinitamente sedutor de um jovem, cujas perguntas precisas, embora não formuladas de maneira consciente, haviam sido respondidas apenas por um silêncio vazio. Como todo mundo, reivindicamos também nós o direito de fazer, no decorrer da presente narrativa, as nossas próprias conjecturas, e chegamos a supor que Hans Castorp não teria ultrapassado o prazo preestabelecido para a sua estadia ali em cima e nem sequer teria alcançado, nesse ambiente, o dia em que paramos, se sua alma singela houvesse encontrado, nas profundezas do tempo, uma informação satisfatória quanto ao sentido e à finalidade desse serviço que é a vida. De resto, sua paixão infligia-lhe todas as dores e proporcionava-lhe todas as alegrias que esse estado acarreta em toda parte e em todas as circunstâncias. A dor é pungente; contém um elemento degradante, como toda dor, e representa tamanho abalo do sistema nervoso que embarga a respiração e é capaz de arrancar a um homem adulto lágrimas amargas. Para também fazermos justiça às alegrias – estas eram numerosas e, ainda que nascessem de motivos insignificantes, não menos intensas que as mágoas. Por exemplo: prestes a entrar na sala de refeições, Hans Castorp nota atrás de si o objeto dos seus sonhos. O resultado é conhecido de antemão e de suma simplicidade, mas arrebata-lhe a alma com aquela força que faz brotar as lágrimas. Os olhos encontram-se de perto, os seus próprios e os glaucos olhos dela, cuja forma e posição levemente asiáticas o encantam até a medula. Ele já não tem consciência, mas, mesmo assim, dá um passo para o lado, a fim de deixar livre a passagem pela porta. Com um meio sorriso e um merci pronunciado em voz baixa aceita ela esse seu oferecimento apenas cortês, passa por ele e atravessa o limiar. Ei-lo na aura da personalidade que acaba de roçá-lo, louco da felicidade que lhe causam a coincidência e o fato de uma palavra da sua boca, esse merci, ter-se dirigido direta e pessoalmente a ele. Segue-a; a passo vacilante encaminha-se à direita, para a sua mesa, e enquanto se deixa cair na cadeira pode verificar que Clávdia, sentando-se igualmente, se vira para ele com ar pensativo, motivado, como parece a Hans Castorp, pelo encontro junto à porta. Ó ventura assombrosa! Ó júbilo, triunfo, exultação sem limites! Não, Hans Castorp jamais teria experimentado essa embriaguez de fantástica satisfação, ao receber um olhar de alguma pequena sadia, lá embaixo, na planície, à qual tivesse “dado o seu coração”, num impulso lícito, sossegado e esperançoso em conformidade com aquela cançãozinha. Com uma jovialidade febril cumprimenta a professora, que observou tudo e ficou com a pele veludosa corada; a seguir assalta Miss Robinson, com uma tentativa tão absurda de conversação inglesa que a senhorita, não habituada a êxtases, recua violentamente e o mede com um olhar cheio de temor. Outra vez, durante o jantar, os raios de um esplêndido pôr-do-sol caem sobre a mesa dos “russos distintos”. Haviam corrido as cortinas das portas do avarandado e das janelas, mas em alguma parte sobrou uma fresta, através da qual um clarão vermelho, deslumbrante, apesar de frio, abre caminho e fere justamente a cabeça de Mme. Chauchat, de maneira que, na conversa com o compatriota de peito sumido à sua direita, ela tem de resguardar os olhos com a mão. É um incômodo, mas tão pouco grave que ninguém se preocupa. A própria interessada nem sequer parece reparar na pequena contrariedade. Mas Hans Castorp descobre-a através de toda a sala. Observa-a durante alguns instantes, examinando a situação, acompanhando o caminho dos raios e fixando o ponto de onde incidem. É da janela ogival, lá atrás, à direita, no canto entre uma das portas do avarandado e a mesa dos “russos ordinários”, muito distante do lugar de Mme. Chauchat e quase igualmente afastado do de Hans Castorp. E ele toma as suas decisões. Sem proferir nenhuma palavra, levanta-se, passa, com o guardanapo na mão, diagonalmente, por entre as mesas, atravessa a sala, une cuidadosamente as cortinas creme, certifica-se, com um olhar por cima do ombro, de que o clarão vesperal já não pode mais entrar e que Mme. Chauchat está livre daquele inconveniente, e, esforçando-se por parecer indiferente, volta à sua mesa. Um jovem atencioso que faz o necessário, já que mais ninguém se lembra de fazê-lo. Muito poucos notaram a sua intervenção; Mme. Chauchat, porém, sentiu-se imediatamente aliviada e virou-se em direção a ele, conservando essa posição até que Hans Castorp alcançou o seu lugar e, sentando-se, olhou para ela, que, com um sorriso entre amável e surpreendido, agradeceu, avançando um pouco a cabeça, sem propriamente incliná-la. Ele retribuiu com uma mesura correta. Seu coração quedouse imóvel, parecendo ter deixado de pulsar. Somente mais tarde, quando tudo terminara, pôs-se a martelar, e foi então que Hans Castorp percebeu que Joachim tinha os olhos discretamente cravados no prato. Ao mesmo tempo observou que a Srª. Stöhr dava uma cotovelada no Dr. Blumenkohl e, com um risinho afogado, procurava olhares cúmplices em toda parte, na sua própria mesa tanto como nas demais... Relatamos um acontecimento cotidiano, mas o cotidiano torna-se estranho quando se desenvolve em terreno estranho. Havia tensões e soluções benéficas entre eles, ou quando não entre eles – pois deixamos em suspenso até que ponto Mme. Chauchat participava delas –, ao menos existiam para a imaginação e para a sensibilidade de Hans Castorp. Naqueles belos dias, muitos pensionistas tinham o costume de ir, depois do almoço, ao avarandado situado à frente da sala de refeições, onde, durante um quarto de hora, permaneciam em grupos, expondo-se ao sol. Aquilo oferecia um aspecto semelhante ao das reuniões dominicais por ocasião do concerto bimensal da charanga. Os jovens absolutamente ociosos, supersaturados de iguarias de carne e de guloseimas, e todos ligeiramente febris, falavam, pilheriavam e trocavam olhares. A Srª. Salomon, de Amsterdam, ia sentar-se rente à balaustrada, enquanto a acossavam com os joelhos o beiçudo Gänser e, do outro lado, o gigante sueco, que, embora totalmente restabelecido, ainda prolongava a sua estadia em prol de uma pequena cura suplementar. A Srª. Iltis parecia ser viúva, pois que, desde há pouco, regozijava-se com a companhia de um “noivo”, aliás de aparência melancólica e subalterna, e cuja presença não a impedia de aceitar, simultaneamente, as homenagens do Capitão Miklosich, homem de nariz adunco, bigode untado de pomada, peito saliente e olhos ameaçadores. Havia lá as damas do alpendre, de diferentes nacionalidades, entre elas algumas figuras novas, aparecidas desde 1.° de outubro, e cujos nomes Hans Castorp ainda ignorava. No meio delas achavam-se cavalheiros da laia do Sr. Albin, jovens de dezessete anos, guarnecidos de monóculo; um rapaz holandês de cara rosada, com óculos e com uma paixão monomaníaca pelo intercâmbio de selos; diversos gregos, de olhos amendoados, recendendo a brilhantina e inclinados a desrespeitar, quando à mesa, os direitos dos comensais; dois peralvilhos inseparáveis, apelidados de “Max” e “Moritz”2, e que tinham a fama de dar numerosas escapadelas... O mexicano corcunda, cuja ignorância dos idiomas ali representados lhe imprimia expressão de surdo, tirava sem cessar fotografias, arrastando consigo, com uma agilidade engraçada, o tripé de um lado para outro do terraço. Às vezes aparecia também o conselheiro áulico para exibir o truque dos cordões de sapato. Em alguma parte, solitário, o devoto de Mannheim abria caminho por entre a multidão, e seus olhos tristes até o fundo seguiam, para viva repugnância de Hans Castorp, determinados rumos secretos. Para nos ocuparmos, uma vez mais, daquelas “tensões e soluções”, podia acontecer numa dessas conjunturas que Hans Castorp, instalado numa cadeira laqueada de jardim, rente ao muro da casa, conversasse animadamente com Joachim, a quem, apesar da sua relutância, obrigara a sair com ele, e visse como à sua frente Mme. Chauchat se mantinha junto à balaustrada, fumando um cigarro em companhia dos seus comensais. E o jovem falava alto para que ela o ouvisse. Mas Mme. Chauchat lhe virava as costas... Como se vê, aludimos agora a um caso determinado. A palestra do primo não bastara para alimentar-lhe a loquacidade afetada, de modo que, intencionalmente, travara conhecimento com uma pessoa estranha. Quem era? Hermine Kleefeld. Como por acaso, Hans Castorp dirigira a palavra à mocinha, apresentando-se formalmente a si mesmo e a Joachim, e puxara uma cadeira laqueada também para ela, a fim de desempenhar papel de destaque numa cena de três. Será que ela se lembrava ainda – perguntou – de que maneira diabólica o assustara naquele dia, quando do seu primeiro encontro, durante o passeio matutino? Sim, fora ele que recebera aquelas boas-vindas cordiais, dadas por meio de um assobio animador. E realmente, ela conseguira o que queria, pois – Hans Castorp confessava-o 2 Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.) francamente – ele sentira-se como que fulminado. Que a senhorita perguntasse ao primo se isso não era verdade, Ah, ah! assobiar com o pneumotórax para espantar os transeuntes inofensivos! Isso era um jogo ímpio, um abuso pecaminoso – assim o classificava ele com toda a sinceridade e com justa cólera... E enquanto Joachim, ciente do seu papel de mero instrumento, continuava sentado com os olhos baixos e a Kleefeld também aos poucos chegava a deduzir, dos olhares cegos e erráticos de Hans Castorp, o fato humilhante de que sua pessoa servia apenas de meio para determinado fim, Hans Castorp prosseguia amuando-se, tomando ares afetados, expressando-se em termos rebuscados e procurando dar à sua voz uma bela sonoridade, até que enfim conseguiu que Mme. Chauchat se voltasse para ver quem falava tão espalhafatosamente, e o encarasse, por um instante apenas. Deu-se então o seguinte: seus olhos de quirguiz resvalaram rapidamente pelo corpo de Hans Castorp, que se achava sentado com as pernas cruzadas, e com uma expressão de indiferença proposital, que chegava às raias do desdém – precisamente do desdém! –, fitaram por algum tempo os sapatos amarelos do jovem, antes de se retirar de novo, fleumaticamente, e quiçá ocultando um sorriso encoberto... Uma calamidade grave, muito grave! Hans Castorp continuou ainda algum tempo falando febrilmente. Depois, quando no seu foro íntimo se dera conta daquele olhar lançado aos seus sapatos, silenciou, quase no meio da palavra, e entregou-se à sua mágoa. A Kleefeld, aborrecida e melindrada, desapareceu. Com certo agastamento na voz, propôs Joachim que agora bem poderiam recolher-se ao repouso. E um homem prostrado, de lábios pálidos, concordou com ele. Durante dois dias, Hans Castorp sofreu amargamente sob os efeitos desse incidente, pois nada ocorreu nesse meio tempo que lhe derramasse algum bálsamo na ferida ardente. Por que o olhara daquele modo? Por que, em nome de Deus e da Trindade, sentia esse desdém para com ele? Considerava-o um palerma sadio lá de baixo, cuja receptividade não ia além do inocente? Um ingênuo da planície, por assim dizer, um tipo vulgar que passeava e ria e enchia a pança e ganhava dinheiro – um aluno modelo que nada entendia da vida a não ser as enfadonhas vantagens da honra? Era ele apenas um fútil visitante, vindo por três semanas, incapaz de participar da sua esfera? Não professara votos em virtude de ter uma região pulmonar úmida? Não fora incluído nas fileiras da Ordem, não fazia parte do “nós aqui em cima”, já com dois meses completos atrás de si? Não subira o mercúrio, ainda ontem, a 37,8?... . Mas era justamente isso o que enchia as medidas do seu sofrimento. O mercúrio deixara de subir! A terrível prostração desses últimos dias esfriara, desembriagara, desentesara a natureza de Hans Castorp – fato esse que, para a sua maior vergonha, se manifestava por temperaturas muito baixas, pouco acima da normal. Era-lhe cruel verificar que sua mágoa e sua contrariedade tinham o único efeito de afastá-lo cada vez mais da existência e dos sentimentos de Clávdia. O terceiro dia trouxe a doce redenção; trouxe-a já de manhã. Era um maravilhoso dia de outono, ensolarado e fresquinho, com os prados cobertos de teias prateadas. O sol e a lua minguante achavam-se simultaneamente no céu puro. Os primos tinham-se levantado mais cedo do que de costume, a fim de homenagear o belo dia e prolongar o passeio matinal um pouco além do limite regulamentar, passando pelo banco vizinho ao curso de água e avançando pelo caminho do bosque. Joachim, cuja curva também marcava, por aqueles dias, uma baixa simpática, propusera essa infração refrescante, e Hans Castorp não se opusera. – Somos gente curada – dissera ele –, sem febre e livres de venenos; quase estamos maduros para a planície. Nada nos impede de dar nossas cabriolas. – Caminhavam de cabeça descoberta; pois, desde que “professara”, Hans Castorp adaptara-se, por bem ou por mal, ao costume reinante de andar sem chapéu, não obstante a firmeza com que, no começo, defendera contra esse hábito seu próprio estilo de vida e sua boa educação. Fincavam no chão as suas bengalas. Ainda não haviam vencido a subida do caminho avermelhado e mal tinham alcançado o ponto onde, aquela vez, o grupo dos “pneumáticos” encontrara o novato, quando divisaram, a alguma distância, Mme. Chauchat, que subia devagar – Mme. Chauchat, de suéter branco, saia de flanela branca e sapatos igualmente brancos, com a cabeleira ruiva batida pelo sol da manhã. Para falar com maior precisão: quem a reconheceu foi Hans Castorp. A atenção de Joachim não despertou antes de a sensação desagradável de se ver instigado e aguilhoado indicar-lhe o que se passava. Essa sensação teve a sua origem na marcha acelerada que seu companheiro de súbito acabava de iniciar, após ter antes interrompido, bruscamente, a caminhada e quase parado por alguns instantes. Tal precipitação parecia sumamente prejudicial e irritante a Joachim, que perdeu o fôlego e começou a tossir. Mas Hans Castorp, seguro do seu objetivo, e com os órgãos funcionando às mil maravilhas, pouco se preocupou com isso, e como o primo compreendesse a situação, limitou-se a cerrar o cenho, sem dizer nada, e a acompanhar o passo do companheiro, visto não ser possível que este avançasse sozinho. A bela manhã animava o jovem Hans Castorp. Acrescia isso que, durante a depressão, as forças da sua alma haviam descansado furtivamente, e no seu espírito luzia a certeza de que chegara o momento em que se desvaneceria o encantamento que pairara em torno dele. Assim estugou o passo, arrastando consigo Joachim, que ofegava e também por outros motivos se mostrava recalcitrante. Antes da curva, a partir da qual o caminho se tornava plano e corria ao longo do flanco direito do morro coberto de mato, quase alcançaram Mme. Chauchat. Eis que Hans Castorp voltou então a diminuir a velocidade da marcha, para não realizar o seu propósito num estado de respiração curta que revelasse o seu esforço. E pouco além da referida curva, entre a encosta e a parede rochosa, no meio dos pinheiros tingidos de cor de ferrugem, e através de cujos ramos incidiam feixes de raios de sol, ocorreu, sim, realizou-se o fato maravilhoso: que Hans Castorp, caminhando à esquerda de Joachim, alcançasse a graciosa enferma, passasse por ela a passo enérgico e, no momento em que se achava à sua direita, fizesse uma mesura justificada pela falta de um chapéu, cumprimentando-a respeitosamente – afinal de contas, por que respeitosamente? – com um bom-dia pronunciado a meia voz e que obteve resposta. Com uma amável inclinação da cabeça, que revelava pouca surpresa, Mme. Chauchat agradeceu, dizendo igualmente “bom dia” na língua de Hans Castorp, enquanto seus olhos sorriam. Tudo isso constituía coisa muito diferente, profunda e deliciosamente oposta àquele olhar lançado aos seus sapatos; era um acaso feliz, uma modificação do estado das coisas para melhor; um acontecimento sem igual, que quase ultrapassava a capacidade receptiva de Hans Castorp; era a redenção! Com pés alados, deslumbrado por uma insensata alegria, graças ao cumprimento, à palavra, ao sorriso, Hans Castorp prosseguiu na sua marcha acelerada ao lado de Joachim, de quem tanto abusara e que em silêncio, contemplava a encosta, mantendo o olhar afastado do primo. Hans Castorp pregara-lhe uma peça bastante forte, que aos olhos de Joachim se afigurava como uma espécie de ardil e de traição, como o jovem muito bem sabia. Não era bem a mesma coisa que se tivesse pedido emprestado um lápis a alguma pessoa completamente desconhecida; pelo contrário, seria quase uma falta de educação passar rigidamente e sem cumprimentar ao lado de uma senhora com quem fazia meses se vivia sob o mesmo teto. Não entabulara Clávdia, dias atrás, na sala de espera, uma conversa com eles? Joachim, por conseguinte, era obrigado a calarse. Mas Hans Castorp compreendia perfeitamente por que outras razões o orgulhoso Joachim permanecia calado e desviara o olhar, ao passo que ele próprio se sentia tão exuberante e frivolamente arrebatado pela manobra bem-sucedida. Não podia ser mais feliz quem, lá na planície, “desse o seu coração”, lícita, esperançosa e, no fundo, alegremente, a qualquer pequena sadia e obtivesse brilhante êxito – não! tal indivíduo jamais podia ser tão feliz como era Hans Castorp, com o pouco que acabava de conseguir e assegurar-se numa hora ditosa... Por isso deu, depois de algum tempo, uma vigorosa palmada no ombro do primo e disse: – Escute, que é que você tem? O dia está tão lindo! Que tal lhe parece irmos até a estância balneária? Provavelmente há um concerto lá, não acha? Talvez toquem da Carmem “La fleur que tu m’avais jetée, dans ma prison m’était restée...” Mas que é que há? Será que está com uma pedra no sapato? – Não há nada – respondeu Joachim. – Mas você parece tão excitado! Receio que sua baixa de temperatura já tenha terminado. Terminara, de fato. A depressão humilhante da natureza de Hans Castorp estava superada, devido ao cumprimento que trocara com Clávdia Chauchat, e propriamente falando, devia-se a sua satisfação à consciência que tinha desse efeito do encontro. Sim, Joachim tinha razão. O mercúrio tornava a subir. Quando consultado por Hans Castorp, após o passeio, subiu aproximadamente a 38 graus. Enciclopédia Se certas alusões de Settembrini haviam exasperado Hans Castorp, este não se devia admirar nem acusar o humanista de o ter espionado por motivos pedagógicos. Até um cego teria notado a quantas o jovem andava. Ele mesmo não fazia nada para ocultá-lo. Uma certa exaltação e alguma ingenuidade nobre impediam-no de disfarçar o seu estado de alma. Nesse ponto distinguia-se – com vantagem sua talvez – daquele apaixonado de cabelos ralos, o rapaz de Mannheim, e da sua conduta dissimulada. Recordamos e repetimos que a situação em que Hans Castorp se encontrava acarreta geralmente um impulso e uma necessidade de abrir-se, uma tendência para o desabafo e a confissão, uma cega preocupação consigo próprio e a mania de encher o mundo com os seus assuntos – manifestações tanto mais estranhas para nós, seres prosaicos, quanto menos lógica, menos razão e esperança o caso implica. É difícil precisar o que faz essa gente para se trair; parece que são incapazes de dizer ou fazer qualquer coisa que não os traia; e ainda numa sociedade que, segundo a observação de um espírito crítico, tinha só duas coisas na cabeça: em primeiro lugar, a temperatura, e depois – outra espécie de temperatura, isto é, por exemplo, a preocupação com o problema de saber quem indenizava a Srª. Wurmbrand, esposa de um cônsul-geral de Viena, pela volubilidade do Capitão Miklosich, se era o gigante sueco, ora completamente curado, ou o Sr. Paravant, promotor público de Dortmund, ou talvez ambos. Pois era notório e indiscutível que os laços que haviam unido, durante alguns meses, o promotor e a Srª. Salomon, de Amsterdam, tinham sido dissolvidos em virtude de um amistoso acordo, e que a Srª. Salomon, seguindo as propensões da sua idade, inclinara-se para as classes mais tenras, tomando sob as suas asas o beiçudo Gänser, da mesa da Kleefeld, ou, como o expressava a Srª. Stöhr, num estilo como que jurídico e com certa plasticidade, “requisitando-o”; assim, o promotor público tinha plena liberdade de se bater com o sueco em duelo pela posse da consulesa-geral, ou de pactuar com ele a esse respeito. Eram estes os processos que estavam pendentes na sociedade do Berghof, e particularmente na mocidade febril, processos em que a passagem pela sacada, ao longo da balaustrada, e contornando as divisões de vidro, desempenhava papel saliente. Tais ocorrências ocupavam os pensamentos dos enfermos e formavam uma parte importante da atmosfera local. Mas nem isso exprime com absoluta certeza o que temos em mente. Com efeito, Hans Castorp tinha a impressão esquisita de que um assunto fundamental, ao qual em toda parte do mundo se atribui importância considerável, e que forma um tema constante de alusões sérias ou brincalhonas, era aqui acentuado, valorizado, ressaltado de um modo tão grave e – em virtude dessa gravidade – tão novo, que a coisa em si se apresentava sob aspecto nunca visto, se não terrível, ao menos assustador pela novidade. Ao enunciarmos isso, mudamos a expressão do nosso rosto e assinalamos que, se nos ocorreu até agora falar das relações em apreço num tom leve e chistoso, fizemo-lo pelos mesmos motivos secretos que freqüentemente prevalecem, sem que isso enuncie coisa alguma acerca da natureza leve ou chistosa do próprio assunto. No ambiente onde nos encontramos, esse tom seria, de fato, ainda menos indicado do que em outra parte. Hans Castorp pensara ser entendido, dentro dos limites normais, nesse assunto fundamental, alvo de tantas pilhérias, e tinha, sem dúvida, razões para supô-lo. Mas agora verificou que, na planície, não chegara além de um conhecimento pouco suficiente e no fundo andara na mais cândida ignorância a esse respeito, ao passo que na montanha certas experiências pessoais, a cujo caráter aludimos repetidas vezes, e que em determinados momentos lhe arrancavam a exclamação “Deus meu!”, deveras o capacitavam interiormente para notar e compreender o forte acento do inédito, do perigoso, do inominável, que o assunto, para todos ali em cima, tinha em geral e em particular. Não que ali não se pilheriasse também sobre ele. Mas, ainda mais do que na planície, esse tom parecia impróprio nas alturas; havia nele um quê de arrepio e de respiração embargada, que deixava perceber com sobeja nitidez que ele era apenas um véu transparente em volta da angústia que procurava (e inutilmente) disfarçar-se por meio dele. Hans Castorp recordava a palidez terrosa que reparara em Joachim, quando pela primeira e última vez aludira ao físico de Marusja, naquela forma de brincadeira inocente que se usa na planície. Recordava também a lividez fria que se espalhara pelo seu próprio rosto, quando desembaraçara Mme. Chauchat do clarão do sol poente – e recordava o fato de que, antes e depois, em diversas ocasiões, encontrara essa lividez em muitos rostos estranhos, via de regra em dois ao mesmo tempo, como, por exemplo, nos da Srª. Salomon e do jovem Gänser, quando se formara entre eles o que a Srª. Stöhr qualificava com aquele termo jurídico. Dissemos que se recordava disso e compreendia que, sob essas circunstâncias, não somente seria muito difícil não “trair-se”, mas também não valeria a pena. Em outras palavras: não era apenas certa exaltação e certa ingenuidade, senão também um determinado estímulo da parte do ambiente o que fazia com que Hans Castorp se sentisse pouco animado a coibir-se e a dissimular o seu estado de alma. Logo à chegada de Hans Castorp, Joachim mencionara a dificuldade de travar conhecimento com outros pensionistas, dificuldade que resultava sobretudo de duas circunstâncias: os primos formavam, dentro da sociedade do sanatório, uma espécie de partido ou de grupo em miniatura, e o marcial Joachim, preocupado exclusivamente com sua cura rápida, mostrava-se, por princípio, avesso a contactos e relações mais íntimas com os companheiros de sofrimento. Não fosse assim, Hans Castorp teria encontrado e aproveitado muito mais oportunidades para divulgar os seus sentimentos com desenfreada espontaneidade. Sem embargo, chegou Joachim a apanhá-lo, certa noite, durante a reunião, em companhia de Hermine Kleefeld, dos dois comensais dela, os senhores Gänser e Rasmussen, e do rapaz de monóculo, com a desmesurada unha; ouviu então como Hans Castorp, de olhos excessivamente brilhantes, e numa voz emocionada, improvisava um discurso sobre as formas singulares e estranhas do rosto de Mme. Chauchat, enquanto os seus ouvintes trocavam olhares, acotovelavam-se e soltavam risinhos afogados. Era penoso para Joachim, mas o causador de tal hilaridade permanecia insensível à revelação do seu estado, quiçá opinando que não faria justiça a este, se o deixasse despercebido e oculto. Podia ter certeza de ser compreendido por todos, e conformava-se com os sorrisos maliciosos que acompanhavam essa compreensão. Não somente na sua própria mesa, mas, com o tempo, também nas mesas vizinhas, olhavam-no para pilheriar de suas faces ora pálidas ora ruborizadas, cada vez que, após o começo de uma refeição, a porta envidraçada se fechava com estrondo. E também isso o satisfazia, já que lhe causava a impressão de que a sua ebriedade, ao despertar atenção, era em certo sentido reconhecida e corroborada pelos demais, de uma forma capaz de favorecer sua causa e de lhe animar as esperanças vagas e insensatas; sensação que o tornava mesmo feliz. As coisas iam tão longe que o pessoal, literalmente, se aglomerava para observar o moço obcecado. Dava-se isso, por exemplo, no terraço depois do almoço, ou à frente da portaria nas manhãs de domingo, quando os pensionistas iam lá receber a correspondência, que nesse dia não era distribuída pelos quartos. Muitas pessoas sabiam que haveria por ali um indivíduo intoxicado e excitadíssimo que exibiria abertamente os seus sentimentos. Assim, se agrupavam nas proximidades a Srª. Stöhr, a Srta. Engelhart, a Kleefeld com a sua amiga de cara de anta, o incurável Sr. Albin, o rapaz com a unha comprida, e ainda outros membros da companhia dos enfermos; ficavam parados, contraindo ironicamente as comissuras da boca, sufocando o riso no lenço e olhando o jovem que sorria com ar ausente e apaixonado e, com as faces abrasadas daquele ardor que o incomodava desde a noite da sua chegada, fixando em determinado ponto os olhos luzentes com aquele brilho que neles acendera a tosse do aristocrata austríaco... Era, no fundo, muito gentil da parte do Sr. Settembrini aproximar-se, em tais circunstâncias, de Hans Castorp, para entabular uma conversa com ele e informar-se sobre o seu estado de saúde. Mas é duvidoso que seu interlocutor soubesse apreciar com a devida gratidão a atitude filantrópica e a liberdade de preconceitos que nisso se manifestavam. Assim se deu, certa vez, no vestíbulo, numa tarde de domingo. Em torno do porteiro comprimiam-se os pensionistas, estendendo as mãos para agarrar a correspondência. Também Joachim achava-se ali. Seu primo ficara para trás, procurando obter, na referida postura, um olhar de Clávdia Chauchat, que se encontrava perto dele, com seus companheiros de mesa, esperando que se dispersasse a multidão que cercava a portaria. Era essa uma hora em que se misturavam os hóspedes, hora prenhe de oportunidades, e por isso querida e almejada pelo jovem Hans Castorp. Havia oito dias, ele roçara em Mme. Chauchat diante do guichê, de modo que ela até o empurrara levemente e dissera “Perdão!”, com uma ligeira inclinação da cabeça, ao que ele respondera, com uma presença de espírito febril, que agora lhe parecia uma bênção do Céu: – Pas de quoi, madame! “Que sorte”, pensava, “que nas tardes de domingo sempre se distribua a correspondência no vestíbulo!” Pode-se dizer que ele gastava a semana aguardando durante sete dias a volta de uma mesma hora – e aguardar significa adiantar-se, significa sentir o tempo e o presente não como uma dádiva, mas como mero obstáculo, significa negar e aniquilar o seu valor intrínseco e saltá-los espiritualmente. Dizem que é enfadonho esperar. Mas ao mesmo tempo, e mais propriamente, é divertido, porque assim devoramos quantidades de tempo sem as viver e explorar como tais. Poder-se-ia dizer que o homem que apenas espera se parece com um comilão cujo aparelho digestivo deixa passar as massas de comida sem lhes assimilar os valores nutritivos e proveitosos. Indo mais longe, diríamos: como os alimentos não digeridos não fortificam o homem, o tempo desperdiçado na espera não faz envelhecer. Verdade é que praticamente não existe a espera pura, não misturada. Fora, pois, devorada uma semana, e novamente chegara a hora dominical do correio, exatamente como se fosse ainda a mesma de oito dias atrás. Continuava, de forma sumamente excitante, a criar oportunidades. Cada minuto encerrava e oferecia a possibilidade que apertava e acossava o coração de Hans Castorp, sem que este lhe permitisse realizar-se. A isso opunham-se inibições de natureza ora militar ora civil: em parte estavam ligadas à presença do honrado Joachim e ao próprio senso de honra e de dever de Hans Castorp; em parte, porém, baseava-se na sensação de que relações de cortesia com Clávdia Chauchat, relações cerimoniosas, que obrigassem a gente a dizer “senhora”, a fazer mesuras e, se possível, a falar francês, não eram nem necessárias nem desejáveis, nem adequadas... Ele deixava-se estar, observando o jeito com que ela falava e ria, exatamente como fizera Pribislav Hippe outrora, lá no pátio da escola. Os lábios de Clávdia Chauchat abriam-se largamente, e os olhos oblíquos e glaucos, por cima das maçãs do rosto, contraíam-se formando estreitas fendas. Isto não era precisamente “belo”. Era apenas como era, e em face da paixão amorosa, o raciocínio estético consegue impor-se tão pouco quanto o raciocínio moral. – O senhor também espera cartas, engenheiro? Havia uma única pessoa capaz de falar assim, um desmancha-prazeres. Hans Castorp, num sobressalto, voltou-se para o Sr. Settembrini, que, sorrindo, se achava à sua frente. Era o mesmo sorriso fino e humanístico com que saudara o recém-chegado por ocasião do primeiro encontro, perto do banco, à margem do curso de água. E, como então, Hans Castorp corou ao deparar com ele. Mas, embora nos seus sonhos freqüentemente lhe ocorresse empurrar o “tocador de realejo”, porque “era demais ali”, evidenciou-se que o homem acordado é melhor do que o cismarento, e Hans Castorp avistou esse sorriso com sentimentos, não só de vergonha e de desembriagamento, senão também de gratidão e de necessidade. – Cartas? Ora veja, Sr. Settembrini! – respondeu. – Eu não sou embaixador. Talvez haja um cartão-postal para um de nós dois. Meu primo já foi ver. – A mim, aquele diabo coxo ali na frente já me entregou a minha pequena correspondência – disse Settembrini, levando a mão ao bolso do infalível paletó de fazenda espessa. – Coisas interessantes, coisas de grande envergadura literária e social, inegavelmente! Trata-se de uma obra enciclopédica, para cuja colaboração um instituto humanitário me dá a honra de me convidar... Numa palavra, um belo trabalho... -settembrini interrompeu-se. – Mas e os seus próprios assuntos? – perguntou. – Como vão eles? Até que ponto progrediu, por exemplo, seu processo de aclimatação? Fazendo as contas, o senhor ainda não está entre nós há tanto tempo que essa pergunta venha fora de propósito. – Obrigado, Sr. Settembrini. Por enquanto continuo tendo algumas dificuldades. Acho possível que isso vá assim até o último dia. Há quem nunca se habitue, como me disse meu primo logo que cheguei. Mas a gente se habitua ao fato de não se habituar. – Um processo meio complicado – zombou o italiano. – Um modo um tanto estranho de se assimilar. Naturalmente, a juventude é capaz de tudo. Não se habitua, mas se arraiga. – E, afinal, isto aqui não é uma mina siberiana... – Não, não é mesmo. Mas vejo que o senhor prefere comparações orientais. É compreensível. A Ásia nos devora. Aonde quer que se olhe, só se vêem caras tártaras. – E o Sr. Settembrini voltou discretamente a cabeça por cima do ombro. – Gengis Khan – acrescentou. – Olhos de lobo de estepe, neve e aguardente, o cnute, o Schlüsselburg, e o cristianismo. Deveriam erguer, aqui no vestíbulo, um altar a Palas Atena, como medida de defesa. O senhor está vendo? Lá na frente, um desses Ivan Ivánovitch, sem roupa-branca, começou a discutir com o promotor Paravant. Cada um diz que é a sua vez de receber a correspondência. Não sei quem tem razão, mas, a meu ver, o promotor acha-se sob a proteção da deusa. É um burro, sem dúvida, mas ao menos sabe latim. Hans Castorp riu-se – o que o Sr. Settembrini nunca fazia. Era impossível imaginá-lo rindo à vontade. Não ia além da contração fina e seca de uma das comissuras da boca. Após ter contemplado o riso do jovem, perguntou: – Já lhe entregaram a sua chapa? – Entregaram, sim, senhor – confirmou Hans Castorp, dando-se ares de importância. – Já faz algum tempo. Aqui está. – Ah, o senhor leva-a consigo na carteira? Como uma espécie de documento, um passaporte ou uma carteira de sócio. Ótimo! Deixe ver. – E erguendo a chapinha de vidro tarjada de preto, segurou-a contra a luz, entre o polegar e o indicador da mão esquerda, gesto muito comum, freqüentemente visto ali em cima. O rosto com os olhos negros, amendoados, torceu-se numa leve careta, enquanto examinava a fotografia fúnebre, sem deixar perceber claramente se isso era para ver melhor ou por outros motivos. – Pois é – disse então. – Aqui tem o senhor o seu passaporte. Muito agradecido. – Com isso devolveu a chapa ao proprietário, passando-a por cima do próprio braço, e desviando o olhar. – Viu os cordões? – perguntou Hans Castorp. – E os pequenos nós? – O senhor já sabe – replicou o Sr. Settembrini devagar – o que penso a respeito da importância desses produtos. Sabe também que as manchas e as sombras aí dentro são, na maioria, de origem fisiológica. Vi centenas de radiografias que tinham, pouco mais ou menos, o aspecto da sua, e deixavam ao critério de quem as examinasse toda a liberdade de considerá-las ou não como “passaporte”. Eu falo aqui como leigo, mas ao menos como leigo veterano. – E seu próprio passaporte é pior? – Sim, um pouco pior... Por outro lado sei que os nossos mestres e superiores não fundam nenhum diagnóstico exclusivamente nesse brinquedo... E então, o senhor pretende passar o inverno conosco? – Que vou fazer?... Começo a me familiarizar com a idéia de que só descerei em companhia do meu primo. – Quer dizer que o senhor se habitua a não se... Formulou isso muito espirituosamente. Espero que já tenha recebido a sua bagagem, roupas quentes, calçados resistentes? – Recebi, sim, senhor. Está tudo em perfeita ordem. Informei os meus parentes, e a nossa governanta me enviou as coisas por expresso. Agora estou preparado. – Isso me tranqüiliza. Mas, escute! O senhor vai precisar de um saco de peles. Agora é que me lembro! Esse veranico é traiçoeiro. De um momento para outro podemos estar em pleno inverno. O senhor passará aqui os meses mais frios... – Pois é, o saco de repouso – disse Hans Castorp. – É indubitavelmente uma peça necessária. Também já ventilei vagamente o projeto de ir à aldeia, nos próximos dias, junto com meu primo, para comprar um. Lá embaixo nunca mais precisarei dele, mas para quatro ou seis meses já vale a pena. – Vale, engenheiro, vale mesmo – disse o Sr. Settembrini baixinho, aproximando-se um pouco mais do jovem. – Sabe o senhor que é horroroso ouvir com que leviandade fala de meses? É horroroso porque é antinatural e contrário ao seu caráter, e porque isso provém unicamente da docilidade dos seus anos. Ai dessa excessiva docilidade da juventude! A juventude é o desespero dos educadores, por estar disposta a aceitar sobretudo as coisas ruins. Não fale como se costuma falar aqui, meu rapaz, mas como convém à sua maneira européia de viver! Neste ar aqui há muita coisa da Ásia, principalmente. Não é sem motivo que esses tipos da Mongólia moscovita andam pululando por aí. Esse pessoal – e o Sr. Settembrini fez um movimento com o queixo, apontando por cima do ombro – não lhe deve servir de modelo. Não se deixe contagiar pelos conceitos deles. Pelo contrário, oponha-lhes a própria natureza, a sua natureza superior, e mantenha sagrado o que, pela sua índole e pela sua origem, deve ser sagrado ao senhor, filho do Ocidente, do divino Ocidente, filho da civilização; o tempo, por exemplo. Esse procedimento generoso, essa prodigalidade bárbara no emprego do tempo é de estilo asiático. Pode ser que esse seja o motivo por que os filhos do Oriente se dão bem aqui. O senhor nunca notou que, quando um russo fala em “quatro horas”, é como se nós disséssemos “uma hora”? É fácil chegar à conclusão de que o pouco-caso que essa gente faz do tempo está relacionado com a vastidão selvagem do seu país. Onde há muito espaço há muito tempo. Diz-se que eles são o povo que tem tempo e pode esperar. Nós, os europeus, não o podemos. O tempo que temos é tão exíguo quanto o espaço do nosso continente nobre e delicado nos seus contornos. É preciso que administremos economicamente o nosso tempo e o nosso espaço, que tiremos proveito deles, engenheiro, muito proveito! Tome como símbolo as nossas cidades grandes, esses centros, esses focos da civilização, esses cadinhos do pensamento! À medida que sobe ali o preço do solo e se torna impossível o desperdício de espaço, o tempo – repare bem nisso! – também chega a ter um valor cada vez mais elevado. Carpe diem! Quem cantava assim era um homem da metrópole. O tempo é um dom divino, outorgado ao homem para que o explore, sim, meu caro engenheiro, para que o explore a serviço do progresso da humanidade. Por maiores que fossem os obstáculos que essas últimas palavras, na sua forma alemã, oferecessem à língua mediterrânea do Sr. Settembrini, ele conseguiu proferi-las de um modo agradável, claro, sonoro e – inegavelmente – plástico. Hans Castorp limitou a sua resposta àquele tipo de reverência breve, rígida e acanhada com que um aluno recebe uma lição que encerra uma censura. Que mais poderia replicar? Essa preleção altamente pessoal que o Sr. Settembrini acabava de lhe fazer, secretamente, quase cochichando, e com as costas voltadas aos outros pensionistas, tinha caráter muito objetivo, era muito pouco social, e afastava-se por demais de uma simples conversa, para que o tato permitisse uma manifestação de aplauso. Não se responde a um professor: “Como o senhor falou bem!” Em outras ocasiões, Hans Castorp, às vezes, fizerao, por assim dizer, para se manter num plano de igualdade social com o humanista. Mas este nunca lhe dirigira palavras tão insistentemente pedagógicas, que não deixavam lugar para outra atitude senão a de engolir a reprimenda, aturdido qual um escolar em face de tanta moral. Via-se, de resto, na expressão do Sr. Settembrini, que, apesar do seu silêncio, continuava a atividade do seu espírito. Ainda se encontrava bem perto de Hans Castorp, tanto que este até se viu forçado a reclinar o corpo um pouquinho para trás. Os olhos negros do italiano fitavam o rosto do jovem com a fixidez cega de um homem absorto pelas suas idéias. – O senhor sofre, engenheiro – prosseguiu. – Sofre como quem anda desnorteado. É o que se pode ler na sua fisionomia. Mas também a sua conduta em face do sofrimento deveria ser uma conduta européia, e não a do Oriente, que povoa tão abundantemente esta região, justamente por ser efeminado e ter uma inclinação para a enfermidade... A compaixão e a paciência infinita – eis a maneira oriental de enfrentar o sofrimento. Não pode, não deve ser a nossa, não convém ao senhor!... Acabamos de falar da minha correspondência... Veja, aqui... Ou melhor, venha comigo! Aqui não se pode conversar... Vamos retirar-nos e entrar nesta salinha. Quero fazer-lhe algumas confidencias que... Venha! – E dando meia-volta arrastou Hans Castorp para fora do vestíbulo até a primeira saleta, a mais próxima do portão, mobiliada como sala de leitura, e onde a essa hora não havia pensionistas. Sob a abóbada branca, nas paredes revestidas de painéis claros, viam-se estantes de livros, uma mesa central, rodeada de cadeiras e coberta de jornais fixos em pregadores, e escrivaninhas sob as arcadas das janelas. O Sr. Settembrini avançou até uma dessas janelas, seguido de Hans Castorp. A porta permanecia aberta. – Estes papéis – disse o italiano, tirando com mão pressurosa do bolso do paletó espesso um fascículo contendo um envelope volumoso com diversos folhetos e uma carta, que fez resvalar entre os dedos, para que Hans Castorp os pudesse ver –, estes papéis têm o cabeçalho em francês: “Liga Internacional para a Organização do Progresso”. Recebo-os de Lugano, onde existe uma seção filiada à liga. O senhor quer conhecer os seus princípios, os seus objetivos? Vou indicá-los em duas palavras. A Liga para a Organização do Progresso deriva da doutrina evolucionista de Darwin, concepção filosófica segundo a qual a vocação natural mais profunda da humanidade é o seu próprio aperfeiçoamento. Por conseguinte, constitui dever de cada indivíduo desejoso de corresponder a essa vocação natural colaborar ativamente para o progresso da humanidade. Muitos acudiram ao chamado da liga. É considerável o número dos seus sócios na França, Itália, Espanha, Turquia e até na Alemanha. Também eu tenho a honra de figurar como tal nas listas da liga. Foi esboçado um amplo programa de reformas, baseado em princípios científicos, um programa que abrange todas as possibilidades atuais de aperfeiçoamento do organismo humano. Estuda-se o problema da saúde da nossa raça; são examinados todos os métodos para combater a degenerescência, que é, sem dúvida, uma conseqüência inquietante da progressiva industrialização. Além disso, promove a liga a fundação de universidades populares, empenha-se na supressão da luta de classes, por meio de todos os melhoramentos sociais que possam contribuir para esse fim, e preocupa-se com a abolição das lutas entre os povos e da guerra, mediante o desenvolvimento do direito internacional. Como o senhor vê, os esforços da liga são generosos e vastíssimos. Diversas revistas internacionais testemunham as suas atividades, revistas mensais, redigidas em três ou quatro idiomas importantes e que relatam de forma vívida a evolução progressista da humanidade civilizada. Foram fundados numerosos grupos locais nos diferentes países, que devem realizar discussões noturnas e solenidades dominicais, com a finalidade de esclarecer e de edificar o público no sentido do ideal do progresso humano. Mas antes de tudo dedica-se a liga a ajudar, por meio da sua documentação, os partidos políticos progressistas de todos os países... O senhor está seguindo as minhas palavras, engenheiro? – Perfeitamente! – respondeu Hans Castorp com uma veemência precipitada. Ao proferir essa palavra tinha a sensação de quem escorrega, mas ainda consegue, mal e mal, manter-se de pé. O Sr. Settembrini pareceu satisfeito. – Creio que lhe abri perspectivas novas e surpreendentes. – Sim, senhor, confesso que é a primeira vez que ouço falar dessas... dessas atividades. – Que pena! – exclamou Settembrini em voz abafada. – Que pena que ninguém lhe tenha falado delas antes. Mas talvez ainda não seja tarde. Olhe estes folhetos... O senhor deseja saber do que eles tratam? Pois então escute! Esta primavera foi convocada em Barcelona uma solene assembléia geral da liga. Como sabe, essa cidade ufana-se de manter relações particulares com a idéia progressista. O congresso realizou-se durante uma semana, com banquetes e solenidades de toda espécie. Meu Deus! Eu tencionava seguir para lá, tinha o mais ardente desejo de participar das deliberações. Mas esse patife do conselheiro proibiu a viagem, ameaçando-me de morte. Que quer o senhor? Eu receei a morte e não fui. Estava desesperado, como pode imaginar, por causa da peça que me pregou a minha saúde precária. Não há nada mais doloroso do que ver como a nossa parte orgânica, a parte animal do nosso ser, nos impede de servir à razão. Tanto mais viva é a satisfação que me causa esta carta que recebi da secretaria da liga em Lugano. O senhor está curioso de saber o seu conteúdo? Não duvido. Vou lhe dar algumas informações rápidas... A Liga para a Organização do Progresso, consciente do fato de que a sua tarefa consiste em promover a felicidade dos homens, ou, em outros termos, em lutar contra o sofrimento humano por meio de um adequado trabalho social, e com o fim de exterminá-lo por completo; considerando, ademais, que essa tarefa suprema só pode ser executada com o auxílio da ciência sociológica, cujo objetivo final é o Estado perfeito – a liga, pois, resolveu, em Barcelona, a publicação de uma obra em numerosos volumes que levará o título Sociologia dos males, e na qual serão estudados, de uma forma sistemática e completa, os males humanos, segundo as suas categorias e espécies. O senhor vai objetar: que adiantam categorias, espécies e sistemas? Respondo-lhe: a ordem e a classificação formam o começo do domínio, e o inimigo mais perigoso é o inimigo desconhecido. É necessário arrancar o gênero humano dos estados primitivos do medo e da apatia passiva e conduzi-lo rumo à fase da atividade consciente do seu objetivo. É mister ensinar-lhe que desaparecem os efeitos cujas causas primeiro reconhecemos e depois abolimos, e que quase todos os males do indivíduo são enfermidades do organismo social. Muito bem! É esta a intenção da “patologia sociológica”. Em aproximadamente vinte volumes de tipo enciclopédico, serão enumerados e tratados todos os males imagináveis dos homens, desde os males mais pessoais e mais íntimos até os grandes conflitos coletivos, os males que têm a sua origem nas inimizades de classes e nos entrechoques internacionais; numa palavra, a obra mostrará os elementos químicos que, em múltipla mistura e combinação, compõem todos os sofrimentos humanos, e, tomando por diretriz a dignidade e a felicidade dos homens, indicará para cada caso os remédios e as medidas que lhe parecem apropriados para eliminar a causa do mal. Destacados especialistas dentre os sábios europeus, médicos, economistas e psicólogos, repartirão entre si a redação dessa enciclopédia dos sofrimentos, e a secretaria central em Lugano será o estuário para onde confluirão os rios de artigos. Vejo que seus olhos me perguntam qual será o papel que desempenharei em tudo isso. Deixe que eu termine! Nesta grande obra também não devem ser omitidas as belas-letras, na medida em que estas tiverem por assunto o sofrimento humano. Por isso foi previsto um volume especial que, para consolo e instrução dos que sofrem, deve conter uma compilação e uma breve análise de todas as obras-primas da literatura universal que se refiram ao respectivo conflito. E precisamente essa é a tarefa da qual foi incumbido, na carta que o senhor vê aqui, este seu humilde criado. – Não diga, Sr. Settembrini! Permita que o felicite de todo o coração! É uma incumbência formidável e que, como creio, vem a talho de foice para o senhor. Não me surpreende nem um pouquinho que a liga tenha pensado no senhor. Como não deve estar satisfeito, agora que pode contribuir para o extermínio do sofrimento humano! – É um trabalho enorme – disse o Sr. Settembrini, pensativo –, que requer muito tino e muita leitura. Tanto mais – acrescentou, enquanto o seu olhar parecia perder-se na multiplicidade de suas tarefas –, tanto mais que as belas-letras quase sempre têm por assunto o sofrimento, e até obras-primas de segunda ou terceira categoria se preocupam de alguma forma com ele. Não faz mal ou, antes, tanto melhor! Por vasta que seja a tarefa, em todo caso é das que é possível executar neste lugar maldito, ainda que eu espere não ser obrigado a terminá-la aqui. O mesmo não se pode dizer – continuou, aproximando-se novamente de Hans Castorp e baixando a voz até quase cochichar –, o mesmo não se pode dizer dos deveres que a natureza impõe ao senhor, engenheiro. Eis o ponto a que eu tencionava chegar, e nesse sentido desejava exortá-lo. O senhor sabe quanto admiro a sua profissão; mas, como é uma profissão prática e não uma profissão literária, o senhor não pode exercê-la aqui, bem ao contrário da minha. Só na planície pode ser europeu, só ali pode combater o sofrimento ativamente, à sua maneira, só ali pode promover o progresso e aproveitar o tempo. Falei-lhe da tarefa que me coube, apenas para lhe recordar isso, para chamá-lo à razão, para corrigir os seus conceitos que, aparentemente, começam a perturbarse sob a influência da atmosfera. Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado! Ao proferir em voz abafada as suas exortações, o humanista sacudira a cabeça com insistência. A seguir, permaneceu calado, com os olhos baixos e o cenho carregado. Era impossível responder-lhe com brincadeiras ou evasivas, como era costume de Hans Castorp, e como, por um instante, pensou fazer novamente. Também ele baixara as pálpebras. Por fim, encolhendo os ombros, disse, também em voz baixa: – Que devo fazer? – O que eu lhe disse. – Isso significa: partir? O Sr. Settembrini ficou calado. – Quer o senhor dizer que eu devo regressar para casa? – É o que lhe aconselhei logo na primeira noite, engenheiro. – Sim, senhor, e naquela ocasião eu tinha plena liberdade de fazê-lo, embora achasse pouco razoável fugir daqui, só porque o ar das alturas me incomodava um pouco. Mas, desde então, a situação mudou bastante. Nesse ínterim houve o exame médico, depois do qual o Dr. Behrens me disse claramente que não valia a pena regressar, pois dentro de pouco tempo me veria obrigado a voltar para cá e, se continuasse a viver daquele jeito na planície, me arriscaria a que dentro de pouco tempo todo o lóbulo do pulmão fosse por água abaixo. – Eu sei. Agora o senhor tem seu passaporte no bolso. – Sim. O senhor diz isso ironicamente... com aquela ironia justa, perfeitamente compreensível, que é um meio clássico e correto de eloqüência... Está vendo como gravei na memória as suas próprias palavras? Mas pode o senhor assumir a responsabilidade de me dar o conselho de regressar, apesar dessa fotografia e do resultado da radioscopia e do diagnóstico do Dr. Behrens? Settembrini hesitou um momento. Depois, endireitou-se, abriu os olhos, fixou-os em Hans Castorp, firmes e negros, e replicou com uma ênfase que não deixava de encerrar um quê de teatral e de exagerado: – Sim, engenheiro, assumo esta responsabilidade. Mas também Hans Castorp entesara a sua postura. Mantinha os tacões juntos e encarava o Sr. Settembrini. Desta vez tratava-se de um duelo. Hans Castorp não arredava pé. Existiam influências próximas a fortificá-lo. De um lado havia um pedagogo, e do outro, lá fora, uma mulher de olhos rasgados. Hans Castorp nem sequer se desculpou pelo que diria; não acrescentou: “Não leve a mal as minhas palavras!” Limitou-se a retrucar: – Nesse caso, o senhor é mais prudente quando se trata de si próprio do que em relação a outros. O senhor não viajou para o congresso da liga em Barcelona, contra a proibição do médico. Tinha medo da morte e ficou aqui. Até certo ponto estava desfeita, indubitavelmente, a pose do Sr. Settembrini. Esboçando um sorriso um tanto forçado, respondeu ele: – Sei apreciar uma resposta incisiva, mesmo que a sua lógica não se distancie muito do sofisma. Repugna-me entrar naquela odiosa competição que está na moda aqui; do contrário lhe responderia que ando muito mais doente do que o senhor. Desgraçadamente estou, sem exagero, tão enfermo que mantenho apenas artificialmente, na intenção de me iludir a mim mesmo, a esperança de abandonar este lugar e voltar ao mundo lá de baixo. No momento em que se tornar evidente a indecência dessa atitude, virarei as costas a este estabelecimento e ocuparei, para o resto dos meus dias, um quarto numa casa particular em qualquer lugar do vale. Será triste, mas, como a esfera do meu trabalho é a mais livre e a mais espiritual de todas, isso não me impedirá de servir até o meu último suspiro a causa da humanidade e de fazer frente ao espírito da doença. Já chamei a atenção do senhor para a diferença que nesse ponto existe entre nós. Meu caro engenheiro, o senhor não é um homem capaz de defender aqui o que há de melhor na sua natureza. Verifico isso desde o nosso primeiro encontro. O senhor me objeta que não fui a Barcelona. Submeti-me à proibição do médico para não me destruir antes do tempo. Mas fiz isso com as mais enérgicas reservas, sob o mais altivo e doloroso protesto do meu espírito contra a pressão do meu corpo miserável. Será que esse protesto está vivo também no senhor, quando se sujeita aos preceitos das potências daqui? Não serão apenas o corpo e a sua tendência nefasta aquilo que o faz obedecer com demasiada espontaneidade?... – Que tem o senhor contra o corpo? – interrompeu-o rapidamente Hans Castorp, fixando no italiano os olhos arregalados, cuja esclerótica estava estriada de veias vermelhas. Sua audácia entontecia-o visivelmente. “De que falo?”, pensou. “É incrível como isso vai longe. Mas, uma vez que me pus em pé de guerra contra ele, vou fazer o possível para não lhe deixar a última palavra. Naturalmente ele acabará triunfando; não faz mal, porque sempre tirarei disso algum proveito. Vou provocá-lo.” E completou a sua objeção, dizendo: – O senhor não é humanista? Como pode falar mal do corpo? Settembrini sorriu, dessa vez sem esforço, seguro de si. – “Que tem o senhor contra a análise?” – citou, com a cabeça inclinada em direção do ombro. – “Não gosta da análise?” O senhor sempre me encontrará disposto a responder às suas perguntas, engenheiro – continuou com uma reverência, esboçando com a mão um gesto de saudação que descia até o soalho –, sobretudo quando os seus argumentos dão prova de espírito. O senhor riposta com elegância... Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo; represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! “O senhor é humanista!” Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de obscurantismo cristão... Hans Castorp defendeu-se com um gesto. – ... será absolutamente inútil o senhor me acusar disso – insistiu Settembrini – só porque um belo dia o humanismo no seu nobre orgulho chegou a se dar conta da humilhação, da ignomínia que reside no fato de o espírito estar ligado ao corpo, à natureza. Sabe o senhor que nos foi transmitido um dito do grande Plotino, segundo o qual “ele sentia vergonha de ter um corpo”? – perguntou Settembrini, de uma forma que tão seriamente exigia uma resposta, que Hans Castorp se viu obrigado a confessar que ouvia isso pela primeira vez. – Quem nos transmitiu essas palavras foi Porfírio. É uma sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a honestidade espiritual, e no fundo não há nada mais nobre do que a objeção do absurdo, nos casos em que o espírito procura manter a sua dignidade em face da natureza e recusa abdicar em favor dela... O senhor ouviu falar do terremoto de Lisboa? – Não, houve um terremoto? Aqui não leio jornais. – O senhor me entendeu mal. Seja dito de passagem que é lastimável – e característico deste lugar – que o senhor se descuide aqui da leitura da imprensa. Mas o senhor não me compreendeu bem. O fenômeno natural a que aludi não é recente; passou-se faz aproximadamente cento e cinqüenta anos... – Ah, sim! Espere um pouco. É verdade. Li que Goethe recebeu a notícia em Weimar, no seu quarto, à noite, e disse ao criado... – Ora, não era disso que queria falar – interrompeu-o Settembrini, fechando os olhos e agitando no ar a mãozinha trigueira. – O senhor aliás confunde as catástrofes. Pensa no terremoto de Messina. Eu me refiro ao abalo sísmico que sofreu Lisboa em 1755. – Perdão. – Bem, Voltaire revoltou-se contra ele. – Quer dizer... Mas como? Ele se revoltou? – Pois é, rebelou-se. Não admitiu aquele fado ou fato brutal. Negou-se a abdicar perante ele. Protestou em nome do espírito e da razão contra esse escandaloso excesso da natureza que vitimou três quartas partes de uma florescente cidade e milhares de vidas humanas... O senhor fica pasmado? Sorri? Que pasme, mas, quanto ao sorriso, tomo a liberdade de censurá-lo. A atitude de Voltaire era a de um autêntico descendente daqueles antigos gauleses que atiravam as suas flechas contra o céu. Olhe, engenheiro, aí vê o senhor a hostilidade do espírito em face da natureza, a orgulhosa desconfiança com que a encara, a maneira nobre pela qual se obstina no direito de criticar a ela e a seu poder maligno e insensato. Pois a natureza é o poder, e aceitar o poder, conformar-se com ele – repare bem: conformar-se intimamente com ele, é servil! E com isso o senhor chega àquele humanismo que absolutamente não se deixa cair em nenhuma contradição e que não se torna culpado de nenhuma recaída na hipocrisia cristã, ao decidir-se a ver no corpo o princípio mau e antagônico. A contradição que o senhor pensa encontrar é, no fundo, sempre a mesma. “Que tem o senhor contra a análise?” Nada... quando ela se empenha em instruir, em libertar, em promover o progresso; Tudo... quando traz consigo o asqueroso olor faisandé do túmulo. E o mesmo se dá com o corpo. É preciso honrá-lo e defendê-lo onde se trata da sua emancipação e da sua beleza, da liberdade dos sentidos, da felicidade, do prazer. É mister desprezá-lo, cada vez que se opuser, como princípio da gravidade e da inércia, ao movimento rumo à luz. Convém detestá-lo quando chega a representar o princípio da doença e da morte, quando o seu espírito específico se torna o espírito da perversidade, o espírito da decomposição, da volúpia e da vergonha... Essas últimas palavras, Settembrini as proferira muito perto de Hans Castorp, falando quase sem voz e com muita velocidade, como para terminar depressa. Chegou socorro a Hans Castorp: Joachim, com dois cartões-postais na mão, entrou na sala de leitura. Ficou interrompido o discurso do literato, e a habilidade com que a sua fisionomia passou a assumir uma expressão leve e mundana não deixou de impressionar o seu aluno -se é que podemos chamar assim a Hans Castorp. – Olá, tenente! O senhor deve ter andado à procura do seu primo. Desculpe! Entabulamos uma conversa – e se não me engano, tivemos até uma pequena discussão. Ele não é nada mau como argumentador, o senhor seu primo, um adversário bastante perigoso num debate, quando dá importância ao assunto. Humaniora Hans Castorp e Joachim Ziemssen, trajando calças brancas e jaquetas azuis, estavam sentados no jardim, depois do almoço. Era mais um desses tão elogiados dias de outubro, um dia quente sem ser pesado, de um brilho festivo, e ao mesmo tempo de certo sabor amargo. Um azul de intensidade meridional pairava por cima do vale, em cujo fundo ainda verdejavam alegremente as pradarias sulcadas de veredas e salpicadas de habitações, e de cujas encostas cobertas de matagal selvagem vinham os sons dos cincerros das vacas – esse tilintar metálico, música pacífica e singela, que flutuava, clara e tranqüila, através dos ares calmos, vazios e rarefeitos, aprofundando a atmosfera de solenidade que predomina em regiões altas. Os primos haviam se instalado num banco numa das extremidades do jardim, diante de um largo circular, plantado de abetos novos. O lugar estava situado na parte noroeste da plataforma cercada, que se elevava uns cinqüenta metros acima do vale e formava o pedestal do Berghof. Permaneciam calados. Hans Castorp fumava. Intimamente experimentava algum rancor contra Joachim, porque este, depois do almoço, não quisera tomar parte na reunião do terraço e, contra o seu desejo, forçara-o a desfrutar a calma do jardim, antes de se entregar ao repouso regulamentar. Era uma atitude tirânica da parte de Joachim. Afinal de contas, não eram eles gêmeos siameses. Podiam separar-se quando as suas inclinações não coincidiam. Ora, Hans Castorp não se achava ali para fazer companhia a Joachim; ele mesmo era paciente. Pensando nisso, amuava-se, e não lhe era difícil suportar o amuo, já que dispunha do recurso do Maria Mancini. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, estendendo diante de si os pés calçados de sapatos marrons, deixava pender entre os lábios o comprido charuto acinzentado, que se encontrava na primeira fase da combustão, o que quer dizer que não fora ainda removida a cinza da ponta obtusa. Depois da refeição farta, gozava aquele aroma que voltara a saborear plenamente. Bem podia ser que a sua aclimatação ali em cima consistisse apenas em habituar-se à idéia de não se habituar, e contudo era evidente que, no que se referia às reações químicas do seu estômago e aos nervos das suas mucosas secas e propensas a sangrar, a adaptação se realizara enfim; insensivelmente e sem que ele fosse capaz de observar o progresso, ressuscitara, no decorrer desses sessenta e cinco ou setenta dias, todo o prazer orgânico que tinha a sua origem naquele bem-preparado estimulante ou tóxico vegetal. Hans Castorp regozijava-se de lhe ter reencontrado o sabor. A satisfação moral intensificava o prazer físico. Durante o tempo que passara na cama, fizera economias nos duzentos charutos que trouxera como provisão de viagem, e dos quais ainda sobravam alguns. Mas, junto com a roupa-branca e os trajes de inverno, mandara que lhe enviassem por Schalleen outros quinhentos exemplares do produto bremense, a fim de se ver munido para qualquer eventualidade. Eram bonitas caixinhas envernizadas, ostentando um globo terrestre, muitas medalhas e um edifício de exposição rodeado de bandeiras tremulando ao vento, tudo isso impresso em ouro. Enquanto estavam assim sentados, eis que o Dr. Behrens atravessou o jardim. Naquele dia tomara parte no almoço, à mesa da Srª. Salomon. Haviam-no visto juntar diante do prato as enormes manzorras. Depois, provavelmente se detivera no terraço, dirigindo a cada enfermo algumas palavras pessoais e exibindo, talvez, o truque dos cordões de sapato, para quem ainda não o tivesse visto. Agora aproximava-se, flanando pelo caminho ensaibrado, sem o jaleco de médico, num fraque de quadradinhos, com o chapéu-coco para trás, e tendo, também ele, na boca um charuto muito preto, do qual tirava grandes baforadas de fumaça esbranquiçada. A cabeça e o rosto com as faces azuladas, que pareciam quentes, com o nariz arrebitado, os olhos azuis, lacrimosos, e o bigodinho torto, eram pequenos em proporção à silhueta comprida, levemente encurvada, e às dimensões das mãos e dos pés. O médico andava nervoso e sobressaltou-se visivelmente ao deparar com os primos. Até deu a impressão de estar um tanto confuso, vendo-se obrigado a ir cumprimentá-los. Fê-lo na sua maneira habitual, jovialmente, citando um verso apropriado de Schiller e pedindo, ao mesmo tempo, a bênção do céu para a digestão dos pacientes. Fez questão de que permanecessem sentados, quando quiseram levantarse em sua homenagem. – Não se incomodem! Fiquem à vontade! Nada de cerimônias com um homem humilde como eu! É uma honra que não mereço, tanto mais que ambos os senhores estão enfermos. Não precisam observar essas formalidades. Vamos conservar o status quo. E manteve-se de pé à frente dos primos, com o charuto entre os dedos indicador e médio da manzorra. – Que tal esse repolho enrolado, Castorp? Deixe ver, sou perito e amador. A cinza é boa. Que bela morena é essa? – Maria Mancini, Postre de Banquete, de Bremen, senhor conselheiro. Custa pouco ou nada, uns dezenove Pfennige nas cores selecionadas, mas tem um bouquet que normalmente não se encontra por esse preço. Sumatra-Havana, com capa cor de areia, como o senhor pode ver. É uma mistura meio pesada e muito saborosa, mas que parece bem leve à língua. Esse charuto gosta que se lhe deixe a cinza o maior tempo possível. Em geral não a sacudo mais de duas vezes. Claro que ele tem os seus caprichos, mas o controle da fabricação deve ser muito rigoroso, porque o Maria é de absoluta confiança quanto às suas qualidades e puxa com uma regularidade perfeita. O senhor permite que eu lhe ofereça um? – Obrigado. Podemos fazer uma troca. – E ambos tiraram as charuteiras. – Este é de raça – disse o conselheiro áulico, mostrando a Hans Castorp a marca que fumava. – Tem temperamento, sabe? E está cheio de força e de seiva. São Félix, Brasil; sempre preferi este tipo. Um autêntico remédio para qualquer preocupação. Arde que nem aguardente, e sobretudo no fim produz um efeito fulminante. Recomenda-se certa reserva nas relações com ele. Não se pode acender um após outro; isso ultrapassa as forças de um homem. Mas acho melhor um bom trago de vez em quando do que vapor de água durante o dia todo... Fizeram girar entre os dedos os presentes que acabavam de permutar; examinavam com a objetividade de peritos os corpos esbeltos, que tinham qualquer coisa de vida orgânica, com as costelas oblíquas e paralelas, formadas pelas beiras elevadas e, aqui ou ali, um tanto despegadas, da capa, com as veias expostas que pareciam pulsar, com as pequenas asperezas da pele, e com o jogo da luz sobre as suas superfícies e as suas arestas. Hans Castorp formulou esta impressão: – Um charuto desses tem vida. Respira, literalmente. Lá em casa me deu na veneta guardar o Maria numa caixa de folha, hermeticamente fechada, para protegê-lo da umidade. O senhor me acredita que ele morreu? Dentro de uma semana pereceram todos, e o que sobrou foram cadáveres com cheiro de couro. E ambos trocaram as suas experiências acerca da melhor maneira de conservar charutos, sobretudo os importados. O conselheiro apreciava muito esse último tipo, e de preferência fumaria Havanas pesados, mas infelizmente não os podia suportar. Dois pequenos Henry Clay, cujos encantos fruíra durante certo sarau, quase o haviam mandado à outra vida. – Fumei-os com o café – contou –, um após outro, sem prestar atenção. Mas quando terminei, comecei a me perguntar o que se estava passando comigo. Eu me sentia diferente; era uma sensação totalmente estranha, que eu nunca antes experimentara. Já não foi fácil chegar até em casa, e depois não acreditei nos meus próprios olhos. Tinha as pernas geladas, sabe? Um suor frio por todo o corpo; o rosto branco como um lençol; o coração com toda espécie de crises; o pulso ora fininho que nem um fio e mal perceptível, ora galopando a rédea solta; compreende? E o cérebro numa agitação louca... Eu tinha certeza de que dançava a minha última dança. Falo em dança, porque é o termo que então me ocorreu, e que empreguei, falando com meus botões, para caracterizar o meu estado. Pois, no fundo, achei a coisa formidável; pareceu-me uma verdadeira festa, embora eu tivesse um medo terrível. Mais exatamente, eu era todo medo, dos pés à cabeça. Olhe, o medo e a alegria não se excluem, como todo mundo sabe. Um rapaz que está a ponto de possuir pela primeira vez uma garota também treme de medo, e ela, não menos. E todavia se desmancham de prazer. Bem, eu quase me teria desmanchado igualmente. Com o peito arfando, comecei a dançar aquela última dança. Mas a Mylendonk, com as suas aplicações, conseguiu desembriagarme. Compressas geladas, fricções a escova, uma injeção de cânfora, e assim me salvaram para a humanidade. Hans Castorp, sentado, na sua qualidade de paciente, contemplava o médico com uma expressão que demonstrava a atividade do seu cérebro. Notou que os olhos azuis, proeminentes, de Behrens, durante a narrativa se haviam enchido de lágrimas. – O senhor pinta às vezes, não é verdade, senhor conselheiro? – perguntou de repente. O médico fingiu-se sumamente surpreso. – Como? Por quem me toma, moço? – Desculpe. Assim ouvi dizer em qualquer parte, e por acaso me lembrei disso agora. – Hum, nesse caso não vou negá-lo. Todos nós temos as nossas pequenas fraquezas. Pois é, confesso que essas coisas me acontecem. Anch'io sono pittore, como costumava dizer aquele espanhol. – Paisagens? – perguntou Hans Castorp lacônica e condescendentemente, num tom que as circunstâncias o faziam adotar. – Tudo o que o senhor quiser! – respondeu o conselheiro entre acanhado e jactancioso. – Paisagens, naturezas-mortas, animais... Quando se é homem, não se tem medo de nada. – E retratos? – Ora, já me sucedeu pintar um retrato. O senhor quer encomendar o seu? – Ah, ah! Não, mas seria muito gentil da sua parte, senhor conselheiro, se qualquer dia nos mostrasse os seus quadros. Após ter lançado ao primo um olhar cheio de surpresa, Joachim, por sua vez, apressou-se a afirmar que ele também achava isso muito gentil. Behrens estava encantado; sentia-se lisonjeado até o entusiasmo. Até corou de tanto prazer, e dessa vez os seus olhos davam a impressão de querer derramar as lágrimas. – Como não! – exclamou. – Com a maior boa vontade! Se os senhores quiserem, podemos ir já. Venham, venham comigo! Vou lhes preparar um café turco no meu antro! –- E tomou os dois jovens pelo braço, forçou-os a se levantarem e, caminhando entre eles, de braço dado, guiou-os pela vereda ensaibrada em direção ao seu apartamento, que, como já sabiam, se achava bem perto, na ala noroeste do Berghof. – Tempos atrás – disse Hans Castorp – eu mesmo fiz algumas tentativas nesse gênero. – Não diga! Coisa sólida, a óleo? – Não, senhor, não fui além de algumas aquarelas. Às vezes um navio, outras uma paisagem marinha, bagatelas e nada mais. Mas gosto muito de apreciar quadros, e por isso tomei a liberdade... Essa explicação serviu, sobretudo, para tranqüilizar e esclarecer Joachim a respeito da estranha curiosidade do primo. E com efeito fora mais para ele do que para o conselheiro que Hans Castorp recordara os seus próprios estudos artísticos. Chegaram. Desse lado não havia um portal tão magnífico, flanqueado de lampiões, como do lado da rampa. Alguns degraus encurvados conduziam ao portão de carvalho, que o conselheiro abriu com uma das chaves do seu bem-provido chaveiro. Ao fazê-lo, tremia-lhe a mão. Evidentemente estava nervoso. Acolheu-os um vestíbulo guarnecido de cabides, onde Behrens pendurou o chapéu-coco. Mais para dentro havia um pequeno corredor, que uma porta envidraçada separava do resto da casa. Aos dois lados desse corredor estendiam-se as peças do apartamento particular.O médico chamou a criada e deu ordens. A seguir, entre palavras joviais e animadoras, fez entrar os hóspedes por uma das portas à direita. Depararam com alguns cômodos mobiliados de modo banalmente burguês, que davam para o vale e se comunicavam entre si, separados apenas por reposteiros: uma sala de jantar em estilo “alemão antigo”; uma saleta de estar e de trabalho, com uma escrivaninha, acima da qual estavam suspensos um boné de estudante e dois sabres cruzados, com alguns tapetes de lã, uma estante e um sofá; e finalmente um gabinete de fumar, de mobília “turca”. Em toda parte viam-se quadros, os quadros do conselheiro áulico. Cheios de cortesia e dispostos a admirá-los, os olhos dos visitantes convergiram imediatamente sobre eles. A falecida esposa do médico estava representada diversas vezes, pintada a óleo e também em fotografia, sobre a escrivaninha. Era uma loura um tanto enigmática, vaporosamente vestida, com as mãos juntas à altura do ombro esquerdo – não juntas firmemente, mas apenas unindo de leve as articulações superiores dos dedos – e com os olhos ora dirigidos para o céu ora bem baixos, escondidos sob as longas pestanas que saíam obliquamente das pálpebras; nunca, porém, a saudosa senhora olhava para a frente, encarando o espectador. Além dela viam-se antes de tudo paisagens alpinas, montanhas cobertas de neve ou de abetos verdes, montanhas envoltas na bruma das alturas, e montanhas cujos contornos secos e nítidos penetravam, sob a influência de Segantini, um céu profundamente azul. Havia ainda cabanas de pastores, vacas de grandes barbelas, pastando, de pé ou deitadas, na pradaria ensolarada, uma galinha depenada, deitada na mesa, por entre legumes, e que deixava pender o pescoço torcido, flores, tipos de montanheses e outras coisas mais – tudo pintado com certo diletantismo fácil, com tintas atrevidamente aplicadas em grossos tufos, que amiúde davam a impressão de terem sido comprimidos da bisnaga diretamente sobre a tela e deviam ter levado muito tempo para secar – processo que não deixava de produzir certo efeito em caso de defeitos graves. Como numa exposição de pintura, iam contemplando os quadros expostos ao longo das paredes acompanhados do dono da casa, que de vez em quando explicava o respectivo assunto, mas em geral permanecia silencioso, desfrutando, com a orgulhosa reserva do verdadeiro artista, o prazer de olhar as próprias obras em companhia de pessoas estranhas. O retrato de Clávdia Chauchat encontrava-se na saleta de estar, pendurado na parede da janela. Hans Castorp, apenas entrara, já o descobrira de relance, apesar de o quadro se parecer apenas vagamente com o modelo. De propósito, o jovem evitou o lugar. Reteve os seus companheiros na sala de jantar, onde fingia admirar um panorama verde do vale de Sergi, com as geleiras azuladas no fundo. A seguir, por iniciativa própria, dirigiu-se ao gabinete de estilo turco, que examinou com igual atenção, distribuindo muitos elogios. Depois, foi ver a parede da entrada da saleta de estar, insistindo diversas vezes com Joachim para que manifestasse o seu aplauso. Por fim voltou-se e disse com surpresa comedida: – Este rosto me parece conhecido. – O senhor a reconhece? – quis saber o Dr. Behrens. – Claro, acho que não pode haver lugar para um engano. É aquela senhora da mesa dos russos “distintos”, a que tem um nome francês... – Sim, senhor, a Chauchat. Folgo em ver que o senhor a reconhece. – Perfeitamente! -mentiu Hans Castorp, menos por falsidade, do que percebendo que ele não deveria ter reconhecido o modelo do retrato, se tudo se tivesse passado corretamente – tão pouco como Joachim o teria feito sem a ajuda dele, o bom Joachim a quem ele pregara esta peça, e que agora começava a dar pela coisa e a sair do engano em que Hans Castorp o induzira. – Ah, sim – disse baixinho, conformando-se com a idéia de contemplar o quadro. Seu primo soubera compensar a ausência da reunião no terraço. Era um busto de meio perfil, de tamanho um pouco menos que natural, decotado, com um arranjo de véus em volta dos ombros e do peito. Rodeava-o uma larga moldura preta, chanfrada e guarnecida, na parte interior, junto à tela, de uma borda de ouro. Mme. Chauchat parecia dez anos mais velha do que na realidade, como ocorre freqüentemente em retratos feitos por amadores que se esforçam por salientar as características do modelo. Em todo o rosto havia excesso de vermelho. O nariz estava muito mal desenhado. O pintor não acertara o tom dos cabelos, fazendo-o muito semelhante a palha. A boca saíra torta. Ele absolutamente não descobrira ou não conseguira expressar o encanto peculiar àquela fisionomia, ficando tudo estragado pelo exagero de particularidades. O conjunto não passava de um trabalho de trocatintas, e como retrato não ia além de uma afinidade muito longínqua com o original. Mas Hans Castorp não se mostrava muito exigente quanto à semelhança. As relações que existiam entre essa tela e a pessoa de Mme. Chauchat afiguravam-se-lhe suficientemente estreitas. O quadro devia representar Mme. Chauchat; ela mesma posara para ele naqueles aposentos. Era o que bastava a Hans Castorp, que repetiu com emoção: – Em carne e osso! – Não diga isso! – protestou o conselheiro. – Foi um trabalho bravo, e não creio ter produzido uma coisa que preste, apesar de termos realizado umas vinte sessões. Como quer o senhor que se reproduza um rosto tão complicado? A gente imagina que deve ser fácil apanhá-la, com seus zigomas hiperbóreos e aqueles olhos rasgados como riscas na casca de um pão. É o que o senhor pensa! Acertando no pormenor, fracassa-se no conjunto. É um verdadeiro quebracabeça. O senhor a conhece? Talvez seja melhor não pintá-la na presença dela, mas de memória. Conhece-a o senhor? – Sim e não, superficialmente, assim como aqui se conhece o pessoal. – Bem, eu conheço-a mais por dentro, subcutaneamente; compreende? Estou mais ou menos a par, por determinados motivos, quanto à sua pressão arterial, ao tônus dos seus tecidos e à sua circulação linfática, mas a superfície me opõe maiores dificuldades. O senhor já observou como ela anda? O rosto é tal e qual o andar. Uma criatura felina! Veja, por exemplo, os olhos! Não falo da cor, que também é traiçoeira. Refiro-me à posição e à forma. O senhor dirá que a fissura das pálpebras é rasgada, oblíqua. Mas só na aparência é assim. O que o engana é o epicanto, isto é, uma particularidade que se encontra em certas raças. Tem ele a sua origem no fato de que um excesso de pele, que provém do nariz chato dessa gente, se estende da dobra da pálpebra para além da comissura interior do olho. Basta esticar fortemente a pele por cima da base do nariz, para que o senhor obtenha um olho igual aos nossos. É uma mistificação picante, mas nada honrosa, uma vez que o epicanto, observado de perto, não passa de uma imperfeição de fundamento atávico. – Ah, então é essa a explicação – disse Hans Castorp. – Não o sabia, mas já faz tempo me interessava conhecer o mistério desse tipo de olhos. – Ilusão, equívoco, nada mais! – confirmou o conselheiro. -se o senhor os desenhasse simplesmente oblíquos e rasgados, estaria perdido. É preciso realizar essa aparência oblíqua e rasgada assim como o faz a natureza, juntando, por assim dizer, a ilusão à ilusão, e para isso é naturalmente indispensável que o senhor esteja informado a respeito do epicanto. Conhecimentos nunca prejudicam. Olhe, por exemplo, a pele, essa pele do corpo! Acha ou não acha que tem vida? – É impressionante! – disse Hans Castorp. – É formidável como o senhor deu vida a essa pele. Creio que nunca vi pele tão bem reproduzida. A gente tem a impressão de ver os poros. – E com a borda exterior da mão acariciou o decote do retrato que se destacava muito branco do exagerado vermelho do rosto, como uma parte do corpo que habitualmente não se vê exposta à luz, e assim sugeria, de um modo petulante, fosse ou não intencionalmente, a idéia da nudez – um efeito, em todo caso, bastante grosseiro. Mesmo assim era justo o elogio de Hans Castorp. O brilho baço da alvura desse busto delicado mas não magro, que se perdia no arranjo dos véus azulados, tinha muita naturalidade. Evidentemente, fora pintado com sentimento; porém, apesar de um quê de adocicado, conseguira o artista dar-lhe uma espécie de realidade científica e de precisão viva. Servira-se do grão da tela, sobretudo na região das clavículas suavemente ressaltadas, para obter, através da tinta a óleo, o efeito da aspereza natural da superfície da pele. Um lunarzinho, na parte esquerda, ali onde os seios começavam a dividir-se, não ficara esquecido, e entre as proeminências aparecia a rede das veias palidamente azuis. Era como se, sob os olhos do espectador, um estremecimento mal perceptível de sensibilidade percorresse essa nudez. Ou, usando uma formulação um tanto ousada: podia-se chegar à idéia de perceber a transpiração, a emanação invisível e viva dessa carne, e quem colasse os lábios contra ela, talvez imaginasse sentir, não o cheiro de tinta e de verniz, senão o de um corpo humano. Assim dizendo, limitamo-nos a reproduzir as impressões de Hans Castorp; mas, embora ele estivesse particularmente disposto, a receber tais impressões, deve-se constatar, com toda a objetividade, que o decote de Mme. Chauchat era, de fato, o que havia de mais notável entre as pinturas da saleta. O Dr. Behrens, com as mãos nos bolsos, balouçava-se alternadamente nos calcanhares e nas pontas dos pés, enquanto contemplava a sua obra em companhia dos visitantes. – Folgo em ver, meu caro colega – disse –, folgo até muito em ver que o senhor compreende as minhas intenções. É com efeito útil e nunca prejudica saber também o que se passa debaixo da epiderme, a ponto de ser capaz de pintar um pouco daquilo que propriamente não se vê. Em outras palavras: é bom manter com a natureza ainda uma outra relação que não a puramente lírica. Vamos dizer que não faz mal que a gente exerça acessoriamente a profissão de médico, fisiólogo ou anatomista, e tenha alguns conhecimentos discretos dos dessous. Diga o senhor o que quiser, mas isso tem as suas vantagens e dá, indiscutivelmente, uma certa superioridade. Nessa pele aí há ciência. O senhor pode examiná-la com o microscópio para controlar a verdade orgânica. Nela, o senhor não vê apenas as camadas mucosas e córneas da epiderme, mas também, representado na idéia, o que está embaixo, o tecido do derma, com suas glândulas sudoríparas e sebáceas, com os vasos de sangue e com as papilas; e ainda mais abaixo deve-se imaginar a túnica adiposa, a almofada, sabe? a base que, com as suas numerosas células de gordura, produz as lindas formas femininas. O que se sabe e se pensa, durante o ato criador, também se faz sentir. Guia a nossa mão e causa os seus efeitos; não existe, e todavia existe de alguma forma. E é isso o que dá vida. Hans Castorp estava todo entusiasmado por essa palestra. Sua testa tingira-se de rubor. Seus olhos brilhavam. Ele não sabia o que responder em primeiro lugar, tanta coisa tinha a dizer. Antes de mais nada, se propunha tirar o quadro da parede da janela e colocá-lo num lugar mais favorável; além disso desejava comentar as observações do conselheiro a respeito da pele, que lhe interessavam vivamente; e finalmente tencionava expressar um pensamento geral e filosófico que lhe ocorrera, e ao qual conferia particular importância. Enquanto levava as mãos ao quadro para dependurá-lo, começou a falar apressadamente: – Sim, senhor! Sim, senhor! Tem razão, isto é importante. Eu queria dizer... Ou melhor, o senhor disse: “Ainda uma outra relação...” Seria bom manter além da relação lírica – acho que foi assim que se expressou –, além da relação artística, digo eu, ainda uma outra; numa palavra: convém olhar os objetos ainda sob outro aspecto, por exemplo, o aspecto médico. Isso é cem por cento certo – desculpe, doutor –, mas acho mesmo essa opinião sumamente acertada, porque não se trata, no fundo, de relações e aspectos fundamentalmente diferentes, mas, em realidade, de um só ponto de vista. São apenas modificações dele, quero dizer: matizes, ou talvez variantes do mesmo interesse geral, do qual a atividade artística também é apenas uma parte e uma expressão, se assim posso dizer... Ora, com sua permissão, vou tirar o quadro deste lugar, onde não recebe luz nenhuma. Espere, vou colocá-lo aqui no divã, para ver se não... Bem, eu queria dizer: de que se ocupa a ciência médica? Claro que não entendo nada do assunto, mas sei, afinal, que se ocupa do homem. E o direito, a legislação e a jurisprudência? Também do homem! E a lingüística, que ordinariamente anda ligada ao exercício da profissão pedagógica? E a teologia, a cura das almas, o sacerdócio? Todos eles se ocupam do homem; todos são apenas variações de um e mesmo interesse importante e capital, a saber, o interesse pelo homem; são, numa palavra, as profissões humanísticas, e quem quer estudá-las aprende como fundamento antes de tudo as línguas clássicas, não é isso? para obter uma cultura formal, como dizem. O senhor talvez se admire de que eu fale assim, eu que não sou mais que um técnico, de formação científica. Mas, enquanto estava acamado, meditava freqüentemente sobre isso, e me parece coisa excelente, parece-me maravilhoso basear-se cada profissão humanística no elemento formal, na idéia da forma, da bela forma, não é mesmo?... Isso empresta a tudo um caráter tão nobre, tão desinteressado, e dá à coisa um quê de sentimento e de... cortesia... O interesse transforma-se quase que numa proposta galante... quer dizer – provavelmente não emprego os termos próprios –, mas a gente vê como o espírito e a beleza se misturam e no fundo nunca deixaram de ser idênticos... Em outras palavras: a ciência e a arte... de maneira que o exercício das artes constitui também uma parte integrante do conjunto, como quinta faculdade por assim dizer, e que não é diferente de uma profissão humanística, uma variante do interesse humanístico, uma vez que seu tema mais importante e sua preocupação principal são outra vez o homem, como o senhor deve admitir. É verdade que eu só pintava navios e marinhas, quando na minha juventude fiz tentativas nesse sentido; mas o que há de mais atraente na pintura é a meu ver o retrato, porque tem por objeto imediato o homem. Foi por isso, doutor, que lhe perguntei logo se o senhor já linha feito ensaios nesse campo... Não acha que este lugar seria muito mais favorável ao quadro? Tanto Behrens como Joachim olhavam-no como para verificar se não se envergonhava do seu discurso improvisado. Mas Hans Castorp estava por demais absorto pelo seu assunto para se acanhar. Mantendo o quadro junto da parede do sofá, esperava que lhe respondessem se estava ou não mais bem iluminado ali. Nesse instante, a criada trouxe, numa bandeja, água quente, um fogareiro a álcool e xícaras paia café. O conselheiro mandou-a levar tudo ao gabinete de fumar e disse, dirigindo-se a Hans Castorp: – Neste caso deveria interessar-se menos pela pintura do que pela escultura... Tem razão, neste lugar recebe muito mais luz. Se o senhor acha que o quadro suporta tanta... Quero dizer, pela plástica, porque ela lida mais pura e mais exclusivamente com o homem em geral... Mas devemos prestar atenção para que a água não se evapore completamente. – Pois é, a plástica – disse Hans Castorp, enquanto passavam de uma peça a outra. Esquecendo-se de pendurar o quadro novamente ou de colocá-lo no chão, levou-o consigo ao gabinete contíguo. – Não há dúvida, numa Vênus grega ou num tipo de atleta, o elemento humanístico mostra-se com a maior nitidez. No fundo é esse o gênero autêntico, a arte genuinamente humanística, para quem reflete bem... – Ora, quanto à pequena Chauchat – observou o conselheiro –, acho que ela é antes um motivo pictórico. Parece-me que Fídias ou aquele outro sujeito cujo nome tem uma desinência judaica teriam torcido o nariz a esse tipo de fisionomia... Diga, que é que o senhor está fazendo aí? Por que anda passeando com esse troço? – Perdão, vou encostá-lo no pé da minha cadeira; ali fica bem, por enquanto... Mas os escultores gregos pouco se preocupavam com a cabeça; o que lhes importava era o corpo. Talvez seja este o elemento verdadeiramente humanístico... E o senhor acha que a plasticidade das formas femininas é só gordura? – Gordura e nada mais – disse em tom categórico o conselheiro, que acabava de abrir um armário embutido e tirara dele os apetrechos necessários para o preparo de café: um moinho turco em forma de tubo, uma canequinha de cabo comprido, o recipiente duplo para açúcar e café moído – tudo de latão. – Palmitina, oleína, estearina – acrescentou, enquanto derramava de uma lata os grãos de café dentro do moinho e começava a dar voltas à manivela. – Estão vendo, eu mesmo faço tudo, desde o início. Assim o café fica duas vezes melhor... Pois é gordura! Que pensava o senhor? Que fosse ambrosia? – Não, eu já sabia disso, e contudo é curioso ouvi-lo assim explicado – respondeu Hans Castorp. Estavam sentados num canto, entre a porta e a janela, em torno de um tamborete de bambu, que suportava uma bandeja de latão, ornada de motivos orientais, onde o aparelho de café encontrara um lugar no meio de utensílios para fumantes. Joachim instalara-se ao lado de Behrens, numa otomana abundantemente guarnecida de almofadas de seda; Hans Castorp numa poltrona provida de rodinhas, na qual apoiara o retrato de Mme. Chauchat. Tinham sob os pés um tapete multicor. O conselheiro áulico deitou colheradas de café e de açúcar na canequinha de cabo comprido, acrescentou água e fez o líquido ferver em cima do fogareiro a álcool. A bebida derramada nas xícaras enfeitadas com um padrão de cebolas tinha uma espuma escura, e seu sabor era tão forte quanto doce. – Com as formas do senhor é a mesma coisa – continuou Behrens.– A sua plasticidade, se é que se pode falar dela, é também gordura, embora não haja tanta como nas mulheres. Entre nós, a gordura normalmente não vai além da vigésima parte do peso do corpo, ao passo que nas mulheres costuma ser a décima sexta parte. Sem a camada adiposa embaixo da nossa pele, ficaríamos como uns fungões. Com os anos, ela se vai, e então se produz o famoso drapejamento de rugas pouco estéticas. Onde aquela camada tem a maior espessura é no peito, no ventre e nas coxas da mulher, numa palavra, em toda parte onde encontramos alguma coisa para divertir o coração e a mão. As plantas dos pés também são gordurosas e cosquentas. Hans Castorp fazia girar entre as mãos o moinho de café em forma de tubo. Como o resto do conjunto, era antes de origem indiana ou persa do que turca; assim o indicava o estilo dos ornamentos gravados no latão, cujas superfícies brilhantes se destacavam do fundo baço. Hans Castorp contemplou-os, sem entender, a princípio, do que se tratava. Quando compreendeu, corou violentamente: – Pois é, são utensílios só para homens – disse Behrens. – Por isso, mantenho-os guardados a chave. A boa da minha cozinheira poderia ter maus pensamentos. Mas parece-me que aos senhores isto não pode fazer mal. Ganhei essas coisas de uma paciente, uma princesa egípcia que nos deu a honra de permanecer entre nós durante um ano. Veja, o desenho se repete em todas as peças. Gozado, hein? – Sim, é mesmo curioso – respondeu Hans Castorp. – Ah, não, a mim não me impressiona. Seria até possível dar a esses ornamentos uma interpretação séria e solene, ainda que eles fiquem um pouco impróprios para um serviço de café. Ouvi dizer que os antigos representavam isso nos ataúdes. Para eles, o obsceno e o sagrado eram, de certo modo, uma e a mesma coisa. – Ora, quanto àquela minha princesa – disse Behrens, creio que ela se interessava mais pelo obsceno. Também ganhei dela uns excelentes cigarros, coisa extrafina, que só ofereço em ocasiões excepcionais. – E tirou do armário uma caixa de cores berrantes, que apresentou aos hóspedes, Joachim fez que não, juntando os tacões. Hans Castorp serviu-se e fumou o cigarro extraordinariamente grosso e comprido, adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de fato era maravilhoso. – Tenha a bondade, senhor conselheiro – pediu Castorp –, de nos contar mais alguma coisa sobre a pele. – Voltara a pôr nos joelhos o retrato de Mme. Chauchat e contemplava-o, reclinado na poltrona, com o cigarro entre os lábios. – Não precisamente da túnica adiposa – continuou. – Dela já sabemos bastante. Mas da pele humana em geral, que o senhor pinta com tanta perfeição. – Da pele? Interessa-se pela fisiologia? – Sim, senhor, muito. Sempre tive grande interesse por essa matéria. O corpo humano é um assunto que sempre me preocupou extremamente. Muitas vezes já me perguntei se não deveria ter estudado medicina. Sob certos aspectos, creio que me teria dado muito bem com essa profissão. Pois quem se interessa pelo corpo também se interessa pela doença, e principalmente por ela. Não tenho razão? Por outro lado, isso não quer dizer grande coisa, uma vez que eu teria podido dedicar-me a diversas profissões. Por exemplo, seria possível que eu escolhesse o sacerdócio. – Não diga! – Sim, senhor! Às vezes tenho a impressão passageira de que, talvez, a minha vocação seja esta. – Por que, então, se fez engenheiro? – Por acaso. Acho que o que me decidiu foram as circunstâncias exteriores. – Hum, quanto à pele! Que quer o senhor que lhe conte do seu ectoderma? É o seu cérebro externo, sabe? Ontogeneticamente falando, tem a mesmíssima origem que o aparelho dos chamados órgãos sensitivos superiores, aí em cima, no seu crânio. O senhor deve saber que o sistema nervoso central é apenas uma leve modificação da camada exterior da pele; nas espécies inferiores do reino animal ainda não existe a diferença entre central e periférico. Esses bichos servem-se da pele para cheirar e para saborear, compreende? Toda a sua sensualidade reside na pele, o que deve ser bastante agradável, para quem for capaz de se imaginar no lugar deles. Nas criaturas altamente desenvolvidas, porém, criaturas como o senhor e eu, a ambição da pele limitase à faculdade de sentir cócegas. A pele não passa então de um órgão protetor e transmissor, mas que presta uma atenção infernal a tudo quanto nos possa ofender o corpo. Estende mesmo para fora uma antenas de tato, o velo do nosso corpo, os pêlos fininhos que se compõem somente de células endurecidas e permitem sentir a menor aproximação, muito antes de a própria pele ser tocada. Cá entre nós: é até possível que a função defensiva e protetora da pele não se restrinja exclusivamente à esfera física... O senhor sabe de que maneira fica ruborizado e pálido? – Só vagamente. – Devo confessar que nem nós mesmos o sabemos com absoluta precisão, pelo menos no que se refere ao rubor. O assunto não foi ainda completamente esclarecido, pois por enquanto não conseguimos demonstrar nos vasos de sangue a existência de músculos dilatadores que sejam postos em ação pelos nervos vasomotores. Por que intumesce a crista do galo – ou que outros exemplos de jactância se possam citar – é, por assim dizer, um mistério, tanto mais quando se trata de uma influência psíquica. Supomos que haja ligações entre a camada cortical do cérebro e o centro vascular da medula oblongada. E, devido a certos estímulos – por exemplo, quando o senhor se sente muito envergonhado –, entra em jogo essa ligação e começam a agir os nervos vasculares que vão em direção ao rosto; então se dilatam e se enchem os vasos capilares que ali se acham, de maneira que o senhor anda com a cabeça feito um peru e está todo túmido de sangue e mal pode abrir os olhos. Em outros casos, porém, quando nos espera Deus sabe o quê, uma coisa de tremenda beleza talvez, contraem-se os vasos capilares da pele, que então se torna pálida, fria e murcha, e o senhor fica que nem um cadáver, de tanta emoção, com as órbitas lívidas como chumbo e com um nariz branco, afilado, enquanto o nervo simpático faz o coração martelar loucamente. – Ah! Então é assim que isso acontece? – Mais ou menos. São reações, sabe? Mas, uma vez que todas as reações e todos os reflexos têm uma finalidade inerente, chegamos nós, os fisiólogos, a supor que também esses fenômenos secundários de emoções psíquicas são, no fundo, meios adequados de defesa, reflexos protetores, como, por exemplo, o arrepio. Sabe o senhor donde nos vêm os arrepios? – Com franqueza, também não sei claramente. – Aí se trata de um trabalho das glândulas sebáceas da pele que segregam o sebo cutâneo, uma substância albuminosa gordurenta, que não é lá muito apetitosa, sabe?, mas conserva a pele macia, evita que ela se grete ou rasgue, e a torna agradável ao tato. Nem se pode imaginar que sensação nos daria o contato com a pele humana não fosse a colesterina. Essas glândulas sebáceas dispõem de pequenos músculos orgânicos capazes de pô-las num estado de ereção, e quando fazem isso, sucede ao senhor o mesmo que aconteceu àquele rapaz sobre o qual a princesa derramou um balde cheio de lambaris: sua pele fica feito um ralador, e quando a excitação é muito forte, até se levantam os folículos pilosos; seus cabelos eriçam-se na cabeça e os pêlos, no corpo, exatamente como se dá com um porco-espinho que se defende. Então poderá o senhor afirmar que chegou a conhecer o horror. – Ora – disse Hans Castorp –, a esse ponto já cheguei várias vezes. Até mesmo me ocorre facilmente horrorizar-me nas mais diversas ocasiões. O que me admira é apenas que essas glândulas se ericem em circunstâncias tão diferentes. Quando alguém risca um vidro com um lápis de pedra, fica-se com arrepios, e uma música especialmente linda me produz o mesmo efeito. Quando, por ocasião da minha confirmação, fui comungar, tive estremecimentos e arrepios que não acabavam mais. E estranho quanta coisa põe em ação aqueles pequenos músculos. – Pois é – disse Behrens. – Um estímulo vale o outro. O corpo pouco se importa com o porquê dos estímulos. Sejam lambaris, seja a Santa Ceia, as glândulas sebáceas reagem eriçandose. -senhor conselheiro – disse Hans Castorp, contemplando o retrato que tinha sobre os joelhos –, há mais uma coisa que eu gostaria de saber. O senhor acaba de falar de processos interiores, da circulação linfática, etc. Como é isso? Eu desejaria ouvir mais a esse respeito, sobre a circulação linfática, por exemplo, se o senhor tivesse a bondade... O assunto me interessa vivamente... – Acredito – tornou Behrens. – A linfa é o que há de mais fino, mais íntimo e mais delicado em toda a oficina do corpo. Parece que o senhor tem uma vaga idéia disso, desde que me faz essa pergunta. Sempre falam do sangue e dos seus mistérios, e dizem que é um suco todo especial. Mas a linfa é o sumo do suco, a essência, sabe?, o leite do sangue, um líquido delicioso... Após uma alimentação gordurosa tem até a aparência de leite. – E jovialmente, servindo-se da sua linguagem colorida, pôs-se a descrever o sangue, esse caldo de gordura, albumina, ferro, açúcar e sal, vermelho como uma capa de teatro, preparado pela respiração e pela digestão, saturado de gases e carregado de escória produzida pelo processo de renovação, esse caldo de uma temperatura de 38 graus centígrados, que era impelido pela bomba do coração através dos vasos e promovia, em todas ns partes do corpo, o metabolismo, o calor animal, numa palavra, a nossa preciosa vida. Explicou que o sangue não chega diretamente até as células, mas que a pressão exercida sobre ele o fazia transpirar um extrato ou sumo leitoso através das paredes dos vasos, de modo a penetrar em todo lugar, enchendo quaisquer interstícios e dilatando ou distendendo o elástico tecido celular. Era isso o tônus dos tecidos, o turgor, e graças ao turgor, por sua vez, acontecia que a linfa, depois de ter untado amenamente as células e de ter realizado com elas uma permuta de substâncias, era enviada aos vasos linfáticos e voltava ao sangue, à razão de um litro e meio por dia. E o conselheiro discorreu sobre o sistema de condução e de sucção dos vasos linfáticos, tratou do canal lactífero que recolhia a linfa das pernas, do ventre, do peito, de um dos braços e de um lado da cabeça. Passou a falar de uns delicados órgãos – filtros que se encontravam em muitos lugares dos vasos linfáticos –, os chamados gânglios, situados no pescoço, nas axilas, nas articulações do cotovelo, nos jarretes e em outros lugares igualmente íntimos e suaves do corpo. – Aí se podem formar inchações -– explicou Behrens – e é precisamente disso que partimos. Intumescem, por exemplo, os gânglios linfáticos nos jarretes ou nas articulações dos braços, formam-se aqui ou ali tumores semelhantes aos hidrópicos, e quando isso se dá, há sempre um motivo, ainda que pouco simpático. Em certas circunstâncias torna-se então mais que óbvio o diagnóstico de uma obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos. Hans Castorp permaneceu calado. – Pois é – disse baixinho, depois de uma longa pausa – isso mesmo. Eu facilmente poderia ter me tornado médico. O canal lactífero... A linfa das pernas... Essas coisas me interessam muito... Que é o corpo? – exclamou de repente, com impetuosidade. – Que é a carne? Que é o organismo humano? De que se compõe? Explique-nos ainda isso, senhor conselheiro! Explique-o de uma vez, para que a gente fique sabendo! – É de água – respondeu Behrens. – Parece que o senhor se interessa também pela química orgânica. Na sua maior parte, o corpo humano consta de água, nada mais nada menos, e não vejo razão de se exaltar por causa disso. A substância seca não vai além de vinte e cinco por cento do total, sendo que vinte por cento disso são simples clara de ovo, proteínas -se é que o senhor prefere esse termo mais distinto –, às quais se acrescenta apenas um pouquinho de gordura e de sal. É quase só isso. – E essa clara de ovo, que é? – Uma porção de elementos: carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre, às vezes também um pouco de fósforo. Mas o senhor desenvolve uma curiosidade exuberante. Há também proteínas que se apresentam ligadas a hidratos de carbono, isto é, glicose e amido. Na velhice, a carne torna-se dura, o que vem do fato de aumentar o colágeno no tecido conjuntivo; a cola, sabe?, que é a parte essencial dos ossos e das cartilagens. Que mais quer que eu lhe conte? Temos no plasma muscular uma proteína, o miosinogênio, que no corpo morto coagula, formando a fibrina muscular e produzindo a rigidez cadavérica. – Ah, sim, a rigidez cadavérica! – disse Hans Castorp alegremente. – Muito bem, muito bem. E depois vem a análise geral, a anatomia do túmulo. – Sim, naturalmente. O senhor formulou isso de modo muito bonito. Então a coisa torna-se um tanto extensa. A gente se esparrama por assim dizer. Não se esqueça de toda aquela água! E os outros ingredientes são pouco duráveis sem a ação da vida. Em virtude da putrefação, decompõem-se em combinações mais simples, de natureza anorgânica. – Putrefação, decomposição – disse Hans Castorp. – Não é isso um processo de combustão, uma combinação com o oxigênio, se não me engano? – Exatamente, há uma oxidação. – E a vida? – Também. Também, meu rapaz. Aí também há uma oxidação. A vida é essencialmente uma combustão das proteínas das células, donde provém esse agradável calor animal que às vezes é excessivo. Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular. Trata-se de uma destruction organique, como algum francesinho, na sua leviandade inata, qualificou a vida. Ela também cheira assim, e quando temos uma impressão contrária é porque o nosso juízo não é imparcial. – E quem se interessa pela vida – prosseguiu Hans Castorp – interessa-se sobretudo pela morte. Não é verdade? – Bem, há sempre uma certa diferença. Viver significa que, na transformação da matéria, se conserva a forma. – Para que conservar a forma? – perguntou Hans Castorp. – Para quê? Escute, o que acaba de dizer não tem nada de humanismo. – A forma é bobagem. – Decididamente, o senhor está muito enérgico hoje. Tem qualquer coisa de insubordinado. Mas eu me sinto exausto – disse o conselheiro. – Começo a ficar melancólico – acrescentou, cobrindo os olhos com a manopla enorme. – Estão vendo, isto cai sobre mim, de surpresa. Tomei café com os senhores e gostei, e de repente me acontece ficar melancólico. Os senhores me desculpem. Foi para mim uma satisfação rara e me causou um prazer extraordinário... Os primos levantaram-se de um pulo. Acusaram-se de ter tomado tanto tempo ao senhor conselheiro... Ele fez afirmações tranqüilizadoras em sentido contrário. Hans Castorp apressou-se a levar o retrato de Mme. Chauchat à saleta vizinha e a recolocá-lo no lugar antigo. Não voltaram ao jardim. Behrens mostrou-lhes o caminho através do edifício, acompanhando-os até a porta de comunicação. No estado de alma que o invadira subitamente, a sua nuca parecia mais saliente do que em geral. Piscava os olhos lacrimosos, e o bigodinho oblíquo, devido aos lábios torcidos unilateralmente, assumira uma expressão lamentável. Enquanto os primos atravessavam os corredores e as escadas, disse Hans Castorp: – Você não pode negar que foi uma boa idéia. – Foi pelo menos uma variação – replicou Joachim. – E vocês aproveitaram a ocasião para resolver uma porção de problemas; sim, senhor! Às vezes achei a conversa meio complicada. Mas agora é tempo de fazer um pouco de repouso. Temos ainda uns vinte minutos antes do chá da tarde. Talvez lhe pareça “bobagem” da minha parte insistir tanto nessas coisas, desde que, nos últimos tempos, você se mostra insubordinado. Mas, afinal de contas, você não necessita disso tanto como eu. Pesquisas E assim sucedeu o que forçosamente tinha de suceder, e o que Hans Castorp, havia pouco ainda, não teria imaginado ver ali: irrompeu o inverno, o inverno alpino, que Joachim já conhecia, pois que chegara quando o anterior estava no auge. Hans Castorp tinha algum receio dele, se bem que se tivesse preparado otimamente. O primo esforçou-se por tranqüilizá-lo. – Você não deve pensar que o inverno aqui é excessivamente rigoroso – disse. – Não é nada ártico. O frio não chega a ser sensível, por causa da secura do ar e da ausência de vento. Agasalhando-se bem, pode-se permanecer na sacada até altas horas da noite, sem se sentir frio. Isso se dá graças à inversão da temperatura acima do limite da cerração. Nas alturas mais elevadas, faz mais calor. É uma coisa que antes não se sabia. O frio fica mais desagradável quando chove. Mas agora você já tem o seu saco de repouso, e também acendem a calefação em casos de absoluta emergência. Por outro lado, não se podia falar nem de um assalto nem de violência. O inverno vinha chegando devagarzinho, e por enquanto não se apresentava de forma diferente da de muitos dias que o verão trouxera consigo. Durante alguns dias soprava o vento sul. O sol ardia, e o vale parecia encolhido e estreitado. Os platôs dos Alpes, junto à saída, afiguravam-se próximos e muito claros. Depois surgiam nuvens, irrompendo do pico Michel e do Tinzenhorn, rumo ao nordeste, e o vale se fez escuro. Começou então a chover copiosamente. Mais tarde, a chuva tornou-se pouco limpa, de um cinzento esbranquiçado, porque a neve acabava de misturar-se com ela. E finalmente sobrou apenas a neve. O vale estava envolto em torvelinhos, e como isso se passasse durante muito tempo e também a temperatura, nesse ínterim, tivesse baixado consideravelmente, a neve não pôde derreter-se toda. Estava úmida, mas subsistia. O vale estendia-se sob um manto branco, fininho, molhado e defeituoso, do qual se destacava o preto das coníferas nas encostas. Na sala de refeições, os radiadores iam amornando. Isso acontecia em princípios de novembro, por volta do Dia de Finados, e não constituía nenhuma novidade. Em agosto passara-se o mesmo, e havia muito o pessoal perdera o hábito de considerar a neve um privilégio do inverno. A toda hora e com qualquer tempo tinha-se neve diante dos olhos, pois sempre cintilavam restos e vestígios dela nas gretas e nas fendas da cordilheira rochosa dos Alpes Réticos, que pareciam fechar a saída do vale, e sempre resplandeciam envoltas em neve as mais distantes majestades montanhosas do sul. Mas tanto a nevada como a queda de temperatura mostravam-se persistentes. Num gris pálido, o céu pendia pesado sobre o vale, desfazendo-se em flocos que caíam silenciosos e incessantes, com uma abundância exagerada e levemente inquietante. O frio aumentava de hora em hora. Chegou a manhã em que Hans Castorp registrou 7 graus no seu quarto, e no dia seguinte eram apenas 5. Isso significava geada, que, embora com certa moderação, continuava. Geara de noite, e agora geava também de dia, desde a manhã até a noite, enquanto a nevada prosseguia, com pequenas interrupções, durante quatro, cinco, sete dias. Daí por diante a neve ia se amontoando, chegando a ser uma calamidade. No caminho obrigatório que conduzia ao banco junto do curso d'água, bem como na estrada que levava ao vale, haviam trabalhado com pás para abrir pistas; mas estas eram estreitas, e não havia jeito de se desviar de quem viesse em sentido contrário. Num caso desses era preciso pisar no dique de neve acumulado na margem da pista e afundar-se até o joelho. Um rolo de pedra, puxado por um cavalo, conduzido no cabresto por um homem, rodava o dia todo pelas ruas de Davos, e uma espécie de trenó, amarelo e de um tipo antiquado, semelhante a uma diligência, com um limpaneves à frente, para afastar as massas brancas, trafegava entre a estância balneária e a parte setentrional do lugar, a chamada “aldeia”. O mundo, esse mundo alto, estreito e remoto dos dali de cima, aparecia espessamente agasalhado e estofado. Não havia nenhuma coluna, nenhuma estaca que não usasse uma touca branca. As escadarias do Berghof iam desaparecendo, transformando-se num plano inclinado. Almofadões pesados de formas excêntricas oprimiam em toda parte os ramos dos pinheiros. Aqui ou ali, as massas de neve, resvalando, desfaziam-se em pó, que passava por entre os troncos, como uma alva nuvem ou bruma. As montanhas ao redor estavam revestidas de neve, que se afigurava áspera nas regiões mais baixas e ocultava sob uma coberta macia os cumes multiformes, que ultrapassavam o limite das arvores. Reinava a penumbra, com o sol lançando apenas um brilho pálido através da atmosfera velada. Mas a neve difundia uma branda luz indireta, uma claridade leitosa que embelezava o mundo e as pessoas, embora andassem com os narizes vermelhos sob os gorros de lã branca ou de cor. Na sala de refeições, em torno das sete mesas, a entrada do inverno, a temporada principal nessas paragens, formava o tema predileto das conversas. Dizia-se que haviam chegado numerosos turistas e desportistas, povoando os hotéis da “aldeia” e de “Platz”. A espessura da camada de neve era avaliada em sessenta centímetros, e afirmava-se que a sua qualidade era ideal para os esquiadores. Outros contavam que se trabalhava ativamente na pista de trenó, que de Schatzalp, na vertente noroeste, conduzia ao vale; dentro de poucos dias, ela poderia ser inaugurada, contanto que o Föhn não viesse estragar os projetos. Os enfermos regozijavam-se com a idéia de poder assistir ao recreio dos sadios – dos hóspedes lá de baixo –, que ia recomeçar agora, com festas desportivas e competições, que muitos tencionavam olhar apesar da proibição, gazeando o repouso e escapulindo. Hans Castorp ficou sabendo que haveria uma inovação, o Skikjoring, invenção nórdica, que constava de uma corrida em que os esquiadores participantes se fariam puxar por cavalos. Para ver isso seria necessário dar uma fugida. Também se falava dos festejos do Natal. Do Natal! Ora essa! Hans Castorp nem pensara ainda nisso. Não lhe causara dificuldades dizer ou escrever que, em virtude do resultado do exame médico, teria de passar o inverno ali em cima, em companhia de Joachim. Mas, como agora notava, isso incluía o Natal, e esse fato tinha sem dúvida algo de espantoso para o seu coração, devido à circunstância – embora não exclusivamente a ela – de ele nunca ter passado essa festa fora do torrão natal e do seio da família. Bem, sendo essa a vontade de Deus, era preciso conformar-se. Já deixara de ser criança, e Joachim tampouco parecia escandalizar-se com essa perspectiva, e aceitava-a sem choramingar. Afinal de contas – dizia Hans Castorp de si para si –, não convinha esquecer em quantos lugares e sob quantas condições diferentes se festejara o Natal no decorrer dos tempos. Parecia-lhe, entretanto, um pouco precipitado falar do Natal ainda antes do primeiro domingo do Advento. Faltavam até lá ainda umas seis semanas e tanto. Mas o pessoal da sala de refeições saltava-as ou devorava-as – processo interior que também Hans Castorp já sabia executar, se bem que ainda não se houvesse acostumado a fazê-lo com tanta audácia como os seus companheiros mais antigos. Estes consideravam o Natal, ou outras etapas semelhantes no curso do ano, como ótimos pontos de referência ou como uma espécie de aparelhos de ginástica, adequados para se pular agilmente por cima de intervalos vazios. Todos tinham febre; seu metabolismo era aumentado; sua vida física passava-se num ritmo por demais intenso e veloz – talvez explicasse isso o fato de matarem com tanta rapidez tamanhas quantidades de tempo. Hans Castorp não se teria surpreendido se falassem do Natal como de uma data já vencida, e logo se pusessem a discorrer sobre o Ano-Bom ou o Carnaval. Mas não eram tão levianos e tão imoderados na sala de refeições do Berghof. Detinham-se no Natal, festa que dava motivos para preocupações e oferecia problemas. Deliberavam acerca do presente comum que, segundo o costume estabelecido na casa, seria entregue ao diretor, o Dr. Behrens, na véspera do Natal, e para o qual tinham aberto uma subscrição. Como contavam aqueles que estavam no sanatório fazia mais de doze meses, o conselheiro, no ano anterior, fora presenteado com uma maleta. Falava-se desta vez de uma mesa de operações, de um cavalete de pintor, de um casaco forrado de peles, de uma cadeira de balanço e de um estetoscópio de marfim, adornado de qualquer tipo de incrustações. Settembrini, ao ser consultado, recomendou uma obra lexicográfica que, conforme dizia, estava em preparo e se intitulava Sociologia dos males, mas ninguém apoiou a idéia a não ser um livreiro que, havia poucos dias, se encontrava à mesa da Kleefeld. Por enquanto não parecia possível chegar a um acordo. Era difícil entender-se com os pensionistas russos. Os moscovitas declararam que tencionavam dar a Behrens um presente à parte. Durante dias a fio, a Srª. Stöhr manifestou suma inquietação por causa de uma importância de dez francos que, imprudentemente, adiantara à Srª. Iltis para a coleta, e que esta “se esquecera” de devolver. “Esquecera-se” – as entonações que a Srª. Stöhr dava a essa palavra eram multiplamente matizadas, mas todas elas calculadas para expressar a mais profunda incredulidade quanto a essa falta de memória, que parecia à prova de quaisquer alusões e indiretas que a Srª. Stöhr afirmava ter prodigalizado. Diversas vezes, esta se dispunha a renunciar e a perdoar a dívida da Iltis. “Pago, então, por mim e por ela”, declarava. “Está muito bem. A vergonha não é minha.” Mas finalmente descobriu uma solução que comunicou aos comensais, causando hilaridade geral: foi cobrar os dez francos da “administração”, que os incluiu na conta da Srª. Iltis, de modo que a devedora morosa saiu lograda e o assunto foi liquidado. Terminara a nevada. O céu abria-se parcialmente. Nuvens de um cinzento azulado rasgavam-se e deixavam passar alguns raios de sol que tingiam a paisagem de azul. A seguir, o tempo serenou por completo. Reinava em pleno novembro um frio límpido, um esplendor invernal, puro e constante. Era maravilhoso o panorama que se via através das arcadas da loggia, os bosques empoados, as fendas repletas de neve fofa, o vale branco, ensolarado sob o azul reluzente do céu. E principalmente de noite, quando subia a lua quase cheia, o mundo apresentava-se enfeitiçado de um modo milagroso. Uma cintilação de cristal, um resplendor como de diamantes ostentava-se em toda parte. Muito preta e muito branca elevava-se a floresta. As regiões do céu que se achavam distantes da lua jaziam escuras, bordadas de estrelas. Sombras de contornos nítidos, precisos e intensos, sombras que davam a impressão de ser mais reais e mais importantes do que os próprios objetos, caíam das casas, das árvores, dos postes telegráficos, sobre o solo refulgente. Poucas horas depois do pôr-do-sol, a temperatura descia a 7 ou 8 graus abaixo de zero. O mundo parecia encantado, imobilizado numa pureza glacial, e sua imundície natural ficava submersa e envolta no sonho de um fantástico sortilégio letal. Até altas horas da noite, Hans Castorp permanecia no seu compartimento da sacada acima do mágico vale hibernal, muito mais tempo do que Joachim, que se retirava às dez horas ou pouco depois. A sua excelente espreguiçadeira, com o colchão composto de três coxins e com o rolo à altura da nuca, achava-se próxima da balaustrada de madeira, ao longo da qual se estendia uma almofada de neve. Na mesinha branca, a seu lado, luzia a lâmpada elétrica, e junto a uma pilha de livros havia um copo de leite gordo, o leite da noite, que era servido às nove horas em todos os quartos dos habitantes do Berghof, e no qual Hans Castorp vertia um cálice de conhaque para adaptá-lo ao seu paladar. Já haviam sido mobilizados todos os recursos de que ele dispunha contra o frio. Enfiara-se Hans Castorp até acima do peito no saco de peles, que se podia abotoar e fora adquirido em boa hora numa casa especializada de Davos. Em torno desse saco lançara, segundo o rito, os dois cobertores de lã de camelo. Além disso usava, por cima da roupa de inverno, um curto casaco forrado de peles. Na cabeça tinha um gorro de lã, nos pés sapatos de feltro, e nas mãos umas espessas luvas que, no entanto, se mostravam incapazes de impedir o enrijecimento dos dedos.. Para que ele permanecesse tanto tempo lá fora – até meia-noite e às vezes mais tarde ainda, quando o casal de “russos ordinários” havia muito se retirara do compartimento vizinho – contribuía, sem dúvida, o feitiço da noite invernal, tanto mais que até as onze horas se entretecia nele a música, que, de longe e de perto, subia do vale. Mas antes de tudo era induzido a isso pela inércia e pela excitação que agiam simultânea e conjuntamente; de um lado, a inércia do seu corpo e o seu cansaço avesso a todo movimento, e do outro, a excitação ativa do seu espírito, ao qual certos estudos novos e fascinantes, que o jovem acabava de empreender, não davam nenhum instante de trégua. O clima incomodava-o; a geada exercia sobre seu organismo um efeito esgotador. Hans Castorp comia muito e aproveitava as fartas refeições do Berghof, onde os gansos assados sucediam a um rosbife acompanhado de legumes. Demonstrava aquele desmedido apetite, que parecia normal entre os pensionistas do Berghof e no inverno se tornava ainda mais intenso do que no verão. Ao mesmo tempo sentia-se tomado de sonolência, de maneira que freqüentemente lhe ocorria, de dia tanto como nas noites de luar, adormecer sobre os livros que manuseava, e dos quais trataremos mais adiante; depois de alguns minutos de inconsciência continuava então as suas pesquisas. Conversas animadas – e mais do que na planície tendia ele ali a falar depressa, sem inibições e até com atrevimento –, essas conversas animadas que mantinha com Joachim, durante os passeios obrigatórios através da neve, esgotavam-no facilmente. Acometiam-no vertigens e tremores, bem como uma sensação de aturdimento e de ebriedade, enquanto lhe ardia a cabeça. Sua curva de temperatura subira desde o começo do inverno, e o Dr. Behrens murmurara qualquer coisa a respeito de injeções às quais costumava recorrer em casos de elevação tenaz da temperatura. Duas terças partes dos pacientes, inclusive Joachim, submetiam-se regularmente a essas injeções. Mas – pensava Hans Castorp – decerto existiam relações entre essa intensa produção de calor que se efetuava dentro do seu corpo e aquela agitação e atividade do espírito que o prendia à espreguiçadeira até muito tarde, na cintilante e gélida noite. A leitura que o cativava sugeria-lhe tal explicação. Lia-se avidamente nos alpendres de repouso e nas sacadas particulares do Sanatório Internacional Berghof – sobretudo entre os novatos e os pensionistas de curto prazo, pois os pacientes que ali permaneciam por muitos meses, ou mesmo por vários anos, havia muito que tinham aprendido a matar o tempo sem distrações nem esforços intelectuais e a deixá-lo passar graças a um virtuosismo interior. Declaravam até que era uma falta de habilidade, própria de sarrafaçais, essa de se agarrar à leitura. Quando muito admitiam que um livro repousasse sobre os joelhos ou na mesinha, o que já era suficiente para as pessoas sentirem-se abastecidas. A biblioteca do estabelecimento, poliglota e rica em obras ilustradas, continha, de forma ampliada, a literatura que comumente se encontra na sala de espera de um dentista, e achava-se à disposição livre e gratuita dos pensionistas. Também se permutavam os romances alugados numa livraria de Platz. De tempos em tempos aparecia um livro ou um folheto que era violentamente disputado, e para o qual estendia as mãos, com mal dissimulada cobiça, até quem já tivesse abandonado o hábito de ler. A essa altura dos acontecimentos circulava de mão em mão uma brochura mal impressa, adquirida pelo Sr. Albin, e que se intitulava A arte da sedução. O texto estava traduzido, muito ao pé da letra, do francês, conservando a tradução a própria sintaxe desse idioma, o que emprestava ao estilo muita dignidade e uma elegância picante. Explanava o autor a filosofia do amor carnal e da volúpia, no sentido de um paganismo epicurista e mundano. A Srª. Stöhr terminou rapidamente a leitura e achou a obra “formidável”. A Srª. Magnus – a que perdia proteínas – concordou com ela sem reservas, ao passo que seu marido, o cervejeiro, pretendeu ter tirado particularmente algum proveito dessa leitura, mas lastimou que a Srª. Magnus se tivesse inteirado da doutrina do opúsculo, já que essas coisas “amimalhavam” as mulheres e lhes incutiam idéias extravagantes. Tal crítica contribuiu consideravelmente para aumentar o interesse que reinava pela obra. Entre duas senhoras chegadas em outubro, e que freqüentavam o alpendre térreo, a Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, e uma certa viúva Hessenfeld, de Berlim, deflagrou-se depois do almoço uma cena bastante desagradável, quase violenta, que Hans Castorp se viu obrigado a presenciar da sua sacada. Culminou o espetáculo numa gritaria convulsiva e histérica de uma das duas senhoras – podia ser a Redisch, mas também podia ser a Hessenfeld – e no transporte da mulher raivosa para os seus aposentos. A mocidade apoderara-se do tratado ainda antes das pessoas mais maduras. Alguns estudavam-no em comum, depois do jantar, nos mais diversos quartos. Hans Castorp viu como o rapaz da unha comprida o entregava, na sala de refeições, a uma jovem recém-chegada e levemente enferma, de nome Fränzchen Oberdank, que fora trazida pela mãe e usava os cabelos louros repartidos por uma risca. Talvez houvesse exceções; talvez houvesse pensionistas que enchessem as horas de repouso obrigatório com alguma atividade intelectual de caráter sério, com alguns estudos proveitosos, ainda que o fizessem apenas para conservar o contato com a vida na planície ou para emprestar ao tempo um pouco de peso e de profundidade, evitando destarte que se tornasse tempo e nada mais. Talvez existisse, além do Sr. Settembrini com seus esforços destinados a exterminar os sofrimentos do mundo, e do honrado Joachim com seus manuais russos, ainda este ou aquele com uma mentalidade análoga, senão entre o público da sala de refeições, o que era mesmo pouco provável, ao menos entre os pacientes acamados e moribundos. Hans Castorp inclinava-se a admitir essa hipótese. Quanto a ele próprio, o Ocean steamships já não lhe dizia nada. Por isso mandara vir de casa, junto com as roupas de inverno, alguns livros relacionados com a sua profissão, obras de engenharia, tratados sobre a construção de navios. No entanto, esses volumes haviam sido abandonados a favor de outros, obras didáticas pertencentes a uma faculdade e disciplina muito diferente, cuja matéria despertara o interesse do jovem Hans Castorp. Tratava-se de livros de anatomia, fisiologia, biologia, redigidos em vários idiomas – alemão, francês, inglês – e que lhe tinham sido remetidos um belo dia pelo livreiro do lugar, evidentemente porque Hans Castorp os encomendara por sua própria iniciativa e clandestinamente, durante um passeio que dera até Platz, sem a companhia de Joachim, que a essa hora andara ocupado com a pesagem ou tomara uma injeção. Foi com surpresa que Joachim viu esses livros nas mãos do primo. Eram muito caros, como obras científicas costumam ser. Os preços ainda se achavam anotados no interior das capas ou sobrecapas. Joachim perguntou por que Hans Castorp, se desejava ler esse tipo de literatura, não os pedira emprestados ao Dr. Behrens, que certamente dispunha de um rico sortimento. Mas Hans Castorp replicou que preferia possuir os livros, e que a leitura era bem diferente quando o livro lhe pertencia; além disso, gostava de sublinhar e assinalar certos trechos a lápis. Durante horas a fio, Joachim ouvia do compartimento de sacada do primo o ruído da espátula que ia abrindo as folhas. Os volumes eram pesados e difíceis de manejar. Para os ler, quando deitado, Hans Castorp apoiava a borda inferior sobre o peito ou o estômago. Isso não deixava de ser incômodo, mas ele o suportava pacientemente. De boca entreaberta, fazia os olhos percorrerem as páginas eruditas, que se achavam quase desnecessariamente iluminadas pela claridade avermelhada do quebra-luz da lampadazinha, já que as poderia ler, se fosse preciso, à luz do luar. Acompanhava as linhas com a cabeça, até que seu queixo repousasse sobre o peito, posição em que o leitor permanecia algum tempo, refletindo, cochilando ou entregando-se a um misto de sono e de meditação, antes de elevar o rosto para ler a página seguinte. Hans Castorp realizava profundas investigações; lia, enquanto a lua seguia, a passo comedido, a sua órbita por cima do vale alpino, cintilante de cristais; lia livros que tratavam da matéria organizada, das qualidades do protoplasma, da substância sensível que, entre a composição e a decomposição, se mantém numa estranha existência intermediária, e da evolução das suas formas desenvolvidas a partir de tipos fundamentais, primitivos e todavia sempre presentes; lia com insistente interesse o que os livros diziam sobre a vida e o seu sagrado e impuro mistério. Que era a vida? Não se sabia. Tinha ela consciência de si mesma, indubitavelmente, desde que era vida, mas ignorava o que era. Era incontestável que a consciência, sob o aspecto da propriedade de reagir a estímulos, despertava até certo ponto já nas fases mais baixas, menos adiantadas, da vida; não era possível fixar em determinado ponto da sua história coletiva ou individual a primeira aparição de fenômenos conscientes, e, por exemplo, fazer a reação consciente depender da existência de um sistema nervoso. As formas animais mais inferiores não dispunham de nenhum sistema nervoso, e muito menos de um cérebro; ninguém se atreveria, contudo, a negar-lhes a capacidade de sentir estímulos. Além disso, podia-se entorpecer a vida, a própria vida, e não somente certos órgãos especiais destinados à recepção de estímulos, que esta porventura criasse, a saber, os nervos. Podia-se suspender temporariamente a irritabilidade de toda substância dotada de vida, no reino vegetal tanto como no reino animal; era possível narcotizar os ovos e os espermatozóides por meio de clorofórmio, de cloral hidratado ou de morfina. A consciência de si mesma era, pois, uma simples função da matéria organizada em prol da vida, e numa fase mais elevada dirigia-se a função contra o seu próprio portador, convertia-se no desejo de pesquisar e explicar o fenômeno ao qual deu origem, na tendência esperançosa e desesperada da vida para se conhecer a si própria, na auto-investigação da natureza que sempre acaba sendo vã, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento e a vida não ser capaz de contemplar os últimos segredos de si mesma. Que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto donde brotava a natureza, e no qual ela se acendia. A partir desse ponto, nada havia na vida que não estivesse motivado ou o estivesse apenas insuficientemente; mas a própria vida parecia não ter motivo. A única coisa que se podia, talvez, afirmar a seu respeito era que sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópode da ameba e o animal vertebrado a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre o fenômeno mais simples da vida e a outra parte da natureza que nem sequer merecia ser qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois a morte não era senão a negação lógica da vida; entre esta, porém, e a natureza inanimada abria-se um abismo por cima do qual a ciência em vão se empenhava em lançar uma ponte. Alguns esforçavam-se por fechá-lo por meio de teorias, que ele sorvia sem nada perder da sua profundidade nem da sua extensão. Para encontrar um laço, haviam-se perdido na hipótese contraditória de uma matéria viva sem estrutura, de organismos não organizados, que se reuniriam espontaneamente na solução de albumina, como o cristal na água-mãe – embora, na realidade, a diferenciação orgânica constituísse, ao mesmo tempo, a condição básica e a manifestação de toda vida, e posto que não se conhecesse nenhuma criatura viva que não devesse a sua existência a um ato de procriação. O júbilo triunfante que saudara o protoplasma primevo, pescado nas mais extremas profundezas do mar, rapidamente chegara a transformar-se em consternação. Demonstrou-se que depósitos de gesso haviam sido confundidos com o protoplasma. Mas os cientistas, para não se deterem à frente de um milagre – pois a vida a compor-se dos mesmos elementos e a decompor-se nos mesmos elementos que a natureza inorgânica, sem nada que a motivasse, seria um milagre –, viram-se forçados a admitir uma geração espontânea, isto é, a origem do orgânico no inorgânico, o que, aliás, era igualmente um milagre. Destarte continuaram a inventar graus intermediários e transições, a supor a existência de organismos inferiores a todos os que se conheciam, mas que, por sua vez, tivessem como predecessores tentativas de vida ainda mais primitivas, os chamados “probiontes” que ninguém jamais veria, porque eram de uma pequenez inframicroscópica, e antes de cujo nascimento hipotético devia ter-se produzido a síntese de combinações de albumina... Que era, então, a vida? Era calor, o calor produzido pela instabilidade preservadora da forma; era uma febre da matéria, que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina, insubsistentes pela complicação e pela engenhosidade de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo, mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue, nesse processo complexo e febril de decadência e de renovação, chegar ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d'água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria, e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era a vegetação, a desenvolução, a configuração – possibilitadas pela hipercompensação da sua instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes – de uma coisa túmida de água, de albumina, de sal e de gordura, coisa que se chamava carne e se convertia em forma, em imagem sublime, em beleza, mas, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do desejo. Pois essa forma e essa beleza não eram conduzidas pelo espírito, como nas obras da poesia e da música, nem tampouco por uma substância neutra, absorvida pelo espírito, e que o encarnasse de uma maneira inocente, como o fazem a forma e a beleza das obras plásticas. Era, pelo contrário, conduzida e elaborada por uma substância na qual despertou, de um modo desconhecido, a voluptuosidade, pela substância da própria matéria orgânica que vivia se decompondo, pela carne cheirosa... Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminado pelo brilho do satélite morto, aparecia-lhe a imagem da vida. Essa imagem flutuava diante dele, em algum lugar do espaço, longínqua e todavia próxima dos sentidos; havia o corpo, de uma brancura embaciada, viscoso, a exalar odores e vapores; havia a pele com toda a impureza e toda a imperfeição que lhe eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, descolorações, zonas granulosas ou escamosas, a pele revestida das finas correntes e dos delicados torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do frio da matéria inanimada, essa imagem pairava na sua própria esfera vaporosa, assumindo uma atitude relaxada, com a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentária, que era um produto da sua pele, e com as mãos unidas por detrás da nuca; de sob as pálpebras baixas, mirava o espectador, com aqueles olhos que uma variante da formação da pele na comissura interior fazia aparecer oblíquos, e com os lábios um tanto grossos, entreabertos; apoiava-se numa das pernas, de modo que o osso ilíaco, que suportava o peso, ressaltava nitidamente sob a carne, ao passo que, na perna relaxada, o joelho levemente dobrado roçava o interior da perna de apoio e o pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Assim se quedava a imagem; voltava-se sorrindo, certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria dos membros gêmeos e dos sinais do corpo. À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo místico, a noite do regaço, assim como aos olhos a boca vermelha, epitelial, e às corolas rubras dos seios o umbigo alongado em sentido vertical. Sob o impulso de um órgão central e de nervos motores que partiam da medula espinhal, moviam-se o ventre e o tórax, dilatava-se e encolhia-se a cavidade pleuroperitoneal; o hálito, esquentado e umedecido pelas mucosas do trato respiratório, saturado de secreções, escapava por entre os lábios, após ter combinado, nos alvéolos dos pulmões, o seu oxigênio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a respiração interna. Hans Castorp compreendia que esse corpo vivo, a repousar no misterioso equilíbrio da estrutura das suas partes alimentadas de sangue, percorridas por nervos, veias, artérias, capilares, e banhadas pela linfa, esse corpo com a armação interna formada por ossos ocos, cheios de tutano gorduroso, por ossos chatos, ossos curtos e vértebras, consolidados, com a ajuda de sais calcáreos e de cola, à base do tecido gelatinoso, a substância primitiva de apoio, com as cápsulas, as cavidades lubrificadas, os tendões, as cartilagens das suas articulações, com seus mais de duzentos músculos, com seus órgãos centrais a serviço da nutrição, da respiração, da recepção e da emissão de estímulos, com suas membranas protetoras, cavidades cerosas e glândulas ricas em secreções, com o sistema de canais e de fendas da sua complicada superfície interna, que pelos orifícios do corpo desembocava no mundo exterior – Hans Castorp compreendia, pois, que esse Eu era uma unidade viva de categoria superior, muito distante daqueles seres mais simples, reduzidos a respirar, alimentar-se e mesmo pensar com toda a superfície do seu corpo, e se compunha de miríades de tais organismos minúsculos, que, tendo a sua origem num único dentre eles, e multiplicando-se mediante uma divisão sempre e sempre repetida, haviam organizado, diferenciado, desenvolvido os mais diversos usos e funções e tinham chegado a produzir formas que eram a condição e o efeito do seu crescimento. O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, freqüentemente se achavam muito distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida, originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida. Com um volume de embriologia fincado no peito, o nosso herói acompanhava a evolução do organismo a partir do instante em que o espermatozóide – um dentre inúmeros e este em primeiro lugar –, avançado por meio de um movimento de flagelo da sua extremidade traseira, chocava a ponta cefálica com a membrana gelatinosa do óvulo e se fundava no cone de atração que o plasma ovular elevava a seu encontro. Não se podia imaginar nenhum truque, nenhuma caricatura em que a natureza não se comprazesse para variar esse processo constante. Havia animais entre os quais o macho levava uma vida de parasita no intestino da fêmea. Outros havia em que o braço do indivíduo fecundante se estendia através da garganta da fêmea até ao interior do seu corpo, onde depositava o esperma, depois do que era decepado e vomitado, para então escapar correndo com os seus próprios dedos, deixando perplexa a ciência que, durante muito tempo, o tratara, em grego ou em latim, de ser independente. Hans Castorp assistia às furiosas discussões entre as escolas eruditas dos “ovistas” e dos “animalculistas”, uns pretendendo que o óvulo era um sapo, um cão ou um homem completo, em miniatura, e que o sêmen não operava senão o crescimento das suas partes, ao passo que outros consideravam o espermatozóide, provido de cabeça, braços e pernas, um ser vivo pré-formado, ao qual o óvulo servia apenas de meio de cultura – até que enfim se punham de acordo, atribuindo iguais méritos às células ovulares e germinais, ambas oriundas de células de reprodução primitivamente indistinguíveis. Via o organismo unicelular do óvulo fecundado, a ponto de se transformar num organismo multicelular, estriando-se e segmentando-se; via os corpos de células unirem-se uns aos outros, construindo uma parede mucosa; via a vesícula seminal introfletir-se e formar uma taça ou cavidade, que então se desempenhava das funções da nutrição e da digestão. Era essa a larva intestinal, a gástrula, o bicho original, a forma básica de toda vida animalesca tanto como de toda beleza carnal. Suas duas camadas epiteliais, a exterior e a interior, o ectoderma e o endoderma, aparecem como os órgãos primitivos, dos quais surgem, por meio de saliências ou depressões, as glândulas, os tecidos, os instrumentos dos sentidos, os apêndices do corpo. Uma tira do ectoderma engrossava, afundava-se numa espécie de sulco, fechava-se formando um tubo para abrigar os nervos, e convertia-se na coluna vertebral, no cérebro. E quando o muco fetal se consolidava a ponto de se tornar fibroso tecido conjuntivo ou cartilagem, visto as células gelatinosas começarem a produzir uma substância glutinosa, em lugar da mucina, via Hans Castorp como em certos pontos as células conjuntivas extraíam dos humores que as banhavam sais calcáreos e gorduras e terminavam por ossificar-se. O embrião do homem mantinha-se encolhido, de cócoras, caudífero, em nada diferente do de um porco, dotado de um enorme pedúnculo abdominal e de extremidades rudimentares, informes, com a larva do rosto dobrada sobre o ventre túrgido, e sua evolução afigurava-se aos olhos de uma ciência de idéias sombrias e pouco lisonjeiras como a repetição resumida de uma genealogia zoológica. Passageiramente, o embrião tinha bolsas branquiais como as arraias. Parece lícito ou forçoso deduzir dos estados evolutivos por ele atravessados o aspecto pouco humano que o homem concluído oferecera nos tempos primitivos. Sua pele, provida de músculos tremedores, destinados a afugentar os insetos, estava coberta de abundante pêlo; era enorme a extensão de sua mucosa pituitária; suas orelhas despegadas e móveis tomavam parte importante no jogo de mímica e eram mais próprias para captar o som do que as nossas orelhas atuais. Naqueles tempos, os olhos, protegidos por uma terceira pálpebra nictante, haviam-se achado aos lados do crânio, com exceção do terceiro olho, cujo rudimento é a glândula pineal, e que era capaz de vigiar o zênite. Esse homem possuíra, além disso, um longo tubo intestinal, numerosos dentes molares e sacos vocais ao lado da laringe, que lhe permitiam urrar; o macho trouxera as glândulas sexuais no interior do abdômen. A anatomia esfolava e dissecava, para o nosso pesquisador, os membros do corpo humano; mostrava-lhe os músculos e os tendões, tanto os superficiais como os subjacentes, profundos, os da coxa e da perna, do pé e sobretudo do bruço; ensinava-lhe os nomes latinos, com que a medicina, esse matiz do espírito humanístico, os designara e distinguira generosa e galantemente; permitia ao jovem avançar até o esqueleto, cuja estrutura lhe abria novas perspectivas sobre a unidade de tudo quanto é humano, e sobre o fato de se acharem relacionadas com isso todas as disciplinas. Pois nesse ponto recordava-se, de um modo sumamente estranho, da sua verdadeira ou, talvez seja melhor dizer, da sua antiga profissão, do título científico do qual se declarara portador, ao chegar ali, perante as pessoas que encontrara - o Dr. Krokowski e o Sr. Settembrini. Para aprender alguma coisa – fora-lhe bem indiferente o quê – inteirara-se, nas universidades, deste ou daquele fato referente à estática, aos suportes capazes de flexão, à carga e à construção como sendo um emprego vantajoso do material mecânico. Teria sido pueril opinar que a ciência do engenheiro, as leis da mecânica, aplicavam-se à natureza orgânica; mas tampouco se podia pretender que tinham sido deduzidas desta. Apareciam simplesmente reproduzidas e confirmadas por ela. O princípio do cilindro vazado predominava na estrutura dos longos ossos medulares, de maneira que o mínimo exato de substância sólida supria as necessidades estáticas. Um corpo – assim o aprendera Hans Castorp – que, conforme as exigências feitas a ele quanto à tração e à pressão, estivesse composto tão-somente de varas e tirantes de um material mecanicamente adequado poderia suportar a mesma carga que um corpo maciço de igual composição. Da mesma forma era possível observar, na evolução dos ossos medulares, como, à medida que a superfície se ossificava, as partes internas, mecanicamente supérfluas, se transformavam em tecidos gordurosos, o tutano amarelo. O osso femural era uma grua em cuja construção a natureza orgânica, pela flexão que dera às pecinhas ósseas, executava exatamente as mesmas curvas de tração e de pressão que Hans Castorp teria de traçar para a apresentação correta de um aparelho destinado a se desempenhar das mesmas incumbências. O jovem verificava com satisfação que, dessa forma, dispunha de uma tripla relação com o fêmur, ou com a natureza orgânica em geral: a relação lírica, a relação médica e a relação técnica – tão intensos eram os estímulos que acabava de receber. E essas três relações, assim lhe parecia, chegavam a ser uma só pelo seu caráter humano, eram variantes de uma e mesma aspiração premente, eram escolas do pensamento humanístico... Contudo permanecia inexplicável a obra do protoplasma. Parecia vedado à vida compreender-se a si própria. A maioria dos processos bioquímicos não somente eram desconhecidos, como também era inerente à sua natureza esquivar-se à compreensão. Quase nada se sabia da estrutura, da composição dessa unidade de vida que se chamava a “célula”. Que adiantava demonstrar as partes do músculo morto? Não se podia analisar quimicamente o músculo vivo; já as modificações produzidas pela rigidez cadavérica bastavam para desvalorizar quaisquer experiências. Ninguém compreendia o metabolismo, ninguém sabia nada da natureza da função nervosa. A que qualidades deviam as papilas gustativas a faculdade do gosto? Em que consistiam os diferentes tipos de excitação que os odores produziam em certos nervos sensitivos? Em quê, o cheiro em geral? O odor específico dos animais e dos homens baseava-se na evaporação de substâncias que ninguém era capaz de definir. A composição do líquido que se chamava suor era pouco clara. As glândulas que o segregavam produziam aromas que, entre os mamíferos, desempenhavam indubitavelmente um papel destacado, e cuja importância para a vida humana os cientistas se declaravam incapazes de explicar. A função fisiológica de partes do corpo evidentemente importantes permanecia obscura. Que se deixasse sem solução o problema do apêndice vermiforme, que era um mistério, e o qual, entre os coelhos, sempre se encontrava cheio de um conteúdo pastoso que não se sabia como ali entrava nem como se renovava. Mas, qual era a explicação da substância branca e cinzenta da medulla oblongata, qual a do tálamo que se comunicava com o nervo óptico, e qual a das substâncias cinzentas que se encontram na ponte de Varólio? A medula cerebral e espinhal era a tal ponto sujeita à desintegração, que não havia esperança de penetrar-lhe jamais o segredo da estrutura. A que circunstância se devia a suspensão das unidades do córtex cerebral? O que impedia o estômago de se digerir a si próprio, fato que ocorria às vezes nos cadáveres? Respondia-se: a vida, um singular poder de resistência do protoplasma vivo – e fingia-se não perceber que essa era uma explicação mística. A teoria de um fenômeno tão comum como era a febre estava cheia de contradições. O aumento das combustões tinha como resultado uma produção mais intensa de calor. Mas, por que não aumentava também, como em outras ocasiões, o gasto de calor, para compensar esse fato? Originava-se a paralisia das glândulas sudoríparas de uma contração da pele? Entretanto, tal não se observara senão em casos de calafrios, ao passo que, fora isso, a pele se mostrava quente. A experiência da “picada bulbar” indicava o sistema nervoso central como a sede dos fatores que causavam o aumento da intensidade das combustões, bem como a referida particularidade da pele, que era qualificada de anormal porque ninguém sabia explicá-la. No entanto, que significava toda essa ignorância em confronto com a desorientação da ciência em face de fenômenos como o da memória, ou daquela memória ampliada, digna da mais alta admiração, que se denominava transmissão hereditária de qualidades adquiridas? Era totalmente impossível chegar apenas a uma idéia vaga de uma explicação mecânica desse trabalho realizado pela substância celular. O espermatozóide que transmitia ao óvulo as inúmeras e complexas peculiaridades da espécie e da individualidade do pai era visível somente com o auxílio do microscópio, e o máximo aumento não bastava para apresentá-lo sob outro aspecto que o de um corpo homogêneo, e para permitir a determinação da sua origem, pois que o sêmen de todos os tipos de animais aparecia idêntico. Eram esses os fatores da organização que impunham a hipótese segundo a qual o mesmo que se passava no corpo superior ocorria nas células que o compunham, quer dizer, que estas também eram organismos superiores, compostos, por sua vez, de minúsculos corpos vivos, de unidades de vida individuais. Dava-se, portanto, um passo do elemento que se supusera como o menor, para outro de dimensões ainda mais reduzidas; sob a pressão da necessidade, as partes elementares eram decompostas em partículas subelementares. Não havia dúvida: assim como o reino animal era formado de diversas espécies de animais, e o organismo dos animais e dos homens de todo um reino de espécies de células, o organismo da célula compunha-se de um novo e múltiplo reino animal em unidades elementares da vida, cujo tamanho ficava muito longe do limite do que era possível ver ao microscópio; unidades que cresciam independentemente, que se multiplicavam segundo a lei de que cada qual só podia reproduzir suas semelhantes, e que, em conformidade com o princípio da divisão do trabalho, serviam, num esforço coletivo, à categoria de vida imediatamente superior à sua. Eram esses os genes, os bioblastos, os bióforos que Hans Castorp estava encantado de conhecer, naquela noite glacial. Mas, como se achasse inspirado, perguntou-se a si próprio como se apresentaria a natureza elementar dessas unidades a quem as examinasse ainda mais de perto. Sendo portadoras de vida, deviam estar organizadas, pois a vida fundava-se na organização; mas, estando organizadas, não podiam ser elementares, já que um organismo não é elementar, senão múltiplo. Tratava-se, portanto, de unidades de vida inferiores à célula que compunham organicamente. Assim sendo, era, porém, forçoso que elas, apesar do seu tamanho incrivelmente pequeno, fossem por sua vez “construídas”, organicamente construídas, como formas de vida. Pois a idéia da unidade viva identificava-se com a da construção à base de unidades menores, subordinadas, isto é: destinadas às finalidades de uma vida superior. Enquanto a divisão tinha por resultado unidades orgânicas, dotadas das particularidades da vida – a saber, as faculdades de assimilação, de crescimento e de multiplicação –, não havia limites para ela. Com referência a unidades de vida, seria, pois, errado falar de unidades elementares, visto o conceito da unidade encerrar, ad infinitum, o conceito acessório da unidade subordinada e componente; não existia vida elementar, quer dizer, alguma coisa que já fosse vida e ainda continuasse sendo elementar. No entanto, embora a lógica não lhe aceitasse a existência, devia em última análise existir qualquer coisa dessas, visto que a idéia da geração espontânea, e com isso, da vida originada do não-vivente, não podia ser rejeitada; aquele abismo que em vão se procurava fechar na natureza exterior, o abismo entre a vida e o inanimado, devia de certa forma ser enchido ou transposto no seio orgânico da natureza. Em algum momento tinha essa divisão de conduzir a “unidades”, que, muito embora compostas, ainda não estivessem organizadas e servissem de intermediárias entre a vida e a não-vida, grupos de moléculas que formassem a transição entre as categorias da vida e a mera química. Mas quem chegasse à molécula química já se encontraria nas proximidades de um abismo, cujas fauces escondiam um mistério muito maior ainda do que o que se abre entre as naturezas orgânica e inorgânica. E o abismo que separa o material do imaterial. Pois a molécula se compunha de átomos, e o átomo não tinha nem sequer tamanho suficiente para que fosse adequada a qualificação de “extraordinariamente pequeno”. Era de um tamanho tão reduzido, uma condensação tão ínfima, tão precoce e tão transitória do imaterial, do ainda-não-material, mas já semelhante à matéria, à energia, que mal era possível considerá-lo como matéria, senão como um quê intermediário, limítrofe, entre o material e o imaterial Surgia o problema de uma outra geração espontânea, linda mais enigmática e fantástica do que a gênese original orgânica: o da origem da matéria no imaterial. Com efeito, o abismo entre matéria e não-matéria exigia ser transposto, tão insistentemente, ou ainda com maior insistência do que aquele que existe entre a natureza orgânica e a inorgânica. Necessariamente devia haver uma química do imaterial, das combinações de que resultava o material, assim como os organismos nasciam de combinações inorgânicas. Podia ser que os átomos fossem os protozoários e as moneras da matéria – materiais, quanto à sua natureza, e todavia ainda imateriais. Mas, a quem alcançasse o ponto onde se trata daquilo que “nem sequer é pequeno”, escaparia toda a medida; “nem sequer pequeno” equivalia a “infinitamente grande”, e o passo dado em direção ao átomo manifestava-se, sem exagero, como falta no mais alto grau. Pois, no instante da mais extrema dissecação e diminuição do material, descortinava-se de repente o cosmo astronômico. O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido, a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação, como tampouco o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado de células”. A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetiase no seio da natureza, na mais extrema redução, o macrocosmo estelar, cujos grupos, nebulosas, constelações, configurações, pairavam, empalidecidos pela lua, ante os olhos do nosso adepto, por cima do vale cintilante de neve. Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar atômico – esses enxames e essas vias-lácteas de sistemas solares que compunham a matéria –, que um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante àquela que fazia da Terra uma sede da vida? Para um jovem adepto um tanto embriagado no seu íntimo, e cuja pele se achava num estado “anormal”, para um homem que já não estava completamente sem experiência no terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não era extravagante, mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais tardar no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “minúsculas” da matéria, e os conceitos de “exterior” e “interior” igualmente viam abalada a sua solidez. O mundo do átomo era um “exterior”, ao passo que, provavelmente, o astro terrestre que habitamos era, organicamente considerado, um profundo “interior”. Não chegara certo sábio, nos seus sonhos audaciosos, a falar dos animais da via-láctea, monstros cósmicos, cuja carne, cujo esqueleto e cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se isso sucedia assim como se afigurava a Hans Castorp, tudo começava apenas no instante em que se imaginava ter alcançado o término. No fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse, ele mesmo, o jovem Hans Castorp, mais uma vez, mais cem vezes, bem agasalhado, num compartimento de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico e humanista. A anatomia patológica, cujo manual ele segurava, inclinado para a luz vermelha da lampadazinha, informava-o, por meio de um texto entremeado de ilustrações, acerca da natureza da aglomeração parasítica de células e dos tumores infecciosos. Eram formas de tecidos – formas de caráter especialmente exuberante – provocadas pela irrupção de células estranhas num organismo que se mostrara acolhedor e de algum modo – talvez seja preciso dizer: de um modo um tanto perverso – oferecia condições favoráveis ao seu crescimento. O mal não era que o parasita privasse de alimentos o tecido circundante; mas, no decorrer do metabolismo peculiar a toda célula, produzia ele combinações orgânicas surpreendentemente tóxicas e inevitavelmente perniciosas. Conseguira-se isolar e apresentar, sob uma forma concentrada, as toxinas de alguns microrganismos e causara surpresa ver quão minúsculas doses dessas substâncias, que eram simples combinações de albumina, bastavam para originar os mais perigosos fenômenos de envenenamento e a mais rapace perdição, quando introduzidas na circulação de um animal. A aparência exterior dessa corrupção era a de uma excrescência dos tecidos, o tumor patológico, que constituía a reação das células contra o estímulo exercido pelos bacilos estabelecidos entre elas. Formavam-se nódulos do tamanho de grãos de painço, compostos de células cuja estrutura se parecia com a dos tecidos das mucosas, e entre as quais, ou nas quais, se instalavam os bacilos; algumas dessas células, extraordinariamente ricas em protoplasma, tornavam-se gigantescas e multinucleares. Mas essa exuberância conduzia a uma rápida ruína, pois que os núcleos dessas células monstruosas começavam logo a se atrofiar e a se decompor, estragando-se o seu protoplasma em virtude da coagulação; novas zonas do tecido vizinho eram invadidas por aquela irritação estranha; fenômenos de inflamação iam se alastrando e atacavam os vasos adjacentes; os glóbulos brancos, irresistivelmente atraídos, encaminhavam-se ao local do desastre; progredia a morte por coagulação, e nesse ínterim os venenos solúveis das bactérias já haviam embriagado os centros nervosos; o organismo alcançara uma temperatura elevadíssima, e cambaleava, por assim dizer, com ânimo alegre, rumo à própria dissolução. Até esse ponto adiantava-se a patologia, a teoria da enfermidade, a acentuação da dor física, que, no entanto, como acentuação do elemento corporal, acentuava também a volúpia. A enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial? O início da marcha para o mal, para a voluptuosidade e para a morte dava-se, sem dúvida, no lugar onde, provocada pelo prurido de uma infiltração desconhecida, realizava-se aquela primeira condensação do espírito, aquela vegetação patologicamente exuberante do seu tecido, mescla de prazer e de repulsa, que constituía a fase mais primitiva do substancial, a transição do imaterial ao material. Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea, a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física. A vida chegava a ser apenas o próximo passo no caminho aventuroso do espírito que se tornara impudico, o cálido reflexo do pudor da matéria que fora despertada à sensibilidade e se mostrara disposta a corresponder ao apelo... Montões de livros achavam-se empilhados na mesinha com a lâmpada. Um jazia no chão, ao lado da espreguiçadeira, sobre a esteira da sacada, e aquele que Hans Castorp estudara por último pesava-lhe sobre o estômago, oprimindo-o e embargando-lhe a respiração, sem que, entretanto, do córtex cerebral partissem aos músculos competentes ordens no sentido de o afastarem. O jovem lera a página até o fim, e seu queixo alcançara o peito. As pálpebras haviamse fechado espontaneamente por cima dos singelos olhos azuis. Via ele a imagem da vida, a estrutura dos seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a carne. Ela retirara as mãos da nuca; abria os braços, a cujo lado interior, antes de tudo sob a pele delicada da articulação do cotovelo, se desenhavam, azulados, os vasos de sangue, as duas ramificações das grandes veias, e esses braços eram de uma indizível doçura. A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele, sobre ele. Hans Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma coisa quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele, desfalecendo de volúpia e de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses braços, ali onde a pele granulosa, tensa sobre o tricípite era de delicada frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo. Dança macabra Pouco depois do Natal morreu o aristocrata austríaco... Mas antes celebrou-se ainda o Natal, esses dois dias de festa, ou mais exatamente esses três dias, se se incluir o Ano-Novo, que Hans Castorp aguardara com certo pavor, perguntando-se com cética curiosidade como passariam, e que então tinham chegado e decorrido como dias normais, com uma manhã, uma tarde e uma noite, e com um tempo nada extraordinário, de leve degelo, não se diferenciando de outros exemplares da sua espécie. Exteriormente haviam recebido certas distinções e certos adornos, e durante o prazo que lhes era outorgado tinham exercido o seu domínio sobre os cérebros e os corações dos homens, antes de se tornarem passado, próximo e cada vez mais distante, deixando atrás um sedimento de impressões destacadas da vida cotidiana... O filho do Dr. Behrens, de nome Knut, veio passar as férias em Davos e se alojou com o pai na ala do sanatório. Era um rapaz bonito, mas cuja nuca também já começava a salientar-se em demasia. A presença do jovem Behrens fazia-se sentir no ambiente. As senhoras mostravamse risonhas, faceiras e irritadiças, e as suas conversas tratavam de encontros com Knut no jardim, no bosque ou na estância balneária. Ele também recebeu visitas: certo número de colegas da universidade subiram ao vale, seis ou sete estudantes, alojados na aldeia, mas que tomavam as refeições em companhia do conselheiro e, reunidos com outros membros do seu grêmio, percorriam em grupos toda a região. Hans Castorp procurava não encontrá-los. Evitava esses jovens, e tanto ele como Joachim esquivavam-se ao contato com eles, pois não tinham nenhuma vontade de conhecê-los. Todo um mundo separava os que viviam ali em cima desses rapazes que cantavam, caminhavam e brandiam bengalas. Hans Castorp nada queria saber nem ouvir a respeito deles. Além disso, a maioria dos visitantes parecia natural do norte da Alemanha; talvez até houvesse entre eles alguns concidadãos, e Hans Castorp experimentava alguma aversão pelos seus conterrâneos. Freqüentemente ventilava, com antipatia, a possibilidade da chegada de hamburgueses ao Berghof, tanto mais que Behrens dissera que essa cidade fornecia ao estabelecimento um considerável contingente de clientes. Era possível que algum patrício seu se encontrasse entre os doentes graves ou moribundos que ninguém via. Visível era apenas um comerciante de faces cavas, que se instalara, fazia algumas semanas, à mesa da Srª. Iltis, e do qual diziam que era natural de Cuxhaven. Ao pensar nessa vizinhança, Hans Castorp regozijava-se com a dificuldade de estabelecer, ali em cima, contato com as pessoas de outras mesas, e com o fato de ser a sua terra natal muito extensa e dividida em diversas esferas. A presença indiferente desse comerciante tranqüilizava em grande parte as preocupações que despertara nele a idéia de topar com outros hamburgueses no recinto do sanatório. Aproximava-se, pois, o Ano-Novo. Certo dia já estava iminente, e no seguinte tornou-se realidade... Naquela ocasião, quando Hans Castorp se admirara de já ouvir falar do Natal, pelo menos seis semanas o haviam separado da festa, tanto tempo, por conseguinte, quanto deviam durar toda a sua permanência segundo o plano primitivo e mais as três semanas que passara na cama. Mas, as seis semanas de então tinham representado um tempo enorme, sobretudo a sua primeira metade, tal qual se afigurava à retrospectiva de Hans Castorp, ao passo que agora um período teoricamente igual significava quase nada: parecia-lhe que os comensais tinham razão quando faziam tão pouco caso desse lapso de tempo. Seis semanas, nem sequer tantas quantos dias tem a semana – que importância tinham elas, quando se ventilava a outra questão de saber o que era uma dessas semanas, um desses pequenos circuitos de segunda-feira até domingo e até a nova segunda-feira? Bastava considerar o valor e a significação da unidade menor, mais próxima, para compreender que o resultado da adição não podia ser grande coisa, resultado esse que, além do mais e ao mesmo tempo, intensificava sensivelmente o processo de contração, obliteração, encolhimento e destruição. Que era um dia, contado, por exemplo, a partir do momento em que a gente se sentava para almoçar, até a volta desse instante, vinte e quatro horas depois? Nada – apesar de serem vinte e quatro horas. Mas, que era, afinal, uma hora, gasta, por exemplo, no repouso obrigatório, num passeio ou numa refeição – enumeração que esgotava, aproximadamente, as possibilidades de se passar essa unidade de tempo? Outra vez nada. O total desses nadas pesava pouco. O caso tornava-se, todavia, mais sério, quando a escala descia até as unidades menores: esses sete vezes sessenta segundos, durante os quais se mantinha o termômetro entre os lábios, a fim de poder-se prolongar a curva da temperatura, tinham uma vida tenaz e o seu peso era considerável; dilatavam-se até formar uma pequena eternidade, insertavam períodos de extrema solidez na fuga fantasmagórica do tempo graúdo... O dia de festa mal fora capaz de perturbar o regime habitual dos habitantes do Berghof. Um belo pinheiro já fora erguido, alguns dias antes, ao lado direito da sala de refeições, junto à mesa dos “russos ordinários”, e seu aroma que, através do cheiro dos pratos abundantes, chegava às vezes até os comensais, acendia um quê pensativo nos olhos de algumas pessoas agrupadas em torno das sete mesas. Na hora do jantar do dia 24 de dezembro, a árvore ostentava enfeites variegados de fios de prata, bolas de vidro, pinhões dourados, pequenas maçãs, suspensas em redes, e toda espécie de bombons. As velas de cera multicor brilharam durante e após a refeição. Segundo se dizia, achavam-se arvorezinhas de velas acesas também nos quartos dos doentes acamados; cada qual tinha a sua. E nos últimos dias, o correio trouxera encomendas em abundância. Também Joachim Ziemssen e Hans Castorp haviam recebido remessas da sua terra na longínqua planície, mimos empacotados com carinho, que agora se achavam espalhados pelos seus quartos: roupas engenhosamente escolhidas, gravatas, objetos de luxo, executados em couro e níquel, bem como muitos doces próprios para a festa, nozes, maçãs e maçapão – provisões que os primos contemplavam com um ar incerto, perguntando-se quando chegaria o momento de comer tudo isso. Como Hans Castorp sabia, o seu pacote fora feito por Schalleen, que também comprara os presentes, após uma ponderada deliberação com os tios. A remessa vinha acompanhada de uma carta de James Tienappel, redigida a máquina, mas em seu grosso papel particular. O tio transmitia as felicitações de Natal e os votos por um rápido restabelecimento, os do tio-avô tanto como os seus próprios, e com muito senso prático acrescentava logo as felicitações pelo Ano-Novo, já quase que vencidas, assim como também fizera Hans Castorp, quando, em tempo, escrevera deitado na espreguiçadeira a carta de Natal ao Cônsul Tienappel, comunicando ainda alguns pormenores acerca do seu estado de saúde. Na sala de refeições, a árvore resplandecia, crepitava, exalava o seu perfume e mantinha viva nos corações e nos espíritos a consciência da hora. Todos se haviam engalanado; os senhores trajavam smoking, e as senhoras exibiam jóias que lhes tinham enviado as mãos carinhosas dos maridos, de todas as zonas da planície. Também Clávdia Chauchat substituíra o costumeiro suéter de lã por um vestido de gala, que tinha, todavia, algo de extravagante, ou melhor, de nacional: era um costume claro, cinturado e bordado, de caráter rústico, russo ou pelo menos balcânico, talvez búlgaro, guarnecido de lantejoulas de ouro, e cujas amplas pregas faziam-lhe a silhueta parecer mais cheia do que normalmente, o que correspondia muito bem àquilo que Settembrini chamava a sua “fisionomia tártara” e sobretudo a seus “olhos de lobo da estepe”. Reinava grande alegria na mesa dos “russos distintos”; foi ali que espocou a primeira rolha de champanha, que então surgiu em quase todas as mesas. Na dos primos, a velha tia pediu-o para a sua sobrinha e para Marusja, e logo se pôs a regalar todo mundo. O cardápio era seleto e terminava com pastéis de queijo e bombons finos, sendo completado por café e licores. De vez em quando, um ramo de pinheiro que se incendiara e tinha de ser apagado depressa provocava um pânico barulhento e exagerado. Settembrini, vestido como sempre, e com um palito na mão, sentou-se um instante, ao fim do banquete, à mesa dos primos. Caçoou com a Srª. Stöhr e passou então a comemorar, em algumas frases, o Filho do Carpinteiro e o Rabino da Humanidade, cujo aniversário se simulava nesse dia. Não se sabia com certeza se ele vivera verdadeiramente. Mas o que nascera naquela época e começava a sua marcha vitoriosa, ininterrompida até hoje, era a idéia do valor da alma individual, junto com a idéia da igualdade – numa palavra, a democracia individualista. A ela brindava, ao esvaziar a taça que lhe haviam oferecido. A Srª. Stöhr achou essa maneira de falar “equívoca e desalmada”. Levantou-se sob protesto, e como, de qualquer modo, os demais já estavam abandonando a sala de refeições, os companheiros de mesa imitaram-lhe o exemplo. A reunião noturna tornou-se solene e animada pela entrega dos presentes ao Dr. Behrens, que chegou, acompanhado de Knut e da Mylendonk, para passar meia hora com seus pacientes. O ato teve lugar na saleta dos aparelhos ópticos. O presente que os russos ofertavam em separado consistia num objeto de prata, uma bandeja redonda, muito grande, em cujo centro se achava gravado o monograma do conselheiro, e que, evidentemente, não podia ter a menor serventia. Em compensação, o divã, com o qual os demais pensionistas haviam presenteado o médico, servia ao menos para a gente se deitar, conquanto ainda não tivesse nem colcha nem almofadas e fosse simplesmente forrado de pano. Mas, a cabeceira era graduável, e Behrens logo experimentou a comodidade do móvel, estendendo-se ao comprido, com a bandeja inútil sob o braço, cerrando os olhos e pondo-se a roncar qual uma serraria; pretendia ser o dragão Fafnir ao lado do seu tesouro. A hilaridade foi grande. Também Mme. Chauchat riu-se dessa cena; seus olhos estreitaram-se, a boca estava muito aberta, exatamente – assim pareceu a Hans Castorp – como a de Pribislav Hippe quando se ria. Imediatamente após a saída do diretor, foram ocupadas as mesas de jogo. O grupo russo instalou-se, como sempre, no pequeno salão. Na sala de refeições, alguns pensionistas permaneceram de pé, em torno da árvore de Natal, observando como os tocos de vela se apagavam nos suportes, e saboreando os bombons suspensos dos ramos. Às mesas, já postas para o café da manhã, achavam-se sentadas diversas pessoas, distantes umas das outras, num isolamento silencioso; havia quem apoiasse a cabeça nas mãos. O primeiro dia de Natal foi úmido e brumoso. Tratava-se apenas de nuvens, segundo afirmava Behrens, nuvens que envolviam o vale. Nunca havia cerração ali em cima. Mas, nuvens ou cerração – em todo caso a umidade era penetrante. A neve caída ia se derretendo na superfície, tornando-se porosa e pegajenta. Durante o repouso obrigatório, o rosto e as mãos enregelavam-se de maneira muito mais penosa do que em dias de frio seco. O dia distinguiu-se por um sarau musical, um verdadeiro concerto com cadeiras enfileiradas e programas impressos, oferecido aos “dali de cima” pela direção do Berghof. Era um recital de canções, executado por uma cantora profissional que vivia em Davos e dava aulas. Levava ela duas medalhas junto ao decote do vestido de gala. Tinha uns braços que se pareciam com bengalas, e uma voz cujo timbre estranhamente surdo revelava de modo lastimável os motivos da sua permanência nessas alturas. Cantava: “Eu levo comigo O meu amor...” O pianista que a acompanhava residia igualmente na aldeia. Mme. Chauchat estava sentada na primeira fila, mas aproveitou o intervalo para se retirar, de forma que Hans Castorp, a partir desse momento, teve ensejo para escutar a música – de qualquer modo tratava-se de música – com o coração tranqüilo, seguindo a letra das canções que se achava impressa nos programas. Durante algum tempo, Settembrini quedou-se a seu lado, antes que desaparecesse também, após ter feito algumas observações incisivas e plásticas acerca do bel canto surdo da cantora do lugar e de ter observado, com alguma satisfação satírica, que mesmo nessa noite estavam “em família”. Para falar a verdade, Hans Castorp sentiu-se aliviado quando ambos saíram, a mulher dos olhos estreitos e o pedagogo, permitindo-lhe devotar livremente a sua atenção às canções. Julgou acertado que no mundo inteiro se fizesse música, até sob as circunstâncias mais especiais, inclusive nas expedições polares. O segundo dia de Natal já não se distinguiu em nada, a não ser pela ligeira consciência da sua presença, de um domingo ou mesmo de um simples dia útil. Quando chegou a seu fim, pertencia a festa de Natal ao passado ou, como poderíamos dizer com igual exatidão, ficava relegada ao longínquo porvir, à distância de um ano; haveria novamente doze meses até a época em que o Natal se renovaria no ciclo do ano – afinal de contas apenas sete meses a mais do que Hans Castorp já acabava de passar ali em cima. Mas, logo após o Natal desse ano, ainda antes do Ano-Novo, morreu o aristocrata austríaco. Os primos souberam por intermédio de Alfreda Schildknecht, a chamada Irmã Berta, enfermeira do pobre Fritz Rotbein, a qual lhes comunicou no corredor o acontecimento, que exigia discrição. Hans Castorp interessou-se vivamente pelo assunto, já que as manifestações de vida do aristocrata haviam formado parte das primeiras impressões que recebera ali – daquelas impressões que, segundo lhe parecia, tinham provocado a sensação de calor no seu rosto, a qual persistia desde então – e também por motivos morais, de natureza quase religiosa. Hans Castorp obrigou Joachim a uma prolongada conversa com a diaconisa, que apreciava com gratidão e tenacidade o diálogo e a troca de opiniões. Era um milagre – dizia ela – que o austríaco houvesse chegado a ver os dias de festa. Desde muito, o cavalheiro mostrara grande resistência, mas ninguém podia explicar com o que conseguira respirar nos últimos tempos. Verdade era que desde alguns dias só se sustentara graças a imensas quantidades de oxigênio; ainda ontem consumira quarenta balões, a seis francos cada um. Isso devia ter custado um dinheirão, como os senhores podiam calcular. Era preciso considerar, além do resto, que a esposa, em cujos braços expirara, ficava completamente sem recursos. Joachim desaprovou esse desperdício. Para que aquela tortura e aquela demora artificial e custosa num caso totalmente desesperado? Não se podia censurar o homem por ter engolido cegamente o precioso gás vivificante, já que o tinham forçado a isso. Porém os que o tratavam deveriam ter procedido com mais siso, deixando-o trilhar com Deus o seu caminho inevitável, independentemente da situação financeira, e ainda mais em consideração a esta. Os vivos também tinham algum direito. E ainda outras coisas nesse tom. Mas Hans Castorp replicou-lhe com ênfase. Censurou o primo por falar quase como Settembrini, sem respeito nem pejo diante do sofrimento. O aristocrata austríaco morrera, afinal, e em face desse fato deviam cessar quaisquer brincadeiras. Era só isso que lhes restava fazer para demonstrarem a sua seriedade, e um agonizante tinha direito a toda a reverência e a todas as honras. Hans Castorp insistia em defender essa opinião. Esperava ao menos que Behrens não tivesse ralhado com o aristocrata, ainda in extremis, fazendo-lhe reprimendas naquela sua maneira ímpia. Não havia sido necessário, declarou a Schildknecht. O moribundo fizera, na verdade, no último momento, uma pequena e inconsiderada tentativa de fuga, procurando saltar da cama. Mas uma simples observação a respeito da inutilidade de tal intento bastara para fazê-lo desistir de uma vez por todas. Hans Castorp foi ver o defunto. Fê-lo por antipatizar com o sistema estabelecido, que consistia em ocultar tais acontecimentos. Desprezava essa atitude egoísta dos outros, que não queriam saber nem ver nem ouvir essas coisas, e desejava contrariá-la ativamente. À mesa fizera uma tentativa no sentido de mencionar o óbito, mas houvera em face do assunto uma repulsa tão unânime e tão obstinada que Hans Castorp sentira vergonha e indignação. A Srª. Stöhr até se mostrara agressiva. Que idéia era essa de falar daquelas coisas?, perguntara. Que espécie de educação recebera ele? O regulamento da casa protegia os pensionistas cuidadosamente contra o contato com tais histórias, e agora vinha um novato e se metia a falar disso em voz alta, justamente na hora do assado, e ainda em presença do Dr. Blumenkohl, que a qualquer instante podia ter a mesma sorte. (Essas últimas palavras foram tapadas com a mão.) Se isso se repetisse, ela ia queixar-se ao diretor. Em conseqüência dessa atitude, decidira Hans Castorp – e também expressara a sua decisão – prestar a derradeira homenagem ao companheiro falecido, indo visitálo no seu leito de morte e rezando uma tácita oração. Convencera Joachim a que o acompanhasse. Por intermédio da Irmã Berta conseguiram penetrar na câmara mortuária, que se achava no primeiro andar, debaixo dos seus próprios quartos. Recebeu-os a viúva, uma lourinha desgrenhada, exausta pelas vigílias, de nariz vermelho, com um lenço diante da boca; trajava um grosso sobretudo, com a gola levantada, pois fazia muito frio no recinto. Haviam desligado a calefação, e a porta da sacada estava aberta. Em voz abafada, os jovens murmuraram algumas palavras adequadas. A seguir, melancolicamente convidados por um gesto de mão, atravessaram o quarto em direção à cama, avançando nas pontas dos pés, com passo reverencioso e cadenciado, e permaneceram em contemplação diante do leito do morto, cada qual à sua maneira: Joachim, numa posição militar, com os tacões unidos, saudando com uma leve mesura; Hans Castorp, relaxado e pensativo, com as mãos cruzadas sobre o peito, e com a cabeça inclinada para o ombro, exibindo uma fisionomia semelhante àquela com que costumava ouvir música. A cabeça do aristocrata achava-se colocada muito alto, de maneira que o corpo, esse conjunto comprido, berço dos múltiplos processos da vida, com os pés erguidos sob a extremidade da colcha, aparecia tanto mais plano, lembrando uma tábua. Uma grinalda de flores jazia na região dos joelhos, e o ramo de palmas que saía dela tocava as grandes mãos amarelas e ósseas, que repousavam entrelaçadas sobre o peito afundado. Amarelo e ósseo era também o rosto, com o crânio calvo, o nariz adunco, as maçãs acentuadas e o basto bigode ruivo, cuja espessura ainda contribuía para intensificar a concavidade cinzenta das faces hirtas. Os olhos estavam fechados com uma firmeza pouco natural. “Não se fecharam, foram fechados”, pensou Hans Castorp. Chamava-se isso o último tributo, apesar de ser rendido antes em consideração aos vivos do que ao morto. Era preciso fazê-lo a tempo, imediatamente depois da morte; pois, uma vez formada a miosina nos músculos, tornava-se impossível; então o cadáver permanecia estendido, olhando fixamente, e já não se podia manter a doce ilusão do “adormecimento”. Como perito, sentindo-se no seu elemento sob mais de um aspecto, Hans Castorp detinha-se ao lado da cama, cheio de competência, mas também de piedade. – Parece dormir – disse por compaixão, se bem que houvesse grandes diferenças. A seguir, numa voz convenientemente abafada, entabulou uma conversa com a viúva do aristocrata, informando-se sobre o martírio do marido, sobre os últimos dias e instantes, e sobre o futuro transporte do corpo para a Caríntia. A simpatia e a compreensão que suas perguntas demonstravam tinham um caráter ao mesmo tempo médico e sacerdotal. A viúva expressava-se no seu dialeto austríaco, numa fala arrastada e fanhosa, às vezes interrompida por soluços. Pareceu-lhe notável que dois jovens manifestassem tanta disposição para participar da mágoa alheia; ao que Hans Castorp respondeu que seu primo e ele também estavam enfermos; quanto à sua própria pessoa, já se achara, em idade muito tenra, junto ao leito de morte de parentes próximos; era órfão de pai e mãe, e por conseguinte familiarizado com a morte havia muito tempo. Ela indagou pela profissão que Hans Castorp escolhera. Ele explicou que “fora” engenheiro. Fora? Sim, no sentido de que agora a enfermidade e a duração bastante incerta da sua permanência ali em cima lhe haviam estorvado os planos, o que, indubitavelmente, representava um marco importante e talvez um novo rumo para a sua existência. Isso não se podia prever. (Joachim lançou-lhe um olhar observador e espantado.) – E o senhor seu primo? – perguntou ela. – Ele deseja ser soldado, lá embaixo. É aspirante. – Ah! – disse a viúva, e acrescentou que a profissão militar era, com efeito, apropriada para induzir à seriedade. Um soldado devia andar preparado para certas circunstâncias que o pusessem em contato direto com a morte. Talvez lhe fizesse bem habituar-se desde cedo ao seu aspecto. E ela despediu os jovens, expressando gratidão com uma calma amável que não podia deixar de causar respeito a quem considerasse a sua situação angustiosa e, sobretudo, a elevada conta de oxigênio que lhe legara o marido. Os primos voltaram aos seus quartos. Hans Castorp mostrou-se satisfeito com a visita e piedosamente inspirado pelas impressões que acabava de receber. – Requiescat in pace – disse. – Sit tibi terra levis. Requiem aeternam dona ei, Domine. Você está vendo, quando se trata da morte, ou quando a gente se dirige a um morto ou se refere a ele, o latim entra novamente nos seus direitos. É a língua oficial para esses casos. Vê-se que a norte é coisa bem especial. Mas não é por mera cortesia humanística que se fala latim em sua honra. A língua dos mortos não é o latim que se aprende na escola, sabe? Tem um espírito muito diferente, um espírito completamente oposto, pode-se dizer. É o latim sacro, o dialeto monacal, é a Idade Média, em certo sentido, um canto surdo, monótono, que sai de baixo da terra. Settembrini não gostaria dele; isso não agrada a humanistas e republicanos e a esse tipo de pedagogos; nasceu de outra mentalidade, da outra das duas que existem. Acho que devemos adquirir clareza a respeito das diferentes tendências do espírito, ou talvez seja melhor dizer: a respeito dos seus diferentes estados. Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de nobre cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o pensamento da morte e da decomposição. Você já viu no teatro o Dom Carlos e as coisas que se passam na corte espanhola, quando entra o Rei Filipe todo vestido de preto, com a Ordem da Jarreteira e a do Tosão de Ouro, e tira lentamente o chapéu, que se parece muito com os nossos chapéus-coco. Levanta-o e diz: “Cobri-vos, meus grandes!” ou qualquer coisa nesse sentido. Não se pode negar que isso é um comportamento sumamente comedido. Nele nada nos lembra relaxamento e costumes descuidados. Pelo contrário, a própria rainha diz: “Na minha França tudo era diferente”. Claro, ela acha que tudo isso é excessivamente complicado e meticuloso; desejaria um ambiente mais alegre, mais humano. Mas que quer dizer humano? Tudo é humano. O elemento devoto, humildemente solene, rigorosamente regulado, que é peculiar aos espanhóis, é um gênero muito digno da humanidade, penso eu, e por outro lado essa palavra “humano” pode encobrir qualquer desordem e negligência. Não está de acordo? – Nesse ponto concordo com você – disse Joachim. – Eu também não suporto a negligência e a moleza. A disciplina é indispensável. – Pois é. Você diz isso como militar, e eu não nego que no exército entendem desse assunto. A viúva tinha perfeitamente razão quando asseverou que o ofício de vocês tem um caráter sério, porque é sempre preciso contar com a pior das eventualidades e estar preparado para um encontro com a morte. Vocês têm o uniforme que é limpo e justo e requer um colarinho engomado. Essas coisas dão às pessoas um certo decoro. E existem ainda a hierarquia e a obediência, e um soldado presta honra ao outro, cerimoniosamente. Tudo isso se faz dentro do espírito espanhol, por devoção, e no fundo me agrada bastante. Entre nós, os civis, deveria haver muito mais desse espírito, nos nossos costumes e na nossa atitude. É o que eu prefiro e que julgo conveniente. Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de tal sorte que deveríamos sempre andar de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formais, recordando-nos da morte. Eu gostaria que fosse assim. Acho que isso corresponde à moral. Olhe, aí temos mais um desses erros e dessas presunções de Settembrini. É ótimo que a nossa conversa me proporcione uma oportunidade para falar sobre isso. Ele imagina ter monopolizado não somente a dignidade humana, mas também a moral, por causa da sua “atividade prática” e das suas solenidades domingueiras em prol do progresso – como se precisamente nos domingos não se pensasse em coisas bem alheias ao progresso – e com o seu extermínio sistemático dos males; é esse um assunto de que você não está inteirado, mas do qual ele me falou para me instruir. O homem quer exterminá-los sistematicamente, por meio de uma enciclopédia. E se justamente isso me parece imoral?... Claro que não o digo a ele, porque logo me esmagaria com a sua lábia plástica e diria: “Eu o estou prevenindo, engenheiro!” Mas pelo menos tenho o direito de pensar o que quero. “Majestade, conceda-nos liberdade de pensamento!” Vou lhe dizer uma coisa – acrescentou. Nesse meio tempo haviam chegado ao quarto de Joachim, e este se preparava para o repouso. – Vou lhe dizer o que tenho a intenção de fazer. Vivemos aqui lado a lado com pessoas agonizantes e com o mais grave sofrimento e martírio, mas essa gente não só se comporta como se nada tivesse que ver com isso, mas também é protegida e abrigada contra o mínimo contato com essas coisas e contra o seu aspecto. Tenho certeza de que farão desaparecer o aristocrata austríaco, clandestinamente, enquanto estivermos almoçando ou tomando o chá da tarde. Acho isso contrário à moral. A Stöhr já ficou furiosa, quando apenas mencionei o falecimento. Não suporto tamanha estupidez. Que ela não tenha a mínima cultura e pense que “Leise, leise, fromme Weise” é do Tannhäuser, como afirmou há poucos dias à mesa, vá lá; mas, com tudo isso, poderia ter sentimentos um pouco mais morais, e os outros também. Por isso me propus ocupar-me no futuro dos enfermos graves e dos moribundos da casa. Isso me fará bem. Essa visita que acabamos de fazer também me animou, em certo sentido. O coitado do Reuter, do número 25, aquele rapaz que eu vi através de uma frincha da porta, logo nos primeiros dias da minha estadia aqui, provavelmente se encaminhou ad penates, há muito tempo, e foi escamoteado discretamente. Já naquela ocasião tinha os olhos exageradamente dilatados. Mas restam muitos outros; a casa está cheia, e nunca faltam entradas novas. A Irmã Berta ou a Superiora, ou talvez o próprio Behrens nos ajudarão certamente a entrar em relações com algumas dessas pessoas. Isso não pode ser difícil. Supondo que um moribundo esteja fazendo anos, e a gente fique sabendo da data... São coisas que se podem descobrir. Pois bem, enviaremos ao quarto desse homem, ou dessa senhora – a ele ou a ela, segundo o caso –, um vaso com flores, como atenção de dois companheiros anônimos, com os nossos melhores votos para o seu restabelecimento – a palavra “restabelecimento”, por pura cortesia, nunca deixa de ser adequada. Naturalmente acabarão por revelar os nossos nomes às referidas pessoas, e ele ou ela, no seu estado de fraqueza, manda-nos, através da porta, uns cumprimentos amáveis, e talvez nos convide para entrarmos um instante no seu quarto. Então trocaremos algumas palavras humanas com essa pessoa, antes de ela se desagregar. É assim que eu imagino a coisa. Você está de acordo? Quanto a mim, estou resolvido. Joachim pouco tinha que opor a esse projeto. – É contrário ao regulamento da casa – disse. – Sob certo ponto de vista, você o infringiria. Mas, excepcionalmente, e como você insiste tanto, pode ser que o Behrens lhe dê a licença. Refira-se ao seu interesse pela medicina. – Sim, entre outras coisas vou me referir a isso também – respondeu Hans Castorp, e, realmente, os motivos de que nascera o seu desejo eram complexos. O protesto contra o egoísmo reinante era apenas um dentre eles. O que ainda contribuía para a sua decisão era, antes de tudo, a necessidade que experimentava o seu espírito de tomar a sério e de poder honrar o sofrimento e a morte; necessidade que ele esperava satisfazer e fortificar pelo contato com os enfermos graves e os agonizantes; tal contato compensaria os múltiplos insultos a que a dita necessidade se via exposta a cada passo, cada dia e cada momento, e que confirmavam, de um modo chocante, certas opiniões de Settembrini. Exemplos que corroborassem isso existiam em abundância. Se interrogássemos Hans Castorp, ele citaria, talvez, em primeiro lugar certos habitantes do Berghof que, segundo a sua própria confissão, absolutamente não estavam doentes e viviam ali por livre e espontânea vontade, sob o pretexto oficial de uma ligeira infecção, mas em realidade só para se divertir, e porque lhes comprazia o estilo de vida dos enfermos; um caso desses era a viúva Hessenfeld, já mencionada ocasionalmente, mulher muito viva cuja paixão era apostar. Apostava com os cavalheiros, apostava a respeito de qualquer assunto, apostava no tempo que haveria, nos pratos que seriam servidos, nos resultados dos futuros exames gerais e no número de meses que seriam impostos a determinada pessoa, em certos trenós, campeões de esqui ou de patinação, quando das competições desportivas, no desenvolvimento das intrigas amorosas que eram tecidas entre os pensionistas, enfim, em mil coisas na sua maioria insignificantes e indiferentes; apostava chocolate, champanha ou caviar, que então eram solenemente consumidos no restaurante, apostava dinheiro, entradas de cinema e beijos a dar ou a receber – numa palavra, com essa sua mania animava e enchia de vida a sala de refeições. Mas tal conduta afigurava-se pouco séria ao jovem Hans Castorp, e a sua simples existência parecia-lhe uma afronta à dignidade desse lugar de sofrimentos. Pois, no íntimo, ele se empenhava lealmente em proteger essa dignidade e em mantê-la perante si próprio, por mais difícil que isso se lhe tornasse depois de quase meio ano de permanência entre os dali de cima. Os olhares que pouco a pouco conseguira lançar à vida, às atividades, aos hábitos e aos conceitos desse pessoal não eram apropriados para incrementar a sua boa vontade. Havia lá aqueles dois peralvilhos magros, de dezessete e dezoito anos, respectivamente, e cognominados de “Max e Moritz”; suas escapadas noturnas, com o fim de jogar pôquer ou de cair na bebedeira, davam abundante assunto às conversas do mundo feminino. Recentemente, isto é, oito dias depois do Ano-Novo – não nos esqueçamos de que, enquanto contamos a nossa história, o tempo progride sem descanso no seu curso silencioso –, difundiu-se, durante o almoço, a notícia de que o massagista encontrara, em plena manhã, os dois rapazes estendidos sobre as suas camas, ainda trajando os smokings amarrotados. Também Hans Castorp se riu disso; mas essa história, por mais que lhe envergonhasse os sentimentos elevados, não era nada em comparação com as aventuras do advogado Einhuf, de Jüterbog, um quarentão com cavanhaque e com mãos cobertas de pêlos negros, que fazia algum tempo ocupava, à mesa de Settembrini, o antigo lugar do sueco restabelecido; não somente voltava ele noite após noite a casa em estado de completa embriaguez, mas alguns dias atrás nem sequer regressara, sendo encontrado no dia seguinte estatelado no jardim. Passava por um estróina perigoso, e a Srª. Stöhr era capaz de apontar com o dedo para a jovem noiva de um senhor na planície, que, a determinada hora, fora vista saindo do quarto de Einhuf, envolta unicamente num abrigo de peles, sob o qual, segundo o que se afirmava, havia apenas uma combinação. Era escandaloso, não só com respeito à moral em si, mas também escandaloso e ofensivo para Hans Castorp pessoalmente, em consideração aos seus esforços espirituais. Acrescia a isso que ele era incapaz de pensar na pessoa do advogado, sem incluir nos seus pensamentos também Fränzchen Oberdank, aquela mocinha de cabelos lisos, que havia poucas semanas chegara ali, apresentada pela mãe, uma digna matrona provinciana. Quando da sua chegada e após o primeiro exame, Fränzchen Oberdank fora considerada um caso leve. Mas, seja porque houvesse cometido alguma imprudência, seja porque se tratasse de um daqueles casos em que o ar era bom não para combater, senão para fomentar a doença, ou seja ainda porque a pequena se tivesse enredado em certas intrigas e desgostos que lhe tinham prejudicado a saúde – em todo caso sucedeu o seguinte quatro semanas depois do seu internamento: ao voltar de um segundo exame e ao entrar na sala de refeições, jogou a bolsinha ao ar e exclamou em voz muito alta: “Viva! Tenho de ficar aqui um ano inteiro!”, o que provocou uma gargalhada homérica em toda a sala. Quinze dias após, porém, circulou o rumor de que o advogado Einhuf se portara como um canalha para com Fränzchen Oberdank. Aliás, essa expressão é nossa, ou melhor: vai por conta de Hans Castorp, já que os portadores do boato não julgavam o assunto de natureza bastante inédita para justificar palavras tão violentas. Além disso, deram a entender, encolhendo os ombros, que para tais coisas era indispensável a presença de duas pessoas e que, sem dúvida, nada ocorrera sem o consentimento e o desejo de ambos os interessados. Pelo menos era essa a atitude e a opinião moral da Srª. Stöhr diante do caso em apreço. Carolina Stöhr era simplesmente horrorosa. Se havia algo capaz de perturbar Hans Castorp nos seus sinceros esforços espirituais era a existência e o comportamento dessa mulher. Suas gafes contínuas já teriam bastado. Dizia “agônia” em vez de “agonia”, “insolvente” em lugar de “insolente”, e produzia as mais espantosas tolices sobre os fenômenos astronômicos que originavam um eclipse solar. Afirmava que o excesso de neve era um verdadeiro “flagício”, e certo dia provocou a prolongada surpresa do Sr. Settembrini ao dizer que estava lendo um livro, tirado da biblioteca do estabelecimento, e que lhe interessaria: “Benedetto Cenelli, na tradução de Schiller”3. Ela usava de preferência lugares-comuns que atacavam os nervos do jovem Hans Castorp, devido à sua insipidez e à vulgaridade inerente a locuções em moda, como, por exemplo, “É de tirar o chapéu” ou “É um colosso”. E como o adjetivo “formidável”, que o linguajar da moda durante muito tempo usara em lugar de “esplêndido” ou “perfeito”, se mostrasse totalmente gasto, debilitado, prostituído e, por isso, antiquado, adotou ela o último grito, que era a palavra “fenomenal”, achando desde então, seriamente ou por brincadeira, tudo fenomenal, a pista de trenós tanto como a sobremesa vienense e a temperatura do seu próprio corpo – o que igualmente causava uma impressão asquerosa. Acrescia a isso a sua desmedida mania de mexericar. Que ela contasse que a Srª. Salomon usava hoje a sua mais preciosa calcinha de rendas, 3 Referência a Vita, memórias do escultor Benvenuto Cellini, traduzidas por Goethe. (N. do E.) visto ter hora marcada para um exame e ostentar nessas horas a sua roupa-branca mais fina diante dos médicos, seria ainda admissível; o próprio Hans Castorp já tivera a impressão de que o ato do exame médico, independente do seu resultado, causava prazer às senhoras, que para essa ocasião se enfeitavam com uma garridice toda especial. Mas, que se deveria pensar quando a Srª. Stöhr assegurava que a Srª. Redisch, de Posen, suspeita de sofrer de tuberculose da medula espinhal, era obrigada a marchar uma vez por semana, completamente nua diante do Dr. Behrens? A inverossimilhança dessa afirmação quase igualava o seu caráter escabroso, mas a Srª. Stöhr defendia-a com a maior obstinação e jurava dizer a verdade, apesar de ser difícil compreender por que a coitada despendia tanto zelo, ênfase e insistência em tais assuntos, uma vez que suas próprias preocupações já lhe davam bastante que fazer. De vez em quando acossavam-na acessos de um desassossego covarde e lamuriento, motivado aparentemente por um aumento da sua “lassidão” ou pela ascensão da sua curva. Chegava ela então à mesa soluçando, as faces ásperas e vermelhas inundadas de lágrimas; abafando o choro com o lenço, contava que o Behrens tencionava metê-la na cama; mas ela queria saber o que o médico dissera às suas costas, queria saber o que tinha, o que seria dela, queria arrostar a verdade. Com grande espanto notou certo dia que os pés da sua cama achavam-se dirigidos para o portão de entrada, e quase que desfaleceu ao fazer essa descoberta. Sua raiva e seu horror não foram compreendidos imediatamente; sobretudo Hans Castorp custou a encontrar uma explicação plausível. E daí? Como era isso? Por que não devia a cama estar colocada dessa maneira? – Mas, por amor de Deus, o senhor não compreende? “Com os pés para a frente!...” – Fez um estardalhaço medonho, e foi necessário mudar a posição da cama, se bem que, depois, a luz lhe desse em pleno rosto e lhe prejudicasse o sono. Tudo isso não era sério e ajudava muito pouco as aspirações espirituais de Hans Castorp. Um incidente pavoroso, que naquela época ocorreu durante uma das refeições, causou ao jovem uma impressão particularmente profunda. Um pensionista recém-chegado, o Professor Popov, homem macilento e taciturno, que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, em companhia da sua noiva igualmente magra e silenciosa, foi tomado, no meio do almoço, por um violento ataque de epilepsia; lançando aquele grito cujo caráter demoníaco e inumano tem sido descrito freqüentemente, caiu ao chão e revirou-se ao lado da cadeira, nas mais horripilantes contorções, agitando os braços e as pernas. Acrescia a isso uma circunstância agravante: acabavam de servir um prato de peixe, de maneira que era de recear que Popov, no seu enlevo convulsivo, cravasse alguma espinha na garganta. O tumulto foi indescritível. As mulheres – em primeiro lugar a Srª. Stöhr, sem que, no entanto, lhe ficassem atrás as senhoras Salomon, Redisch, Hessenfeld, Magnus, Iltis, Levi, etc. – tiveram os mais variados chiliques, a ponto de algumas se igualarem ao Sr. Popov. Seus gritos eram estridentes. Não se via mais que olhos histericamente cerrados, bocas abertas e corpos retorcidos. Uma única senhora preferiu desmaiar em silêncio. Houve crises de sufocação, já que todos haviam sido surpreendidos pelo tremendo incidente no ato de mastigar e de engolir. Parte dos pensionistas desapareceu por tudo que era porta, também pelas do avarandado, não obstante o frio e a umidade que reinavam fora. Mas essa ocorrência tinha, além do seu caráter horrendo, ainda um cunho especial e chocante, em virtude de uma associação de idéias que se impunha e a relacionava com a última conferência do Dr. Krokowski. É que o analista, no decorrer das suas explanações acerca do amor como fator patogênico, tratara justamente na segunda-feira passada da epilepsia; esse mal que a humanidade, em tempos préanalíticos, considerara alternadamente uma prova sagrada, até mesmo profética, e uma possessão do Demônio – o Dr. Krokowski qualificara-o, em termos ora poéticos, ora inexoravelmente científicos, de equivalente do amor e de orgasmo do cérebro; numa palavra, interpretara-o de tal forma que, aos seus ouvintes, o comportamento do Professor Popov, espécie de ilustração da conferência, afigurava-se como uma revelação descomedida ou um escândalo misterioso. Assim se exprimiu um certo pudor na fuga das senhoras. O próprio Dr. Behrens assistiu a essa refeição, e foi ele, com o auxílio da Mylendonk e de alguns companheiros de mesa jovens e robustos, quem retirou da sala o extático, azul, espumejante, rígido e desfigurado, e o transportou ao vestíbulo, onde Popov permaneceu ainda muito tempo sem sentidos, enquanto os médicos, a Superiora e outros membros do pessoal da casa se ocupavam com ele, antes de o levar numa padiola. Pouco depois, porém, viu-se de novo o Professor Popov, com a noiva, à mesa dos “russos distintos”, terminando, silenciosos e satisfeitos, o almoço, como se nada tivesse acontecido. Hans Castorp presenciara o incidente com os sinais exteriores de um respeitoso espanto, se bem que, no fundo, também isso não lhe parecesse muito sério, Deus o perdoe! Verdade é que Popov poderia ter se engasgado, por estar com a boca cheia de peixe; mas, em realidade, não se engasgara; apesar da fúria e do paroxismo inconsciente, ainda tivera um pouco de cuidado e fazendo como se jamais se tivesse comportado qual um louco ou um ébrio raivoso. Talvez nem sequer se lembrasse do ocorrido. Essa figura tampouco era de molde a fortalecer o respeito que Hans Castorp sentia diante do sofrimento; também ela aumentava, à sua maneira, o número das impressões de licenciosidade frívola, às quais o jovem, malgrado seu, se via exposto ali em cima, e que desejava enfrentar por meio de uma ocupação com os doentes graves e moribundos, ainda que isso fosse contrário ao uso estabelecido. No andar dos primos, não longe dos seus quartos, achava-se acamada uma mocinha muito nova ainda, de nome Leila Gerngross, a qual, segundo as informações da Irmã Berta, estava a ponto de morrer. No espaço de dez dias tivera quatro hemoptises violentíssimas, e seus pais acabavam de chegar, a fim de levá-la para casa, enquanto viva, se fosse possível. Tornara-se manifesto, porém, que isso era impraticável. O conselheiro declarara que a pobre da pequena Gerngross não poderia ser transportada. Tinha ela dezesseis ou dezessete anos. Hans Castorp achou que esta era a oportunidade desejada para realizar o seu projeto do vaso de flores e dos votos de restabelecimento. Na verdade, Leila não estava fazendo anos, o que, segundo as previsões humanas, nunca mais ocorreria, já que a data do seu aniversário, como Hans Castorp descobrira, só chegaria na primavera. Mas – opinou ele – isso não devia constituir nenhum obstáculo à tal homenagem caridosa. Num dos seus passeios do meio-dia pela zona da estância balneária, entrou junto com o primo na loja de um florista, respirando com o peito emocionado a atmosfera carregada de perfumes e de um cheiro de terra úmida. Comprou um lindo pé de hortênsias, que enviou ao quarto da jovem moribunda, anonimamente, com um cartão, no qual se lia apenas: “Da parte de dois companheiros, com os melhores votos para o seu pronto restabelecimento”. Sentiu-se alegre ao dar a respectiva ordem, agradavelmente entontecido pelo aroma das plantas e o tépido ar da loja, que, depois do frio exterior, lhe fazia lacrimejar os olhos; seu coração palpitava, e enchia-o uma sensação de aventura, de audácia e do caráter oportuno dessa empresa insignificante, à qual atribuía, em segredo, uma envergadura simbólica. Leila Gerngross não tinha enfermeira particular; achava-se confiada aos cuidados imediatos da Srta. von Mylendonk e dos médicos. No entanto, a Irmã Berta entrava a toda hora no seu quarto, e foi ela quem informou os jovens quanto ao efeito que produzira a atenção deles. A pequena, naquele mundo estreito em que a confinava o seu estado desesperador, sentira um prazer louco ante a saudação procedente de mãos desconhecidas. A planta achava-se ao lado da cama; a mocinha acariciava-a com os olhos e as mãos, fazia questão que a regassem, e mesmo durante os piores acessos de tosse que a sacudiam ainda mantinha cravados nela os olhos torturados. Também os pais, o major aposentado, Sr. Gerngross, e sua esposa, estavam comovidos e simpaticamente impressionados, e como não conhecessem os habitantes da casa e não soubessem adivinhar o nome dos ofertantes, a Srta. Schildknecht não pudera deixar – como ela própria confessou – de correr o véu do anonimato e de designar os primos como os autores do mimo. Transmitiu-lhes o convite dos três Gerngross, para que fossem apresentar-se e receber a expressão da sua gratidão. Aconteceu pois que, dois dias após, conduzidos pela enfermeira, pisassem sobre a ponta dos pés na câmara de martírio de Leila. A agonizante era uma criatura sumamente graciosa, lourinha, com uns olhos cor de miosótis; apesar das terríveis perdas de sangue e de uma respiração realizada apenas com um resto insuficiente de tecido pulmonar aproveitável, oferecia um aspecto sem dúvida frágil, mas, no fundo, nada lastimoso. Agradeceu e iniciou a conversa numa voz agradável, embora apagada. Um brilho rosado surgiu-lhe nas faces e nelas permaneceu. Hans Castorp, após ter explicado os motivos da sua ação aos pais e à enferma e quase se ter desculpado por ela, falou numa voz abafada e comovida, cheio de carinhosa deferência. Faltou pouco – e em todo caso existiu o impulso íntimo nesse sentido – para que ajoelhasse ao pé da cama. Durante muito tempo conservou a mão de Leila entre as suas, posto que essa mãozinha quente não estivesse apenas úmida, mas até alagada de suor, pois a menina transpirava abundantemente; suava com tamanha intensidade que sua carne deveria ter-se encolhido e estiolado há muito tempo, não fosse para compensar a transudação, o consumo ávido de limonada, que se achava numa garrafa sobre o criado-mudo. Os pais, aflitos como estavam, mantinham a conversa, em conformidade com o bom-tom, por meio de perguntas a respeito do estado de saúde dos primos e de outros recursos convencionais. O major era um homem espadaúdo, de testa baixa e bigode eriçado, um gigante, cuja inocência orgânica quanto à disposição mórbida e ao físico débil da filha era manifesta. Parecia óbvia a responsabilidade da mulher, uma baixinha de tipo decididamente tísico, cuja consciência se mostrava deveras pesada em virtude da herança que legara à filha. Quando Leila, ao cabo de dez minutos, deu sinais de fadiga – o rosado das faces intensificou-se, enquanto os olhos de miosótis brilharam de forma inquietante – e os primos, advertidos pelos olhares da Irmã Alfreda, despediram-se, a Srª. Gerngross acompanhou-os até fora do quarto, entregando-se a acusações a si própria, que emocionaram singularmente Hans Castorp. Ela, só ela, podia ter a culpa – afirmou a mulher totalmente compungida –, era exclusivamente por sua causa que a pobre menina tinha “aquilo”; o marido nada tinha que ver com a coisa, era absolutamente inocente. Mas também ela – assim assegurou – não sofrera do mal, senão de forma passageira, leve e superficial, quando mocinha. Depois se curara por completo, como lhe haviam garantido, quando quisera casar-se. Gostava tanto da vida e do casamento, que assim conseguira a cura; ao entrar no matrimônio já estava completamente sadia e restabelecida, e seu querido esposo, forte como um carvalho, nunca pensara em tais histórias. No entanto, por mais puro e vigoroso que fosse o marido, sua influência não pudera impedir a desgraça. Pois na filha, reaparecera o horror, o mal enterrado e esquecido, e a menina não fora capaz de vencê-lo, sucumbiria a ele, ao passo que ela própria, a mãe, triunfara e chegara a uma idade menos exposta. A coitadinha, a querida garota, ia morrer; os médicos já não davam nenhuma esperança, e somente a mãe tinha culpa disso, devido aos seus antecedentes. Os jovens empenharam-se em consolá-la, sugerindo a possibilidade de um desfecho feliz. Mas a mulher do major limitou-se a soluçar. Mais uma vez lhes agradeceu tudo quanto haviam feito pela filha, a hortênsia e a visita com a qual acabavam de distrair a menina e de lhe proporcionar um pouquinho de felicidade. A pobrezinha achava-se deitada ali, no seu tormento e na sua solidão, enquanto outras mocinhas gozavam a vida e dançavam com rapazes bonitos, desejo que a enfermidade absolutamente não aniquilava. Os primos haviam-lhe transmitido alguns raios de sol, talvez os últimos, infelizmente. O pé de hortênsia era como um triunfo num baile, e a conversa com os dois cavalheiros de boa aparência representara para a garota a mesma coisa que um interessante e rápido flerte, como ela – a mãe Gerngross – notara muito bem. Essas palavras causaram a Hans Castorp impressão desagradável, sobretudo porque a mulher do major pronunciara a palavra “flerte”, não corretamente, à maneira inglesa, senão à alemã, com um nítido “i”, o que o irritou violentamente. Além disso não era ele um cavalheiro de boa aparência, mas visitara a pequena Leila em sinal de protesto contra o egoísmo reinante e num intuito entre médico e sacerdotal. Numa palavra, sentiu-se um tanto decepcionado pelo modo como terminara a empresa, pelo menos no que dizia respeito à opinião da mãe. De resto, porém, a realização do projeto deixou-o animado e satisfeito. Duas sensações, principalmente – o cheiro de terra na loja do florista e a umidade da mãozinha de Leila – haviam remanescido na sua alma e no seu espírito. E como dera o primeiro passo, combinou ainda no mesmo dia com a Irmã Berta uma visita ao paciente dela, Fritz Rotbein, que aborrecia terrivelmente, não só a enfermeira, mas também a si próprio, conquanto, segundo todos os indícios, não lhe restasse mais do que pouco tempo de vida. De nada adiantou a resistência do bom Joachim; não lhe foi possível esquivar-se. A atividade caritativa e o espírito empreendedor de Hans Castorp foram mais fortes do que a repugnância do primo, cuja manifestação se limitou ao silêncio e aos olhos baixos, uma vez que não poderia justificá-la sem faltar aos sentimentos cristãos. Hans Castorp percebeu isso nitidamente e tirou partido desse fato. Compreendia também com a mais absoluta clareza o sentido militar daquela falta de entusiasmo. Ora, ele próprio sentia-se animado e feliz devido a essas iniciativas, que lhe pareciam proveitosas. Nesse caso era preciso não se importar com a silenciosa resistência de Joachim. Deliberaram juntos sobre se era conveniente mandar ou levar flores também ao jovem Fritz Rotbein, se bem que se tratasse de um moribundo de sexo masculino. Hans Castorp insistia em fazê-lo; na sua opinião, as flores eram indispensáveis; o precedente do pé de hortênsia, de cor violeta e de formas bonitas, agradara-lhe sobremaneira. Assim, decidiu que o sexo de Rotbein era compensado por seu estado desesperador, e que não era preciso que o moço fizesse anos para receber flores, visto os agonizantes terem o direito irrestrito e permanente de ser tratados como aniversariantes. Assim disposto, foi mais uma vez, em companhia do primo, aspirar a atmosfera terrosa e tépida da loja de flores. Entraram, então, no quarto do Sr. Rotbein, com um ramalhete oloroso e recém-molhado de rosas, cravos e goivos, introduzidos por Alfreda Schildknecht, que anunciara a chegada dos jovens. O moço gravemente enfermo, de apenas vinte anos, mas já um pouco calvo e grisalho, com uma tez de cera e o rosto emaciadado, tinha grandes mãos, grande nariz e grandes orelhas. Quase chorou de tão grato pelo consolo e pela distração. Com efeito, tinha os olhos úmidos de fraqueza quando cumprimentou os dois primos e recebeu o ramo de flores. A seguir, porém, passou a falar, sem transição, embora num quase cochicho, sobre o comércio de flores na Europa e o seu crescente desenvolvimento, sobre a enorme exportação dos horticultores de Nice e de Cannes, sobre os vagões carregados e as remessas postais que saíam diariamente daqueles lugares em todas as direções; discorreu acerca dos mercados atacadistas de Paris e de Berlim, e do abastecimento da Rússia. Bem, ele era comerciante, e seus interesses continuariam orientados nesse sentido, enquanto houvesse vida nele. Seu pai, fabricante de bonecos em Coburgo, enviarao à Inglaterra para educar-se – contou murmurando – e fora ali que adoecera. Mas haviam diagnosticado a sua moléstia febril como sendo de caráter tifóide e, tratando-a como tal, tinhamno submetido a um regime de sopas aguadas que o debilitara sobremaneira. Ali em cima lhe fora permitido comer, e ele o fizera; sentado na cama, esforçara-se por alimentar-se, com o suor no seu rosto. Entretanto, já era tarde. O mal, desgraçadamente, já lhe atacara os intestinos. Era inútil que lhe enviassem de casa línguas e enguias defumadas, visto ele não suportar mais nada. Agora, seu pai partira de Coburgo, chamado por um telegrama de Behrens. Ia-se fazer uma intervenção decisiva, a ressecção de costelas. Queriam tentá-la em todo caso, se bem que as probabilidades de êxito fossem mínimas. Rotbein cochichou a respeito de tudo isso com a maior objetividade, considerando também o problema da operação exclusivamente sob o ângulo comercial; enquanto vivesse, encararia qualquer assunto sob esse ponto de vista. O preço da intervenção – murmurou –, inclusive a anestesia raquidiana, elevava-se a mil francos, pois tencionavam tirar quase todo o tórax, entre seis e oito costelas, e tratava-se de saber se o capital assim empatado daria algum lucro. O Behrens animava-o, mas tinha interesse evidente em fazer a intervenção, ao passo que o do paciente parecia duvidoso. Ninguém podia dizer-lhe se não era preferível morrer tranqüilamente, na posse de todas as suas costelas. Era difícil aconselhá-lo. Os primos ponderaram que se deveria levar em conta a excelente técnica cirúrgica do conselheiro áulico. Concordaram em deixar a decisão ao velho Rotbein, que já se achava a caminho. Quando se despediram, o jovem Fritz voltou a chorar um pouquinho; as lágrimas que vertia, embora só fossem produto da sua debilidade, formavam um contraste singular com a seca objetividade da sua maneira de pensar e de falar. Rogou aos primos que repetissem a visita, o que eles prometeram de bom grado. Mas não tiveram ocasião de fazê-lo. O fabricante de bonecos chegou na mesma noite, e logo na manhã seguinte realizou-se a operação, depois da qual o jovem Fritz não se achava num estado que lhe permitisse receber visitas. E dois dias após, Hans Castorp, ao passar em companhia de Joachim pelo quarto de Rotbein, viu que ali se fazia uma faxina. A Irmã Berta, com a sua maleta, já saíra do Berghof, porque fora chamada com urgência para cuidar de um novo moribundo em outro estabelecimento. Suspirando, com o cordão do pince-nez atrás da orelha, encaminhara-se para ali, visto ser precisamente essa a única perspectiva que se lhe abria. Um quarto “abandonado”, um quatro livre, submetido a uma limpeza geral, com ambas as portas abertas e com os móveis empilhados uns sobre os outros, como podiam ver os que passassem por ele a caminho da sala de refeições ou tia saída – um quarto nessas condições oferecia um aspecto significativo e todavia tão costumeiro que mal impressionava as pessoas, e ainda menos a quem um dia se apossara de um quarto que acabava de ser “desocupado” e desinfetado dessa forma, e criara raízes nele. Às vezes se sabia quem acabava de ocupar o respectivo número, coisa que então dava o que pensar. Isso aconteceu no referido caso, como também oito dias depois, quando Hans Castorp, passando pelo aposento da pequena Gerngross, deparou com ele no mesmo estado. Dessa vez, seu espírito se opôs, de início, a aceitar o sentido da atividade que ali reinava. Deteve-se a olhar, pensativo e consternado, no momento em que o Dr. Behrens o encontrou por casualidade. – Eu estava olhando a faxina – disse Hans Castorp. – Bom dia, senhor conselheiro. A pequena Leila... – Pois é! – disse Behrens, dando de ombros. Depois de um instante de silêncio, que permitiu a esse gesto produzir o seu efeito, acrescentou: – Pouco antes do final, o senhor ainda se apressou a cortejá-la segundo a regra, não é? Acho muito gentil da sua parte que demonstre algum interesse aos pobres dos pulmões assobiantes nas suas gaiolas, tanto mais que o senhor pessoalmente anda mais ou menos forte. É um traço simpático do seu caráter. Sim, senhor! Não o negue, é um traço muito simpático. Gostaria, talvez, que de vez em quando eu o apresentasse a outros? Tenho lá uma porção de passarinhos, caso o senhor queira vê-los. Agora, por exemplo, vou visitar a minha “abarrotada”. Quer me acompanhar? Vou apresentá-lo simplesmente como um companheiro de infortúnio. Hans Castorp disse que o conselheiro se adiantara às suas palavras e lhe oferecera justamente o que lhe desejava pedir. Aproveitaria a licença com a maior gratidão e seguiria o doutor. Mas quem era essa tal “abarrotada”? Como se devia interpretar essa palavra? – Literalmente – respondeu o médico. – De um modo textual, sem a menor metáfora. Deixe que ela mesma lhe conte a história. – Ao cabo de poucos passos chegaram ao quarto da “abarrotada”. O conselheiro áulico atravessou a dupla porta e mandou Hans Castorp esperar um instante. O som de risadas e palavras opressas pela falta de fôlego, mas claras e alegres, ressoou do quarto, quando da entrada de Behrens, para ser logo interceptado pelas portas. E o visitante compassivo tornou a ouvir esse som, quando, poucos minutos após, foi admitido e o Dr. Behrens o apresentou a uma senhora loura, estendida na cama, e que fixava curiosamente no jovem os olhos azuis. Com algumas almofadas nas costas, achava-se entre sentada e deitada. Muito irrequieta, ria-se sem cessar, embora lhe faltasse o fôlego; era um riso cascateante, muito agudo e argentino, nervoso e como que originado por meio de cócegas. Riu-se também das frases com que o conselheiro lhe apresentou o visitante, e quando o médico foi embora, gritou várias vezes atrás dele: – Adeusinho! Muito obrigado! Até logo! – acenando-lhe com a mão. A seguir lançou um suspiro vibrante, voltou a rir num trinado argentino, fincou as mãos no peito que ondeava por baixo da camisola de cambraia, e era incapaz de manter quietas as pernas. Chamavase Srª. Zimmermann. Hans Castorp conhecia-a vagamente de vista. Durante algumas semanas, ela ocupara um lugar à mesa da Salomon e do colegial voraz, e sempre se mostrara muito risonha. Depois desaparecera, sem que o jovem se preocupasse muito com a sua ausência. Talvez tivesse partido – opinara ele. Agora reencontrava-a ali, sob a denominação de “abarrotada”, e esperava a explicação dessa palavra. – Ah! ah! ah! – riu-se ela, como se lhe fizessem cócegas. – É engraçadíssimo, esse Behrens, fantasticamente cômico e divertido. A gente quase morre de tanto rir. Por que não se senta, Sr. Kasten, ou Sr. Karsten, ou como se chama? O senhor tem um nome tão gozado, ah! ah! ih! ih! Desculpe. Sente-se nessa cadeira aí, ao pé da cama, mas permita que eu mexa as pernas, ah! ah! – suspirou com a boca vastamente aberta e logo tornou a trinar. – Simplesmente não posso deixar de fazê-lo... Era quase bonita, com feições claras, talvez excessivamente acentuadas, porém agradáveis, e com um início de papada. Mas seus lábios eram azulados, e a ponta do nariz tinha a mesma cor, sem dúvida devido à falta de ar. As mãos, de uma magreza simpática, ressaltadas pelos punhos de renda da camisola, eram tão incapazes de sossegar quanto os pés. Tinha um pescoço de mocinha, com duas “saboneteiras” acima das clavículas delicadas, e também os seios, que a dispnéia e o riso mantinham, sob o linho, numa agitação inquieta e forçada, pareciam pequenos e jovens. Hans Castorp resolveu enviar-lhe ou levar-lhe também um ramalhete bonito de flores molhadas e perfumosas, procedentes dos estabelecimentos de horticultura de Nice ou de Cannes. Com certa preocupação compartilhou da hilaridade volúvel e nervosa da Srª. Zimmermann. – Então o senhor visita os doentes graves? – perguntou ela. – Como isso é divertido e amável da sua parte, ah! ah! ah! Eu mesma não estou muito enferma, imagine! Quer dizer, não o estava nem um pouquinho, até há pouco... Até que recentemente, essa história... Escute e diga não é a coisa mais engraçada que já ouviu... – E lutando por respirar, entre trinos e gorjeios, contou o que lhe ocorrera. Chegara a Davos um pouco enferma. A doença existira inegavelmente, pois, do contrário, não teria vindo. Talvez nem sequer se tratasse de um caso leve. Mas fora antes leve do que grave. O pneumotórax, essa conquista ainda recente, mas já muito apreciada, da técnica cirúrgica, fora experimentado também no seu caso com o melhor êxito. A intervenção dera o melhor resultado possível. O estado de saúde e a disposição da Srª. Zimmermann haviam melhorado de modo sumamente reconfortante. Seu marido –- pois era casada, embora sem filhos – pudera contar com o seu regresso dentro de três ou quatro meses. Então, para distrair-se, ela fizera uma excursão a Zurique; não houvera outra razão para essa viagem a não ser o desejo de se divertir. E de fato se divertira a valer, mas ao fazê-lo sentira a necessidade de se reabastecer de gás. Confiara esse trabalho a um médico lã de baixo. Um rapaz encantador e tão cômico! Ah! ah! ah! Mas que acontecera? Abarrotara-a! Não havia outro termo, esse já dizia tudo. Embora tomado de toda a boa vontade, o médico não entendia muito do ofício. Numa palavra, ela regressara ao Berghof totalmente abarrotada, isto é, com o coração opresso e sem fôlego nenhum, ah! ah! ih! ih! O Behrens praguejara como o diabo e metera-a imediatamente na cama. Pois agora estava gravemente enferma, posto que não tivesse febre alta. Haviam-na estragado, arruinado mesmo. Ah! ah! ah! Essa cara, essa cara ridícula com que Hans Castorp estava! E ela se riu, enquanto apontava com o dedo para ele; riu-se tanto da cara dele, que também a testa se lhe tingiu de azul. Mas a coisa mais gozada – disse ela – era o Behrens, com seus ralhos e sua rudeza. Já de antemão ela rira, ao notar que estava abarrotada. “A senhora encontra-se em perigo de morte imediata”, gritara o conselheiro, sem mais aquela; esse grosseirão, ah! ah! ah! E novamente pediu desculpas. Não se esclareceu o motivo por que ela dava essas risadas cascateantes com respeito às declarações de Behrens; se era só devido à sua “rudeza” e porque não acreditava nelas, ou, embora acreditando – o que afinal não podia deixar de fazer –, por achar terrivelmente cômico o caso em si, isto é, o perigo de vida que a ameaçava. Hans Castorp tinha a impressão de que essa última hipótese era a verdadeira, e que realmente ela gorjeava, piava e trinava só em virtude da leviandade infantil e da falta de siso do seu cérebro de passarinho. Isso lhe parecia censurável. Mesmo assim, mandou-lhe flores, mas não tornou a ver a risonha Srª. Zimmermann. Após ter sido sustentada durante alguns dias por meio de oxigênio, ela de fato veio a falecer nos braços do marido chamado por telegrama. “Uma besta quadrada!”, qualificou-a o conselheiro, ao informar Hans Castorp do óbito. Mas já antes o espírito empreendedor e compassivo de Hans Castorp, ajudado pelo conselheiro áulico e pelo pessoal da enfermaria, estabelecera novas relações com outros doentes graves da casa, e Joachim teve que acompanhá-lo. Teve que acompanhá-lo ao quarto do segundo filho de “Tous-les-deux”, aquele que sobrara; pois fazia muito tempo já que o quarto do primeiro fora faxinado e fumigado. Visitaram também o menino Teddy, que recentemente chegara do Instituto Pedagógico Fredericianum, onde não pudera ficar, dada a gravidade do seu caso. Também foram ver um teuto-russo, o Sr. Anton Karlovitch Ferge, funcionário de uma companhia de seguros, e que era um sofredor de caráter bonachão. E também a infortunada mas muito coquete Srª. von Mallinckrodt, que, tal e qual as demais pessoas que acabamos de citar, foi obsequiada com flores, e à qual Hans Castorp, em presença de Joachim, até levou diversas vezes o mingau à boca... Aos poucos chegaram, a adquirir a reputação de samaritanos ou irmãos de caridade. Um belo dia, o próprio Settembrini interpelou Hans Castorp nesse sentido. – Sapristi, engenheiro! Ouço dizer coisas sensacionais sobre a sua conduta. O senhor se consagrou à beneficência? Procura justificar-se por meio de boas obras? – Nem vale a pena falar disso, Sr. Settembrini. Não há nada que mereça ser mencionado. Meu primo e eu... – Não meta seu primo no assunto! Embora ambos dêem que falar à gente, é do senhor que se trata em realidade. Disso tenho certeza. O tenente é uma personalidade respeitável, mas singela, e seu espírito não corre nenhum perigo que possa inquietar um pedagogo. O senhor não me fará acreditar ser ele quem manda nessa história. O mais talentoso dos dois, mas também o mais ameaçado, é o senhor. E, se me permite empregar este termo, um “filho enfermiço da Vida”, com o qual é preciso preocupar-se. De resto, o senhor me deu licença de fazê-lo. – Pois não, Sr. Settembrini. Essa licença lhe dei de uma vez por todas. É muito amável da sua parte. E o termo “filho enfermiço da Vida” é bonito. Quanta coisa não inventam os escritores! Não sei se devo orgulhar-me desse título; mas ele soa bem, indiscutivelmente! Pois é, eu me dedico um pouquinho a esses “filhos da Morte”. Acho que é a isso que o senhor se refere. Às vezes, quando tenho tempo, e sem que o regime sofra por isso, ocupo-me com os casos graves e sérios, compreende? Com aqueles que não estão aqui para divertir-se e para entregar-se à licenciosidade, mas que estão morrendo. – Está escrito: “Deixai que os mortos enterrem os seus mortos!” – replicou o italiano. Hans Castorp ergueu os braços e expressou com a sua fisionomia que existia muita coisa escrita, isso e também aquilo, de maneira que era difícil discernir o melhor e inspirar-se nele. Inegavelmente, o tocador de realejo apalpara um ponto nevrálgico, como fora de esperar. Na verdade, Hans Castorp estava sempre disposto a escutá-lo, a considerar, sem compromisso, suas teorias como dignas de serem ouvidas, e a admitir, a título de experiência, aquele influxo pedagógico; contudo, não tinha a mínima intenção de renunciar, a favor de certos conceitos educativos, a empresas que, apesar da mãe Gerngross e da sua idéia de um “pequeno flerte”, apesar, também, da natureza prosaica do pobre Rotbein e dos tolos gorjeios da “abarrotada”, pareciam-lhe vagamente proveitosas e de alcance considerável. O filho de “Tous-les-deux” chamava-se Lauro. Recebera flores, violetas de Nice, de aroma terroso, “da parte de dois companheiros compassivos, com os melhores votos de restabelecimento”. Como o anonimato já se transformara em mera formalidade e todo mundo sabia de quem partiam esses mimos, a própria “Tous-les-deux”, a pálida e enlutada mãe mexicana, dirigiu aos primos, durante um encontro no corredor, algumas palavras de gratidão e convidou-os, com voz rangente e sobretudo com uma gesticulação cheia de mágoa, a receber pessoalmente os agradecimentos de seu filho, de son seul et dernier fils qui allait mourir aussi. A visita realizou-se imediatamente. Manifestou-se que Lauro era um moço de surpreendente beleza, de olhos ardentes, com um nariz aquilino cujas narinas palpitavam, e com esplêndidos lábios, por cima dos quais brotava um bigodinho negro. No entanto, o rapaz exibiu uma atitude tão fanfarrona e tão teatral, que os visitantes – tanto Hans Castorp quanto Joachim Ziemssen -se sentiram aliviados quando a porta do quarto do enfermo voltou a fechar-se atrás deles. “Tous-lesdeux” estava envolta em seu xale de lã preta, com o véu negro atado sob o queixo, com as rugas transversais da sua testa baixa e com as bolsas enormes sob os olhos de ágata negra. De joelhos dobrados ia e vinha pelo quarto, baixando aflitamente uma das comissuras da larga boca. De vez em vez aproximava-se dos primos sentados à beira da cama, a fim de repetir, qual um papagaio, a sua trágica frase: “Tous les dé, vous comprenez, messiés... Premièrement l’un et maintenant l’autre...” Enquanto isso, o belo Lauro, falando igualmente francês, entregava-se a altissonantes fanfarrices de um espalhafato insuportável; carregando nos erres, numa voz crepitante, afirmou que esperava morrer heroicamente, comme héros, à l’espagnole, tal qual o irmão, de même que son fier jeune frère Fernando, que também falecera como um herói espanhol; gesticulando, abriu a camisola para oferecer aos golpes da morte o peito amarelado e continuou a comportar-se desse jeito até que um ataque de tosse, fazendo subir-lhe aos lábios uma fina espuma rosada, lhe abafasse as bravatas e induzisse os primos a se afastarem nas pontas dos pés. Não comentaram entre si a visita que haviam feito a Lauro, e também intimamente abstiveram-se de julgar a atitude do mexicano. Receberam uma impressão mais simpática no quarto de Anton Karlovitch Ferge, de Petersburgo, que, com seu grande e jovial bigode, e com seu proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, jazia na cama, refazendo-se, num esforço lento e penoso, da tentativa de pneumotórax a que se sujeitara, e que quase lhe custara a vida na mesa de operações. Fora ali que sofrera um choque violento, o chamado choque pleural, complicação bastante freqüente dessa intervenção moderna. No seu caso, o choque produzira-se de uma forma particularmente perigosa, como colapso completo acompanhado de uma síncope inquietante; numa palavra, o acidente apresentara-se com tamanha veemência, que fora preciso interromper a operação e adiá-la por enquanto. Os olhos cinzentos, bonachões, do Sr. Ferge dilatavam-se, e seu rosto tornava-se lívido, cada vez que falava daquele acidente que devia ter sido horroroso para ele. -sem narcose, cavalheiros! Muito bem, nós não podemos suportá-la; está contra-indicada em nosso caso; um homem razoável compreende isso e se conforma. Mas a anestesia local não penetra fundo, meus senhores; apenas a carne envolvente. Quando cortam através dela, sente-se, na verdade, apenas uma espécie de pressão ou de pisadura.. Eu estava deitado, com o rosto coberto para não ver nada. O assistente segurava-me da direita, e a Superiora, da esquerda. Era como se me apertassem e comprimissem, mas tratava-se somente da carne que abriam e retiravam por meio de pinças. Então ouvi o Dr. Behrens dizer: “Agora!”, e nesse instante, cavalheiros, começou a apalpar a pleura com um instrumento rombudo... Deve ser assim para que não a fure antes do tempo... Apalpam-na em busca do lugar apropriado para fazer o furo e introduzir o gás... Enquanto ele fazia isso, enquanto passeavam o instrumento por toda a extensão da minha pleura – oh, meus senhores! –, eu não pude mais; tive uma sensação totalmente indescritível. A pleura, cavalheiros, é coisa que não deve ser tocada; não é direito que a toquem, ela não o admite, é tabu, está revestida de carne, isolada e inatingível de uma vez por todas! E agora a haviam posto a descoberto, e o conselheiro apalpava-a. Senhores, comecei a enjoar. Horrível, pavoroso, meus senhores! Eu nunca teria pensado que pudesse existir sensação tão medonha, tão miserável, tão abjeta, nesta terra e em parte alguma do mundo, fora do inferno. Desmaiei. Tive três síncopes ao mesmo tempo, uma verde, uma parda e uma violeta. Além disso penetrava um fedor através do desmaio. O choque pleural atacou-me o olfato, meus senhores. Aquilo fedia loucamente a hidrogênio sulfurado, assim como deve ser o cheiro do inferno. Com tudo isso notei que me ria, enquanto perdia os sentidos; mas não era como se ri uma criatura humana, não! Era o riso mais nojento e mais indecente que já ouvi em toda a minha vida. Pois o apalpamento da pleura, senhores, produz as cócegas mais infames, mais exageradas, mais desumanas. Nisso mesmo consiste aquela maldita e vergonhosa tortura. É o que se chama o choque pleural, que Deus queira que os senhores nunca cheguem a experimentar. Freqüentemente, e sempre pálido de terror, Anton Karlovitch Ferge tornou a falar dessa intervenção “abjeta”, cuja repetição iminente lhe inspirava um medo enorme. Confessara, aliás, desde o início, ser apenas um homem simples, alheio a todas as coisas “sublimes”, e de cuja alma e intelecto não se deviam esperar realizações extraordinárias, que ele também não exigiria de ninguém. Isso posto, contou histórias bastante interessantes da sua vida antiga, da qual o arrancara a enfermidade, a vida de um viajante a serviço de uma companhia de seguros contra fogo. Partindo de Petersburgo, realizara em todas as direções longas viagens pela Rússia inteira, para visitar as fábricas seguradas e para investigar aquelas cuja situação financeira fosse duvidosa. Pois as estatísticas demonstravam que precisamente as indústrias que andavam mal se incendiavam com a maior freqüência. Por isso, a sua companhia sempre o encarregara da missão de sondar as empresas sob esse ou aquele pretexto e de informá-la, para que ela, por meio de resseguros mais elevados ou pela divisão do risco, pudesse prevenir uma perda sensível. Contava acerca de viagens em pleno inverno através do vasto império, expedições noturnas sob um frio espantoso, que fizera deitado num trenó, metido entre cobertores de peles de cordeiro. Contava como, ao acordar, vira os olhos dos lobos luzir feito estrelas, sob a neve. Levara consigo, num caixote, provisões congeladas, sopa de repolho e pão branco, que fora necessário degelar nas etapas, durante a troca de cavalos; e o pão estivera, nessas ocasiões, tão fresco como se acabasse de sair do forno. Era, entretanto, uma desgraça, quando o degelo se apresentava inopinadamente, pois a sopa de repolho, empacotada em pedaços, derretia-se e espalhava-se toda. Assim contava o Sr. Ferge, interrompendo-se de vez em quando para fazer notar, entre suspiros, que tudo isso seria muito bonito, se não tivessem de repetir com ele a tentativa de pneumotórax. Não era nada sublime o que ele dizia, mas de caráter real e agradável de ouvir, sobretudo para Hans Castorp, que achava útil aprender alguma coisa a respeito do Império Russo e do seu estilo de vida, de samovares, pastéis de couve, cossacos e igrejas de madeira, com tantas torres em forma de cebola que se assemelhavam a uma colônia de cogumelos. Induziu ele o Sr. Ferge a falar dos habitantes desse país, do seu exotismo setentrional e por isso, aos olhos de Hans Castorp, ainda mais esquisito, da mescla asiática do seu sangue, das suas maçãs salientes e da posição finesa-mongólica dos olhos. O jovem escutava tom interesse antropológico. Pediu também para ouvir algumas frases em russo. O idioma oriental saía rápido, indistinto, sumamente estranho e desprovido de ossos, de sob o bigode jovial do Sr. Ferge, partindo do proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, e Hans Castorp – como é peculiar à juventude – divertia-se tanto mais com tudo isso quanto mais proibido era o terreno onde brincava. Freqüentemente os primos iam passar um quarto de hora no quarto de Anton Karlovitch Ferge. Em outras ocasiões visitavam o pequeno Teddy, do Fredericianum, um rapaz elegante de catorze anos, louro e delicado, com uma enfermeira particular e um pijama de seda branca enfeitado de alamares. Era órfão e rico, segundo ele mesmo contava. Esperava ser submetido a uma intervenção de certa gravidade, a remoção de partes carcomidas, que tencionavam experimentar; mas, quando se sentia melhor, saía às vezes da cama, por uma hora, para participar, no seu belo traje esporte, da vida social lá embaixo. As senhoras gostavam de gracejar com o adolescente, e ele ouvia as suas conversas, como, por exemplo, aquelas que se referiam ao advogado Einhuf, à senhorita da combinação e a Fränzchen Oberdank. A seguir voltava para a cama. Dessa maneira o pequeno Teddy matava elegantemente o tempo e deixava perceber que nada mais esperava da vida a não ser precisamente isso. No número 50, porém, achava-se a Srª. Natalie von Mallinckrodt, com seus olhos negros e com brincos de ouro nas orelhas, coquete, faceira e todavia uma espécie de Lázaro ou de Jó feminino, castigada por Deus com todo tipo de moléstias. Seu organismo parecia inundado de toxinas, de maneira que um sem-número de enfermidades a acossavam alternada ou simultaneamente. A pele era sobremodo atingida; estava coberta, em grande parte, de um eczema que causava coceiras cruéis e formava chagas em determinados lugares, até nos lábios, o que dificultava a introdução da colher. Revezavam-se na Srª. von Mallinckrodt inflamações internas, ora da pleura ora dos rins, dos pulmões, do periósteo e mesmo do cérebro, com subseqüentes síncopes. Uma insuficiência cardíaca, originada pela febre e pelas dores, angustiava-a sumamente, fazendo com que não conseguisse deglutir por completo os alimentos engolidos, que então permaneciam presos na parte superior do esôfago. Numa palavra, o destino dessa mulher era terrível. Além disso, achava-se a Srª. von Mallinckrodt sozinha no mundo. Deixara o marido e os filhos por amor a outro homem, ou melhor, a um rapazote, que, por sua vez, a abandonara, segundo ela mesma contou aos primos. Assim vivia, sem lar, embora não sem recursos, visto, o marido enviar-lhe dinheiro. Em vez de mostrar uma altivez pouco indicada, tirava proveito dessa generosidade ou paixão persistente, tanto mais que nem a si própria levava a sério e sabia que era apenas uma mulherzinha desonrada e pecaminosa. Baseando-se nessa percepção, suportava todas as calamidades de Jó, com surpreendente paciência e tenacidade, com aquela resistência elementar, própria de uma mulher de raça, que triunfava sobre a miséria do seu corpo trigueiro e transformava numa peça elegante de vestuário até mesmo a atadura de gaze que qualquer motivo repugnante a obrigava a usar na cabeça. Mudava sem cessar as jóias, exibindo corais pela manhã e pérolas à noite. Muito satisfeita com as flores remetidas por Hans Castorp, que, evidentemente, ela atribuía antes à galanteria do que à caridade, mandou transmitir aos dois jovens um convite para tomarem chá junto à sua cama. Bebia esse chá numa chávena de bico, que segurava com os dedos, todos, inclusive os polegares, cobertos até os nós de opalas, ametistas e esmeraldas. Com os brincos de ouro balouçando nas orelhas, contou aos primos tudo quanto lhe acontecera. Falou-lhes de seu marido respeitável, mas cacete, e dos seus filhos igualmente decentes e fastidiosos, que puxavam ao pai e nunca lhe tinham inspirado sentimentos muito calorosos; falou do rapazote, em cuja companhia fugira, e gabou-lhe a poética ternura. Mas os parentes do jovem, servindo-se da astúcia e da força, haviam conseguido afastá-lo dela, e a doença, que então irrompera violentamente e sob múltiplas formas, talvez lhe causasse asco. – Os senhores também me acham asquerosa? – perguntou com faceirice, e sua feminilidade de puro-sangue triunfou do eczema que se estendia pela metade do rosto. Hans Castorp sentiu apenas desprezo pelo mocinho que experimentara repugnância por ela, e dando de ombros expressou essa opinião. No que tocava a ele próprio, a pusilanimidade do adolescente poético justamente o instigou em sentido oposto: fê-lo procurar oportunidades, em repetidas visitas, para prestar à infortunada Srª. von Mallinkrodt pequenos serviços de samaritano, que não exigiam conhecimentos especiais, como por exemplo meter-lhe cuidadosamente na boca o mingau que lhe serviam no almoço, dar-lhe de beber na chávena de bico, quando se engasgava, ou ajudá-a a mudar de posição na cama, pois além dos outros males existia ainda uma ferida causada por uma operação, que lhe complicava a posição deitada. Exercitava-se ele nesses atos caridosos cada vez que, a caminho da sala de refeições ou de regresso de um passeio, entrava no quarto dela. Nesses casos pedia a Joachim que seguisse sozinho à frente, e alegava que apenas queria informar-se do estado do número 50. Invadia-o então a sensação desagradável da amplitude da sua natureza, uma alegria que se alicerçava na idéia da utilidade e do alcance secreto das suas ações, e com a qual se mesclava certo prazer furtivo causado pela aparência impecavelmente cristã dessas atividades; com efeito, essa aparência era tão piedosa, tão caritativa, tão digna de elogios, que parecia impossível opor-lhe quaisquer argumentos sérios, seja do ponto de vista militar, seja do da pedagogia e do humanismo. Ainda não mencionamos Karen Karstedt, e contudo era dela que Hans Castorp e Joachim se ocupavam com especial intensidade. Tratava-se de uma cliente particular do conselheiro, que morava fora do estabelecimento. O Dr. Behrens recomendara-a à caridade dos primos. Fazia quatro anos que ela vivia ali em cima. Sem recursos, dependia de uns parentes pouco generosos, que já uma vez a tinham levado, alegando que de qualquer forma morreria em breve. Sua volta devia-se exclusivamente à intervenção do conselheiro áulico. Domiciliara-se na “aldeia”, numa pensão barata. Tinha dezenove anos e era franzina, com cabelos lisos, oleosos, com olhos que, timidamente, procuravam ocultar um brilho que condizia com o rubor hético das faces, e com uma voz caracteristicamente velada, mas de uma sonoridade simpática. Tossia quase sem interrupção, e as pontas de todos os seus dedos achavam-se cobertas de esparadrapos, por estarem roídas pela doença. A ela é que os primos devotavam um cuidado especial, a pedido do Dr. Behrens, que se dirigira a eles, “uma vez que eram bons rapazes”. A história começou com uma remessa de flores; seguiu-se uma visita à pobre Karen, que os recebeu na sua pequena sacada, na “aldeia”; depois disso, os três organizaram algumas expedições especiais, assistindo, por exemplo, a um concurso de patinação ou a uma corrida de trenó. Pois a temporada de esportes de inverno chegara ao auge, no nosso vale alpino. Durante uma semana ia realizar-se um festival, com numerosas atrações. Até então, os primos haviam prestado apenas uma atenção ocasional e fugaz a esse tipo de espetáculos e de diversões. Joachim era avesso à simples idéia de se distrair ali em cima. Não se encontrava em Davos para se divertir; absolutamente não estava ali para viver e para se conformar com a estadia, tornando-a agradável e variada, senão com a única finalidade de se desintoxicar o mais depressa possível, para que pudesse voltar à planície e entrar no serviço ativo, no serviço verdadeiro, em lugar do serviço da cura, que era apenas um sucedâneo, mas cuja diminuição ele só tolerava malgrado seu. Participar ativamente dos esportes de inverno era-lhe vedado, e desagradava-o figurar como espectador. Quanto a Hans Castorp, sentia-se por demais unido aos dali de cima, num sentido muito estrito e íntimo, para manifestar interesse pela atividade de pessoas que consideravam esse vale como um campo de esportes. Mas sua caridosa solicitude para com a pobre Srta. Karstedt modificou algum tanto a situação. A não ser que se mostrasse pouco cristão, Joachim não podia fazer objeções. Foram buscar a enferma no seu modesto alojamento, na “aldeia”, e passearam-na, sob um frio abrasado por esplêndido sol, através do bairro inglês, assim chamado por causa do Hotel d'Angleterre, por entre as lojas luxuosas da rua principal, onde tilintavam os guizos dos trenós e flanavam ricos sibaritas e vadios de todas as partes do mundo, habitantes da estância balneária e de outros grandes hotéis, que andavam sem chapéu, trajando modernas roupas esporte, cortadas em fazendas finas e caras, e exibiam caras bronzeadas pelo ardor do sol hibernal e pela reverberação da neve. Desceram, finalmente, até o local de patinação, situado não longe da estância, no fundo do vale, e que no verão servia de campo de futebol. Ouvia-se música. A orquestra da estância dava um concerto no estrado de madeira do pavilhão, acima da pista retangular, atrás da qual as montanhas cobertas de neve se destacavam do fundo azul-escuro. Compraram entradas; abriram caminho através do público, que rodeava a pista nas arquibancadas erguidas em três dos seus lados; encontraram lugares e olharam o espetáculo. Os patinadores, vestidos com jaquetas justas e calças pretas de malha, requebravam-se, adejavam, descreviam figuras, saltavam e giravam. Um casal de virtuoses – profissionais que não participavam das competições – realizou uma proeza que em todo o vasto mundo só ele sabia fazer e desencadeou toques de clarins e salvas de palmas. No campeonato de velocidade, seis moços de diferentes nacionalidades, dobrados para a frente, com as mãos nas costas e, às vezes, com um lenço entre os dentes, deram em árdua luta seis voltas em torno do extenso retângulo. O som de uma campainha misturou-se com a música. De vez em quando, a multidão rebentava em frenéticos aplausos e aclamações. Era um ambiente colorido aquele que contemplavam os três enfermos, os primos e sua pupila. Ingleses, com boinas escocesas e dentes brancos, conversavam em francês com senhoras de perfumes penetrantes, vestidas dos pés à cabeça com lãs variegadas; algumas usavam calças. Americanos de cabeça pequena, com os cabelos colados ao crânio, e com o cachimbo na boca, usavam casacos com o forro de pele à mostra. Russos barbudos e elegantes, de aparência barbaramente rica, e holandeses, mestiços de malaios, estavam sentados no meio de alemães e suíços. Entremeava-se em toda parte gente de proveniência indistinta, de fala francesa, oriunda dos Bálcãs ou do Levante; um mundo aventureiro pelo qual Hans Castorp demonstrava um certo fraco, e que Joachim rejeitava como sendo equívoco e despido de caráter. Nos intervalos, crianças realizavam concursos humorísticos, tropeçando ao longo da pista com um pé calçado de esqui e o outro de patim; houve também uma competição cm que os meninos empurravam pás nas quais estavam sentadas as meninas. Faziam corridas de velas, sendo vencedor o que conservava a vela acesa até chegar à outra extremidade do campo. Tinham que transpor obstáculos, ou encher regadores com batatas usando colheres de estanho. Os adultos divertiamse muito. Eram assinaladas as mais ricas, as mais celebres e as mais graciosas entre as crianças – a filhinha de um multimilionário holandês, o filho de um príncipe alemão, e um garoto de doze anos que tinha o nome de uma marca de champanha mundialmente conhecida. Também a pobre Karen lançava gritos de júbilo, interrompidos por acessos de tosse. De tanto prazer, batia as mãos com os dedos carcomidos. Estava cheia de gratidão. Os primos levaram-na também ao campeonato de trenó. A meta final não ficava longe nem do Berghof nem do domicílio de Karen Karstedt. A pista partia da Schatzalp e terminava na “aldeia”, entre as casas da vertente do oeste. Ali se achava um pequeno pavilhão de controle, que recebia, pelo telefone, a comunicação da partida de cada trenó. Por entre as barreiras de neve gelada, ao longo das curvas de brilho metálico, precipitavam-se os chassis planos, tripulados por homens e mulheres vestidos de lã branca, com faixas das cores de diferentes países em redor do peito; desciam das alturas, um a um, bastante espaçados. Viam-se rostos avermelhados, que a neve açoitava. As quedas, os choques entre dois trenós, que viravam, espalhando pela neve a sua equipe, eram fotografados pelo público. Aqui também tocava uma banda. Os espectadores estavam instalados em pequenas tribunas ou avançavam pelo estreito trilho que se abrira a pá, ao longo da pista, e por cima desta passavam pontes de madeira, igualmente ocupadas pela multidão, a observar a competição dos trenós, que de tempos em tempos deslizavam zunindo. Os cadáveres do sanatório situado lá em cima seguiam o mesmo caminho, a toda a velocidade, por baixo das pontes, acompanhando as curvas, descendo rumo ao vale – pensou Hans Castorp, e também se expressou nesse sentido. Uma tarde, resolveram levar Karen Karstedt ao cinema “bioscópio” de Platz, porquanto ela se mostrava muito feliz com todas essas diversões. O ar viciado parecia estranho aos três, acostumados como estavam a uma atmosfera puríssima. Pesava-lhes o peito e nublava-lhes a cabeça. Mas nesse ar trepidava uma vida múltipla, que se sucedia na tela, diante dos seus olhos doloridos; uma vida apresentada em pedacinhos, divertida e apressada, cheia de uma inquietação saltitante, nervosa na demora, sempre prestes a desaparecer, acompanhada por uma musicazinha que aplicava o compasso do tempo atual à fuga das imagens pertencentes ao passado, e que, apesar da limitação dos seus recursos, sabia lançar mão de todos os registros da solenidade e da pompa, da paixão, da barbárie e da sensualidade lânguida. Era uma violenta história de amor e de crime, que se desenrolava silenciosamente ante eles. A ação passava-se na corte de um déspota oriental e constava de acontecimentos precipitados, cheios de ostentação e de nudez, saturados da libidinosidade do soberano e da fúria religiosa dos súditos, transbordante de crueldade, de cobiça e volúpia assassina e de um realismo meticuloso, quando se tratava de fazer apreciar a musculatura de uns braços de verdugo – numa palavra, uma coisa fabricada à base do conhecimento íntimo dos desejos secretos da civilização internacional que formava a assistência. Settembrini, como homem de juízo, provavelmente condenaria da forma mais severa esse espetáculo contrário à humanidade; sua ironia reta e clássica fustigaria o abuso da técnica com o fim de dar vida a representações tão cheias de desprezo dos homens. Essa, pelo menos, era a opinião de Hans Castorp, que ele segredou ao primo. A Srª. Stöhr, porém, que também estava no cinema, não longe dos três, parecia toda enlevada, e seu estólido rosto vermelho crispava-se de tanto gozo. O mesmo aspecto ofereciam, de resto, as fisionomias dos demais espectadores. Quando a derradeira e trêmula imagem de uma seqüência de cenas se desvanecia e se fazia luz na sala, exibindo à multidão o campo das visões em forma de uma tela vazia, faltava até uma oportunidade para bater palmas. Não estava presente ninguém que se pudesse aplaudir e admirar, graças à arte por ele demonstrada. Os artistas que se haviam reunido para dar o espetáculo que o público acabava de desfrutar fazia muito se tinham dispersado. O que se vira eram apenas as sombras das suas façanhas, milhões de imagens, brevíssimos instantâneos, em que se dissecara a sua atividade durante o processo fotográfico, para que fosse possível restituí-la ao elemento do tempo, cada vez que se quisesse, num curso tremeluzente de tanta rapidez. O silêncio da assistência após o fim da ilusão tinha qualquer coisa de inerte e repugnante. As mãos jaziam impotentes em face do nada. As pessoas esfregavam os olhos, miravam fixamente o ar, tinham vergonha da claridade e desejavam voltar à escuridão, para tornar a contemplar, para novamente ver como se desenrolavam, transplantadas para um novo tempo e arrebicadas pela música, aquelas cenas pertencentes a um outro tempo. O déspota morria vítima de um punhal, lançando, com a boca aberta, urros que não se ouviam. A seguir foram mostradas imagens de todas as partes do mundo: o presidente da República Francesa, de cartola, com a grã-cruz da Legião de Honra, respondendo, do assento de um landô, a um discurso de saudação; o vice-rei da índia, assistindo às bodas de um rajá; o príncipe herdeiro alemão no pátio de um quartel de Potsdam. Viam-se a vida numa aldeia de indígenas de Novo Mecklenburg, uma rinha de galos em Bornéu, selvagens desnudos que tocavam flautas soprando pelo nariz, uma caça de elefantes bravios, uma cerimônia na corte real do Sião, uma rua de bordéis no Japão, com gueixas sentadas atrás de grades de madeira. Viam-se samoiedos agasalhados, atravessando, em trenós puxados por renas, um ermo nervoso da Ásia setentrional; viam-se peregrinos russos rezando em Hebron, e um delinqüente persa que recebia bastonadas. Presenciava-se tudo isso. O espaço ficava aniquilado, e o tempo recuava. O Ali e o Outrora tinham-se transformado num Aqui e num Agora, que deslizavam, dançavam, envoltos em música. Uma jovem marroquina, em trajes de seda listrada, ajaezada de correntes, fivelas e anéis, com os exuberantes seios semidesnudos, aproximava-se de repente, em tamanho natural; tinha as narinas dilatadas e os olhos cheios de vida animalesca. As feições estavam em pleno movimento. Ria-se, exibindo os dentes brancos. Uma das mãos, cujas unhas pareciam mais claras que a pele, era mantida à altura dos olhos, qual uma pala, enquanto a outra acenava para o público. As pessoas fitavam, acanhadas, a encantadora sombra que fingia enxergar e não enxergava, que absolutamente não era atingida pelos olhares, e cujo riso e aceno não se referia ao presente, senão que pertencia ao Ali e ao Outrora, de modo que teria sido absurdo retribuí-lo. Isto, como já dissemos, mesclava o prazer com uma sensação de impotência. Por fim o fantasma desapareceu. Uma clareza vazia estendeu-se por sobre a tela, onde apareceu a palavra “Fim”. Chegara a seu fim o ciclo de espetáculos, e em silêncio a sala se esvaziou, enquanto um novo público já se apertava lá fora, desejoso de assistir a uma repetição dessa seqüência de cenas. Animados pela Srª. Stöhr, que se uniu a eles, foram ainda visitar o café da estância, por amor à pobre Karen, que juntava as mãos, de tanta gratidão. Ali também havia música. Uma pequena orquestra, com casacas vermelhas, tocava sob a regência de um primeiro-violino tcheco ou húngaro, que, separado da sua banda, se achava no meio dos pares dançantes e investia contra o seu instrumento com frenéticas contorções do corpo. Em torno das mesas exibia-se a vida mundana. Eram servidas bebidas seletas. Os primos pediram laranjada para si próprios e para a sua pupila, para se refrescarem, já que a atmosfera estava quente e carregada de poeira. A Srª. Stöhr preferiu um licor doce. A essa hora – afirmou ela – ainda não reinava muita animação. Um pouco mais tarde, o baile seria bem mais alegre. Numerosos pacientes dos diversos sanatórios, bem como enfermos não internados, que moravam nos hotéis e na própria estância, entrariam na dança, em número muito maior do que agora. Não eram raros os casos graves que nesse salão haviam passado, em plena festa, para a eternidade, emborcando a taça da alegria de viver e sofrendo a hemorragia final in dulci jubilo. O que a crassa ignorância da Srª. Stöhr fez desse “dulci jubilo” foi realmente extraordinário. Tomou a primeira palavra de empréstimo, do vocabulário italiano-musical do marido, dando-lhe a pronúncia “dolce”. A segunda lembrava “jubileu” ou qualquer canto tirolês. Os dois primos inclinaram-se ao mesmo tempo para os canudos dos seus copos quando esse latim se ostentou; mas a Srª. Stöhr não se desconcertou por tão pouca coisa. Pelo contrário, mostrando obstinadamente os dentes de lebre, serviu-se de toda espécie de alusões e de indiretas para descobrir a razão de ser das relações entre os três jovens. Parecia-lhe evidente no que dizia respeito à pobre Karen, que, segundo, a Srª. Stöhr, devia estar satisfeitíssima com a corte que lhe faziam dois cavalheiros elegantes. Menos claro afigurava-se-lhe o caso com relação aos primos, mas, não obstante a sua estupidez e ignorância, a intuição feminina ajudou-a a formar uma idéia, ainda que incompleta e trivial. Adivinhou e deixou entender, mediante alfinetadas, que o verdadeiro cavaleiro era Hans Castorp, ao passo que o jovem Ziemssen era apenas assistente; opinou que Hans Castorp, cuja inclinação por Mme. Chauchat não lhe escapara, cortejava a mísera Karstedt tão-somente como sucedâneo, visto que, evidentemente, não sabia como aproximar-se da outra – opinião muito digna de uma Srª. Stöhr, desprovida de todo fundo moral, insuficiente e baseada numa intuição desprezível. Por isso, Hans Castorp limitou sua resposta a um olhar fatigado e desdenhoso, quando a mulher a expressou de forma banalmente chistosa. Com efeito, as relações com a pobre Karen constituíam para ele uma espécie de sucedâneo e de recurso suplementar, proveitoso de um modo pouco claro, assim como era o caso das suas demais empresas caritativas. Mas, ao mesmo tempo, tinham a sua finalidade própria essas suas ações piedosas. A satisfação que Hans Castorp experimentava ao introduzir o mingau na boca da inválida Srª. von Mallinckrodt, ao ouvir como o Sr. Ferge descrevia o inferno do choque pleural ou ao ver a pobre Karen bater as mãos com os dedos cobertos de esparadrapos, de tanta alegria e gratidão – essa satisfação era, em que pese a sua natureza derivada e relativa, de um caráter espontâneo e puro; tinha a sua origem num espírito formativo oposto àquele que o Sr. Settembrini representava na sua pedagogia, mas suficientemente valioso, segundo a opinião do jovem Hans Castorp, para que se aplicasse a ele o placet experiri. A casinha onde morava Karen Karstedt achava-se situada nas proximidades do curso d'água e dos trilhos da via férrea, à margem da estrada que conduzia à “aldeia”. Dessa forma era fácil para os primos irem buscá-la, quando, depois do café da manhã, a quisessem levar ao passeio regulamentar. Dirigindo-se à “aldeia”, na intenção de chegar à rua principal, tinham ante os seus olhos o Kleine Schiahorn, em seguida as três agulhas que se chamavam as Grüne Türme, e ainda mais à direita a cúspide do Dorfberg. A um quarto da altura da sua encosta via-se um cemitério, o cemitério da “aldeia”, rodeado de um muro, e que prometia uma linda vista; motivo por que valia a pena escolhê-lo para objetivo de um passeio. Uma bela manhã foram até lá, os três. Aliás, todas as manhãs eram belas nessa época do ano, calmas e ensolaradas, de um azul profundo, com uma atmosfera entre quente e fria, cintilante de alvura. Os primos – um com a tez cor de tijolo e o outro bronzeado – iam sem sobretudo, que teria sido incômodo sob esse sol abrasador. O jovem Ziemssen usava traje esporte e galochas por causa da neve; Hans Castorp calçava da mesma forma, mas levava calças compridas, pois não tinha espírito desportivo suficiente para andar de calções de golfe. Estava-se na primeira metade de fevereiro do novo ano. Sim, o ano mudara desde que Hans Castorp se encontrava ali, e já se escrevia outro número. Um dos ponteiros grandes do relógio que media as eras do universo dera para a frente um passo correspondente a uma unidade; não se tratava de um ponteiro dos maiores, como aquele que se referia aos milênios – muito poucos dentre os que viviam agora chegariam a vê-lo avançar – nem tampouco o dos séculos ou ainda o dos decênios. Mas o ponteiro dos anos acabava de movimentar-se, embora Hans Castorp se achasse ali fazia pouco mais de meio ano apenas, e daí por diante permaneceria parado, à maneira dos ponteiros de certos relógios grandes, que só de cinco em cinco minutos se põem em movimento. Antes que fizesse novo avanço, o ponteiro dos meses teria de avançar dez vezes, um pouco mais, portanto, do que fizera desde a chegada de Hans Castorp. O mês de fevereiro já não figurava no balanço, visto um mês começado ser um mês liquidado, assim como uma moeda trocada já se conta como gasta. Os três companheiros dirigiram-se, pois, certo dia, ao cemitério situado na encosta do Dorfberg. Mencionamos esse passeio para manter o nosso relato rigorosamente completo. Devia-se essa iniciativa a Hans Castorp, e Joachim, que a princípio se mostrara contrário, levando em consideração a pobre Karen deixara-se convencer e reconhecera que não adiantaria tentar iludi-la e esconder-lhe, à maneira da covarde Srª. Stöhr, tudo quanto lhe pudesse lembrar o fim. Karen Karstedt ainda não se entregava às idéias otimistas, peculiares à última fase da enfermidade; estava a par do seu estado, e sabia o que significava a necrose das pontas dos dedos. Não ignorava tampouco que os seus parentes avarentos não admitiriam o luxo de se transportar o féretro ao seu país natal, e que depois do exitus lhe designariam um modesto lugarzinho ali em cima. Numa palavra, podia-se opinar que o objetivo desse passeio, do ponto de vista moral, era mais próprio para ela do que muitos outros, como, por exemplo, o ponto de partida dos trenós ou o cinema. Por outro lado, era apenas um ato decente de camaradagem visitar os lá de cima, desde que não se quisesse considerar o cemitério como mera curiosidade ou como um terreno neutro de passeio. Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve. Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo, e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul. Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente encostados. Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com sua cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio, de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida. Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos – também Hans Castorp passara a fazê-lo –, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam, em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo. A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos. Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado. Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos eslavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal. Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma curiosidade simultânea, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso forçado. Noite de Valburga Dentro de poucos dias faria sete meses que o jovem Hans Castorp se achava nessas alturas, ao passo que o primo Joachim, com cinco meses a mais nas costas, já se podia lembrar de quase doze meses de estadia, um ano inteiro, em conta redonda – redonda no sentido cósmico, uma vez que a Terra, desde o dia em que ali o deixara a potente locomotivazinha, dera uma volta completa em torno do Sol e regressara ao ponto onde então se achava. Estava-se na época do carnaval. Aproximavam-se os folguedos da terça-feira, e Hans Castorp indagou dos pensionistas com mais de um ano de permanência que tal era a festa ali em cima. – Magnífica! – respondeu Settembrini, a quem os primos haviam encontrado durante o exercício matinal. – Esplêndida! – acrescentou. – É tão alegre como no Prater; o senhor vai ver, engenheiro. “Cá viemos mui lampeiros figurar de cavalheiros...” – citou, e sua boca se pôs a transbordar de ironias, que ele acompanhou de gestos apropriados da cabeça, dos braços e dos ombros: – Que quer o senhor? Na própria maison de santé realizam-se às vezes bailes para os loucos e os idiotas. Pelo menos é o que li em alguma parte. Por que razão não o fariam também aqui? O programa contém as mais diversas danças macabras. Infelizmente, alguns dos convidados do ano passado não poderão estar presentes, uma vez que a festa termina às nove e meia... – Isso significa... Ah, sim! Essa é boa! – riu-se Hans Castorp. – O senhor inventa cada coisa! Às nove e meia! Você ouviu esta? É muito cedo para que “certa parte” da assistência do ano passado possa comparecer, acha o Sr. Settembrini. Ah, ah! é fantástico! Trata-se da parte que nesse ínterim disse definitivamente vale à carne, sabe? Você compreendeu o meu trocadilho?...4 Mas estou mesmo curioso para ver isso – continuou. – Parece-me muito certo que aqui se celebrem as festas quando se apresentam. Assim, as etapas são marcadas, como de costume, por meio de entalhes, para que não haja uma monotonia confusa, que seria muito tediosa. Tivemos o Natal, e notamos o começo do ano novo. E agora vem o carnaval. Depois se aproximará o Domingo de Ramos -será que aqui servem rosquinhas? —, haverá a Semana Santa, a Páscoa e Pentecostes, seis semanas mais tarde. Em seguida será o dia mais longo do ano, o solstício de verão, e logo nos encaminharemos para o outono... – Pare! Pare com isso! – exclamou Settembrini, elevando os olhos para o céu e comprimindo as têmporas com as palmas da mão. – Cale-se! Não posso ouvir como o senhor se excede dessa maneira... – Perdão, quero dizer, justamente... Bem, parece que o Behrens se decidirá finalmente a me dar aquelas injeções para me desintoxicar. Tenho constantemente temperaturas entre 37,4 e 37,7. Isso não se modifica. Sou e continuo sendo um filho enfermiço da vida. Não sou propriamente um paciente a longo prazo. Radamanto nunca me condenou a uma pena determinada, mas acha que seria absurdo interromper o tratamento prematuramente, depois de tantos meses que estou aqui, e depois de ter, por assim dizer, empatado um tempo considerável. De que serviria fixar um prazo? Isso não significaria nada, pois quando ele diz, por exemplo: “Meio ano, pouco mais ou menos”, trata-se do mínimo, e é preciso que a gente se prepare para mais. Vejo isso no caso de meu primo, cujo fim devia ter chegado ao princípio deste mês – digo “fim” no sentido da alta definitiva —, mas, da última vez, o Behrens lhe acrescentou mais quatro meses até a cura completa. Sim, senhor, e depois que haverá? Haverá o solstício de verão, como eu já disse, sem a mínima intenção de melindrá-lo, e novamente estaremos a caminho do inverno. 4 “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.) Ora, por enquanto só teremos o carnaval, e o senhor já sabe que acho muito acertado e bonito que a gente celebre todas as festas na ordem, como estão marcadas no calendário. A Srª. Stöhr me contou que o porteiro tem à venda umas cornetas de brinquedo. Era verdade. Desde o café da manhã na terça-feira de carnaval, que chegara depressa, ainda antes que se tivesse tempo de avistá-la de longe – desde as primeiras horas da manhã, ouvia-se na sala de refeições toda espécie de sons produzidos por instrumentos de sopro, que roncavam ou trilavam carregados do melhor humor. Durante o almoço foram jogadas serpentinas da mesa de Gänser, Rasmussen e da Kleefeld; algumas pessoas, como a Marusja dos olhos redondos, já levavam carapuças de papel, igualmente compradas no alojamento do porteiro coxo. Pela noite, porém, desenvolveu-se na sala e nas dependências uma animação festiva, no decorrer da qual... Unicamente o autor sabe por ora o que se passou no decorrer dessa animação festiva do carnaval, devido ao espírito empreendedor de Hans Castorp. Mas não nos deixemos arrastar pelo nosso conhecimento da história a abandonar a circunspeção do nosso estilo. Atribuamos ao tempo a honra que merece e não precipitemos a narrativa. Talvez até retardemos um pouco o curso dos acontecimentos, participando das inibições morais do jovem Hans Castorp, que por tanto tempo haviam atrasado a sua realização. À tarde, todo mundo foi a Davos-Platz para olhar o movimento carnavalesco nas ruas. Desfilavam as fantasias, us pierrôs e os arlequins, agitando as matracas. Entre os pedestres e as pessoas fantasiadas que ocupavam os trenós enfeitados e providos de guizos, iam sendo travadas batalhas de confete. Na hora do jantar, os pensionistas reuniram-se sumamente alegres em torno das sete mesas, decididos a manter o entusiasmo público nesse recinto fechado. As carapuças de papel, as cuícas e as cornetas do porteiro tinham sido vendidas com grande rapidez. O Promotor Paravant dera início aos disfarces mais completos, vestindo um quimono de senhora e um rabicho postiço, que, segundo as exclamações vindas de todos os lados, pertencia à esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand; por meio de um encrespador, puxara para baixo as pontas do bigode, de maneira que parecia um chinês perfeito. A “administração” não ficava atrás. Cada mesa estava adornada de uma lanterna de papel, que mostrava uma lua multicor e tinha no seu interior uma vela acesa. Settembrini, ao entrar na sala e passar perto da mesa de Hans Castorp, citou uns versos que podiam referir-se a essa iluminação: – “Perceberá candeios de mil cores. Há lá festa; há de achar-se acompanhado...” – murmurou com um sorriso fino e seco, enquanto, negligentemente, se dirigia ao seu lugar, onde o receberam com pequenos projéteis, bolinhas cheias de um líquido perfumado, que se quebravam com o choque e molhavam as vítimas. Numa palavra, a animação festiva foi extraordinária desde o início. Estrondeavam gargalhadas; serpentinas dependuradas dos lustres balançavam-se agitadas pelas correntes de ar; no molho dos assados boiavam confetes. A anã não tardou a trazer, com passo apressado, a primeira garrafa de champanha num recipiente de gelo. Misturavam o champanha com vinho da Borgonha, obedecendo a uma sugestão do advogado Einhuf. Pelo fim da refeição, apagaram-se as luzes do teto e a iluminação limitou-se às lanternas, que lançavam sobre o ambiente o claro-escuro variegado de uma noite italiana. A essa altura dos acontecimentos o bom humor era geral, e na mesa de Hans Castorp houve muitos aplausos quando Settembrini entregou um bilhete a Marusja, que tinha o lugar mais próximo dele. A moça, enfeitada de um gorro de jóquei, de papel de seda verde, fez circular o papelzinho, no qual se liam os seguintes escritos a lápis: “Mas veja que esta noite é a festa das diabruras cá no monte; e eu também sou uma das figuras. Mas vá lá; faltarei contanto que releve a um pobre fogo-fátuo o modo como o leve”. O Dr. Blumenkohl que, a essa época, novamente andava muito mal de saúde, esboçou aquela expressão, ou melhor, aquela contração dos lábios que lhe era peculiar, e murmurou algumas palavras relativas à procedência desses versos. Hans Castorp, por sua vez, achou-se na obrigação de dar uma resposta humorística. Tencionou escrever no bilhete uma réplica, que, na verdade, não poderia ser muito significativa. Remexeu os bolsos em busca de um lápis, mas não o encontrou e tampouco pôde consegui-lo de Joachim ou da professora. Pedindo auxílio, seus olhos estriados de vermelho dirigiram-se para o leste, no canto traseiro da sala, bem à esquerda. Viu-se então como aquela intenção fugaz degenerava em associações de idéias tão longínquas, que Hans Castorp empalideceu, esquecendo-se totalmente de seu intuito primitivo. Havia, além disso, outros motivos para empalidecer. Mme. Chauchat, que tinha o seu lugar ali atrás, engalanara-se por causa do carnaval; trajava um vestido novo, ou pelo menos um vestido que Hans Castorp nunca a vira usar – de uma seda leve e escura, quase preta, que não cambiava senão de vez em quando com um brilho dourado-castanho; o decote, redondo e discreto, qual o de um vestido de garota, mal mostrava o pescoço, a junção das clavículas e, atrás, as vértebras da nuca, um tanto salientes sob os cabelos soltos, em virtude da posição avançada da cabeça; mas os braços de Clávdia estavam desnudos até os ombros, esses braços delgados e todavia cheios, braços frios, provavelmente, e que se destacavam tão brancos da seda escura do vestido, que Hans Castorp, fechando os olhos, murmurou de si para si: – Deus meu! – Nunca antes deparara com esse tipo de vestido. Conhecia vestidos de baile com decotes tais como permitia ou até prescrevia o caráter da festa, decotes muito mais amplos do que este, sem, contudo, produzirem efeito igualmente sensacional. Evidenciou-se, antes de tudo, ter-se enganado redondamente o pobre Hans Castorp, ao supor que o encanto e a insensata sedução desses braços, que só conhecia através de um véu de gaze fina, iam ser menos intensos sem essa auréola sugestiva. Engano! Ilusão fatal! A nudez completa, acentuada e deslumbrante desses magníficos membros de um organismo intoxicado, constituía um espetáculo muito mais emocionante do que a auréola de outrora, uma visão à qual não se podia responder de outra maneira que baixando a cabeça e repetindo, em voz surda: - Deus meu! Pouco mais tarde chegou outro bilhete com o seguinte conteúdo: “Quem viu jamais melhor sociedade? Tudo moças, perfeitas donzelas! Tudo moços digníssimos delas! Que promessas à posteridade!” Ressoavam aclamações e bravos. Já tinham progredido até o cafezinho, que era servido em pequenos bules de barro pardo; outros tomaram licores, como por exemplo a Srª. Stöhr, que gostava imensamente de bebidas fortes e doces. Os comensais começaram a levantar-se e a circular pela sala. Visitavam-se uns aos outros; trocavam de mesa. Parte dos pensionistas já passara para os salões, enquanto outros, mais sedentários, continuavam a fazer honra à mistura de vinhos. Settembrini chegou então pessoalmente, com a xícara de café na mão e o palito entre os dentes. Sentou-se como visitante à cabeceira da mesa, entre Hans Castorp e a professora. – “Montanhas do Harz” – disse. – “Região entre Schierke e Elend.5“ Será que lhe prometi demais, engenheiro? “Que feira! Gira-me a cabeça!” Mas espere um pouco, ainda não se esgotou o nosso engenho. Ainda não chegamos ao apogeu; estamos longe do fim. Como se ouve dizer, haverá outros disfarces. Algumas pessoas se retiraram, e isso nos permite esperar muita coisa. O senhor vai ver. Com efeito, apareciam novas fantasias. Senhoras vestidas de homem, com os rostos enegrecidos mediante rolhas tisnadas, e que ofereciam um aspecto pouco natural, de opereta, pela opulência das suas formas. Cavalheiros que, por sua vez, se haviam fantasiado de mulher, 5 Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.) trajando longos vestidos, em cujas saias tropeçavam, como, por exemplo, o estudante Rasmussen, numa roupa preta, enfeitada de lantejoulas, exibindo um decote cheio de espinhas e abanando-se, pela frente e por trás, com um leque de papel. Apareceu um mendigo, arrastando-se de joelhos dobrados, apoiado numa muleta. Um pensionista transformara roupas de baixo e um chapéu de senhora numa fantasia de pierrô; empoara o rosto de tal maneira que os olhos adquiriam uma expressão estranha, e, por meio de batom, dera à boca um certo relevo de sanguinolêncía; era o rapazote de unha comprida. Um grego da mesa dos “russos ordinários”, dotado de pernas bonitas, pavoneava-se em ceroulas de malha lilás, com uma golilha de papel e um florete, pretendendo ser um fidalgo espanhol ou um príncipe de conto de fadas, Todas essas fantasias haviam sido improvisadas, a toda a pressa, depois do fim da refeição. A Srª. Stöhr também não pôde permanecer no seu lugar por mais tempo. Sumiu, para logo reaparecer disfarçada de arrumadeira, com a saia e as mangas arregaçadas; tinha as fitas da touca de papel amarradas por baixo do queixo; munida de balde e vassoura, pôs-se a trabalhar, passando o pano molhado sob as mesas, entre as pernas das pessoas sentadas. “A velha Baubo vem sozinha...”, citou Settembrini ao vê-la, e não deixou de acrescentar, na sua pronúncia clara e plástica, o verso seguinte. Quando ela ouviu essas palavras, chamou-o de “galo italiano” e mandou-o parar com essas “porcarias”. Em nome da liberdade própria das máscaras, tuteou-o; pois esse tratamento já fora adotado em toda parte durante a refeição. Settembrini esteve a ponto de retrucar, quando uma barulheira e uma onda de gargalhadas, vindas do vestíbulo, o interromperam e atraíram a atenção da sala. Seguidas de pensionistas que saíam dos salões, entraram solenemente duas estranhas figuras, que apenas acabavam de fantasiar-se. Uma vinha em trajes de diaconisa, mas seu hábito preto estava coberto, desde o pescoço até a barra, de faixas brancas, transversais; listras curtas, próximas umas das outras, e longas, mais espaçadas, dispostas à maneira da marcação de um termômetro. Levava um dos indicadores à boca pálida e trazia, na outra mão, uma papeleta de temperatura. O outro mascarado vinha vestido de azul, com os lábios e os sobrolhos pintados de azul, e com manchas azuis no rosto e no pescoço; usava um gorro de lã azul, colocado obliquamente na cabeça, e trajava uma espécie de macacão de alpaca azul, feito de uma só peça, atado nos tornozelos por meio de fitas e com enchimento na parte central do corpo para formar uma enorme barriga. As figuras foram reconhecidas como sendo a Srª. Iltis e o Sr. Albin. Ambos levavam cartazes de papelão, nos quais se podia ler: “A Irmã Muda” e “Joãozinho Azul”. A passo saltitante deram volta à sala. Quantos aplausos não receberam! Houve aclamações a não acabar. A Srª. Stöhr, com a vassoura debaixo do braço e com as mãos fincadas nos joelhos, riu-se desmedida e ordinariamente, como lhe permitia o seu papel de arrumadeira. Unicamente Settembrini mostrouse reservado. Seus lábios, sob a bela curva do bigode, comprimiram-se sobremaneira, após um rápido olhar aos dois mascarados, alvo de tantas palmas. Entre as pessoas que, formando o cortejo do Azul e da Muda, haviam voltado das dependências à sala de refeições, achava-se também Clávdia Chauchat, em companhia de Tamara, a moça dos cabelos lanosos, e daquele comensal de tórax côncavo, um certo Buligin, que usava smoking. Mme. Chauchat, no seu vestido novo, roçando a mesa de Hans Castorp, passou pela sala em diagonal, até a mesa do jovem Gänser e da Kleefeld, onde estacou, mãos nas costas, conversando e rindo, com os olhos oblíquos, enquanto os seus companheiros continuavam a seguir os fantasmas alegóricos e abandonavam a sala atrás deles. Também Mme. Chauchat enfeitara-se com uma carapuça de carnaval. Não era nem sequer um gorro comprado, mas sim daquele tipo que se faz para crianças, um tricórnio dobrado de papel branco. Usava-o atravessado, o que lhe ficava muito bem. O vestido de seda cambiante entre marrom-escuro e dourado deixava ver os pés e tinha saia godê. Nada mais diremos dos braços. Estavam nus até os ombros. – “Repara!” – ouviu Hans Castorp a voz do Sr. Settembrini recitar como que de longe, enquanto seus olhares acompanhavam Mme. Chauchat, que, prosseguindo no caminho, se aproximava da porta envidraçada e saía da sala. – “É Lilith.” – Que Lilith? – perguntou Hans Castorp. O literato, gostando da pergunta correspondente ao texto, replicou: – “Lilith, a primeira mulher de Adão. Cuidado!...” Além deles, somente o Dr. Blumenkohl ainda permanecia à mesa, no seu lugar distante. Os demais companheiros, entre eles Joachim, tinham passado para os salões. Hans Castorp disse: – Hoje estás cheio de poesia e de versos. Que Lilith é essa, afinal? Adão casou-se duas vezes? Eu não sabia disso... – É a lenda hebraica que o diz. A tal Lilith transformou-se num fantasma noturno, perigoso aos jovens, sobre tudo pelos seus lindos cabelos. – Que horror! Um fantasma noturno com lindos cabelos! Isso não te agrada, hein? Então chegas e acendes, por assim dizer, a luz elétrica, para fazer os jovens voltarem ao bom caminho, não é? – disse Hans Castorp, divagando, porque bebera grandes quantidades daquela mistura de vinhos. – Escute, engenheiro, deixe disso! – ordenou Settembrini, de cenho carregado. – Sirva-se do tratamento que se emprega no Ocidente entre as pessoas cultas; use a terceira pessoa, por favor! Essa maneira de falar que o senhor está experimentando absolutamente não condiz com a sua pessoa. – Mas por que não? É carnaval. É a forma geralmente aceita nesta noite... – Sim, senhor, devido a um prazer imoral. O “tu” entre pessoas estranhas, isto é, entre pessoas que normalmente se tratam por “o senhor”, constitui repugnante selvageria, um jogo com o estado primitivo, um jogo silencioso que abomino, porque, no fundo, se dirige contra a civilização e contra a humanidade desenvolvida, e isso de uma forma insolente e despudorada. Eu não tratei o senhor por “tu”. Apenas citei um trecho da obra-prima da sua literatura nacional. Servi-me, portanto, de uma linguagem poética... – Eu também! Também eu falo, em certo sentido, poeticamente. É porque o momento me parece próprio para fazê-lo, só por isso! Não digo que me seja natural e fácil tratar-te por “tu”. Pelo contrário, custa-me certo esforço; lenho que me obrigar a isso. Mas faço-o com prazer, faço-o alegremente e de todo o coração... – De todo o coração? – Sim, de todo o coração. Podes acreditar-me. Já faz tempo que vivemos juntos aqui em cima! Uns sete meses; podes fazer o cálculo. Segundo os conceitos daqui não é grande coisa, mas, quando penso nas idéias que reinam lá embaixo, é tempo considerável. Bem, e esse tempo, nós o passamos um ao lado do outro, porque a vida nos reuniu aqui. Encontramo-nos quase todos os dias e tivemos palestras interessantes, freqüentemente sobre assuntos dos quais lá embaixo eu não entenderia patavina. Mas aqui era diferente. Aqui achei-os importantes e pertinentes, de modo que todas as vezes que a gente discutia, prestei muita atenção. Ou melhor: todas as vezes que tu me explicavas as coisas na qualidade de um homo humanus, pois eu, com a minha falta de experiência, pouco sabia contribuir para o tema e apenas me limitava a achar digno de ser ouvido tudo quanto dizias. Graças a ti aprendi e compreendi muita coisa... O que me contaste de Carducci é o de menos, mas as relações que existem entre a república e o belo estilo, ou entre o tempo e o progresso da humanidade – se não houvesse o tempo seria impossível o progresso da humanidade, e o mundo não passaria de um charco estagnado e uma poça pútrida... Que saberia eu de tudo isso, se tu não me tivesses ensinado? Trato-te simplesmente por “tu” e não te dou outro nome. Desculpa-me, mas não sei como te falar de outra forma. Não há jeito. Aí te achas sentado, e chamo-te “tu”, simplesmente; é o quanto basta. Tu não és um homem qualquer que leva um nome, tu és um representante, Sr. Settembrini, um representante, neste lugar e a meu lado. Eis o que és – confirmou Hans Castorp, e com a palma da mão bateu sobre a toalha. – E agora quero agradecer-te – prosseguiu, aproximando a sua taça, cheia de borgonha misturado com champanha, da xícara de café do Sr. Settembrini, para tocá-la em cima da mesa –, agradecerte pelos cuidados que, durante estes sete meses, me devotaste de maneira muito amável; quero agradecer-te porque ajudaste nos seus exercícios e nas suas experiências o calouro que eu era e que se via assaltado por tantas impressões novas; porque procuraste exercer sobre mim uma influência corretiva, totalmente sine pecunia, por meio de historietas ou de forma abstrata. Tenho a sensação nítida de que chegou o momento de expressar a minha gratidão por isso e por tudo, e de pedir-te perdão por ter sido um mau aluno, um “filho enfermiço da vida”, como me chamaste. Quando me disseste isso, fiquei muito comovido, e cada vez que me lembro sinto a mesma emoção. Um filho enfermiço é o que fui sem dúvida também para ti e para a tua veia pedagógica, da qual me falaste logo no primeiro dia. Claro, pois aí temos mais uma dessas relações que tu me mostraste, a que existe entre o humanismo e a pedagogia. Com o tempo, eu descobriria muitas outras relações ainda... Perdoa-me e não guardes de mim recordações desfavoráveis! À tua saúde, Sr. Settembrini, viva! Esvazio a minha taça em homenagem aos teus esforços literários pelo extermínio dos sofrimentos humanos – terminou; e, inclinando-se para trás, sorveu em grandes tragos a mistura de vinhos. A seguir levantou-se, dizendo: – E agora vamos reunir-nos aos outros. – Escute, engenheiro, que lhe deu na veneta? – perguntou o italiano, com os olhos cheios de surpresa, e também se pôs de pé. – Isso soa como uma despedida... – Não; por que despedida? – respondeu Hans Castorp, esquivo. Esquivou-se não somente nas suas palavras, mas também fisicamente, descrevendo meio círculo com o corpo e avizinhando-se da professora, Srta. Engelhart, que viera buscá-los. No salão de música – anunciou ela – o conselheiro em pessoa estava preparando e distribuindo um ponche de carnaval, que a “administração” oferecia aos pensionistas. Que fossem para lá imediatamente se desejassem beber um copo. E eles se puseram a caminho. Realmente, o Dr. Behrens achava-se no salão, rodeado pela multidão dos pensionistas, que lhe estendiam pequenos copos com asas. À sua frente havia a mesinha redonda do centro, coberta por uma toalha branca. Nela se via uma terrina, da qual o conselheiro tirava, com uma concha, a fumegante bebida. Também ele dera à sua aparência um cunho levemente carnavalesco, acrescentando ao avental de médico, que levava como sempre, uma vez que a sua atividade não conhecia descanso, um autêntico fez turco, carmesim, com uma borla negra a balouçar-se junto à orelha. Essa combinação parecia-lhe disfarce suficiente; bastava para levar aos limites da excentricidade e da pândega a sua aparência já em si fora do comum. O longo avental branco exagerava o tamanho do conselheiro. Quando se fazia abstração da curvatura da nuca, endireitando-a mentalmente e fazendo o corpo alcançar a sua altura verdadeira, a silhueta do homem, com a cabecinha de singulares colorido e aspecto, parecia aumentada. Pelo menos ao jovem Hans Castorp, esse rosto jamais se afigurara tão esquisito como nesse dia, quando contrastava com o ridículo fez vermelho; essa fisionomia achatada, com o nariz arrebitado, com a pele azulada, que dava a impressão de estar quente, com os olhos azuis lacrimosos e saltados sob as sobrancelhas de um louro quase branco, e com o bigodinho claro a torcer-se obliquamente por cima da boca arqueada, de lábios grossos. Procurando evitar o vapor quente que, turbilhonando, saía da terrina, o médico fazia a beberagem parda – um falso ponche açucarado – manar num arco que se estendia da concha até o copo apresentado. Acompanhava isso com incessantes discursos na sua gíria alegre, de modo que contínuas gargalhadas associavam-se à distribuição da bebida. – “No topo monta Dom Urião” – explicou Settembrini em voz baixa, apontando para o conselheiro áulico. Em seguida, a corrente separou-o de Hans Castorp. Também o Dr. Krokowski estava presente. Baixote, atarracado e enérgico, tinha o casaco de alpaca preta suspenso dos ombros, com as mangas pendendo vazias, a ponto de produzir o efeito de um dominó; mantendo a taça à altura dos olhos, conversava jovialmente com um grupo de mascarados de sexo trocado. Ouviram-se sons de música. A paciente com a cara de anta tocou ao violino, acompanhada pelo rapaz de Mannheim, o Largo de Haendel e depois uma sonata de Grieg, de caráter nacional e adequado ao ambiente de salão. Houve aplausos benevolentes, até nas duas mesas de bridge que tinham sido armadas, e em torno das quais se haviam instalado pessoas fantasiadas, com garrafas em baldes de gelo ao lado. As portas estavam abertas. Também no vestíbulo achavam-se pensionistas. Um grupo cercava a mesa redonda, com a terrina de ponche, olhando o conselheiro empenhado em introduzir um novo jogo de salão. Desenhava ele com os olhos fechados, de pé, inclinado por cima da mesa, mas deitando a cabeça para trás, para que todos pudessem ver que realmente não abria os olhos. Nas costas de um cartão de visita, esboçava a lápis uma figura, às cegas. Eram os contornos de um porco o que a sua manopla desenhava sem a ajuda dos olhos; um porquinho visto de perfil, um tanto simplificado, mais esquemático do que naturalístico, porém incontestavelmente a essência de um porquinho, que o conselheiro ia traçando sob essas condições difíceis. Exigia muita habilidade, e ele dispunha dela. O olhinho rasgado entrou, pouco mais ou menos, onde devia entrar, talvez um pouco perto do focinho, mas, de qualquer maneira, em seu lugar; o mesmo se deu com a orelha pontuda e com as perninhas que pendiam da arredondada pança; prolongando a linha das costas, igualmente redondas, o rabinho formava um sacarolhas muito elegante. Todos exclamaram “ah!”, quando a obra estava concluída, e apressaram-se a imitar a proeza, tomados da ambição de igualar o mestre. Mas eram muito poucos os que sabiam desenhar, com os olhos abertos, um porquinho apresentável, e ainda menos às cegas. Que monstros não resultaram das suas tentativas! Não havia nenhuma relação entre os traços. O olhinho colocado fora da cabeça; as patinhas dentro da pança, que por sua vez ficava vastamente aberta; o rabinho enrolava-se em algum lugar longe do corpo, sem nenhuma relação orgânica com a figura principal, formando um arabesco independente. Houve ondas de risadas. O grupo aumentou. Foi atraída a atenção dos jogadores de bridge, que se aproximaram, curiosos, com as cartas abertas em leque na mão. A assistência controlava os olhos de quem experimentava, para certificar-se de que ninguém estivesse fazendo trapaça, como alguns tentavam, na sensação da sua impotência. Os espectadores riam-se aberta ou secretamente, enquanto o candidato cometia seus erros cegos, e rebentavam de júbilo quando ele, abrindo os olhos, contemplava a sua obra absurda. Uma confiança falaz em, si próprios impelia todos a participar da competição. O cartão, apesar de bem grande, encheu-se rapidamente em ambos os lados, de maneira que os desenhos entravam uns nos outros. O conselheiro sacrificou um segundo cartão, que tirou da sua carteira, e sobre o qual o Promotor Paravant, segundo um plano premeditado, tentou desenhar o porquinho num só traço, com o único resultado de malograr de forma muito pior do que os outros; os rabiscos que saíram de seu lápis não somente não se pareciam com nenhum porco, mas tampouco recordavam, nem de longe, qualquer coisa deste mundo. Novos gritos, novas gargalhadas e tumultuosas felicitações. A seguir foram buscar cardápios na sala de refeições, para que diversas pessoas, cavalheiros e senhoras, pudessem desenhar ao mesmo tempo. Todos os competidores tinham seus vigilantes e seus espectadores, cada um dos quais esperava a sua vez de se apossar do lápis que estava sendo usado. Havia apenas três lápis, que eram arrebatados. Todos eles pertenciam a pensionistas. O conselheiro, ao ver que o jogo estava bem encaminhado, desapareceu acompanhado do assistente. No meio da multidão, Hans Castorp observava por cima do ombro de Joachim o trabalho de um dos desenhistas; tinha o cotovelo apoiado nesse ombro e o queixo agarrado com toda a mão, enquanto a outra se fincava no quadril. Falava e ria. Também queria desenhar. Reclamou em voz alta e recebeu um lápis, um pedaço bem curtinho, que mal se podia segurar entre o polegar e o indicador. Protestou contra esse toco, com os olhos fechados erguidos para o teto; resmungou em voz alta e praguejou contra a insuficiência do lápis, enquanto a mão apressada rabiscava no cartão uma espantosa monstruosidade, que por fim se estendia até sobre a toalha. – Isso não vale! – exclamou em meio às merecidas risadas. – Como se pode com um troço... Que vá para o diabo! – E atirou na terrina de ponche o toco assim acusado. – Quem tem um lápis decente? Quem me empresta um? Tenho de desenhar outra vez. Um lápis! Um lápis! Quem tem outro lápis? – gritou, voltando-se para todos os lados, com o antebraço esquerdo ainda firmado na mesa, e agitando no ar a mão direita. Não pôde obter nenhum. Eis que deu meia-volta e atravessou a peça, continuando a gritar. Foi em direção a Clávdia Chauchat, que, como ele sabia, se achava perto do reposteiro diante da salinha e dali observava sorrindo o alvoroço em torno da mesa de ponche. Atrás de si, Hans Castorp ouviu chamar, em palavras sonoras e estrangeiras: – Eh! Ingegnere! Aspetti! Che cosa fa, ingegnere! Un po' di ragione, as! Ma è matto questo ragazzo! – Mas abafou essa voz com a sua própria. Viu-se então como o Sr. Settembrini levantou a mão acima da cabeça – gesto usado em seu país, de um sentido difícil de se expressar em poucas palavras, e que ele acompanhou de um “Eh!” prolongado –, depois do quê abandonou o ambiente carnavalesco... Hans Castorp, porém, achando-se no meio do pátio ladrilhado, fitou de muito perto o azul verdecinzento desses olhos providos de epicanto, acima das maçãs salientes, e disse: – Tu não tens, por acaso, um lápis? Estava pálido como a morte, tão pálido como naquele dia quando, manchado de sangue, após o passeio solitário, fora assistir à conferência. Os nervos que controlavam os vasos capilares de seu rosto funcionavam de tal maneira que a pele exangue emurcheceu, lívida e fria, fazendo com que o nariz parecesse mais pontiagudo e a parte abaixo dos olhos adquirisse uma cadavérica cor de chumbo. O nervo simpático, por sua vez, mandava o coração de Hans Castorp martelar num ritmo tão acelerado que já não se podia falar de uma respiração regular. Calafrios percorriam o corpo do jovem, devido a um trabalho das glândulas sebáceas, que se eriçavam junto com os folículos pilosos. A mulher do tricórnio de papel contemplou-o de alto a baixo com um sorriso que não revelava nenhum vestígio de compaixão ou desassossego diante do aspecto transtornado de Hans Castorp. O sexo feminino ignora, aliás, tal compaixão e desassossego diante dos terrores que traz consigo a paixão, esse elemento que, evidentemente, lhe é muito mais familiar do que ao homem, o qual, por natureza, não se dá com ele. Daí acontece que a mulher nunca o vê numa situação dessas sem sentir vontade de escarnecer e de mostrar uma alegria maliciosa. Por outro lado, o homem protestaria contra qualquer testemunho de compaixão e de desassossego. – Eu? – respondeu àquele “tu” a enferma dos braços desnudos... – Sim, pode ser. – No seu sorriso e na sua voz talvez transparecesse um pouco da emoção que se produz, quando, depois de prolongadas relações mudas, se profere a primeira palavra; é uma emoção sutil que secretamente inclui o passado inteiro no momento presente. – Tens muita ambição... és muito... ardoroso – continuou zombando na sua pronúncia exótica, com o “r” estrangeiro e o “e” demasiado aberto. A voz levemente velada, agradavelmente rouca, dava às palavras uma acentuação esquisita que as fazia parecer completamente novas. Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro, vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para trabalho sério. O lápis de outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico. – Voilà – disse ela, pondo diante dos olhos de Hans Castorp a pequena lapiseira, que segurava pela ponta, entre o polegar e o indicador, balouçando-a ligeiramente. Como ela fingisse oferecê-la e negá-la ao mesmo tempo, ele, então, fez menção de pegála, sem a receber; quer dizer, levou a mão à altura do objeto, bem próximo dele, com os dedos prontos para apanhá-lo, mas sem concluir o ato. Do fundo das órbitas cor de chumbo, seu olhar fixava-se alternadamente na lapiseira e no rosto tártaro de Clávdia. Seus lábios exangues estavam abertos e permaneciam assim sem que ele se servisse deles para falar, quando disse: – Estás vendo? Eu já sabia que tinhas um lápis. – Prenez garde, il est un peu fragile – respondeu ela. – C’est à visser, tu sais. E enquanto as duas cabeças se avizinhavam por cima da lapiseira, explicou-lhe ela o mecanismo, que nada tinha de anormal. Fazendo-se girar a rosca, aparecia uma mina de grafite, delgada qual uma agulha, provavelmente dura e pouco própria para escrever. Permaneciam inclinados um para o outro. Como ele trajasse smoking, podia escorar o queixo no colarinho engomado. – Pequenino, mas com carinho – disse Hans Castorp, com a testa quase tocando a dela, mas falando em direção ao lápis, sem mover os lábios e portanto suprimindo as consoantes labiais. – Ah! És também espirituoso? – tornou ela com uma rápida risada, endireitando-se e abandonando-lhe a lapiseira. (Deus sabe do que ele se servia para fazer espírito, já que, manifestamente, não tinha nenhuma gota de sangue na cabeça.) – Pois então, vai, não percas tempo! Desenha, desenha uma figura, faze um figurão! – Tinha-se a impressão de que ela, de forma igualmente espirituosa, procurava afastá-lo. – Não. Tu ainda não desenhaste. Deves desenhar também – disse Hans Castorp, sem pronunciar as labiais. Ao mesmo tempo recuou um passo, como para fazê-la seguir. – Eu? – perguntou ela novamente com uma surpresa que parecia referir-se antes a outra coisa do que à sua proposta. Sorrindo, mas um tanto perturbada, permaneceu imóvel durante um momento. Depois, porém, obedecendo ao magnetismo do recuo de Hans Castorp, deu alguns passos em direção à mesa de ponche. Verificou-se, entretanto, que o interesse pelo jogo decaíra nesse ínterim e estava nas últimas. Havia ainda quem desenhasse, mas já não encontrava espectadores. Os cartões jaziam cobertos de garatujas. Todos tinham manifestado a sua incapacidade. A mesa achava-se quase deserta, tanto mais que uma contracorrente começava a agir. Os pensionistas acabavam de notar a saída dos médicos, e de repente alguém sugeriu que se dançasse. Logo se puseram a tirar a mesa do centro da sala. Vigias foram colocados nas portas da sala de correspondência e da saleta de música, com a ordem de dar um sinal para interromper o baile, caso reaparecessem o “Velho”, Krokowski ou a Superiora. Um rapaz eslavo atacou com fervor o teclado do pequeno piano de nogueira. Os primeiros pares começaram a girar pelo interior de um círculo irregular, formado por poltronas e cadeiras, nas quais estavam sentados os espectadores. Hans Castorp fez um vago gesto de mão, como para dizer adeus à mesa que se afastava. Apontou com o queixo para alguns assentos livres que descobrira na saleta, e para um cantinho bem abrigado à direita do reposteiro. Não falou, talvez porque a música lhe parecesse muito barulhenta. Colocou, para Mme. Chauchat, uma poltrona forrada de pelúcia, no lugar que antes assinalara pantomimicamente. Para si mesmo apossou-se de uma cadeira de vime, de braços redondos, e que gemeu e rangeu, quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme. Chauchat, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão e com os pés para trás, embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos achavam-se muito levantados, mas, apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo tornozelo, acima da margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta da meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para dançar e cediam o lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém. – Estás com um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu como ela respondia: – Novo? Então conheces o meu vestuário? – Tenho ou não tenho razão? – Tens, sim. Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito para as senhoras daqui. O vestido te agrada? – Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os olhos. – Queres dançar? – acrescentou. – E tu, gostarias? – perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele replicou: – Gostaria, sim, se tivesse vontade. – És mais levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu desdenhosamente, acrescentou: – Teu primo já se foi? – Pois é, é meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei que ele não está mais aqui. Acho que já se recolheu. – C’est un jeune homme très étroit, très honnête, très Allemand. – Étroit? Honnête? – repetiu ele. – Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres então dizer que ele é um pedante. Achas que os alemães são pedantes, nous autres Allemands? – Nous causons de votre cousin. Mas c'est vrai, vocês são um pouco bourgeois. Vous aimez l’ordre mieux que la liberté, toute l’Europe le sait. – Aimer... aimer... Qu’est-ce que c’est? Ça manque de définition, ce mot-là. Um ama, outro possui, comme nous disons proverbialement – afirmou Hans Castorp e prosseguiu: – nos últimos tempos meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é: ouvi esta palavra com tanta freqüência, que me fez refletir. Je te le dirai en français o que pensei a respeito. Ce que toute l’Europe nomme la liberté est peut-être une chose assez pêdante et assez bourgeoise en comparaison de notre besoin d'ordre – c'est ça! – Tiens! C’est amusant. C’est ton cousin à qui tu penses en disant des choses étranges comme ça? – Não, c'est vraiment une bonne âme, uma natureza singela, cujo espírito não corre nenhum perigo, tu sais. Mais il n'est pas bourgeois, il est militaire. – Não corre perigo? – repetiu ela com alguma dificuldade... – Tu veux dire: une nature tout à fait ferme, sûre d'elle-même? Mais il est sérieusement malade, ton pauvre cousin. – Quem te disse isso? – Aqui a gente anda bem informada sobre os outros. – O Dr. Behrens te disse isso? – Peut-être en me faisant voir ses tableaux. – C’est-à-dire: en faisant ton portrait! – Pourquoi pas? Tu l’as trouvé réussi, mon portrait? – Mais oui, extrêmement. Behrens a três exactement rendu ta peau, oh vraiment, très fidèlement. J’aimerais beaucoup être portraitiste, moi aussi, pour avoir l’occasion d'étudier ta peau comme lui. – Parlez allemand, s’il vous plaît! – Oh, eu falo alemão também quando falo francês. C’est une sorte d’étude artistique et médicale – en un mot: il s’agit des lettres humaines, tu comprends. E então, não queres dançar? – Não. Acho isso pueril. En cachette des médecins. Aussitôt que Behrens reviendra, tout le monde va se précipiter sur les chaises. Ce sera fort ridicule. – Tens tanto respeito a ele? – A quem? – disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica. – A Behrens. – Mais va donc avec ton Behrens! Além disso falta espaço para dançar. Et puis sur le tapis... Vamos ver como dançam os outros. – Pois sim, vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observaram os saracoteios dos enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda saltitava com o Joãozinho Azul; a Srª. Salomon, fantasiada de cavalheiro engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa engomada de peito saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos altos dos seus sapatos de verniz, que, inaturalmente, saíam por baixo das calças de homem; seu par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no rosto caiado, e cujos olhos se pareciam com os de um coelho albino. O grego de mantilha requebrava suas pernas harmoniosas, revestidas de ceroulas violeta, em torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas escuras. O promotor público, no seu quimono, a Srª. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a Stöhr bailava com a sua vassoura, que apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se fossem a cabeleira hirsuta de um homem. – Vamos, sim – repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos sons do piano. – Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho, sabes? estarmos sentados assim – comme un rêve singulièrement profond, car il faut dormir très profondément pour rêver comme cela... Je veux dire: c’est un rêve bien connu, rêvé de tout temps, long, éternel, oui, être assis près de toi comme à présent, voilà l’éternité. – Poète! – disse ela. – Bourgeois, humaniste et poète – voilà l’allemand au complet, comme il faut. – Je crains que nous ne soyons pas du tout et nullement comme il faut – replicou ele. – Sous aucun égard. Nous sommes peut-être des filhos enfermiços da vida, tout simplement. – Joli mot. Dis-moi donc... Il n’aurait pas été fort difficile de rêver ce revê-là plus tôt. C’est un peu tard que monsieur se résout à adresser la parole à son humble servante. – Pourquoi des paroles? – disse ele. – Pourquoi parler? Parler, discourir, c’est une chose bien républicaine, je le concède. Mais je doute que ce soit poétique au même degré. Un de nos pensionnaires, qui est un peu devenu mon ami, Monsieur Settembrini... – Il vient de te lancer quelques paroles. – Eh bien, c’est un grand parleur, sans doute, il aime même beaucoup à réciter de beaux vers – mais est- ce un poète, cet homme-là? – Je regrette sincèrement de n’avoir jamais eu le plaisir de faire la connaissance de ce chevalier. – Je le crois bien. – Ah! Tu le crois? – Comment? C’était une phrase tout à fait indifférente, ce que j’ai dit là. Moi, tu le remarques bien, je ne parle guère le français. Pourtant, avec toi je préfère cette langue à la mienne, car pour moi parler français c’est parler sans parler, en quelque manière – sans responsabilitê, ou comme nous parlons en rêve. Tu comprends? – A peu près. – Ça suffit... Parler – continuou Hans Castorp – pauvre affaire! Dans l’éternité, on ne parle point. Dans l’éternité, tu sais, on fait comme en dessinant un petit cochon: on penche la tête en arrière et on ferme les yeux. – Pas mal, ça! Tu es chez toi dans l’éternité, sans aucun doute, tu la connais à fond. Il faut avouer que tu es un petit rêveur assez curieux. – Et puis – disse Hans Castorp —, si je t’avais parlé plus tôt, il m’aurait fallu te dire “vous”! – Eh bien, est-ce que tu as l’intention de me tutoyer pour toujours? – Mais oui. Je t’ai tutoyé de tout temps et je te tutoierai éternellement. – C’est un peu fort, par exemple. En tout cas, tu n'auras pas trop longtemps l’occasion de me dire “tu”. Je vais partir. A palavra custou a lhe penetrar a consciência. Em seguida, ele sobressaltou-se, lançando em redor de si olhares confusos, como faz quem é despertado de repente.. Sua conversa desenvolvera-se com certa lentidão, porque Hans Castorp falava o francês de modo lerdo, como que numa meditação vacilante. O piano, que se calara durante algum tempo, voltou a ressoar, agora sob as mãos do rapaz de Mannheim, que substituíra o jovem eslavo e colocara na estante um álbum de músicas. A Srta. Engelhart estava sentada a seu lado e virava as folhas. A assistência do baile já se tornara menos numerosa. Grande parte dos pensionistas parecia ter adotado a posição horizontal. Ninguém mais se achava nas poltronas à sua frente. Na biblioteca, alguns jogavam cartas. – Que vais fazer? – perguntou Hans Castorp, consternado... – Eu vou partir – repetiu ela, aparentemente surpreendida pelo seu aspecto estarrecido. – Não é possível – disse ele. —– Estás apenas brincando. – Nem um pouquinho. Estou falando com a mais absoluta seriedade. Partirei. – Quando? – Ora, amanhã. Après diner. Um cataclismo de vastas dimensões produziu-se nele. Depois, disse: – Aonde vais? – Muito longe daqui. – A Daghestan? – Tu n’es pas mal instruit. Peut-être, pour le moment... – Estás, então, curada? – Quant à ça... non. Mas Behrens acha que no momento não se pode fazer grande coisa aqui. C’est pourquoi je vais risquer un petit changement d’air. – De maneira que voltarás? – Isto não se sabe. Sobretudo não sei quando. Quant à moi, tu sais, j’aime la liberté avant tout et notamment celle de choisir mon domicile. Tu ne comprends guère ce que c’est: être obsédé d’indépendance. C’est de ma race, peut-être. – Et ton mari au Daghestan te l’accorde – ta liberté? – C’est la maladie qui me la rend. Me voilà à cet endroit pour Ia troisième fois. J’ai passe un an ici, cette fois. Possible que je revienne. Mais alors tu seras bien loin depuis longtemps. – Achas, Clávdia? – Mon prénom aussi! Vraiment tu les prends bien au sérieux les coutumes dü carnaval. – Será que sabes até que grau estou doente? – Oui... non... comme on sait ces choses ici. Tu as une petite tache humide là-dedans et un peu de fièvre, n’est-ce pas? – Trente-sept et huit ou neuj l’après-midi – explicou Hans Castorp. – E tu? – Oh, mon cas, tu sais, c’est un peu plus complique... pas tout à fait simple. – Il y a quelque chose dans cette branche des lettres humaines dite la médecine – disse Hans Castorp – qu'on appelle bouchement tuberculeux des vases de lymphe. – Ah! Tu as mouchardé, mon cher, on le voit bien. – Et toi?... Perdão. Deixa que agora te pergunte uma coisa, com insistência e em alemão: naquele dia, quando me levantei da mesa, para ir ao exame médico, faz seis meses... Tu te voltaste para me olhar... Ainda te lembras? – Quelle question! Il y a six mois! – Tu sabias aonde eu ia? – Certes, c’etait tout à fait par hasard... – Soubeste pelo Behrens? – Toujours ce Behrens! – Oh, il a représenté ta peau d’une façon tellement exacte... D’ailleurs, c’est un veuf aux joues ardentes et qui possède un service de café très remarquable... Je crois bien qu’il connaisse ton corps non seulement comme médecin, mais aussi comme adepte d’une autre discipline des lettres humaines. – Tu as décidément raison de dire que tu parles en rêve, mon ami. – Soit... Laisse-moi rêver de nouveau après m’avoir réveillé si cruellement par cette cloche d’alarme de ton départ. Sept mois sous tes yeux... Et à présent, où en réalité j’ai fait ta connaissance, tu me parles de départ! – Je te répète que nous aurions pu causer plus tôt. – Terias gostado? – Moi? Tu ne m’écbapperas pas, mon petit. Il s’agit de tes intérêts, à toi. Est-ce que tu étais trop timide pour t’approcher d’une femme à qui tu parles en rêve maintenant, ou est-ce qu’il y avait quelqu’un qui t’en a empêché? – Je te l’ai dit. Je ne voulais pas te dire “vous”. – Farceur! Réponds donc – ce monsieur beau parleur, cet Italien-là qui a quitté la soirée – qu’est-ce qu’il t’a lancé tantôt? – Je n’en ai entendu absolument rien. Je me soucie très peu de ce monsieur, quand mes yeux te voient. Mais tu oublies... il n’aurait pas été si facile du tout de faire ta connaissance dans le monde. Il y avait encore mon cousin avec qui j’étais lié et qui s’incline très peu à s’amuser ici: il ne pense à rien qu’à son retour dans les plaines, pour se faire soldat. – Pauvre diable. Il est, en effet, plus malade qu’il ne sait. Ton ami Italien du reste ne va pas trop bien non plus. – Il le dit lui-même. Mais mon cousin... Est-ce vrai? Tu m’effraies. – Fort possible qu’il aille mourir, s’il essaye d’être soldat dans les plaines. – Qu’il va mourir. La mort. Terrible mot, n’est-ce pas? Mais c’est étrange, il ne m’impressionne pas tellement aujourd’hui, ce mot. C’était une façon de parler bien conventionnelle, lorsque je disais: “Tu m’effraies”. L’idée de la mort ne m’effraie pas. Elle me laisse tranquille. Je n’ai pas pitié – ni de mon bon Joachim ni de moi- même, en entendant qu’il va peut-être mourir. Si c’est vrai, son état ressemble beaucoup au mien e je ne le trouve pas particulièrement imposant. Il est moribond, et moi je suis amoureux, eh bien!... Tu as parlé à mon cousin à l’atelier de photographie intime, dans l’antichambre, tu te souviens? – Je me souviens un peu. – Donc ce jour-là Behrens a fait ton portrait transparent. – Mais oui. – Mon Dieu! Et l’as-tu sur toi? – Non, je l’ai dans ma chambre. – Ah, dans ta chambre. Quant au mien, je l’ai toujours dans mon portefeuille. Veux-tu que je te le fasse voir? – Mille remerciements. Ma curiosité n’est pas invincible. Ce será un aspect très innocent. – Moi, j’ai vu ton portrait extérieur. J’aimerais beaucoup mieux voir ton portrait intérieur qui est enfermé dans ta chambre... Laisse-moi demander autre chose! Parfois un monsieur russe qui loge en ville vient te voir. Qui est-ce? Dans quel but vient-il, cet’homme? – Tu es joliment fort en espionnage, je l’avoue. Eh bien, je réponds. Oui, c’est un compatriote souffrant, um ami. ]’ai fait sa connaissance à une autre station balnéaire, il y a quelques années déjà. Nos relations? Les voilà: nous prenons notre thé ensemble, nous fumons deux ou trois papiros, et nous bavardons, nous philosophons, nous parlons de l’homme, de Dieu, de la vie, de la morale, de mille choses. Voilà mon compte rendu. Est-tu satisfait? – De la morale aussi! Et qu’est-ce que vous avez trouvé en fait de morale, par exemple? – La morale? Cela t’intéresse? Eh bien, il nous semble qu’il faudrait chercher la morale non dans la vertu, c'est-à-dire dans la raison, la discipline, les bonnes moeurs, l’honnêteté – mais plutôt dans le contraire, je veux dire: dans le péché, en s’abandonnant au danger, à ce qui est nuisible, à ce qui nous consume. Il nous semble qu’il est plus moral de se perdre et même de se laisser dépêrir que de se conserver. Les grands moralistes n'étaient point des vertueux, mais des aventuriers dans le mal, des vicieux, des grands pécheurs qui nous enseignent à nous incliner chrétiennement devant la misère. Tout ça doit te déplaire beaucoup, n’est-ce pas? Ele permaneceu calado. Estava ainda sentado da mesma forma que antes, com os pés cruzados muito para trás, sob o assento. Inclinava-se para a frente em direção à mulher reclinada com o tricórnio de papel. Tinha entre os dedos a lapiseira que pertencia a ela. Com os olhos tão azuis como os de Hans Lorenz Castorp, o jovem fitava a sala que se esvaziara. Os pensionistas haviam-se dispersado. O piano, no canto diagonalmente oposto, não deixava ouvir senão alguns sons suaves e espaçados, produzidos com uma mão só pelo enfermo de Mannheim, a cujo lado se achava a professora, folheando um tomo de músicas que tinha sobre os joelhos. Quando se interrompeu a conversa entre Hans Castorp e Clávdia Chauchat, o pianista cessou de tocar, deitando no colo também a mão que até então acariciara o teclado. A Srta. Engelhart prosseguiu estudando as notas. Os quatro únicos remanescentes da festa carnavalesca conservavam-se imóveis. O silêncio prolongou-se por alguns minutos. Sob o seu peso baixaram-se lenta e cada vez mais profundamente as cabeças do par sentado junto do piano, a do jovem de Mannheim em direção ao piano, e a da Srta. Engelhart para o álbum de músicas. Por fim, como se se tivessem posto secretamente de acordo, levantaram-se ambos ao mesmo tempo e com grande discrição. Caminhando suavemente, nas pontas dos pés, e evitando lançar um olhar para o outro canto da sala, a cabeça baixa e os braços rigidamente pendurados, sumiram-se o rapaz de Mannheim e a professora pela sala de correspondência. – Tout le monde se retire – disse Mme. Chauchat. – C’étaient les derniers; il se fait tard. Eh bien, la fête de carnaval est finie. – E ergueu os braços a fim de tirar com as duas mãos o gorro de papel do cabelo arruivado, cuja trança cercava a cabeça qual uma coroa. – Vous connaissez les conséquences, monsieur. Mas Hans Castorp fez que não, com os olhos fechados, sem modificar, de resto, a sua posição. – Jamais, Clavdia – respondeu. – Jamais je te dirai “vous”, jamais de la vie ni de la mort, se é que se pode dizer assim; deveria ser possível. Cette forme de s’adresser à une personne, qui est celle de l’Occident cultivé et de la civilisation humanitaire, me semble fort bourgeoise et pédante. Pourquoi, au fond, de la forme? La forme, c’est la pédanterie elle-même! Tout ce que vous avez fixé à l’égard de la morale, toi et ton compatriote souffrant – tu veux sérieusement que ça me surprenne? Pour quel sot me prends-tu? Dis donc, qu’est-ce que tu penses de moi? – C'est un sujet qui ne donne pas beaucoup à penser. Tu es un petit bonhomme convenable, de bonne famille, d’une tenue appétissante, disciple docile de ses précepteurs et qui retournera bientôt dans les plaines, pour oublier complètement qu’il a jamais parlé en rêve ici et pour aider à rendre son pays grand et puissant par son travail honnête sur le chantier. Voilà ta photographie intime, faite sans appareil. Tu la trouves exacte, j’espère? – Il y manque quelques détails que Behrens y a trouvés. – Ah, les médecins en trouvent toujours, ils s’y connaissent... – Tu parles comme Monsieur Settembrini. Et ma fièvre? D’où vient-elle? – Allons donc, c’est un incident sans conséquence qui passera vite. – Non, Clavdia, tu sais bien que ce que tu dis là n’est pas vrai, et tu le dis sans conviction, j’en suis sûr. La fièvre de mon corps et le battement de mon coeur harassé et le frissonnement de mes membres, c’est le contraire d’un incident, car ce n’est rien d’autre – e seu rosto pálido, com os lábios trêmulos, inclinou-se ainda mais para o rosto da mulher – rien d’autre que mon amour pour toi, oui, cet amour qui m’a saisi à l’instant où mes yeux t’ont vue, ou, plutôt, que j’ai reconnu, quand je t’ai reconnue toi – et c’était lui, évidemment, qui m’a mené à cet endroit... – Quelle folie! – Oh! L’amour n'est rien, s’il n’est pas de la folie, une chose insensée, défendue et une aventure dans le mal. Autrement c’est une banalité agréable, bonne pour en faire de petites chansons paisibles dans les plaines. Mais quant à ce que je t’ai reconnue et que j'ai reconnu mon amour à toi – oui, c’est vrai, je t’ai déjá connue, anciennement, toi et tes yeux merveilleusement obliques et ta bouche et ta voix, avec laquelle tu parles – une fois déjà, lorsque j’étais collégien, je t’ai demandé ton crayon, pour faire enfin ta connaissance mondaine, parce que je t’aimais irraisonnablement, et c’est de là, sans doute c’est de mon ancien amour pour toi que ces marques me restent que Behrens a trouvées dans mon corps, et qui indiquent que jadis aussi j’étais malade... Seus dentes batiam. Enquanto ia divagando, retirou um pé de sob o assento rangente. Ao avançar esse pé, tocou o chão com o outro joelho, de maneira que se ajoelhava diante dela, com a cabeça baixa e o corpo todo trêmulo. – Je t’aime – balbuciou – je t’ai aimée de tout temps, car tu es le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon éternel désir... – Allons, allons! – disse ela. – Si tes précepteurs te voyaient... Mas Hans Castorp sacudiu a cabeça, desolado, com o rosto junto ao tapete, e respondeu: – Je m’en ficherais, je me fiche de tous ces Carducci et de la République éloquente et du progrès humain dans le temps, car je t’aime! Ela acariciou-lhe suavemente com a mão os cabelos aparados da nuca. – Petit bourgeois! – disse. – Joli bourgeois à la petite tache humide. Est-ce vrai que tu m’aimes tant? E arrebatado por esse contato, já sobre ambos os joelhos, com a cabeça deitada para trás e com os olhos fechados, continuou ele a falar: – Oh, l’amour, tu sais... Le corps, l’amour, la mort, ces trois ne font qu’un. Car le corps, c’est la maladie et la volupté, et c’est lui qui fait la mort, oui, ils sont charnels tous deux, l’amour et la mort, et voilà leur terreur et leur grande magie! Mais la mort, tu comprends, c’est d’une part une chose mal famée, impudente, qui fait rougir de honte; et d’autre part c’est une puissance très solennelle et très majestueuse – beaucoup plus haute que la vie riante gagnant de la monnaie e farcissant sa panse – beaucoup plus vénérable que le progrès qui bavarde par les temps – parce qu’elle est l’histoire et la noblesse et la pitié et l’éternel et le sacré qui nous fait tirer le chapeau et marcher sur la pointe des pieds... Or, de même, le corps, lui aussi, et l’amour du corps, sont une affaire indécente et fâcheuse, et le corps rougit et pâlit à sa surface par frayeur et honte de lui-même. Mais aussi il est une grande gloire adorable, image miraculeuse de la vie organique, sainte merveille de la forme et de la beauté, et l’amour pour lui, pour le corps humain, c’est de même un intérêt extrêmement humanitaire et une puissance plus éducative que toute la pédagogie du monde!... Oh, enchantante beauté organique qui ne se compose ni de teinture à l’huile ni de pierre, mais de matière vivante et corruptible, pleine du secret fébrile de la vie et de la pourriture! Regarde la symétrie merveilleuse de l’édifice humain, les épaules et les hanches et les mamelons fleurissants de part et d’autre sur la poitrine, et les côtes arrangées par paires, et le nombril au milieu dans la mollesse du ventre, et le sexe obscur entre les cuisses! Regarde les omoplates se remuer sous la peau soyeuse du dos, et l’échine qui descend vers la luxuriance double et fraîche dês fesses, et les grandes branches des vases et des nerfs qui passent du tronc aux rameaux par les aisselles, et comme la structure des bras correspond à celle des jambes. Oh, les douces régions de la jointure intérieure du coude et du jarret avec leur abondance de délicatesses organiques sous leurs coussins de chair! Quelle fête immense de les caresser ces endroits délicieux du corps humain! Fête à mourir sans plainte après! Oui, mon Dieu, laisse-moi sentir l’odeur de la peau de ta rotule, sous laquelle l’ingénieuse capsule articulaire sécrète son huile glissante! Laisse- moi toucher dévotement de ma bouche l’arteria femoralis qui bat au front de la cuisse et qui se divise plus bas en les deux artères du tibia! Laisse-moi ressentir l’exhalation de tes pores et tâter ton duvet, image humaine d’eau et d’albumine, destinée pour l’anatomie du tombeau, et laisse-moi périr, mes lèvres aux tiennes! Não abriu os olhos, depois de ter terminado de falar. Permaneceu sem se mover, com a cabeça deitada para trás, estendendo as mãos com a lapiseira de prata, estremecendo e vacilando sobre os joelhos. Ela disse: – .Tu es en effet un galant qui sait solliciter d’une manière profonde, à l’allemande. E lhe pôs na cabeça o gorro de papel. – Adieu, mon prince Carnaval! Vous aurez une mauvaise ligne de fièvre ce soir, je vous le prédis. Com essas palavras, resvalou a cadeira, deslizou pelo tapete, rumo à porta, sob cujo umbral hesitou um instante, meio voltada, levantando um dos braços nus, com a mão a repousar no gonzo. Por cima do ombro disse baixinho: – N’oubliez pas de me rendre mon crayon. E saiu. CAPITULO VI Transformações Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – onipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, “traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo. qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repetese constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas! Hans Castorp ventilava intimamente esses problemas e outros semelhantes. Desde que chegara ali em cima seu cérebro sempre se mostrara disposto a esse tipo de indiscrições e sutilezas; é possível que certa volúpia sinistra, conquanto poderosa, expiada nesse meio tempo, o tenha preparado especialmente para isso, despertando nele o audacioso desejo de empreender tais especulações. Interrogava-se a si próprio, interrogava o bom Joachim, interrogava o vale coberto desde tempos imemoriais com espessa neve, se bem que não pudesse esperar de nenhuma dessas instâncias qualquer coisa parecida com uma resposta, sendo difícil dizer qual dentre os três era o menos capacitado para lhe satisfazer a curiosidade. Se dirigia a si mesmo essas perguntas, era justamente por não encontrar resposta alguma. Quanto a Joachim, era quase impossível interessálo por essas coisas; pois, como Hans Castorp o expressara certa noite em francês, o primo não pensava noutra coisa a não ser em regressar à planície e fazer-se soldado. Com essa esperança, cuja realização ora parecia próxima, ora se distanciava maliciosamente, Joachim vivia travando um duelo que aos poucos se tornara encarniçado. Recentemente se mostrava inclinado a decidi-lo por meio de um golpe de violência. Sim, o bondoso, o paciente, o honrado Joachim, para o qual a disciplina e o cumprimento do serviço representavam a vida, sucumbira a tendências rebeldes. Insurgia-se contra a “escala de Gaffky”, aquele sistema de exame mediante o qual verificavam e designavam lá no laboratório do subsolo – no “labor”, como se costuma chamá-lo – o grau em que o enfermo estava infeccionado pelos bacilos, conforme estes apareciam na matéria analisada apenas isoladamente ou em enormes quantidades. Desta forma, o coeficiente da escala de Gaffky podia ser mais ou menos elevado, e tudo dependia dele, que indicava inequivocamente as possibilidades de cura com que o enfermo teria de contar. Não era difícil determinar, segundo essa escala, o número de meses ou de anos que certo doente deveria ainda permanecer ali em cima, desde a “visita de médico”, de apenas meio ano, até o veredicto de “prisão perpétua”, que em muitos casos enunciava muito pouco quanto à sua duração real. Era, pois, contra a referida escala de Gaffky que se rebelava Joachim; francamente renegava toda fé em sua autoridade; não o fazia de modo ostensivo, diante dos seus “superiores”, mas na presença do primo e até mesmo à mesa. – Estou farto disso. Não me deixarei iludir por mais tempo! – disse em voz alta, numa dessas ocasiões, enquanto o sangue lhe subia ao rosto bronzeado. – Faz quinze dias, eu tinha Gaffky número 2, uma bagatela, e as mais risonhas perspectivas; e hoje tenho 9, estou literalmente infestado, e nem se pode pensar na planície. Que o diabo compreenda essas coisas! Isto é insuportável. Lá em cima, na Schatzalp, há um homem, um camponês grego; foi mandado da Arcádia por um agente; é um caso sem esperança, tuberculose galopante, e o exitus pode produzir-se de um dia para outro; mas nunca na vida esse homem teve bacilos no esputo. Por outro lado, aquele gordo capitão belga que partiu curado, quando cheguei aqui, tinha Gaffky número 10; os bacilos iam pululando nele, e todavia tinha apenas uma pequena caverna. Que me deixem em paz com Gaffky! Eu vou fazer o ponto final; volto para casa, mesmo que isso me custe a vida. – Assim falou Joachim, e todos ficaram consternados, quando viram esse jovem pacato e comedido em tal estado de revolta. Hans Castorp, ao ouvir como o primo ameaçava abandonar tudo e regressar à planície, não pôde senão lembrar-se de algumas palavras que certa pessoa pronunciara em francês. Mas guardou silêncio. Que mais deveria ser feito? Arvorar-se diante do primo em modelo de paciência, como fazia a Srª. Stöhr, que realmente exortava Joachim a que deixasse essa atitude de obstinação blasfema, que se resignasse humildemente e se guiasse pelo exemplo da lealdade com que ela, Karoline, perseverara ali em cima, renunciando com suma força de vontade a retomar as suas tarefas de dona-de-casa em Cannstatt, a fim de devolver qualquer dia a seu marido uma esposa completa e definitivamente curada? Não, a isso não se atrevia Hans Castorp, tanto mais que desde o carnaval tinha a consciência pesada com relação a Joachim. Isto é, sua consciência dizia-lhe que o primo devia considerar certos fatos – de que eles não falavam entre si, mas que Joachim indubitavelmente não ignorava – como uma espécie de traição, de deserção e de infidelidade, no que se refere a um par de olhos redondos e castanhos, a uma pouco justificada mentalidade risonha, – e a um perfume de flor de laranjeira a cujos efeitos Joachim se via exposto cinco vezes por dia, mas que afrontava austera e decentemente, baixando os olhos para o prato... Até na resistência muda que Joachim lhe opunha às especulações e reflexões sobre o “tempo”, Hans Castorp pensava encontrar vestígios dessa pudicícia militar, que continha uma reprovação dirigida à sua própria consciência... E quanto ao vale hibernal, sob a espessa camada de neve, esse vale ao qual Hans Castorp, da sua excelente espreguiçadeira, endereçava as mesmas perguntas metafísicas – aqueles picos, cimos, vertentes, bosques marrons, verdes ou avermelhados, quedavam-se no meio do tempo, silenciosos, envoltos pelo tempo dessa terra no seu fluxo calmo, ora resplandecentes no profundo azul do céu, ora escondidos pelas brumas, ora abrasados, nas suas regiões mais altas, pelo clarão rubro do sol poente, ora cintilando num brilho duro de diamantes sob o feitiço de uma noite de luar – mas sempre cobertos de neve, desde havia seis meses imemoriais, embora decorridos num abrir e fechar de olhos. Todos os pensionistas declaravam que já não podiam suportar aquela neve, que lhes repugnava, e que as suas necessidades, nesse sentido, já tinham sido satisfeitas durante o verão. E agora essas quantidades de neve, todos os dias – montões de neve, almofadões de neve, encostas de neve —, isso ultrapassava as forças humanas, era veneno para o espírito e a alma. E eles punham óculos de cor, verdes, amarelos, vermelhos, para poupar os olhos, mas sobretudo para proteger o coração. Fazia então seis meses que o vale e as montanhas, estavam ocultos sob o manto de neve? Fazia até sete! O tempo progride enquanto contamos a história – o nosso tempo que dedicamos à narrativa, mas também aquele tempo longínquo que Hans Castorp e seus companheiros de infortúnio passavam na neve lá de cima. E esse tempo continuava trazendo consigo transformações. Tudo estava bem encaminhado para tornar realidade o que Hans Castorp, na terça-feira de carnaval, durante o regresso de, Davos-Platz, antecipara em palavras precipitadas, para a maior indignação do Sr. Settembrini. Verdade é que o solstício do verão ainda não se achava iminente, mas a Páscoa já passara pelo vale branco, o mês de abril ia avançando, e a vista sobre o Pentecostes desdobrava-se livre; em breve começaria a primavera, com o degelo. Não se derreteria toda a neve; nos cumes ao sul, nas gretas dos rochedos da cordilheira rética, ao norte, sempre haveria neve, sem falar daquela que cairia nos próprios meses de verão, mas se fundiria imediatamente. Não obstante, o transcurso do ano prometia inovações decisivas para dentro de pouco tempo. Pois, desde aquela noite de carnaval, em que Hans Castorp pediu emprestado a Mme. Chauchat um lápis, que devolveu mais tarde, para receber em troca, a seu pedido, um outro objeto, uma lembrança, que levava consigo, no seu bolso – desde aquela noite já tinham escoado seis semanas, duas vezes mais do que Hans Castorp primitivamente pretendera passar ali em cima. Com efeito, seis semanas haviam transcorrido desde a noite em que Hans Castorp travara conhecimento com Clávdia Chauchat e voltara a seu quarto muito mais tarde do que Joachim, o primo consciente de seus deveres. Seis semanas, desde o dia seguinte, que acarretara a partida de Mme. Chauchat, sua partida interina, sua viagem temporária a Daghestan, lá muito longe, no leste, ainda além do Cáucaso. Essa partida tinha caráter provisório; tratava-se apenas de uma ausência por enquanto; Mme. Chauchat tencionava voltar, não se sabia quando, mas qualquer dia estaria de regresso, voluntariamente ou malgrado seu – de tudo isso guardava Hans Castorp afirmações diretas e verbais, proferidas, não durante o diálogo em língua estrangeira que acabamos de relatar, senão no lapso intermediário que, de nossa parte, deixamos transcorrer em silêncio, o lapso durante o qual interrompemos o curso ligado ao tempo da nossa narrativa e admitimos que reinasse exclusivamente o tempo em si. Em todo caso recebera o jovem essas afirmações reconfortantes, antes de voltar ao quarto número 4; pois, no dia seguinte, não trocara mais nenhuma palavra com Mme. Chauchat; mal chegara a vê-la; olhara-a duas vezes de longe: uma vez durante o almoço, quando ela, trajando uma saia de casemira azul e um casaquinho de lã branca, se dirigira à sua mesa, a passo silencioso, cheio de graça, após ter fechado com estrondo a porta envidraçada; nessa ocasião, o coração de Hans Castorp pulsara até a garganta, e somente a severa vigilância que lhe devotava a Srta. Engelhart impedira-o de esconder o rosto entre as mãos... E a segunda vez dera-se às três da tarde, quando da partida de Mme. Chauchat, à qual Hans Castorp, propriamente falando, não assistira, mas que observara de uma janela do corredor, que dava para a rampa do sanatório. Esse acontecimento desenrolara-se da mesma forma que Hans Castorp, durante a sua estadia ali em cima, já tivera diversas oportunidades de ver. O trenó ou a carruagem parava na rampa; o cocheiro e o criado amarravam as bagagens; diante do portão aglomeravam-se pensionistas do sanatório, os amigos de quem regressava, curado ou não, à planície para ali viver ou morrer, ou simplesmente pessoas que deixavam de cumprir com os seus deveres de regime, para presenciar a ocorrência; um funcionário da “administração”, de sobrecasaca, e às vezes os próprios médicos, estavam presentes; por fim se apresentava a pessoa que partiria, quase sempre de rosto radiante, saudando, condescendentemente, os curiosos que a rodeavam e que permaneceriam no lugar, e era visível que a aventura iminente lhe aumentava de modo poderoso a vitalidade... Dessa vez, quem saíra do edifício fora Mme. Chauchat, risonha, carregada de flores, envolta num comprido abrigo de viagem, de uma fazenda felpuda, com gola de pele, e usando um enorme chapéu. Acompanhava-a o Sr. Buligin, seu compatriota de peito sumido, que faria parte da viagem na sua companhia. Também ela parecia cheia de animação alegre, como todos os que partiam – devido à simples perspectiva de uma mudança de existência, quer se viajasse com autorização do médico, quer se interrompesse a estadia em virtude de um tédio desesperado, com a consciência inquieta, e por própria conta e risco. Mme. Chauchat tinha as faces coradas; tagarelava sem cessar, provavelmente em russo, enquanto alguém lhe agasalhava os joelhos com um cobertor de peles... Não somente os patrícios e os companheiros de mesa de Mme. Chauchat, mas também grande número de outros pensionistas tinham comparecido ao bota-fora. O Dr. Krokowski, esboçando um sorriso enérgico, mostrava os dentes amarelos em meio à barba. Chegavam cada vez mais flores. A tia-avó ofereceu à viajante uns “confeitos”, espécie de marmelada russa. A professora estava presente, e também o moço de Mannheim – este a certa distância, espiando melancolicamente; seus olhos aflitos, resvalando ao longo da fachada, descobriram Hans Castorp junto à janela do corredor, e por alguns instantes fixaram nele o olhar turvo... O Dr. Behrens deixou de aparecer. Evidentemente já se despedira da viajante em outra ocasião, num ambiente mais particular... Em seguida, entre acenos e aclamações da assistência, os cavalos puseram-se em movimento, e, enquanto o avanço do trenó fazia o corpo de Mme. Chauchat reclinar-se no espaldar, seus olhos oblíquos percorreram mais uma vez, sorrindo, toda a extensão do edifício do Berghof; durante uma fração de segundo detiveram-se sobre o rosto de Hans Castorp... Pálido, o jovem que ficava atrás dirigiu-se a toda a pressa ao seu quarto, onde assomou na sacada, para ver lá de cima, mais uma vez, o trenó que, com os guizos tilintando, deslizava estrada abaixo, em direção à “aldeia”; depois se deixou cair numa cadeira e tirou do bolso do casaco a lembrança que recebera, o penhor que desta vez não consistia em lasquinhas de madeira avermelhada, mas sim numa chapinha de vidro, tarjada de preto, que devia ser mantida contra a luz para que se enxergasse alguma coisa: o retrato interno de Clávdia, que não mostrava o rosto, senão o delgado esqueleto do seu busto, envolto, de um modo transparente e espectral, na suave forma da carne, e também deixava perceber os órgãos da cavidade torácica... Quantas vezes não contemplara Hans Castorp esse retrato, quantas vezes não o apertara aos lábios, no curso do tempo que decorrera desde então, trazendo consigo transformações! O tempo acarretara, por exemplo, a sua adaptação a uma vida levada ali em cima na ausência de Clávdia Chauchat, separada dele por um vasto espaço. Essa adaptação viera mais depressa do que se poderia imaginar: o tempo, nessas alturas, tinha um caráter especial e parecia feito para produzir hábitos, ainda que fosse apenas o hábito de não se habituar. O estrondo da porta envidraçada, ao começo das cinco refeições por demais opulentas, já não era de se esperar, e de fato não se repetiu. Em outros lugares, a uma enorme distância, Mme. Chauchat batia agora as portas – manifestação ligada e mesclada à sua índole e à sua doença de modo semelhante àquela relação que existe entre o tempo e os corpos no espaço: talvez toda a sua enfermidade constasse disso e de nada mais... Mas ela, embora invisível e distante, permanecia presente, sem ser vista, no espírito de Hans Castorp; era o gênio do lugar, que o jovem conhecera e possuíra numa hora nefasta, cheia de doçura e de pecado, hora incompatível com as pacatas cançõezinhas da planície. E era o retrato espectral desse gênio o que ele levava na altura do coração tão violentamente torturado fazia nove meses. Durante essa hora, seus lábios trêmulos haviam balbuciado muita coisa extravagante, ora num idioma estrangeiro, ora na sua língua materna, falando quase inconscientemente, numa voz meio apagada. Proferira ele propostas, sugestões, projetos e intentos insensatos, que, com toda a razão, não tinham encontrado aprovação nenhuma. Quisera acompanhar o gênio para além do Cáucaso, segui-lo, esperar por ele no lugar que os seus caprichos de nômade escolhessem para o próximo domicílio, nunca mais se separar dele; e muitas outras idéias irresponsáveis da mesma qualidade. O que o nosso jovem insignificante guardava daquela hora de intensa aventura era precisamente o referido penhor espectral e a possibilidade – que tocava as raias do provável – de que Mme. Chauchat voltasse a Davos para uma quarta estadia, mais cedo ou mais tarde, conforme o decidisse a doença que lhe proporcionava a sua liberdade. Mas, fosse cedo ou tarde – e também isso fora dito na hora da despedida —, em todo caso se acharia Hans Castorp então bem longe, desde muito tempo; seria ainda mais difícil suportar o sentido desdenhoso dessa profecia, se não se pudesse ponderar que certas coisas não são vaticinadas para se realizar, mas precisamente na intenção contrária, como uma espécie de sortilégio destinado a evitar-lhes a realização. Profetas desse gênero escarnecem o futuro, predizendo-lhe como se passará, para que tenha vergonha de tomar realmente o rumo anunciado. E se o gênio, no decorrer da conversa relatada e fora dela, chamara Hans Castorp de joli bourgeois au petit endroit humide, o que representava, pouco mais ou menos, uma tradução das palavras de Settembrini sobre o “filho enfermiço da vida”, era o caso de se perguntar qual dos dois elementos dessa mistura da sua natureza seria o mais forte, o bourgeois ou o outro... Além do mais, o gênio não levara em conta que ele próprio já se fora e voltara diversas vezes, de maneira que Hans Castorp também poderia estar de volta no momento oportuno, ainda que, na verdade, se detivesse ali em cima pelo único motivo de não ter necessidade de voltar ali. Para ele, como para muitos outros pensionistas, era justamente essa a razão da sua permanência. Uma das profecias irônicas daquela noite de carnaval acabava de tornar-se realidade: Hans Castorp teve uma papeleta de temperatura bastante feia; a curva subia acentuadamente, formando um pico elevado que ele registrara com sensação solene; depois de uma ligeira queda prolongavase numa espécie de planalto um tanto ondulado, que se mantinha constantemente acima do nível das suas temperaturas habituais. Tratava-se de uma temperatura anormal, cuja elevação e persistência, segundo a opinião do Dr. Behrens, não era explicável pelos sintomas encontrados nos pulmões de Hans Castorp. – Evidentemente, meu amigo, o senhor está mais intoxicado do que se podia esperar da sua prezada pessoa – disse o médico. – Hum! Vamos experimentar as injeções. Isso lhe fará bem. Dentro de três ou quatro meses se sentirá como peixe na água, se a coisa correr conforme as previsões deste seu criado. – Daí sucedeu que Hans Castorp tinha que se apresentar, duas vezes por semana, logo após o passeio da manhã, ao laboratório, para tomar a sua injeção. Ambos os médicos, ora um, ora outro, ministravam o remédio, mas o conselheiro fazia-o com perícia, de um só golpe, esvaziando a seringa no próprio momento da picada. De resto não se preocupava com o lugar em que picava, de maneira que às vezes resultava uma dor infernal, e o ponto acometido permanecia por muito tempo duro e ardente. Além disso a injeção atacava fortemente o organismo em geral, abalando o sistema nervoso à maneira de um violento esforço desportivo. Isso e também a elevação momentânea da temperatura, que o remédio produzia, atestavam-lhe o poder que possuía. Era o que o conselheiro predissera e o que acontecia, segundo a regra e sem que o fenômeno anunciado desse motivo para queixas. A história toda levava apenas um instante, quando, finalmente, chegava a vez da pessoa; num ápice recebia-se o contra veneno sob a pele da coxa ou do braço. Mas, em certas ocasiões, quando o Dr. Behrens se achava bem disposto e não entristecido pelo tabaco, era possível entabular, durante a injeção, uma rápida palestra com ele, que Hans Castorp procurava dirigir, pouco mais ou menos, do seguinte modo: – Lembro-me com o maior prazer daquela agradável hora de café que passamos na sua casa, senhor conselheiro, no outono do ano passado. Ainda ontem, ou talvez um pouco antes, falei com meu primo a esse respeito... – Gaffky 7 – disse o médico. – É o último resultado. O rapaz decididamente não faz menção de se desintoxicar. E contudo nunca me suplicou tanto como agora, nunca insistiu tanto comigo em ir-se embora, para brandir o sabre. Esse criançola! Anda choramingando por causa dos seus quinze meses, como se fossem séculos que ele desperdiça aqui! Quer partir de qualquer maneira. Então já lhe disse a mesma coisa? O senhor deveria falar-lhe da sua parte, seriamente e com firmeza. Esse sujeito vai se arruinar totalmente, ao engolir antes do tempo a poética cerração de vocês, com aquilo que ele tem à direita, em cima. Um ferrabrás como ele não precisa de muita massa cinzenta, mas o senhor, como homem mais circunspecto e como civil de formação burguesa, tem a obrigação de fazê-lo entrar no juízo, antes que ele cometa alguma loucura. – É o que faço, senhor conselheiro – respondeu Hans Castorp, sem deixar de dirigir o rumo da conversa. – Faço isso muitas vezes, quando ele procura rebelar-se, e eu acho que Joachim voltará à razão. Mas os exemplos que a gente tem diante dos olhos nem sempre são os melhores. É isso o que está ruim. A cada instante há alguém que parte; partem para a planície, por iniciativa própria, sem verdadeira autorização, e no entanto com uma alegria festiva, como se a partida fosse justificada. Isso exerce uma certa sedução sobre caracteres fracos. Faz pouco tempo, por exemplo... deixe ver quem partiu recentemente... Uma senhora, da mesa dos “russos distintos”, Mme. Chauchat. Ouvi dizer que ela viajou para Daghestan. Bem, Daghestan, eu não conheço o clima daquela região. Pode ser que seja menos desfavorável do que o nosso ar da praia. Mas em todo caso é um país plano, do nosso ponto de vista, embora geograficamente talvez seja montanhoso; não sou muito forte nessas coisas. Como é possível viver lá embaixo sem estar curado, num país onde faltam os conceitos básicos e ninguém tem uma idéia das nossas regras nem sabe quando se deve observar o repouso ou tomar a temperatura? Aliás, ela tenciona voltar de qualquer jeito, como me disse ocasionalmente... Mas, afinal, por que chegamos a falar dela?... Pois é, aquele dia encontramos o senhor no jardim; não é, doutor? Lembra-se ainda? Quer dizer, o senhor nos encontrou a nós, quando estávamos sentados num banco – sei ainda qual foi – e fumávamos. Ou melhor, quem fumava era eu, pois meu primo não fuma, inexplicavelmente. E o senhor também estava fumando. Então oferecemos um ao outro as nossas marcas preferidas; lembro-me perfeitamente. O seu Brasil me agradou muitíssimo, embora seja preciso tratá-lo como a um potro, com prudência; senão, acontece alguma coisa como aquela que se passou com o senhor depois dos dois pequenos Havanas, quando esteve a ponto de dançar a sua última dança. A gente pode gracejar sobre aquilo, porque tudo terminou bem... Recentemente encomendei em Bremen mais algumas centenas de Maria Mancini. Estou muito acostumado a essa marca, que me é simpática sob todos os aspectos. É verdade que o frete e a alfândega a encarecem sensivelmente, e se o senhor me aumentar de novo o prazo da minha permanência, sou capaz de me converter ao fumo daqui. Nas vitrines se vêem charutos muito bonitos... E depois tivemos oportunidade de ver os seus quadros; lembro-me como se fosse hoje. Gostei sumamente dos seus trabalhos. Fiquei mesmo surpreendido ao ver quanta coisa o senhor consegue fazer com tintas a óleo. Eu nunca me atreveria a tanto. Foi nessa ocasião que vimos também o retrato de Mme. Chauchat, com a pele magistralmente reproduzida. Francamente, senti-me entusiasmado. Naquela época ainda não conhecia o modelo, ou apenas de vista e de nome. Depois, pouco antes da sua partida, cheguei a conhecê-la pessoalmente. – Não diga! – respondeu o conselheiro áulico. Era a mesma resposta que dera – o leitor nos permita esse retrospecto – quando Hans Castorp, antes do primeiro exame médico, lhe comunicara que tinha um pouco de febre. E não disse mais nada. – Sim, senhor, conheci-a pessoalmente – confirmou Hans Castorp. – Sei por experiência que não é fácil entabular relações com pessoas estranhas aqui em cima, mas entre Mme. Chauchat e eu a coisa arranjou-se, casualmente, à última hora. Saiu uma palestra que... – Hans Castorp acabava de receber a injeção, e aspirando o ar por entre os dentes, deu um chiado de dor. – Fff! Dessa vez tenho certeza, doutor, que o senhor acertou num nervo importantíssimo. Ah! sim, está doendo barbaramente. Muito obrigado, um pouquinho de massagem faz bem... Pois é, saiu uma palestra que fez com que nos conhecêssemos melhor. – Sim? E então? – perguntou o conselheiro, sacudindo a cabeça, com cara de quem espera uma resposta cheia de elogios e põe na pergunta, de antemão, a confirmação dos esperados elogios, baseada na experiência própria. – Acho que o meu francês claudicou bastante – esquivou-se Hans Castorp. – Afinal de contas, donde saberia eu falar melhor? Mas, no momento preciso, as palavras estão à mão, de maneira que conseguimos entender-nos mais ou menos bem. – Não duvido. E então? – voltou o Conselheiro a indagar, acrescentando por sua conta: – Bonitinha, não é? Hans Castorp, abotoando o colarinho, achava-se de pé, com as pernas e os cotovelos escancarados, e com o rosto levantado para o teto. – No fundo é uma velha história – disse. – Acontece nas estações de cura que duas pessoas ou até duas famílias vivam durante semanas sob o mesmo teto e contudo completamente distanciadas. Um dia travam conhecimento, apreciam-se sinceramente, e ao mesmo tempo ficam sabendo que uma delas está a ponto de partir. Imagino que tais ocorrências deploráveis se passem freqüentemente. Num caso desses, a gente gostaria de conservar, pelo menos, um certo contato, ter notícias um do outro, quero dizer, por correspondência. Mas Mme. Chauchat... – Ué... ela não quer? – riu-se o conselheiro jovialmente. – Isso mesmo. Ela não quis saber disso. Será que ela também não escreve ao senhor, assim de vez em quando? – Que idéia! – respondeu Behrens. – Ela nem pensa nisso. Primeiramente por preguiça, e além disso, em que língua escreveria? Eu não sei ler russo. Arranho-o um pouco, em caso de necessidade, mas não leio nem uma palavra. E o senhor tampouco, não é? Bem, e quanto ao francês ou ao alemão, nossa gatinha sabe miá-los com muita graça, mas para escrever se veria em apuros. Não se esqueça da ortografia, meu amigo! Sim, senhor, com isso temos de nos conformar. Mas ela volta de vez em quando. É uma questão de técnica ou de temperamento, como eu já lhe disse. Uns partem às vezes e precisam voltar mais dia menos dia, enquanto outros ficam logo o tempo suficiente para nunca mais terem necessidade de voltar. Se o seu primo partir agora – não deixe de lhe dizer isso bem claramente – é possível que o senhor ainda esteja aqui para assistir às solenidades do regresso dele. – Mas, doutor, quanto tempo acha o senhor que eu... – Que o senhor? Que ele! Acho que ele ficará menos tempo lá embaixo do que passou aqui em cima. Esta é a opinião da minha humilde pessoa, e seria muita amabilidade sua se a transmitisse a ele. Era aproximadamente nesses termos que se desenrolava esse tipo de conversa, dirigidas com astúcia por Hans Castorp, embora com um resultado entre nulo e ambíguo. Quanto ao tempo que era preciso permanecer ali para presenciar a volta de um enfermo partido prematuramente, a resposta fora equívoca, e, no que se refere a certa pessoa desaparecida, fora até nula. Hans Castorp nada ouviria dela, enquanto os separasse o mistério do espaço e do tempo; ela não lhe escreveria, e ele tampouco encontraria uma oportunidade para fazê-lo... Mas, refletindo bem, como poderia ser de outra forma? Não fora uma idéia muito pedante e burguesa da sua parte essa de sugerir uma troca de cartas, ao passo que outrora considerara desnecessário e nem sequer desejável que se falassem? E lhe “falara” ele realmente, no sentido que o Ocidente culto dá a essa palavra? Falara-lhe naquela noite em que estivera a seu lado? Não se expressara apenas numa língua estrangeira, como que num sonho, e de modo pouco civilizado? Para que então escrever em papel de carta ou cartões-postais, como os dirigia de vez em quando ao pessoal lá de casa, na planície, a fim de relatar as vicissitudes dos resultados dos exames médicos? Não tinha Clávdia razão de se sentir desobrigada de escrever, devido à liberdade que a doença lhe outorgava? Falar, escrever – deveras um assunto eminentemente humanista e republicano, um assunto para o mestre Brunetto Latini, que redigira aquele livro sobre as virtudes e os vícios, doutrinara os florentinos e lhes ensinara a discursar e a governar a sua república em conformidade com as regras da política... Com isso, os pensamentos de Hans Castorp começaram a rumar para Lodovico Settembrini, e ele corou, assim como fizera certa vez quando o escritor entrara de súbito no seu quarto de doente, acendendo repentinamente as luzes. Sem dúvida, Hans Castorp poderia ter dirigido ao italiano também as suas perguntas relativas aos enigmas transcendentais, fosse apenas para provocá-lo ou para resmonear, sem a esperança de receber uma resposta do humanista, que só se preocupava com os interesses terrestres da vida. Mas, desde o baile de carnaval e a cena emocionada com que Settembrini saíra da saleta de música, as relações entre Hans Castorp e ele haviam-se entibiado até certo ponto, o que se explicava pela consciência pesada de um e pelo profundo agastamento pedagógico do outro. A conseqüência era que se evitavam mutuamente e, durante semanas inteiras, não trocaram palavra alguma. Continuava Hans Castorp a ser um “filho enfermiço da vida” aos olhos do Sr. Settembrini? Não, provavelmente o desenganara este homem que procurava a moral na virtude e na razão... E Hans Castorp punha-se a recalcitrar com relação ao Sr. Settembrini; cerrava o cenho e franzia os lábios cada vez que se encontravam, enquanto o olhar negro e brilhante do italiano pousava nele numa reprovação silenciosa. Não obstante, essa birra se desfez imediatamente, quando o literato, semanas após, voltou a lhe dirigir a palavra, se bem que o fizesse apenas de passagem e sob a forma de alusões mitológicas, cuja compreensão requeria certa cultura ocidental. Foi depois da refeição; encontraram-se perto da porta envidraçada que já não se fechava com estrondo. Ao passar pelo jovem, e na intenção de não se demorar junto dele, Settembrini disse: – Pois então, engenheiro, gostou da romã? Hans Castorp sorriu, satisfeito, mas um tanto acanhado. – Como?... Que é que o senhor quer dizer, Sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com soda. Achei muito doce. O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou: – Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do Inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre. E prosseguiu no caminho, com as suas eternas calças claras de tecido xadrez, deixando atrás Hans Castorp, que deveria sentir-se “trespassado” por essas palavras cheias de significação. E, com efeito, o jovem se ressentiu até certo ponto, posto que, entre irritado e divertido em virtude de tamanha pretensão, murmurasse de si para si: – Latini, Carducci, spaghetti, deixe-me em paz! Mesmo assim, essas primeiras palavras que lhe haviam sido concedidas, tornaram-no muito feliz. Pois, apesar do troféu, da macabra lembrança que ele levava sobre o coração, afeiçoara-se ao Sr. Settembrini, a cuja presença ligava grande importância, e a idéia de se ver para sempre rejeitado e abandonado pelo italiano indubitavelmente lhe pesaria na alma de modo mais opressivo e mais cruel do que os sentimentos de um aluno que rodasse nos exames e gozasse das vantagens da ignomínia, à maneira do Sr. Albin... Contudo, não se atreveu a entabular, da sua parte, uma conversa com o seu mentor, e este deixou passar outras semanas inteiras antes de entrar novamente em contato com seu discípulo enfermiço. Isso sucedeu quando as ondas marinhas do tempo, rolando no seu ritmo eternamente invariável, haviam trazido a Páscoa, que foi celebrada no Berghof, assim como eram observadas escrupulosamente todas as etapas e todos os marcos miliários, para se evitar a monotonia confusa. Na hora do café da manhã cada pensionista encontrou ao lado do talher um tufo de violetas; no segundo café da manhã, todos receberam ovos coloridos, é a mesa festiva do almoço estava enfeitada de coelhinhos de açúcar e chocolate. – Já fez alguma vez uma viagem por mar, tenente, ou o senhor, engenheiro? – perguntou o Sr. Settembrini, quando, depois da refeição, com o palito entre os dentes, se aproximou da mesinha dos primos, no vestíbulo. Como a maioria dos pensionistas, tinham abreviado, nesse dia, de um quarto de hora o repouso principal, para instalar-se diante de uma xícara de café e de um cálice de conhaque. – Esses coelhinhos e esses ovos coloridos relembram-me a vida num vapor grande, diante de um horizonte vazio há semanas, no deserto salino. Tal vida se passa sob condições cujo perfeito conforto não consegue fazer esquecer, senão superficialmente, a sua natureza monstruosa, ao passo que nas zonas mais profundas da alma a consciência dela continua doendo em forma de um secreto horror... Reencontro aqui o espírito com que, a bordo de uma arca dessas, as festas da terra ferma são piedosamente observadas. Refletem-se nisso as reminiscências de pessoas que vivem fora do mundo, recordações sentimentais do calendário... Na terra firme seria hoje a Páscoa, não é? Na terra firme celebram hoje o aniversário do rei – e nós também o fazemos, o melhor que podemos. Nós também somos criaturas humanas... Não tenho razão? Os primos concordaram com ele. Realmente, era assim. Hans Castorp, comovido pelo fato de o italiano ter falado com ele, e instigado pelo remorso, elogiou a observação em altos brados. Achou-a espirituosa, magnífica, literária, e fez tudo para lisonjear o Sr. Settembrini. Indiscutivelmente, era apenas de um modo superficial – assim como o Sr. Settembrini acabava de expressar-se com tanta plasticidade – que o conforto de um transatlântico fazia olvidar as circunstâncias e o seu caráter perigoso. Se ele podia tomar a liberdade de desenvolver algumas idéias por sua conta – havia nesse conforto perfeito até uma certa provocação, algo semelhante àquilo que os antigos chamavam hybris (para agradar ao seu interlocutor, chegou a citar os próprios antigos!) Mencionou também a altivez do Rei Baltasar e outras coisas nefandas. Por outro lado, porém, o luxo a bordo envolvia – usou mesmo o verbo “envolver” – um grande triunfo do espírito humano e da honra humana. O homem, ao transferir esse luxo e esse conforto para as águas coroadas de espuma salgada e ao mantê-lo ali, audaciosamente, plantava, por assim dizer, o pé na cerviz dos elementos, das potências bravias, e isso envolvia a vitória da civilização humana sobre o caos, se lhe era permitido servir-se dessa expressão... O Sr. Settembrini escutou-o atentamente, com os pés e os braços cruzados, enquanto, num gesto gracioso, cofiava com o palito o bigode sinuoso. – É interessante – disse. – O homem não pode fazer observações gerais de certa extensão, a respeito de qualquer assunto que seja, sem se trair inteiramente, sem depositar nelas, malgrado seu, toda a sua personalidade, sem representar, de alguma forma parabólica, o tema fundamental e o problema primitivo da sua vida. É isso o que acaba de lhe acontecer, engenheiro. Aquilo que o senhor disse agora brotou de fato do fundo de seu Eu e expressou também, de um modo poético, o estado momentâneo desse Eu: continha a fase experimental... – Placet experiri – riu-se Hans Castorp, pronunciando o “c” à italiana e sacudindo a cabeça afirmativamente. – Sicuro, se se trata, no caso em apreço, da paixão respeitável de explorar o mundo e não de mera licenciosidade. O senhor mencionou a hybris. Serviu-se desse termo. Mas a hybris da razão em face das potências tenebrosas é a mais alta humanidade, e quando atrai sobre si a vingança de divindades ciumentas, per esempio, quando a arca de luxo vai a pique, achamo-nos sempre à frente de um fim honroso. Também a façanha de Prometeu era hybris, e as torturas que ele padeceu no penedo da Cítia são consideradas por nós o mais sagrado dos martírios. Mas que se deve dizer daquela outra hybris, da perdição na experiência libidinosa, feita com as potências contrárias à razão e hostis ao gênero humano? Há honra nelas? Pode haver honra em tal conduta? Si o no? Hans Castorp mexia a colher na xícara, se bem que esta não contivesse mais nada. – Engenheiro, engenheiro! – prosseguiu o italiano, meneando a cabeça, e a mirada dos olhos negros fixou-se pensativamente no espaço. – Não teme o senhor o furacão do segundo círculo do Inferno, o furacão que agita e sacode os pecadores da carne, os infelizes que sacrificaram a razão à volúpia? Gran Dio! Quando tenho a visão do senhor varrido pelo vendaval, voando de cá para lá, de cabeça para baixo, sinto-me com vontade de cair ao chão, de tanto pesar, assim como cai um cadáver... Riram-se, contentes de ouvi-lo gracejar e dizer coisas poéticas. Settembrini, porém, acrescentou: – O senhor vai se lembrar, engenheiro, como na noite de carnaval, bebendo vinho, se despediu em certo sentido de mim. Sim, senhor, foi uma espécie de despedida. Bem, hoje é a minha vez. Tal como os senhores me vêem agora, estou a ponto de lhes dizer adeus. Vou sair desta casa. Os primos ficaram pasmados. – Não é possível. Está apenas brincando! – exclamou Hans Castorp, como o fizera numa ocasião semelhante. Estava quase tão assustado como naquele outro dia. Mas também Settembrini replicou: – Nem um pouquinho. É como digo. Além disso, o senhor já andava preparado para ouvir essa notícia. Avisei-o de que estava decidido a levantar as minhas tendas e a estabelecer-me definitivamente em qualquer parte da “aldeia”, logo que se mostrasse insustentável a minha esperança de poder voltar, dentro de um prazo mais ou menos previsível, ao mundo do trabalho. Que quer o senhor que eu faça? Esse momento chegou. É coisa certa que não me posso curar. Posso prolongar a minha vida, mas só aqui. A sentença, o veredicto final é “prisão perpétua”. O Dr. Behrens acaba de pronunciá-lo com o seu peculiar bom humor. Muito bem, tiro as conseqüências. Aluguei uma habitação. Estou tratando do transporte dos meus modestos bens terrenos e dos utensílios do meu ofício literário... Não fica longe daqui, na “aldeia”. Nós nos veremos seguidamente, não há dúvida. Não perderei o senhor de vista, mas, como habitante da mesma casa, tenho a honra de me despedir. Era essa a comunicação que Settembrini lhes fizera no domingo de Páscoa. Os primos se haviam mostrado extraordinariamente comovidos. Demorada e repetidamente falavam com o literato sobre a sua decisão e as modalidades que lhe permitiriam observar o regime também na sua morada particular; tratavam do modo de levar adiante aqueles vastos trabalhos enciclopédicos que tomara a si, a sinopse de todas as obras-primas das belas-letras sob o ponto de vista dos conflitos originados pelo sofrimento e do seu extermínio; finalmente se informaram também a respeito dos futuros aposentos do Sr. Settembrini, que se achavam na casa de um “merceeiro”, como se expressava o italiano. Esse merceeiro alugara o andar superior da sua casa a um alfaiate natural da Boêmia, que por sua vez sublocava cômodos... Essas conversas, conforme explicamos, já pertenciam ao passado. O tempo ia avançando, e desde então já trouxera consigo mais de uma transformação. Settembrini realmente deixara de morar no Sanatório Internacional Berghof, e passara-se para a casa de Lukacek, alfaiate de senhoras, onde morava fazia semanas. Sua mudança não se realizara num trenó, senão a pé. Saíra ele envolto num curto sobretudo amarelo, de mangas e gola de peles. Acompanhara-o um homem, transportando, num carrinho de mão, a bagagem literária e terrena do escritor, que fora visto afastar-se, brandindo a bengala, após ter beliscado, com o dorso de dois dedos, as faces de uma das criadas, postada junto ao portão do edifício... Como já ficou dito, o mês de abril achava-se relegado quase inteiramente – mais de três quartas partes – à sombra do passado. Verdade é que ainda reinava pleno inverno. Pela manhã, a temperatura atingia uns escassos 6 graus acima de zero, nos quartos, ao passo que fora fazia 9 abaixo. Quando se deixava o tinteiro na sacada, durante a noite, a tinta congelava-se, formando um pedaço de gelo parecido com hulha. Mas era coisa sabida que a primavera vinha se aproximando. De dia, quando brilhava o sol, já se sentia pairando no ar um suave e delicado pressentimento. O período do degelo estava iminente, e a isso estavam ligadas as transformações que, irresistivelmente, se realizavam no Berghof. Nem sequer a autoridade e a palavra viva do conselheiro eram capazes de deter-lhe a progressão, posto que combatesse o preconceito popular contra o degelo, em toda parte, nos quartos e na sala, por ocasião de exames, visitas e refeições. Vinham os pensionistas – assim perguntava – para se dedicar aos esportes de inverno, ou como enfermos, como pacientes? Por que cargas-d'água precisavam de neve, de neve gelada? Desfavorável a temporada de degelo? Era, pelo contrário, a mais favorável de todas. Comprovadamente o número de doentes acamados era menor nessa época do ano, em todo o vale, do que em qualquer outra estação. No mundo inteiro as condições climáticas para tuberculosos eram piores do que ali, no momento. Quem tivesse um pingo de juízo deveria persistir e aproveitar o efeito fortalecedor dessa fase do clima alpino. Depois, estariam imunizados contra todos os golpes e ataques do tempo, blindados contra qualquer clima do mundo, contanto que esperassem a realização da cura completa, etc. No entanto, o conselheiro falava em vão. A animosidade contra o degelo achava-se arraigada nas cabeças. A freqüência da estação de cura diminuía. Pode ser que a aproximação da primavera agitasse o coração da gente e tornasse irrequietas e ávidas de mudanças até pessoas sedentárias. Em todo caso aumentava de forma inquietante o número das partidas arbitrárias, das partidas “em falso”, e isso também do Berghof. A Srª. Salomon, de Amsterdam, por exemplo, apesar do prazer que lhe causavam os exames médicos e a subseqüente ostentação de roupa interior de rendas finas, partiu “em falso”, de um modo totalmente arbitrário, sem a mínima autorização, e não porque se sentisse melhor, senão por andar cada vez pior. O início da sua permanência ali fora muito anterior à chegada de Hans Castorp, Fazia mais de um ano que ela chegara, com uma afecção muito leve, em virtude da qual lhe tinham receitado uma temporada de três meses. Depois de quatro meses fora-lhe assegurado que estaria “boa daqui a quatro semanas”; mas, seis semanas após, já não se falava em cura. Era preciso – assim se dissera – que ela permanecesse no mínimo outros quatro meses. E dessa forma o tempo continuara a escoar-se – afinal de contas, isso não era nenhum calabouço nem uma mina siberiana. A Srª. Salomon ficara e exibira a sua mais fina roupa de baixo. Como, porém, depois do último exame, e na iminência do degelo, lhe houvessem falado de um novo acréscimo de cinco meses, por causa de síbilos à esquerda, em cima, e indiscutíveis anomalias do ruído respiratório abaixo da axila esquerda, perdera a paciência. Sob protesto, invectivando a “aldeia” e Davos-Platz, o famoso ar das montanhas, o Sanatório Internacional Berghof e os médicos, partira para o seu lar em Amsterdam, cidade úmida, cheia de correntes de ar. Era isso razoável? O Dr. Behrens encolheu os ombros e levantou os braços, deixando-os, em seguida, cair ruidosamente sobre as coxas. O mais tardar no outono – disse – a Srª. Salomon estaria de volta, e então seria para sempre. Teria ele razão? Já o veremos, uma vez que ainda nos acharemos por algum tempo desta terra ligados ao nosso oásis de prazeres. O caso Salomon não era, porém, o único da sua espécie. O tempo trazia consigo transformações; sempre fora assim, mas em geral isso se produzira de uma forma mais paulatina, menos escandalosa. A sala de refeições mostrava grandes lacunas, em todas as sete mesas, na dos “russos distintos” como na dos “ordinários”, nas longitudinais tanto como nas transversais. Não se podia, contudo, tirar disso uma conclusão certa a respeito do número de pensionistas da casa. Houvera também chegadas, como sempre as havia. Os quartos, talvez, continuassem ocupados, mas então se trataria de pacientes cujo estado final lhes restringia a liberdade de escolher o domicílio. Na sala de refeições, como já verificamos, faltavam muitos, que ainda não tinham perdido essa liberdade; algumas lacunas, entretanto, estavam abertas de um modo particularmente incisivo e vazio, como, por exemplo, a que deixara o Dr. Blumenkohl, que acabava de falecer. Seu rosto fora assumindo cada vez mais intensamente aquela expressão de quem tem na boca qualquer coisa de sabor repugnante; depois acamara-se definitivamente e afinal morrera – ninguém sabia precisar quando. O assunto fora tratado com a costumeira discrição. Uma lacuna! A Srª. Stöhr tinha o lugar pegado a essa lacuna e horrorizava-se disso. Por esse motivo, mudou-se para o outro lado do jovem Ziemssen, ocupando a cadeira de Miss Robinson, que recebera alta como curada, ao passo que, à sua frente, a professora, vizinha esquerda de Hans Castorp, permanecia firme em seu posto. No momento achava-se sozinha naquele lado da mesa, pois os outros três lugares estavam vagos. O estudante Rasmussen, que dia a dia se tornara mais obtuso e mais sonolento, achava-se de cama e era considerado moribundo. A tia-avó, com sua sobrinha e com Marusja, a moça dos seios opulentos, estavam em viagem – servimo-nos do termo “viagem”, como todos o faziam, uma vez que a sua volta próxima passava por fato indubitável. No outono já estariam de regresso – podiase chamar àquilo de “partida”? Muito depressa chegaria o solstício de verão, logo após o Pentecostes, que estava iminente, e, uma vez alcançado o dia mais longo, viria a rápida descida, rumo ao inverno. Numa palavra, a tia-avó e Marusja quase estavam de volta, e era melhor assim, já que a risonha Marusja absolutamente não ficaria curada e desintoxicada. A professora ouvira falar de blastomas tuberculosos que a Marusja dos olhos castanhos trazia no peito exuberante, e que já tinham sido operados diversas vezes. Quando a Srª. Engelhart mencionou isso, Hans Castorp lançou um rápido olhar a Joachim, que inclinava para o prato o rosto subitamente cheio de manchas terrosas. A alegre tia-avó dera aos comensais – isto é, aos primos, à Srª. Stöhr e à professora – um jantar de despedida no restaurante, uma comezaina com caviar, champanha e licores, durante a qual Joachim se conservara taciturno, proferindo só poucas palavras numa voz quase surda. Tanto assim que a tia-avó, com o seu espírito afetuoso, procurara confortá-lo, chegando até a tratá-lo por “tu”, em completo abandono das conveniências civilizadas. – Não há de ser nada, paizinho. Não te importes, mas come, bebe e conversa! Daqui a pouco a gente voltará – dissera ela. – Vamos todos comer, beber e falar, e não nos entregar à tristeza. Deus mandará o outono antes do que esperamos. Como vês, não há motivos para mágoas. – Na manhã do dia seguinte distribuíra, como lembrança, vistosas caixinhas de confeitos a quase todas as pessoas presentes na sala de refeições. A seguir, empreendera a viagem, em companhia das duas moças. E Joachim? Como se achava ele? Sentia-se aliviado e livre desde aquele dia, ou sofria a sua alma severas privações em face dos lugares vazios à mesa? Sua impaciência insólita e insubmissa, sua ameaça de partir sem autorização, caso continuassem a lográ-lo – tinham elas, porventura, a sua origem na ausência de Marusja? Ou explicava-se, pelo contrário, o fato de ele, por enquanto, não se ir embora e aquiescer aos elogios do degelo que o conselheiro lhe prodigalizava – explicava-se esse fato pelo outro, de que Marusja, a moça dos seios opulentos, não partira seriamente, mas sim para fazer uma simples viagenzinha, da qual estaria de regresso dentro de cinco das menores unidades de tempo que se conheciam ali em cima? Ai dele! Havia na sua conduta um pouco de tudo isso, e todas essas razões influíam igualmente sobre ela. Hans Castorp percebia-o, sem que jamais falasse com Joachim a esse respeito. Abstinha-se estritamente de mencionar o assunto, assim como Joachim evitava pronunciar o nome de outra pessoa que também se ausentara numa viagenzinha. Nesse meio-tempo, fora ocupado o lugar de Settembrini à mesa. Quem era que ali se encontrava, ao lado de uns pensionistas holandeses de apetite tão estupendo que cada um deles costumava pedir três ovos fritos, ainda antes da sopa que formava o início dos cinco pratos do jantar normal? Era Anton Karlovitch Ferge, aquele que experimentara a infernal aventura do choque pleural. Sim, o Sr. Ferge abandonara o leito; mesmo sem o pneumotórax, seu estado melhorara de tal maneira que lhe permitia passar levantado a maior parte do dia e participar das refeições, com seu bigode hirsuto e bonachão, e o grande pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial. De vez em quando, os primos conversavam com ele na sala ou no vestíbulo, e faziam também alguns dos passeios regulamentares em sua companhia, quando o acaso os associava. Sentiam uma certa simpatia por esse sofredor ingênuo, que declarava nada entender de assuntos sublimes, mas, feita essa confissão, sabia contar agradavelmente histórias relativas à fabricação de galochas e falar de regiões longínquas do Império Russo, de Samara e da Geórgia, enquanto chafurdavam, no meio da cerração, através da massa aguda de neve derretida. A essa época, os caminhos eram realmente impraticáveis; achavam-se em plena dissolução, e a bruma pairava por cima deles. Verdade é que o conselheiro afirmava não se tratar de neblina, senão de nuvens; mas isso era simples questão de palavras, segundo a opinião de Hans Castorp. A primavera ia travando uma violenta luta, que, com inúmeras recaídas no rigor do inverno, se prolongou através de meses inteiros até meados de junho. Já em março, quando brilhava o sol, mal se podia suportar o calor na sacada e na espreguiçadeira, apesar das roupas ligeiríssimas e do guarda-sol. Certas senhoras acreditavam na chegada do verão e apareciam ao café da manhã com vestidos de musselina. O seu procedimento era até perdoável em face das peculiaridades do clima alpino, que favorecia o equívoco pela confusão meteorológica das estações. Mas também havia na sua precipitação uma boa parte de visão curta e de falta de imaginação, próprias da estupidez de seres que só vivem do momento para o momento, incapazes de pensar em mudanças da situação atual; além do mais expressava-se nisso a avidez de variação e a impaciência com que devoravam o tempo. O calendário dizia: março, o que significava primavera e equivalia a verão. Por isso, os vestidos de musselina eram tirados da mala, para serem exibidos antes da entrada do outono. E de fato sobreveio uma espécie de outono. O mês de abril trouxe consigo dias sombrios, de um frio úmido, cuja chuva incessante se transformou aos poucos em neve que caía turbilhonando. Os dedos enregelavam-se na loggia; os dois cobertores de lã de camelo voltaram a prestar serviços, e pouco faltou para que se recorresse novamente ao saco de peles. A “administração” decidiu-se a reacender a calefação, e todos se queixavam de se ver esbulhados da primavera. Pelo fim do mês tudo estava oculto sob uma espessa camada de neve, mas logo surgiu o Föhn6, previsto, pressagiado pelos pensionistas mais experientes e mais sensíveis. A Srª. Stöhr, bem como a Srta. Levi, a da pele de marfim, e também a viúva Hessenfeld eram unânimes em afirmar que já o tinham pressentido, antes que se mostrasse a menor nuvem por cima dos cumes da formação de granito, lá ao sul. Em seguida, a Srª. Hessenfeld começou a demonstrar uma propensão para crises de choro, a Levi acamou-se, e a Srª. Stöhr, exibindo obstinadamente a dentadura de lebre, exteriorizava de hora em hora o supersticioso receio de uma hemoptise, em vista da crença de que o Föhn causava ou favorecia tais acidentes. Reinava um calor incrível. Desligaram a calefação. Durante a noite deixava-se aberta a porta da sacada, e, não obstante, o termômetro marcava pela manhã 11 graus no interior do quarto. Derretiam-se enormes quantidades de neve, que ia assumindo uma cor de gelo e se tornava porosa e esburacada. Os montões desfaziam-se, como se quisessem esconder-se debaixo do sol. Tudo ressumbrava, gotejava, marulhava; nos bosques se ouvia o ruído de pingos que caíam e de massas de neve que deslizavam dos galhos; as barreiras acumuladas ao longo dos trilhos, os pálidos tapetes que cobriam os prados, sumiam-se, ainda que a neve fosse por demais abundante para desaparecer depressa. Produziram-se fenômenos maravilhosos, surpresas primaveris durante os passeios obrigatórios pelo vale, espetáculos deslumbrantes, nunca vistos. Desdobrava-se um campo plano; o fundo era formado pelo cume cônico do Schwarzhorn, ainda envolto em neve, e a cuja direita se erguia, bem próxima, a geleira de Scaletta, também coberta de neve profunda. A pradaria, com um monte de feno no meio, igualmente se achava sob a neve, embora a camada já aparecesse mais fininha e mais rala, interrompida, aqui e ali, por elevações escuras de terra e perfurada em toda parte pela grama seca. Mas os andarilhos notaram a natureza irregular da camada de neve que revestia esse prado: ao longe, em direção, às encostas arborizadas, era mais espessa; à sua frente, porém, diante dos seus olhos, o capim desbotado, ressequido pelo inverno, estava apenas salpicado, pintalgado, floreado de manchas brancas... Olharam-nas mais de perto; pasmados, inclinaram-se por cima delas e verificaram que não era neve, mas flores, flores de neve, neve de flores, pequenos cálices sobre curtas hastes, alvos ou de um azul esbranquiçado; eram crocos, deveras, que haviam brotado aos milhões do solo do campo encharcado, em tal quantidade que facilmente podiam ser tomados por neve, com a qual de fato se confundiam a alguma distância. Os passeantes riam-se do seu equívoco, exultavam de alegria diante desse milagre que se realizava à vista deles, dessa adaptação imitadora, desse mimetismo graciosamente tímido por meio do qual a vida orgânica se atrevia a ressurgir. Colhiam flores, contemplavam e examinavam as delicadas formas dos cálices, enfeitavam as lapelas, levavam um ramalhete para casa e colocavam-no num copo d'água, nos seus quartos. Pois a rigidez inorgânica do vale durara muito tempo – muito tempo, embora parecesse pouco. Mas a neve de flores foi recoberta por neve autêntica, e as soldanelas azuis bem como as prímulas amarelas e vermelhas, que a substituíam, não tinham melhor sorte. Como era difícil para a primavera abrir caminho e triunfar do inverno! Dez vezes vira-se obrigada a recuar antes que se pudesse firmar nessas alturas – até a próxima irrupção do inverno, com o torvelinho branco, o vento glacial e a calefação acesa. Em princípios de maio – enquanto falávamos das flores de neve, chegou o mês de maio – era uma verdadeira tortura escrever na sacada um simples cartão-postal destinado à planície, pois os dedos ressentiam-se da umidade própria de um novembro rigoroso. As cinco ou seis árvores frondosas que existiam na região estavam despidas como as da planície 6 Vento do sul. (N. do E.) em janeiro. Chovia dias a fio; durante uma semana inteira abatiam-se as águas, e sem as qualidades reconfortantes das espreguiçadeiras do tipo usado ali em cima, teria sido extremamente duro passar numerosas horas de repouso ao ar livre, em meio ao vapor das nuvens, e com o rosto molhado, enrijecido. No fundo, porém, tratava-se de uma chuva de primavera, e quanto mais durava mais se dava a conhecer como tal. Quase toda a neve fundia-se sob o seu efeito. Já não se via branco, só aqui e ali um cinzento gelado de aspecto sujo. E agora, finalmente, os campos começavam a reverdecer. Que bênção para os olhos esse verde dos prados, após o branco sem fim! Havia, além disso, ainda um outro verde cuja delicadeza e suavidade graciosa ultrapassavam de longe as da grama fresca. Eram os feixes de agulhas novas dos lariços. Hans Castorp, nos seus passeios regulamentares, raramente deixava de acariciá-los com a mão ou de roçar a face de encontro a eles, tão irresistível era o encanto da sua maciez e da sua frescura. – Sinto vontade de me tornar botânico – disse o jovem a seu companheiro. – Realmente, essa ciência me tenta, só pelo prazer que experimento diante desse despertar da natureza, depois do inverno que passamos aqui em cima. Olhe aí, rapaz, há gencianas na encosta, e isto aqui é uma espécie de violeta amarela que eu não conhecia. E vejo também ranúnculos do mesmo tipo que cresce lá embaixo. São duplos e pertencem à família das ranunculáceas. É uma planta especialmente bonita e híbrida, sabe? Veja como ela dispõe de uma porção de estames e de grande número de ovários, um androceu e um gineceu, se me lembro bem. Acho que acabarei comprando uma ou outra obra botânica, para me instruir um pouco melhor nesse campo da vida e da ciência. Como o mundo se torna colorido, agora! – Em junho haverá mais cores ainda – disse Joachim. – A floração destes prados é célebre. Mas creio que não esperarei até lá... Será que o seu desejo de estudar botânica se deve à influência de Krokowski? De Krokowski? Que significava isso? Ah sim, era porque o Dr. Krokowski, numa das suas últimas conferências, entrara na botânica. Estaria redondamente enganado quem supusesse que as transformações acarretadas pelo tempo pudessem fazer o Dr. Krokowski desistir das suas conferências. Continuava a realizá-las de quinze em quinze dias, de sobrecasaca, embora não de sandálias, que só calçava durante o verão e portanto voltaria a calçar em breve. Discorria ainda uma segunda-feira sim, outra não, na sala de refeições, como naquele dia em que o novato Hans Castorp, manchado de sangue, chegara atrasado. Durante nove meses, o analista tratara do amor e da doença, nunca em demasia, mas em doses pequenas, palestras de meia hora e quarenta e cinco minutos; assim desdobrara ante o seu público os tesouros da sua sabedoria e das suas idéias. Todos tinham a impressão de que nunca se veria obrigado a parar com essas conferências e que isso continuaria assim interminavelmente. Era uma espécie de Mil e uma noites bimensal, prolongando-se à vontade, de preleção em preleção, e sumamente apropriada a satisfazer, à maneira dos contos de Xerazade, a curiosidade de um príncipe e a dissuadi-lo de atos violentos. Na sua abundância ilimitada, o tema do Dr. Krokowski fazia pensar na empresa em que colaborava Settembrini, a Enciclopédia dos males. Podia-se julgar a variabilidade do assunto pelo fato de que o conferencista recentemente até se ocupara da botânica, ou mais precisamente: de cogumelos... Por outro lado, parecia ter dado um novo rumo às suas palestras: falava de preferência do amor e da morte, o que dava lugar a numerosas observações de cunho ora delicadamente poético, ora inexoravelmente científico. Nessa urdem de idéias, o sábio, com o seu sotaque arrastado à maneira oriental e com o seu “r” carregado, chegara a tratar da botânica, isto é, dos cogumelos, essas criaturas da sombra, luxuriantes e fantásticas, oriundas da vida orgânica, de natureza carnal, e muito afins com o reino dos animais. Na sua estrutura entravam produtos do metabolismo animal, albumina e glicogênio. E o Dr. Krokowski citara certo cogumelo famoso desde a Antigüidade clássica, devido à sua forma e às capacidades que se lhe atribuíam, um fungo cujo nome latino continha o epíteto impudicus, e cujo aspecto recordava o amor, ao passo que o odor relembrava a morte. Era evidentemente um cheiro cadavérico, o que se desprendia do impudicus, quando destilava da sua cabeça campanular aquele muco viscoso, esverdeado, que a recobria e era o portador dos espórios. Entre as pessoas ignorantes esse cogumelo continuava sendo considerado um afrodisíaco. Ora, essa palestra não deixara de ser um tanto forte para as senhoras, conforme opinou o Promotor Paravant, que, graças ao apoio moral da propaganda do conselheiro, perseverara firme no sanatório, apesar do degelo. E também a Srª. Stöhr, que igualmente demonstrava bastante força de caráter para não arredar pé e resistia à sedução de uma partida “em falso”, observou à mesa que o Dr. Krokowski fora um pouco “obscuro” ao referir-se àquele cogumelo clássico. “Obscuro”, disse a desgraçada, profanando a sua doença por esse lapso inominável. Mas Hans Castorp estranhou, antes de tudo, o fato de ter Joachim aludido ao Dr. Krokowski e à sua botânica, porque em outras ocasiões nunca haviam falado do analista, como tampouco das pessoas de Clávdia Chauchat ou de Marusja. Não o mencionavam; preferiam passar em silêncio a sua existência e atividade. Dessa vez, porém, Joachim se referira ao assistente num tom malhumorado, como, aliás, a observação de não querer aguardar a floração dos prados revelara o mesmo mau humor. O bom Joachim parecia perder aos poucos o equilíbrio. Sua voz vibrava de irritação, e ele já não se mostrava tão brando e tão comedido como antes. Fazia-lhe falta o perfume de flor de laranjeira? Levavam-no ao desespero as peças que lhe pregava a escala de Gaffky? Sentia-se ele incapaz de resolver se era melhor esperar o outono ali em cima ou arriscar uma partida não autorizada? Na realidade existia ainda outra coisa à qual se devia a vibração agastada da voz de Joachim, e que o fazia mencionar num tom quase sarcástico a conferência botânica de poucos dias atrás. Era esse um fato que Hans Castorp ignorava, ou melhor: ele não sabia que Joachim o notara. Pois ele próprio, o espírito propenso a aventuras, o filho enfermiço da vida e da pedagogia, estava muito bem a par do assunto. Numa palavra, Joachim descobrira certas façanhas do primo, surpreendera-o, de inopino, numa traição semelhante àquela que Hans Castorp cometera na terça-feira de carnaval. Tratava-se de uma nova deslealdade, agravada pela circunstância indubitável de ter chegado a ser um hábito. O ritmo constante e monótono do curso do tempo, a organização minuciosa e prefixada do dia normal, que era sempre o mesmo, idêntico a si próprio, repetindo-se a ponto de criar confusão, a eternidade parada que tornava difícil compreender por que tinha a faculdade de acarretar transformações – essa ordem inabalável do programa diário incluía, como todos se recordam, a ronda do Dr. Krokowski entre três e meia e quatro horas da tarde. A essa hora, o assistente passava por todos os quartos, de sacada em sacada, de uma espreguiçadeira à outra. Quantas vezes já se repetira o dia normal do Berghof, desde aquele momento em que Hans Castorp, na sua posição horizontal, se melindrara ao perceber que o assistente dava uma volta em torno dele e não o levava em conta! Desde muito tempo o visitante de outrora convertera-se num “camarada”. Freqüentemente o Dr. Krokowski servia-se mesmo dessa palavra, quando se dirigia a ele; e essa palavra um tanto militar, cujo “r” o médico pronunciava de modo exótico mediante um só estalo da língua na região anterior do palato, soava horrivelmente na sua boca, como Hans Castorp fizera notar a Joachim. Sem embargo, estava até certo ponto em harmonia com o seu jeito enérgico, alegre e jovial, que parecia convidar à confiança alegre, mas era em parte desmentido pela palidez e pela negrura do médico – o que causava aquela aura de equívoco que sempre pairava em volta dele. – Pois então, camarada, como vai a coisa? – dizia o Dr. Krokowski, cada vez que, vindo do casal de bárbaros russos, se aproximava da cabeceira da cadeira de Hans Castorp. E sempre que ouvia essa alocução animada, o enfermo, com as mãos sobre o peito, esboçava o mesmo sorriso forçado e amável, contemplando os dentes amarelos do assistente, que apontavam no meio da barba preta. – Descansou bem? – costumava prosseguir o Dr. Krokowski. – Sua curva desceu? Ah, subiu hoje? Não faz mal. Isso se arranja até o dia do casamento. Bom proveito! – E com essas palavras de som igualmente horroroso, devido ao “r” carregado, já continuava o seu caminho, passando para o compartimento de Joachim. Afinal de contas, só se tratava de uma ronda destinada a verificar se tudo estava em ordem. Às vezes, porém, o Dr. Krokowski demorava-se um pouco mais ao lado de Hans Castorp. Então o homem espadaúdo, com o infalível sorriso másculo, conversava com o camarada sobre isto e aquilo. Falava do clima, de partidas e chegadas, da disposição do paciente, do seu bom ou mau humor, e também da sua situação pessoal, da sua origem e do seu futuro, antes de dizer “Bom proveito” e de prosseguir na ronda. E Hans Castorp que, para variar, tinha as mãos entrelaçadas na nuca, respondia-lhe, igualmente sorrindo, a todas as perguntas – com uma sensação penetrante de repulsa, sim, mas, não obstante, respondia. Abafavam a voz. Se bem que a divisão de vidro separasse os compartimentos apenas incompletamente, Joachim não podia escutar a conversa do outro lado, para o que, de resto, não fazia a menor tentativa. Ouvia até como o primo se levantava da cadeira e entrava no quarto, acompanhado do Dr. Krokowski, provavelmente para lhe mostrar a papeleta de temperatura. E ali continuava o colóquio por algum tempo ainda, a julgar pelo atraso com que o assistente, vindo do corredor, entrava no aposento de Joachim. De que falavam os camaradas? Joachim não perguntava, mas se um dentre os leitores não lhe seguisse o exemplo e ventilasse a questão, faríamos notar, de forma generalizada, que existem muitos assuntos e muitas razões para o intercâmbio espiritual entre homens e camaradas, cujos conceitos fundamentais têm o cunho do idealismo, e dos quais um foi levado, pelo seu caminho formativo, a considerar a matéria como o pecado original do espírito, ou como uma perigosa excrescência dele, ao passo que o outro, o médico, se acostumou a ensinar o caráter secundário da enfermidade orgânica. Somos da opinião que eles terão que discutir e trocar numerosas idéias com respeito à matéria como degeneração desonrosa do imaterial, à vida como impudicícia da matéria, e à doença como forma depravada da vida. Talvez palestrassem, baseados no tema de conferências em curso, sobre o amor como fator patogênico, sobre a natureza metafísica dos indícios, sobre focos “antigos” e “recentes”, sobre venenos solúveis e filtros de amor, sobre a iluminação – do inconsciente, a bênção da análise das almas e a reversão dos sintomas. Que sabemos nós dos assuntos por eles tratados, uma vez que tudo isso não passa de conjetura e suposições feitas em resposta à hipotética pergunta: “De que falavam o Dr. Krokowski e o jovem Hans Castorp?” Por outro lado, agora já não conversavam mais. Aquelas palestras pertenciam ao passado, tinham-se estendido por poucas semanas apenas. Presentemente, o Dr. Krokowski não se demorava com esse doente mais do que com qualquer outro. “Pois então, camarada?” e “Bom proveito!” – a isso as suas visitas haviam voltado a limitar-se, na maioria das vezes. Em compensação, porém, fizera Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma traição da parte de Hans Castorp. Fizera-a totalmente sem querer, sem se ter dado o trabalho de espionar o primo, o que se afastaria da sua retidão militar. Sucedeu simplesmente, numa quarta-feira, que lhe interromperam o repouso e o chamaram ao subsolo, para que o massagista o pesasse. Foi então que recebeu a surpresa. Descia pela escada, a escada limpinha, coberta de linóleo, donde se abria a vista sobre a porta da sala de consultas, a cujos lados havia os dois gabinetes de “radioscopia”, à direita o do organismo, e à esquerda, dobrando o corredor, o da alma, sito um degrau mais abaixo, com o cartão do Dr. Krokowski pregado à porta. A meia altura da escada, Joachim estacou, pois Hans Castorp, que vinha da injeção, acabava de sair da sala de consultas. Com ambas as mãos fechou a porta que atravessara depressa e, sem olhar em torno de si, voltouse para a direita, rumo à outra, na qual o cartão se achava fixo por meio de percevejos. Alcançoua com poucos passos silenciosos e cadenciados. Bateu nela, inclinando-se e avizinhando o ouvido do dedo que batia. E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do “r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu como o primo desaparecia na penumbra da caverna analítica do Dr. Krokowski. Mais alguém Dias longos – os mais longos, objetivamente falando, com referência ao número das suas horas de sol; pois a extensão astronômica era incapaz de influir sobre a pouca duração do dia avulso tanto como dos dias em geral, na sua fuga monótona. O equinócio da primavera já se passara havia três meses. Chegara o solstício de verão. Mas o ano natural ali em cima seguia o calendário com certa relutância. Somente nesses dias a primavera começara a impor-se definitivamente, uma primavera ainda livre de todo o peso do verão, aromática, transparente e leve, com um azul de esplendor argentino e com uma abundância infantil de cores na floração dos prados. Nas encostas, Hans Castorp encontrava as mesmas flores das quais Joachim, na sua amabilidade, lhe pusera no quarto alguns exemplares, então os últimos, para lhe dar as boasvindas: aquilégias e campânulas. Isto significava que o ciclo do ano estava a ponto de se fechar sobre si. Mas quantas variedades da vida orgânica não tinha brotado do solo, por entre a nova esmeraldina das vertentes e das pradarias: estrelas, cálices, campanas e outras formas menos regulares, enchendo com o seu perfume seco o ar abrasado pelo sol! Assomavam lícnides alpinas e amores-perfeitos selvagens em enormes quantidades, bem-me-queres, margaridas, prímulas amarelas e vermelhas – tudo muito maior e mais lindo do que Hans Castorp conhecia da planície, se é que ali prestara atenção à flora. Também se viam soldanelas balouçando as campanazinhas providas de pestanas, soldanelas azuis, purpúreas e rosadas, especialidade da região. O jovem ia colhendo essas flores graciosas; levava ramalhetes ao sanatório, e isso numa intenção muito séria; não o fazia apenas para adornar o quarto, senão para se dedicar, como se propusera, a estudos rigorosamente científicos. Adquirira alguns apetrechos florísticos, um manual de botânica geral, uma pazinha de tamanho adequado para desenterrar as plantas, um herbário e uma lupa forte. Com isso se punha a trabalhar na sacada, já em trajes de verão, num dos ternos que trouxera consigo quando da sua chegada, o que também evidenciava que o ano em breve completaria o giro. Havia flores frescas em diversos jarros sobre tudo que era mesa no interior do quarto, bem como na mesinha com a lâmpada, que se achava ao lado da excelente espreguiçadeira. Flores meio murchas, já um tanto débeis, mas ainda cheias de seiva, encontravam-se espalhadas pelo parapeito e pelo chão da sacada, enquanto outras, cuidadosamente desdobradas, iam sendo comprimidas por grandes pedras colocadas sobre duas folhas de mata-borrão, que lhes absorviam a umidade, para que Hans Castorp pudesse classificar os preparados ressequidos e achatados no seu álbum, onde os fixava com tiras de papel gomado. O jovem estava deitado, com os joelhos erguidos, uma perna sobre a outra, enquanto o manual aberto lhe repousava sobre o peito, com o dorso para cima, formando uma espécie de cumeeira. Mantinha o vidro espesso e polido da lupa entre os ingênuos olhos azuis e uma flor, cuja corola removera parcialmente com o canivete, a fim de poder melhor examinar o tálamo. Grandemente aumentado pela lente, o objeto parecia intumescer, assumindo extravagantes formas carnosas. Ali estavam as anteras a derramar da extremidade dos filamentos o pólen amarelo! Sobre o ovário eriçava-se o estilete canelado, e por meio de um corte longitudinal era possível ver o canalzinho por onde os grãos e os utrículos do pólen, boiando numa secreção açucarada, eram arrastados até a cavidade do gineceu. Hans Castorp contava, conferia e comparava; fazia estudos a respeito da estrutura e da posição das pétalas do cálice e da corola, tanto dos órgãos masculinos como femininos; confrontava aquilo que via com gravuras científicas e esquemáticas; verificava com satisfação a exatidão científica na estrutura das plantas que conhecia; passava, então, a determinar, com a ajuda de Lineu, aquelas cujos nomes ignorava, quanto à seção, ao grupo, à ordem, à série, à família e à espécie. Como dispusesse de muito tempo, conseguiu realizar alguns progressos na sistemática botânica, à base da morfologia comparativa. Abaixo da planta seca colada na página do herbário, escrevia numa bela caligrafia o nome latino que a ciência humanística galantemente lhe outorgara; a seguir acrescentava as peculiaridades características. Por fim mostrou tudo ao honrado Joachim, que ficou surpreso. À noite, Hans Castorp contemplava os astros. Apossara-se dele o interesse pelo transcurso do ano, posto que já tivesse assistido na terra a mais de vinte voltas em torno do sol, sem nunca se importar com essas coisas. Se nós mesmos involuntariamente nos servimos de termos como “equinócio da primavera”, fizemo-lo em conformidade com a maneira de pensar do nosso herói, levando em conta as suas ocupações presentes. Pois dessa espécie eram os termini que nos últimos tempos ele gostava de empregar, novamente pasmando o primo pelos seus conhecimentos especializados. – Agora o Sol se acha a ponto de entrar no signo de Câncer – disse, por exemplo, durante um passeio. – Você sabia disso? É o primeiro signo de verão do zodíaco; compreende? Depois, o Sol passará por Leão e por Virgem, em direção ao ponto do outono, um dos pontos equinociais, aonde chegará em fins de setembro, quando a sua posição voltará a coincidir com o equador do céu, como ocorreu recentemente em março, com a entrada do Sol no signo de Áries. – Isso me escapou – respondeu Joachim, um tanto carrancudo. – Que sabedoria é essa? Signo de Áries? Zodíaco? – Sim, senhor, o zodíaco, o círculo dos signos. As velhíssimas constelações: Escorpião, Sagitário, Capricórnio, etc. Não é possível não se interessar por isso. Há doze signos, como até você deve saber. Três para cada estação, os ascendentes e os descendentes, a órbita das constelações que o Sol perfaz. Acho isso grandioso! Imagine que os encontraram pintados no teto de um templo egípcio; era até um templo de Afrodite, nas proximidades de Tebas. Os caldeus também os conheciam; os caldeus, sabe? Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente versado em astrologia e em profecias. Também eles já estudaram o cinturão celeste, por onde se movimentam os planetas, e subdividiram-no nesses doze signos, os dodecatemoria, tais como nos foram transmitidos. É notável! Isso é a humanidade! – Agora você já diz “humanidade”, como Settembrini. – Sim, como ele, ou talvez de modo um pouco diferente. A gente deve aceitá-la assim como ela é, e de qualquer maneira trata-se de uma coisa impressionante. Penso nos caldeus com grande simpatia, quando fico deitado, olhando os planetas que eles também já conheciam. Verdade é que não conheciam todos. Urano foi descoberto só recentemente, por meio do telescópio, faz cento e vinte anos. – Recentemente? – Pois, sim, é o que chamo “recentemente”, em comparação com os três mil anos decorridos desde a época deles. Mas quando estou na minha cadeira, contemplando os planetas, esses três mil anos, por sua vez, transformam-se em “recentemente”, e eu me recordo intimamente dos caldeus, que também os viram e pensaram à sua maneira a respeito deles. E isso é a humanidade. – Muito bem. Você está revolvendo idéias grandiosas no seu cérebro. – Você diz “grandiosas” e eu as chamo “íntimas”. Depende do ponto de vista... Mas, quando o Sol entrar no signo de Libra, daqui a três meses, aproximadamente, os dias voltarão a ser mais curtos, de forma que o dia e a noite serão iguais. E mais tarde continuarão diminuindo, até a época do Natal, como você sabe. Mas não se esqueça de que os dias aumentarão novamente, enquanto o Sol passar pelos signos de inverno, Capricórnio, Aquário, Peixes, pois o ponto da primavera torna então a aproximar-se, como já o fez três mil vezes desde os tempos dos caldeus, e os dias prosseguirão aumentando, até daqui a um ano, quando chegar de novo o princípio do verão. – Claro! – Nada de claro! Em realidade, isso não passa de uma ilusão. Durante o inverno, aumentam os dias, e quando chega o mais longo, em 21 de junho, com o início do verão, já começa a descida, voltam a diminuir, enquanto nos encaminhamos para o inverno. Isso lhe pareceu “claro”, mas quem faz abstração dessa tal “clareza” passa por momentos de angústia e pavor e sente necessidade de agarrar-se em qualquer coisa firme. É como se algum espírito brincalhão tivesse disposto o mundo de tal forma que ao princípio do inverno começasse em realidade a primavera, e ao início do verão, o outono... Você tem a impressão de que lhe pregam uma peça, de que o fazem girar, mostrando-lhe a perspectiva de um ponto onde se dará meiavolta. Falar-se em voltas, quando se anda num círculo! Ora, o círculo consta de um sem-número de pontos em que se muda de direção. As voltas não podem ser medidas. Não há rumo que persista, e a eternidade não é uma linha reta, mas um carrossel. – Pare com isso! – Festejos de solstício! – exclamou Hans Castorp. – Solstício de verão! Fogueiras acesas nas montanhas e cirandas dançadas de mãos dadas ao redor das labaredas erguidas! Nunca vi isso, mas ouvi dizer que é assim que fazem os homens primitivos, quando celebram a primeira noite de verão, com a qual se inicia o outono, essa hora meridiana e esse ponto culminante do ano, donde, então, parte a descida. Dançam, giram e exultam. De que exultam, na sua primitividade? Você é capaz de compreendê-los? Por que sentem essa alegria desenfreada? Será porque o caminho começa a descer, em direção às trevas, ou talvez porque subiram até esse momento e agora se acham em cima, no ponto da inflexão inevitável, que é a noite da plenitude do verão, o apogeu, mesclado de depressão e altivez? Chamo as coisas pelo seu nome, com as palavras que me ocorrem. É uma presunção melancólica ou uma melancolia presumida o que faz os homens primitivos exultar e dançar em torno das chamas. Agem assim por puro desespero, se você me permite essa expressão, em homenagem ao círculo falaz e à eternidade sem rumo duradouro, na qual tudo se repete. – Não permito nada – resmungou Joachim. – Por favor, não me meta nessa história! São assuntos meio estrambólicos esses com que você se ocupa à noite, durante o repouso. – Pois é. Não quero negar que você emprega o seu tempo de um modo mais vantajoso, quando estuda a sua gramática russa. Em breve dominará perfeitamente esse idioma. Olhe, rapaz, isso será muito útil para você, se um dia houver uma guerra, o que queira Deus não aconteça! – Queira Deus não aconteça? Você fala como um civil. A guerra é necessária. Sem guerras, o mundo apodreceria dentro de pouco tempo, como disse Moltke. – Bem, parece que ele tem tendência para isso – replicou Hans Castorp. Estava a ponto de falar novamente dos caldeus, que também haviam feito guerras e conquistado a Babilônia, se bem que fossem semitas e quase judeus. Mas, nesse momento, os primos repararam em dois senhores que, caminhando à sua frente, tinham sido interrompidos na sua conversa pelo som da voz de Hans Castorp e se voltavam para olhá-los. Passou-se isso na rua principal, entre a estância balneária e o Hotel Belvedere, durante o caminho de regresso à “aldeia”. O vale estendia-se engalanado, num vestido de cores suaves, claras e alegres. O ar era delicioso. Uma sinfonia de prazenteiros aromas de flores campestres enchia a atmosfera pura, seca, impregnada de um sol luzidio. Reconheceram Lodovico Settembrini, ao lado de um desconhecido. Parecia, porém, que o italiano, por sua vez, não os avistara ou não desejava encontrar-se com eles, pois desviou rapidamente o olhar e, gesticulando, absorveu-se na palestra com o companheiro; até se esforçou por avançar mais depressa. Mas, quando os primos, passando à direita dele, o saudaram com uma mesura humorística, fingiu surpresa enorme e extremamente agradável, exclamando “Sapristi!” e “Vejam só!”. No entanto, procurou dessa vez retardar o passo, para que os primos pudessem passar e distanciar-se, o que eles não compreenderam, ou melhor: não notaram, porque não viram nenhuma razão para isso. Sinceramente satisfeitos pelo reencontro depois de uma longa separação, detiveram-se a seu lado e apertaram-lhe a mão, informando-se sobre o seu estado de saúde e olhando, numa expectativa cortês, para o companheiro dele. Assim o forçaram a fazer o que, evidentemente, preferia evitar, mas o que se afigurava aos jovens a coisa mais natural e mais indicada do mundo, isto é, apresentá-los ao estranho. Fê-lo, finalmente, com uns gestos amáveis e com palavras joviais, quando o grupo já estava a ponto de se pôr em movimento, de maneira que os apertos de mão cruzaram-se diante do seu peito. O desconhecido, que tinha aproximadamente a idade de Settembrini, era, como ficaram sabendo, o vizinho dele, o outro inquilino do alfaiate Lukacek. Segundo entenderam os jovens, chamava-se Naphta. Era um homem pequeno, magro, escanhoado e de uma fealdade tão chocante que quase merecia ser qualificada de corrosiva; causou espanto aos primos. Tudo nele parecia cortante: o nariz adunco que dominava o rosto, a boca de lábios, finos e comprimidos, as grossas lentes dos óculos de aros leves, atrás dos quais apontavam os olhos de um cinzento claro, até mesmo o silêncio que o homem guardava, e que fazia supor que também a sua maneira de falar seria incisiva e lógica. Não usava chapéu, como era costume ali, e andava sem sobretudo; suas roupas eram, aliás, muito bem-feitas: um terno de flanela azul-escura com listras brancas, de corte elegante, não exageradamente moderno, como verificaram os relances críticos e mundanos dos primos, que se encontraram com um olhar do pequeno Sr. Naphta, igualmente examinador, mas mais rápido e mais penetrante, que lhes deslizou pelos corpos. Não soubesse Lodovico Settembrini usar com tanta graça e dignidade o paletó hirsuto e as calças de tecido xadrez, sua pessoa teria destoado desfavoravelmente da aparência distinta dos seus companheiros. Tal não se dava, porém, de maneira alguma, porque as calças tinham sido passadas havia pouco, de modo que à primeira vista pareciam quase novas – obra de seu senhorio, como supuseram os primos. Se o feioso Naphta, pela qualidade e pela elegância mundana das suas roupas, achava-se mais próximo dos primos do que de seu vizinho, aproximavam-no deste e distanciavam-no dos jovens não somente a sua idade mais avançada, como também outra coisa que facilmente se deduzia da tez dos quatro homens: a dos primos era avermelhada e trigueira pelo efeito do sol, ao passo que a de Settembrini e de Naphta era pálida. No decorrer do inverno, o bronze do rosto de Joachim assumira um matiz ainda mais escuro, e o semblante de Hans Castorp luzia, rosado, sob a cabeleira loura. A ação dos raios, entretanto, não exercera efeito algum sobre a palidez latina do Sr. Settembrini, que formava um conjunto nobre com o bigode negro. E a pele do seu companheiro, embora de cabelos louros – eram de um louro cinzento, metálico e desbotado, e ele usava-os penteados para trás, alisados, desnudando a testa fugidia –, mostrava igualmente o tom baço e esbranquiçado das raças morenas. Dois dos quatro levavam bengala: Hans Castorp e Settembrini; Joachim não a apreciava, por razões militares, e Naphta, depois de apresentado, voltara imediatamente ajuntar as mãos atrás das costas. Eram mãos pequenas e delicadas, tais quais os pés, em harmonia com a sua estrutura. O fato de ele estar constipado e o modo débil, ineficaz como tossia, não causavam espécie. Aquele ligeiro quê de perplexidade ou de agastamento que Settembrini mostrara ao ver os jovens foi vencido por ele com grande elegância. O italiano exibiu um humor radiante e acompanhou a apresentação de toda sorte de chistes. Designou, por exemplo, o Sr. Naphta como princeps scholasticorum. Afirmou que a alegria “campeava magnificamente na sala do seu peito”, como dizia Aretino; e isso era devido à primavera, a primavera que lhe enchia o coração. Os senhores sabiam – continuou – que ele tinha muita coisa que objetar ao mundo dali de cima e que já desabafara freqüentemente. Mas, glória a essa primavera alpina, que pelo menos passageiramente o reconciliava com todos os horrores dessa esfera! Nela não havia nada de tudo quanto a primavera da planície tinha de perturbador e de excitante. Nada de efervescência nas profundidades, nada de brumas carregadas de eletricidade! Só clareza, secura, aprazimento e graça austera! Isso harmonizava com seu gosto, era superbe. Os quatro andavam numa fila irregular, lado a lado, onde o caminho o permitia; mas quando se encontravam com outros transeuntes, Settembrini, que formava a ala direita, tinha de descer da calçada, e às vezes se interrompia por um instante o alinhamento, porque um ou outro dentre eles ficava atrás ou dava um passo para o lado ora Hans Castorp, que caminhava entre o humanista e Joachim, ora Naphta, na extremidade esquerda. Naphta soltou uma breve risada, com voz sobre a qual o resfriado exercia um efeito de surdina, e que ao falar recordava o som de um prato rachado em que se bate com o nó do dedo. Apontando com a cabeça para o italiano, disse com um sotaque arrastado: – Ouçam só o voltairiano, o racionalista. Elogia a natureza, porque mesmo nas condições mais fecundas ela não nos perturba com brumas místicas, mas conserva uma secura clássica. Como se diz umidade em latim? – O humor – exclamou Settembrini por cima do ombro esquerdo –, o humor na concepção que o nosso professor tem da natureza, consiste no seguinte: à maneira de Santa Catarina de Siena, ele pensa nas chagas de Cristo, ao ver prímulas vermelhas. Naphta retrucou: – Isto seria antes engenhoso do que humorístico. Mas, pelo menos assim se confere espírito à natureza, e ela carece dele. – A natureza – tornou Settembrini, em voz abafada, já não falando por cima do ombro, senão em direção ao chão – absolutamente não necessita de espírito. Ela própria é espírito. – O senhor não se aborrece com o seu monismo? – Ah, então confessa que é por amor à distração que o senhor divide o mundo em dois campos adversários e separa Deus e a natureza? – Acho interessante que o senhor fale de amor à distração para designar aquilo que tenho em mente, quando digo “paixão” e “espírito”. – Imaginem que o mesmo homem que usa palavras tão retumbantes para necessidades tão frívolas, às vezes me censura a retórica. – O senhor insiste em afirmar que o espírito significa frivolidade. Mas ele não tem culpa de ser dualista por natureza. O dualismo, a antítese, é o princípio motor, o princípio passional, dialético e espirituoso. Ver o mundo dividido em dois campos adversários isto é espírito. Todo monismo é fastidioso. Solet Aristoteles quaerere pugnam. – Aristóteles? Aristóteles transferiu a realidade das idéias gerais para dentro dos indivíduos. Isso é panteísmo. – Errado! Se o senhor concede caráter substancial aos indivíduos, se procura distanciar do geral a essência das coisas e dar a ela um lugar no fenômeno individual como os bons aristotélicos Tomás e Boaventura então dissolve toda união entre o mundo e a idéia suprema; ele ficará fora do divino, e Deus é transcendental. Isto, meu senhor, é Idade Média clássica. – Idade Média clássica! Acho deliciosa essa combinação de palavras. – O senhor me desculpe, mas admito o conceito do clássico onde ele cabe, que dizer: cada vez que uma idéia alcança o seu ponto culminante. A Antiguidade nem sempre era clássica. Verifico no senhor uma antipatia contra... o movimento livre das categorias, contra o absoluto. Também não quer o espírito absoluto. O que quer é que o espírito seja sinônimo de progresso democrático. – Espero que estejamos de acordo quanto à convicção de que o espírito, por mais absoluto que seja, nunca deve tornar-se o advogado da reação. – Ele é, porém, sempre o advogado da liberdade. – Por que disse “porém”? A liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade. – Que evidentemente lhe causam medo. Settembrini levantou a mão acima da cabeça. A discussão ficou em suspenso. Os olhos de Joachim passaram, perplexos, de um para outro interlocutor, ao passo que Hans Castorp, com as sobrancelhas alçadas, cravava o olhar no chão. Naphta falara de um modo cortante e apodítico, se bem que fosse ele quem se empenhara em prol da liberdade mais ampla. A sua maneira de contradizer, com os lábios crispados, e de comprimir imediatamente depois a boca, era sobremodo desagradável. Settembrini ora lhe resistira com respostas joviais, ora pronunciara as suas réplicas com um belo fervor, por exemplo quando exigira a unidade de certas concepções básicas. Agora, enquanto Naphta permanecia calado, começou o italiano a dar aos primos explicações a respeito da existência desse desconhecido, compreendendo a necessidade de alguns esclarecimentos que eles deviam experimentar depois de toda aquela disputa com Naphta. Este o deixou falar sem ligar importância ao assunto. O Sr. Naphta – explicou Settembrini, realçando, à maneira italiana, com a maior ênfase, a situação da pessoa por ele apresentada – era professor de línguas antigas nos últimos anos dos cursos do Fredericianum. Fazia cinco anos que seu estado de saúde o obrigara a morar ali e a convencer-se de que ele necessitava de uma permanência muito prolongada. Por isso abandonara o sanatório e estabelecera-se numa residência particular, justamente na casa do alfaiate Lukacek. O ensino secundário do lugar fora bastante inteligente para assegurar-se o concurso desse exímio latinista, ex-aluno de um seminário, como Settembrini se expressava um tanto vagamente. E o Sr. Naphta conferia grande brilho a esse estabelecimento... Numa palavra, o humanista elogiava muito o feioso Naphta, posto que este acabasse de travar com ele uma espécie de contenda abstrata e que essa discussão rixenta estivesse a ponto de reiniciar-se. Com efeito, Settembrini passou nesse momento a dar ao Sr. Naphta explicações acerca dos primos. Nisso lembrou-se de que já antes lhe falara a respeito deles. Aquele era, pois, o jovem engenheiro “das três semanas”, no qual o Dr. Behrens encontrara um lugar úmido – disse ele – e ali se achava a esperança da organização do exército prussiano, o Tenente Ziemssen. Falou então da impaciência de Joachim e dos seus projetos de partida, acrescentando que, indubitavelmente, se julgaria mal o engenheiro se não se lhe atribuísse o mesmo desejo ardente de voltar ao seu trabalho. Naphta fez uma careta e disse: – Os senhores têm um patrono eloqüente. Longe de mim pôr em dúvida a fidelidade da interpretação que ele acaba de dar aos seus pensamentos e desejos. Trabalho, sempre o trabalho! Esperem um pouco, logo começará a me tratar de inimigo da humanidade, “inimicus humanae naturae”, se eu me atrever a evocar tempos em que aquela clarinada não teria produzido o costumeiro efeito. Houve épocas em que o oposto do seu ideal era infinitamente mais estimado. Bernardo de Clairvaux, por exemplo, ensinava uma hierarquia da perfeição bem diferente daquela com que sonha o Sr. Lodovico. Querem conhecê-la? A categoria mais baixa achava-se no “moinho”; a segunda, no “campo”, e a terceira, a mais louvável – tape os ouvidos, Settembrini! – no “leito do repouso”. O moinho é o símbolo da vida terrena, e me parece bem escolhido como tal. O campo designa a alma do homem leigo, que é amanhada pelo sacerdote e pelo diretor espiritual. Essa categoria já é mais digna. No leito, porém... – Basta! Já sabemos disso! – gritou Settembrini. – meus senhores, agora ele vai lhes explicar as finalidades e o uso da cama. – Eu ignorava que o senhor era tão inocente, Sr. Lodovico. Quem viu como pisca o olho às moças... Onde está a sua ingenuidade pagã? A cama é o lugar da coabitação do amante com a amada, e como símbolo significa o isolamento contemplativo do mundo e da criatura, para os efeitos da união com Deus. – Arre! Andate, andate! – exclamou o italiano, quase chorando. Todos se riram. Mas Settembrini acrescentou com gravidade: – Ah, não, senhor! Eu sou europeu, sou do Ocidente. A sua hierarquia é puramente oriental. O Oriente abomina toda espécie de atividade. Lao-tsé ensina que o ócio é mais proveitoso do que qualquer outra coisa existente entre o céu e a terra. Se todos os homens cessassem de agir, haveria na terra a mais perfeita calma e felicidade. É essa a união de que fala o senhor. – Não diga! E a mística ocidental? E o quietismo que conta com Fénelon entre os seus adeptos e doutrina que toda ação representa um erro, já que a veleidade de ser ativo ofende a Deus, o único que deve agir? Cito as proposições de Molinos. Tenho a impressão de que a possibilidade espiritual de encontrar a salvação no repouso se acha universalmente difundida entre os homens. Nesse ponto, Hans Castorp interveio. Com a coragem que confere a singeleza, intrometeu-se na discussão, dizendo, enquanto seus olhos fitavam o vazio: – Contemplação, isolamento. Essas coisas têm o seu valor. Tudo isso soa razoável. Nós, aqui em cima, vivemos num isolamento bastante intenso, indiscutivelmente. A cinco mil pés de altura, achamo-nos deitados nas nossas espreguiçadeiras extraordinariamente cômodas; os nossos olhares abaixam-se sobre o mundo e as criaturas, e então nos ocorre toda espécie de idéias. A dizer verdade, e pensando bem, a cama, ou melhor, a espreguiçadeira me fez progredir bastante nos últimos dez meses e me proporcionou mais idéias do que o moinho, na planície, no curso de todos os anos passados. Isso não se pode negar. Settembrini encarou-o com os olhos negros onde assomava um brilho melancólico. – Engenheiro! – disse em voz opressa. – Engenheiro! – E pegando Hans Castorp pelo braço reteve-o um momento, como se quisesse falar com ele em particular, nas costas dos outros. – Quantas vezes não lhe disse que uma pessoa deve saber quem é e pensar do modo que lhe convém? Não obstante todas as proposições, cabem ao homem ocidental a razão, a análise, a ação e o progresso, não a cama onde se espreguiça o monge. Naphta, que ouvira as palavras do italiano, disse, voltando-se para trás: – O monge! Aos monges deve-se a cultura do solo europeu. Graças a eles, a Alemanha, a França e a Itália deixaram de estar cobertas de mato virgem e de pântanos e nos fornecem trigo, frutas e vinho. Os monges, meu caro senhor, trabalharam, e trabalharam bastante... – Ebbè, pois então! – Perdão! O trabalho do religioso não tinha a sua finalidade em si, quer dizer, não era nenhum narcótico, nem tampouco se empenhava em fazer progredir o mundo ou em obter vantagens comerciais. Era um exercício puramente ascético, uma parte de disciplina expiatória, um meio para conseguir a salvação. Proporcionava uma proteção contra a carne e servia para exterminar a sensualidade. Seu caráter – permita que eu saliente isso – absolutamente não era social. Era o mais imaculado egoísmo religioso. – Fico-lhe muito grato pelos esclarecimentos que me deu e folgo em ver que a bênção do trabalho se impõe até contra a vontade do homem. – Sim, senhor, contra a intenção dele. Nesse ponto, descobrimos nada menos que a diferença entre o útil e o humano. – Descubro antes de tudo, e com indignação, que o senhor volta a dividir o mundo em dois princípios. – Lastimo ter incorrido no seu desagrado, mas é preciso separar e classificar as coisas e manter a idéia do Homo Dei livre de elementos impuros. Os bancos e o ofício dos cambistas são uma invenção de vocês, os italianos; que Deus lhes perdoe! Mas os ingleses inventaram a sociologia econômica, e isso o gênio do homem nunca lhes poderá perdoar. – Ora, o gênio da humanidade inspirou também os grandes economistas daquelas ilhas... O senhor queria dizer alguma coisa, engenheiro? Hans Castorp afirmou que não, mas pôs-se a falar, sem embargo, e tanto Naphta como Settembrini escutaram-no com certa curiosidade. – Acho, Sr. Naphta, que o senhor deve simpatizar com a profissão do meu primo e aprovar a pressa que ele tem de exercê-la novamente... Quanto a mim, sou civil cem por cento, e meu primo censura-me isso freqüentemente. Nem sequer fiz o serviço militar e sou inteiramente adepto da paz. De vez em quando tenho até chegado a pensar que eu poderia facilmente tornarme sacerdote. Pergunte a meu primo se não lhe falei às vezes nesse sentido. Mas, abstraindo minhas inclinações pessoais – talvez nem seja precisamente necessário abstrai-las por completo –, tenho muita compreensão e simpatia pela classe militar. Esse ofício tem de fato um lado barbaramente sério, um lado “ascético”, com a sua licença – o senhor empregou esse termo há poucos instantes –, e o soldado deve sempre estar preparado para entrar em contato com a morte... com a qual, em última análise, também o sacerdócio tem que lidar; de que mais se ocupariam senão disso? Daí provém a bienséance da classe militar, e a hierarquia, a obediência, e o pundonor espanhol, se me permitem essa .expressão. Nesse caso é indiferente se alguém usa o colarinho engomado da farda ou uma golilha. Isso vem a dar no mesmo, no “ascetismo”, como o senhor o definiu com tanta precisão... Não sei se consegui formular as idéias que... – Como não – confirmou Naphta, lançando um olhar em direção a Settembrini, que fazia girar a bengala e contemplava o céu. – E por isso penso eu – continuou Hans Castorp – que as inclinações de meu primo Ziemssen deveriam ser simpáticas ao senhor, segundo tudo quanto acaba de dizer. Não me refiro “ao trono e ao altar” e a outros binômios desse gênero, por meio dos quais certa gente, pessoas exclusivamente ordeiras, bem-intencionadas e nada mais, costumam justificar a solidariedade. Mas quero dizer que o trabalho da classe militar, isto é, o serviço – “serviço” é bem o termo adequado nesse caso –, é realizado sem nenhum interesse em vantagens comerciais e não tem nenhuma relação com a “sociologia econômica”, da qual falou o senhor. Por isso, os ingleses têm muito poucos soldados, alguns para a Índia, alguns em casa, para os desfiles... – Não adianta continuar, engenheiro – interrompeu-o Settembrini. – A existência militar – digo isto sem a mínima intenção de contrariar o nosso amigo, o tenente – é insustentável do ponto de vista espiritual, por ser meramente formal, sem conteúdo próprio. O protótipo do soldado é o lansquenete, o mercenário que se alista tanto por esta como por aquela causa. Numa palavra, houve os soldados da Contra-Reforma espanhola, os soldados dos exércitos da Grande Revolução, os napoleônicos, os garibaldinos, os prussianos. Vamos falar novamente no soldado quando eu souber por que causa ele se bate. – Mas o fato de que se bate – replicou Naphta – permanece uma peculiaridade evidente da sua classe. Nisso temos que concordar. É possível que ela não seja suficiente para tornar essa classe “sustentável do ponto de vista espiritual”, no sentido que o senhor dá a essas palavras, mas coloca-a numa esfera que escapa por completo à concepção positiva que o burguês tem da vida. – Aquilo que o senhor acha por bem qualificar de “concepção positiva do burguês” – retrucou o Sr. Settembrini, da borda dos lábios, entesando as comissuras da boca sob o bigode ondulante, enquanto o pescoço fazia um estranho movimento de parafuso, como para escapar oblíqua e bruscamente do colarinho –, o que o senhor assim qualifica estará sempre disposto a defender de todas as formas possíveis as idéias da razão e da moral e a sua influência legítima sobre as almas jovens e vacilantes. Fez-se silêncio. Os jovens olhavam diante de si, perplexos. Depois de ter dado alguns passos, disse Settembrini, cuja cabeça e pescoço tinham voltado à posição normal: – Não se admirem. Esse senhor e eu temos freqüentes discussões, mas tudo se passa amigavelmente e sobre o fundamento de muitas idéias comuns. Fazia bem ouvir isso. Era um modo de falar cavalheiresco e humano, da parte do Sr. Settembrini. Mas Joachim, igualmente cheio de boas intenções e empenhado em dar à conversa um cunho inofensivo, disse como que coagido por alguma coisa mais forte do que a sua vontade: – Falávamos casualmente da guerra, meu primo e eu, enquanto íamos atrás dos senhores. – Foi o que ouvi – respondeu Naphta. – Apanhei essa palavra e me voltei. Estavam tratando de política? Examinavam a situação mundial? – Qual nada! – riu-se Hans Castorp. – Como chegaríamos a fazer isso? A profissão de meu primo impede-o de se preocupar com a política, e eu renuncio espontaneamente a discuti-la, porque nada entendo dela. Desde que estou aqui não abri um único jornal... Settembrini, como já fizera em outra ocasião, achou censurável essa indiferença. Demonstrou imediatamente estar a par dos acontecimentos importantes, que julgou com otimismo, uma vez que as coisas estavam tomando um rumo favorável para a civilização. A atmosfera geral da Europa estava cheia de pensamentos pacíficos e de planos de desarmamento. A idéia democrática achava-se em marcha. O italiano assegurou ter recebido informações confidenciais, segundo as quais os Jovens Turcos acabavam de ultimar os preparativos para uma empresa revolucionária. A Turquia como Estado nacional e constitucional – que triunfo do espírito humano! – A liberalização do Islã! – escarneceu Naphta. – Essa é boa! O fanatismo esclarecido; ótimo! A propósito, esse assunto interessa ao senhor – acrescentou, dirigindo-se a Joachim. – Se Abdul Hamid cair, terminará a influência alemã na Turquia, e a Inglaterra vai arvorar-se em protetora... Convém que os senhores tomem muito a sério as relações e as informações do nosso Settembrini – prosseguiu, e também isso soava um tanto impertinente, uma vez que ele próprio parecia julgá-los inclinados a não prezar devidamente o italiano. – Ele anda muito bem informado sobre as questões nacionais-revolucionárias. Na terra dele há pessoas que mantêm muito boas relações com a comissão inglesa dos Bálcãs. Mas que será dos convênios de Reval, Sr. Lodovico, se os seus turcos progressistas levarem a melhor? Eduardo VII já não poderá conceder aos russos a abertura dos Dardanelos e se a Áustria, apesar de tudo, se decidir a fazer uma política balcânica ativa... – Sempre as suas profecias sinistras! – ripostou Settembrini. – Nicolau ama a paz. A ele se devem as conferências de Haia, que representam feitos morais de primeira ordem. – Ora, a Rússia precisava obter algum descanso, depois do seu pequeno desastre no Oriente. – Acho muito feio, da sua parte, zombar do desejo de aperfeiçoamento social que sente a humanidade. O povo que contrariasse um esforço desse gênero indubitavelmente cairia no ostracismo moral. – De que serviria a política se não desse a uns e outros uma oportunidade para se comprometer moralmente? – O senhor está adotando a causa do pangermanismo? Naphta encolheu os ombros, cujo nível era um tanto desigual. Além da sua fealdade parecia mesmo um pouco torto. Não se dignou responder. Settembrini concluiu: – Em todo caso é cínico o que acaba de dizer. No generoso empenho que faz a democracia para impor-se internacionalmente, o senhor quer ver um mero ardil político... – E o senhor deseja que eu encontre em tudo isso idealismo ou até religiosidade? Trata-se dos derradeiros e muito débeis arrancos de um restinho de instinto de auto-conservação, que ainda sobra a um já condenado sistema do mundo. A catástrofe virá e deve vir; está avançando por todos os caminhos e de todos os modos. Considere, por exemplo, a política britânica. A necessidade que sente a Inglaterra de garantir a esplanada da fortaleza indiana é legítima. Mas quais são as conseqüências? Eduardo sabe tão bem como o senhor e eu que os governantes de Petersburgo têm de desforrar-se do revés sofrido na Manchúria e precisam urgentemente desviar o perigo da revolução. Mesmo assim orienta – e não tem outra escolha – o expansionismo russo em direção à Europa, desperta rivalidades adormecidas entre Petersburgo e Viena... – Ora, Viena! O senhor se preocupa com esse obstáculo ao progresso do mundo provavelmente por reconhecer, no império caduco de que ela é a capital, a múmia do Santo Império Romano-Germânico. – E eu acho que o senhor é russófilo, provavelmente devido a uma simpatia humanística pelo césaro-papismo. – Senhor, até mesmo do Kremlin a democracia pode esperar mais do que da corte de Viena, e é vergonhoso para o país de Lutero e de Gutenberg que... – Talvez não seja somente vergonhoso, mas também estúpido. No entanto, tal estupidez é igualmente um instrumento da fatalidade... – Ah, deixe-me em paz com a fatalidade! Basta que a razão humana queira ser mais forte do que ela, e logo o consegue. – Não se pode querer senão o destino. A Europa capitalista quer o seu. – Quem não abomina a guerra com suficiente intensidade acredita na sua vinda. – A sua abominação é logicamente abrupta, enquanto não tomar o próprio Estado como ponto de partida. – O Estado nacional é o princípio deste mundo, que o senhor gostaria de atribuir ao Diabo. Mas torne as nações livres e iguais, proteja as pequenas e fracas contra a opressão, faça justiça, crie fronteiras nacionais... – A fronteira do Brenner, já sei. A liquidação da Áustria! Se eu ao menos soubesse como o senhor pretende realizar isso sem uma guerra... – E eu gostaria de saber quando e onde condenei a guerra nacional. – Mas parece-me que ouvi... – Não, senhor, posso confirmar as palavras do Sr. Settembrini – interveio Hans Castorp, que acompanhara a discussão, caminhando com a cabeça inclinada para o lado e deixando o olhar atento passar de um a outro interlocutor. – Meu primo e eu tivemos diversas vezes o prazer de conversar com ele sobre esse assunto e outros semelhantes; isto é, em realidade limitamo-nos a escutar, enquanto ele desenvolvia e formulava as suas opiniões. E assim sou capaz de confirmar, e também meu primo deve ainda lembrar-se, que o Sr. Settembrini mais de uma vez nos falou com grande entusiasmo do princípio do movimento, da rebelião e do aperfeiçoamento do mundo, que, por natureza, não é um princípio muito pacífico, segundo me parece. E ele afirmava que esse princípio teria ainda de vencer grandes obstáculos antes de triunfar em toda parte e antes de se realizar a república universal, grande e feliz. Eram essas as suas palavras, embora, naturalmente, se expressasse de uma forma muito mais plástica e mais literária do que eu; isso se entende. Mas uma coisa eu sei com absoluta certeza e até gravei textualmente na minha memória, porque me assustei na minha qualidade de fanático civil; foi quando disse que esse dia havia de chegar, se não pelos pés das pombas, sobre as asas das águias. O que me causava espanto eram as asas das águias; disso me recordo ainda. Acrescentou que era preciso aniquilar a Áustria, para abrir caminho à felicidade. Não se pode, portanto, dizer que o Sr. Settembrini reprove a guerra em si. Tenho razão, Sr. Settembrini? – Mais ou menos – disse o italiano, laconicamente, desviando o rosto e brandindo a bengala. – Que lástima! – sorriu Naphta, malicioso. – O seu próprio discípulo apresenta as provas das tendências bélicas do senhor. Assument pennas ut aquilae... – Até Voltaire admitiu a guerra civilizadora e recomendou a Frederico II a guerra contra os turcos. – Em vez de fazê-la, este se aliou a eles, ah, ah! E depois, a república universal! Não me atrevo a perguntar o que será dos princípios do movimento e da rebelião uma vez alcançadas a felicidade e a união. Nesse instante, a rebelião se tornaria um crime... – O senhor sabe perfeitamente, e também esses jovens sabem, que se trata de um progresso da humanidade, concebido como infinito. – Mas todo movimento é circular – objetou Hans Castorp. – No espaço e no tempo; é isso o que nos ensinam as leis da conservação da massa e da periodicidade. Recentemente, meu primo e eu conversamos a esse respeito. Será que se pode, em presença de um movimento fechado, sem rumo constante, ainda falar de um progresso? Quando fico deitado, à noite, e contemplo o Zodíaco, isto é, a metade que é visível, e penso naqueles povos antigos, cheios de sabedoria... – Engenheiro, ao senhor não convém cismar e devanear – interrompeu-o Settembrini. – Cumpre-lhe confiar-se decididamente aos instintos dos seus anos e da sua raça, que devem obrigá-lo à atividade. Também a sua formação científica deve associá-lo à idéia do progresso. O senhor vê como em períodos indeterminados a vida perfez uma evolução que a elevou desde o infusório até o homem. Diante disso não pode duvidar de que haja ainda infinitas possibilidades de aperfeiçoamento a se abrirem ao homem. Mas, se o senhor insistir na matemática, conduza a sua marcha circular de perfeição em perfeição e conforte-se com o conceito do século XVIII, segundo o qual o homem, originalmente bom, feliz e perfeito, foi depravado e corrompido somente pelos erros sociais e, graças a um trabalho crítico na estrutura da sociedade, voltará a ser bom, feliz e perfeito... – O Sr. Settembrini deixa de acrescentar – aparteou Naphta – que o idílio de Rousseau é uma trivialização racionalista da doutrina eclesiástica da fase primitiva em que o homem era livre do Estado e do pecado, a fase inicial da proximidade de Deus e da relação filial com Ele, que nos incumbe reencontrar. O restabelecimento da Cidade de Deus, porém, após a dissolução de todas as formas terrenas, acha-se situado no ponto em que se tocam a terra e o céu, o que é acessível aos sentidos e o que os ultrapassa. A salvação é transcendental, e quanto à sua república universal capitalista, meu caro doutor, é bastante estranho ouvir o senhor falar de “instinto”, referindo-se a ela. A tendência instintiva toma inteiramente o partido do nacionalismo, e o próprio Deus implantou nos homens o instinto natural que induz os povos a se separarem uns dos outros, formando Estados diferentes. A guerra... – A guerra – gritou Settembrini. – Até a guerra, meu caro, já teve que servir ao progresso, como o senhor não pode deixar de admitir, ao lembrar-se de certos acontecimentos da sua época preferida; falo das Cruzadas. Essas guerras civilizadoras favoreceram de modo sumamente feliz as relações entre os povos, no que diz respeito ao intercâmbio econômico e político-comercial. Reuniram a humanidade ocidental sob o signo de uma idéia. – O senhor mostra-se bem tolerante para com a idéia. Em compensação, empregarei muita cortesia numa pequena retificação: as Cruzadas, assim como a intensificação comercial que produziram, absolutamente não exerceram uma influência internacionalista. Pelo contrário, ensinaram os povos a se distinguirem entre si e estimularam fortemente o desenvolvimento da idéia do Estado nacional. – É exato no que se refere à relação entre os povos e o clero. Sim, senhor, naqueles tempos começou a firmar-se a consciência do Estado nacional, contra a presunção hierárquica... – E, todavia, isso que o senhor chama de presunção hierárquica é apenas a idéia da união dos homens sob o signo do espírito. – Já conhecemos esse espírito. Não precisamos dele, obrigado. – É lógico que o senhor, com a sua mania nacionalista, abomine o cosmopolitismo da Igreja que triunfa sobre o mundo. Eu gostaria apenas de saber como tenciona conciliar isso com o horror que sente com relação à guerra. O seu culto do Estado, à maneira antiga, deve fazer do senhor um paladino da concepção positiva do direito, e como tal... – Chegamos a falar do direito? No direito dos povos, meu caro senhor, continua viva a idéia do direito natural e da razão universalmente humana... – Qual! O seu direito dos povos é outra trivialização rousseauniana do jus divinum, que nada tem que ver com a natureza nem com a razão, mas se baseia na revelação... – Deixemos de discutir a terminologia, professor! Continue o senhor tranqüilamente a chamar de jus divinum o que eu reverencio sob os nomes de direito natural e direito dos povos. O essencial é que acima dos direitos positivos dos Estados nacionais se eleva um outro direito, superior e geral, permitindo resolver, mediante arbitragem, as questões de interesses em litígio. – Arbitragens! Ora! Um tribunal de árbitros burgueses, que decide acerca das questões da vida, descobre a vontade de Deus e determina o curso da história! Bem, aí temos os pés das pombas. E onde ficam as asas das águias? – A moralidade burguesa... – Olhe, a moralidade burguesa não sabe o que quer. De um lado gritam pelo combate à diminuição da natalidade e exigem que se reduzam as despesas necessárias para a educação dos filhos e para o seu preparo profissional. E do outro lado, estamos sufocando no meio da multidão; todas as profissões estão de tal modo abarrotadas, que a luta pelo pão de cada dia ofusca os horrores de todas as guerras passadas. Praças arborizadas e cidades ajardinadas! Fortalecimento da raça! Mas para que o fortalecimento, quando a civilização e o progresso desejam que não haja mais guerras? A guerra seria o remédio contra tudo e para tudo. Para o fortalecimento e mesmo contra a diminuição da natalidade. – O senhor está brincando. Isso já deixa de ser sério. A nossa discussão está se desintegrando, e o faz no momento oportuno. Chegamos! – disse Settembrini, e com a sua bengala mostrou aos primos a casinha, diante de cuja cancela acabavam de parar. Estava situada perto da entrada da “aldeia”, à beira da estrada, da qual a separava apenas um estreito jardim. Era de aparência modesta. Uma parreira silvestre, brotando de raízes desnudas, rodeava o portão da casa e estendia um braço retorcido ao longo do muro, na direção da janelinha do rés– do– chão, à direita, onde se achava a vitrine de um pequeno armarinho. O rés-do-chão pertencia ao “merceeiro”, como explicou Settembrini. A habitação de Naphta ficava no primeiro andar, ao lado da oficina do alfaiate, e ele, Settembrini, estava domiciliado na água-furtada, onde tinha um estúdio quieto. Com uma amabilidade surpreendente e acentuada, Naphta expressou a esperança de que esse encontro fosse seguido por muitos outros. – Não deixem de visitar-nos – pediu. – Eu diria: venham visitar-me, não tivesse o Dr. Settembrini direitos mais antigos à amizade dos senhores. Apareçam quando quiserem, cada vez que tiverem vontade de palestrar um pouco. Aprecio muito o intercâmbio com a juventude, e também não me falta por completo a tradição pedagógica... Se o nosso grão-mestre adjunto – e apontou para Settembrini – pretende conferir ao humanismo burguês o monopólio da capacidade e da vocação pedagógica... é preciso desmenti-lo. Até breve! O italiano fez algumas objeções. Havia certas dificuldades, segundo disse. Os dias que o tenente ainda passaria ali em cima estavam contados, e o engenheiro, sem dúvida, redobraria o seu zelo na observação do regime, para que pudesse segui-lo o mais depressa possível e partir para a planície. Os jovens concordaram com ambos, primeiro com um e depois com o outro. Acabavam de aceitar, com uma mesura, o convite de Naphta, e reconheceram, momentos após, a inteira razão dos argumentos de Settembrini. Dessa forma, tudo ficou no ar. – Como é que ele o chamou? – perguntou Joachim, enquanto subiam pela curva da estrada que conduzia ao Berghof. – Eu entendi “grão-mestre adjunto” – respondeu Hans Castorp. – Estou justamente pensando a respeito disso. Deve tratar-se de algum gracejo. Eles usam entre si uns títulos esquisitos. Settembrini intitulou Naphta de princeps scholasticorum, o que também não está mal. Acho que os escolásticos eram os sábios teólogos da Idade Média, filósofos dogmáticos, se me lembro bem. De fato mencionaram diversas vezes a Idade Média, e com isso me recordei de uma observação que Settembrini fez logo no primeiro dia: que havia aqui em cima muita coisa que lhe parecia medieval. Viemos a falar nisso por causa do nome de Adriática von Mylendonk... E lhe agradou o homem? – O baixinho? Não muito. Ele disse certas coisas de que gostei. Claro que as arbitragens não passam de poltronaria. Mas o próprio homem não é do meu gosto; que me adianta que alguém diga coisas bem ditas, se ele mesmo é um sujeito duvidoso? E você não pode negar que esse Naphta é um tipo suspeito. Aquela história do lugar da coabitação é indubitavelmente escabrosa. Além disso, ele tem um nariz de judeu; você não viu? Só os semitas têm esses corpos minguados. Será que você pretende seriamente visitar esse indivíduo? – Naturalmente vamos visitá-lo – declarou Hans Castorp. – Quanto ao físico minguado, você julga como militar. Olhe, os caldeus tinham o mesmo tipo de nariz e todavia sabiam muito bem a quantas andavam, não somente em matéria de ciências ocultas. O Naphta também tem qualquer coisa de ocultista. Ele me interessa bastante. Não quero afirmar que já possa formar uma opinião a seu respeito, mas se a gente se encontrar mais amiúde com ele, talvez chegue a entendê-lo, e não acho impossível que a nossa inteligência em geral saia lucrando com isso. – Ora, rapaz, você torna-se cada vez mais inteligente aqui em cima, com a sua biologia e botânica e com os seus pontos de inflexão inevitáveis. E desde o primeiro dia se preocupou com o “tempo”. Mas me parece que estamos aqui para ficar mais sadios e não mais sábios; mais sadios e completamente sãos, até que enfim nos devolvam a liberdade e nos enviem à planície como curados. – “Nas montanhas vive a liberdade” – cantarolou Hans Castorp frivolamente. – Diga-me primeiro o que significa a liberdade! – acrescentou, falando. – Naphta e Settembrini também discutiram isso e não chegaram a um acordo. “A liberdade é a lei do amor aos homens”, diz Settembrini, e isso me lembra o seu avô, o carbonário. Mas, por mais corajoso que fosse o carbonário e por mais corajoso que seja o nosso amigo Settembrini... – Pois é, ele ficou furioso quando se falou da coragem pessoal... – ...creio contudo que ele tem medo de certas coisas que o pequeno Naphta não teme; compreende? Na liberdade e na coragem dele acho que há muita bobagem. Você acredita que Settembrini teria bastante valor de se perdre ou même de se laisser dépérir? – Por que se mete a falar francês? – Porque... Bem, a atmosfera aqui é tão internacional... Não sei qual dos dois deve gostar mais dela, se Settembrini, por causa da república universal burguesa, ou se Naphta, com sua cosmópole hierárquica. Prestei muita atenção, como vê, mas não consegui me esclarecer sobre isso. Pelo contrário, tive a impressão de que aquela discussão virou uma bruta mixórdia. – É sempre assim. Você pode ter certeza de que dos bate-bocas e das trocas de opiniões sai somente confusão. Eu já lhe disse: o que importa não são as opiniões que um homem tem, mas sim a questão de saber se é ou não é um tipo decente. O melhor é não ter opinião e cumprir o dever. – Pois sim, você pode falar desse modo porque é um lansquenete e leva uma existência puramente formal. Mas comigo é diferente: sou civil e me sinto, por assim dizer, responsável. E me irrita ver tamanha confusão quando um prega a república universal, internacional, e abomina a guerra por princípio, mas ao mesmo tempo é tão patriota que reclama a todo custo a fronteira do Brenner, ao passo que o outro considera o Estado uma obra do Diabo e decanta a união geral que surge no horizonte, mas no próximo instante defende o direito do instinto natural e zomba das conferências de paz. Temos de visitá-los para formar uma opinião. Você diz, na verdade, que estamos aqui não para nos tornar mais inteligentes, mas para melhorar nossa saúde. Mas, meu caro, acho que deve ser possível combinar essas duas coisas. Caso contrário, você chegaria a dividir o mundo, e isso não pode dar certo. Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal No seu compartimento da sacada, Hans Castorp classificava uma planta, que se achava vegetando em numerosos lugares desde que começara o verão astronômico e os dias se tornavam mais curtos. Tratava-se da aqüilégia, espécie de ranunculácea que cresce em forma de arbusto, de longo caule, com flores azuis ou violetas, mas também castanho-avermelhadas, e com folhas bastante amplas, de aspecto herbáceo. A planta encontrava-se aqui e ali, mas abundava especialmente naquele sítio tranqüilo onde Hans Castorp a vira pela primeira vez, fazia quase um ano: o remoto desfiladeiro no meio do bosque atravessado pelo torrentoso e murmurante regato, com a pequena ponte e o banquinho onde terminara o seu passeio prematuro, arriscado e prejudicial, e ao qual voltava de vez em quando. Não ficava longe para quem se encaminhasse ali com um espírito menos empreendedor do que revelara Hans Castorp naquele dia. Partia-se da meta final das corridas de trenó, na “aldeia”, e subia-se parte da encosta trilhando a vereda através do bosque, cujas pontes de madeira transpunham a pista de trenó, que descia da Schatzalp. Sem perda de tempo devido a desvios, cantigas e descansos, era possível alcançar o recanto pitoresco em aproximadamente vinte minutos. Quando Joachim se via forçado a ficar em casa, em virtude de certas obrigações do serviço – exames, radiografias, análises de sangue, injeções ou pesagens – Hans Castorp aproveitava dias de bom tempo para caminhar até lá, depois do segundo café da manhã, e às vezes já depois do primeiro; acontecia também que ele ocupasse as horas entre o chá da tarde e o jantar numa visita ao seu lugar predileto, a fim de passar algum tempo sentado no banco onde outrora o acometera a violenta hemorragia. Com a cabeça inclinada, escutava então o marulhar da torrente e contemplava a paisagem a rodeá-lo, com a multidão de aquilégias azuis que novamente floresciam no fundo do vale. Era só para isso que ia lá? Não! Deixava-se ficar no banco, para estar sozinho, para entregar-se às suas recordações, para recapitular as impressões e as aventuras e para refletir sobre todas essas coisas. Eram numerosas, variadas e ao mesmo tempo difíceis de coordenar, pois afiguravam-se-lhe multiplamente entrelaçadas e confundiam-se a tal ponto que mal se podia distinguir a realidade dos meros pensamentos, devaneios e produtos da imaginação. Mas todas eram de natureza aventurosa, tanto que a sua lembrança fazia parar ou martelar o coração do jovem, que continuava emocionável como sempre, desde o primeiro dia que passara ali em cima. Ou provinha, porventura, a estranha agitação do seu coração impulsivo do simples raciocínio de que, nesse mesmo lugar onde, num instante de vitalidade reduzida, lhe aparecera Pribislav Hippe em carne e osso, a aqüilégia estava em flor, não “ainda”, mas “novamente” e que as projetadas “três semanas” dentro em breve se transformariam num ano inteiro? Por outro lado, já não lhe sangrava o nariz ao sentar-se no banco, ao lado do regato torrentoso; essa fase já passara. Sua aclimatação, cujas dificuldades Joachim lhe predissera logo no começo, e que realmente se mostrara um tanto penosa, realizara progressos; depois de onze meses podia ser considerada completa, e nada mais se devia esperar nessa direção. As reações químicas do seu estômago tinham-se regularizado e adaptado. O Maria Mancini recuperara o antigo sabor, e os nervos das ressequidas mucosas de Hans Castorp havia muito se regozijavam novamente com o aroma dessa marca pouco dispendiosa, que o jovem, por uma espécie de lealdade, ainda mandava vir de Bremen, cada vez que as suas provisões se iam esgotando, embora produtos tentadores se oferecessem nas vitrines de Davos. Não formava o Maria um certo elo entre ele, o arrebatado, e a sua velha pátria, na planície? O charuto não estabelecia e conservava essas relações de um modo mais eficaz do que faziam, por exemplo, os cartões-postais que Hans Castorp de vez em quando dirigia aos tios lá de baixo, a intervalos que se tornavam cada vez maiores, na mesma proporção em que ele próprio, acomodando-se aos conceitos ali vigentes, assumia em face do tempo uma atitude mais generosa? Eram de preferência cartões com vistas bonitas do vale, ora coberto de neve, ora no seu aspecto estival; só ofereciam ao remetente o espaço justo para relatar o último boletim médico, o resultado de um exame mensal ou geral, na forma adequada aos conhecimentos dos parentes; isto é, para participar-lhes, por exemplo, que as observações óticas e acústicas acabavam de registrar uma incontestável melhora, mas que ele ainda não estava desintoxicado, e que a temperatura levemente elevada que o termômetro continuava mostrando tinha a sua origem em alguns pequenos lugares que persistiam, mas seguramente desapareceriam de todo, contanto que se tivesse paciência; dessa forma evitava-se o desgosto de ter de voltar a Davos algum tempo depois. Hans Castorp podia ter certeza de que ninguém esperava dele trabalhos epistolares mais extensos; suas missivas não se endereçavam a nenhuma esfera humanista e eloqüente. As respostas que recebia tampouco eram muito expansivas. Costumavam acompanhar as ordens de pagamento que vinham de casa, os juros da sua herança paterna, tão imponentes, na moeda suíça, que nunca conseguia gastá-los por completo, antes da chegada de uma nova remessa. As respostas consistiam em algumas linhas escritas à máquina, assinadas por James Tienappel, com lembranças e votos de restabelecimento da parte do tio-avô e às vezes também do navegante Peter. Segundo Hans Castorp comunicou aos seus, o conselheiro deixara, havia pouco, de ministrar-lhe aquelas injeções. O enfermo não se dera bem com elas, que lhe causavam dores de cabeça, falta de apetite, perda de peso e grande cansaço; tinham começado por fazer subir-lhe a temperatura, e mais tarde não haviam conseguido acabar com ela. A febre continuava ardendolhe sob a face rosada, e o calor seco que ele sentia subjetivamente recordava-lhe que a aclimatação para um filho da planície, com o seu clima úmido, consistia antes de tudo na aquisição do hábito de não se habituar; nem o próprio Radamanto chegava a consegui-la, como evidenciava a sua tez azulada. “Há muitos que nunca se acostumam”, dissera Joachim, e parecia que era esse o caso de Hans Castorp. Pois os tremores da nuca, que haviam começado a molestálo pouco depois da sua chegada, não davam mostras de cessar, senão que se reproduziam inevitavelmente durante os passeios tanto como no meio das conversas, e mesmo naquele refúgio inundado de flores azuis, aonde o jovem se retirava para refletir sobre o complexo das suas aventuras. Assim, aquele jeito com que Hans Lorenz Castorp gravemente apoiara o queixo no nó da gravata, quase se tornara um vezo do neto, que, ao imitar o avô, não deixava de lembrar-se do colarinho alto do velho, essa forma interina de golilha de gala, bem como do fundo de ouro pálido da pia batismal, dos sons obscuros de “bis, tris, tetra” e de outras coisas afins, que o levavam a novas reflexões acerca do curso da sua vida. Pribislav Hippe não mais lhe aparecia em carne e osso, como fizera onze meses atrás. A aclimatação de Hans Castorp estava terminada; as visões tinham cessado; o jovem já não jazia estendido no banco, com o corpo posto fora de ação, enquanto o seu eu se detinha num presente longínquo. Tais incidentes haviam deixado de ocorrer. A nitidez e a viveza dessa reminiscência, quando a evocava, mantinham-se nos limites normais e saudáveis. Pode ser que Hans Castorp se sentisse inspirado por ela, ao tirar do bolso a lembrança de vidro que ali guardava num envelope forrado, dentro da sua carteira. Era uma pequena chapa que, mantida horizontalmente, paralela ao chão, parecia preta, espelhante e opaca, mas, elevada contra a luz, aclarava-se e exibia coisas humanísticas: a imagem transparente do corpo humano, o arcabouço das costelas, os contornos do coração, o arco do diafragma e as bolsas do pulmão, bem como os ossos da clavícula e do braço, e tudo isso rodeado por um invólucro pálido e vaporoso, a carne que Hans Castorp insensatamente desfrutara na semana do carnaval. Não era de admirar que o seu coração emocionável parasse ou se precipitasse cada vez que o jovem contemplava esse presente e depois prosseguia fazendo o balanço ou refletindo acerca de “tudo”, encostado no espaldar tosco do banco, com os braços cruzados, a cabeça inclinada para o ombro, ao som dos murmúrios da torrente e à vista das flores azuis de aqüilégia. A forma sublime da vida orgânica, a figura humana, pairava diante dele, como em certa noite gélida e estrelada, no decorrer de estudos eruditos. Seu aspecto íntimo relacionava-se, para o jovem Hans Castorp, com numerosos problemas e discrimes, dos quais o bom Joachim talvez não tivesse nenhuma obrigação de ocupar-se, mas que nele, como civil, despertavam uma sensação de responsabilidade; verdade é que na planície nunca reparara neles, e provavelmente jamais teria chegado a descobri-los, mas aqui o fazia, nesse isolamento contemplativo, onde as pessoas olhavam de cinco mil pés de altura sobre o mundo e as criaturas e tinham as suas próprias idéias a respeito de todas as coisas, quiçá devido a uma superexcitação do corpo, originada por venenos solúveis, e cujo calor seco lhes abrasava o rosto. Esse pensamento o fazia lembrar-se de Settembrini, o pedagogo-tocador de realejo, cujo pai nascera na Hélade, e que explanava o amor àquela forma sublime sob os aspectos da política, da rebelião e da eloqüência, consagrando a lança do cidadão sobre o altar da humanidade. Também pensava no camarada Krokowski e nas práticas a que, fazia algum tempo, se entregava em companhia do assistente, no gabinete tenebroso; cismava com respeito à natureza dupla da análise, procurando descobrir até que ponto ela era favorável à ação e ao progresso, e onde começava a ser afim do túmulo e da sua anatomia mal-afamada. Evocava as imagens dos dois avôs, o rebelde e o conservador, que se vestiam de preto por motivos diferentes; ponderava o valor de um e de outro. Refletia acerca de complexos tão vastos como são a forma e a liberdade, o espírito e o corpo, a honra e a vergonha, o tempo e a eternidade. E certa vez experimentou uma breve mas violenta vertigem ao recordarse de que a aqüilégia estava novamente em flor e o ano se fechava sobre si mesmo. Hans Castorp usava um termo estranho para designar essa ocupação séria do seu intelecto, à qual se dedicava no pitoresco retiro. Chamava-a “reinar”; servia-se dessa denominação de uma brincadeira pueril, palavra da sua infância, para aplicá-la a uma distração que lhe era cara, ainda que viesse acompanhada de terror, de vertigens, de toda espécie de tumultos do seu coração e aumentasse o calor que lhe abrasava o rosto. Mas não lhe parecia inconveniente que o esforço exigido por essa atividade o obrigasse a apoiar o queixo no nó da gravata; pois essa atitude estava em harmonia com a dignidade que lhe conferia o ato de “reinar”, em face da forma sublime que lhe pairava ante os olhos. “Homo Dei” – assim chamara o feioso Naphta aquela forma sublime, enquanto a defendia contra a sociologia inglesa. Seria então de admirar que Hans Castorp, devido à sua responsabilidade civil e no interesse do seu “reino”, se julgasse na obrigação de fazer, em companhia de Joachim, uma visita ao homenzinho? Settembrini não gostava disso; Hans Castorp tinha bastante inteligência e sensibilidade para percebê-lo com toda a clareza. Já aquele primeiro encontro não agradara ao humanista, que abertamente procurara evitá-lo e por razões pedagógicas quisera proteger os jovens, particularmente Hans Castorp, contra o contato com Naphta, embora o próprio Settembrini se desse e discutisse com ele. Assim são os educadores. A si mesmos concedem as coisas mais interessantes, alegando já “ter idade” para elas; à juventude, porém, proíbem-nas, pretendendo fazê-la sentir que ainda não “tem idade”. Ainda bem que ao tocador de realejo não cabia de forma alguma proibir a Hans Castorp o que quer que fosse; nem sequer fizera uma tentativa nesse sentido. Era suficiente que o “discípulo enfermiço” escondesse a sua sensibilidade e fingisse alguma ingenuidade para que nada mais o impedisse de corresponder amavelmente ao convite do pequeno Naphta. Foi o que fez, junto com Joachim, que o acompanhou malgrado seu. Encaminharam-se à habitação de Naphta, poucos dias depois do primeiro encontro, numa tarde de domingo, logo após o repouso principal. Do Berghof até a casinha do portão rodeado com a parreira eram apenas poucos minutos de descida. Os primos entraram, deixando à direita a porta do armarinho, e galgaram a estreita escada parda que os conduzia à porta do primeiro andar. Ao lado da campainha via-se uma placa com o nome do alfaiate Lukacek. Abriu-lhes a porta um garoto vestido com uma espécie de libré – jaqueta listrada, e polainas –, um criadinho de cabelos aparados rente e de faces coradas. Perguntaram pelo Sr. Prof. Naphta, e como não tivessem levado cartões de visita, deram os seus nomes, que ele prometeu repetir ao Sr. Naphta (não mencionou o título). A porta do quarto oposta à entrada achava-se aberta e permitia um olhar à oficina, onde Lukacek, apesar do domingo, estava costurando, sentado sobre a mesa, à moda turca. Era um homem pálido e calvo. Sob o nariz adunco, desmedidamente grande, pendia o bigode negro com uma expressão azeda, cobrindo as comissuras da boca. – Bom dia! – disse Hans Castorp. – Grütsi! – respondeu o alfaiate no dialeto suíço, se bem que este não combinasse nem com seu nome nem com o seu aspecto, e tivesse um som artificial e esquisito. – Trabalhando firme? – prosseguiu Hans Castorp, sacudindo a cabeça. – Mas é domingo. – Trabalho urgente – explicou Lukacek, lacônico, e continuou cosendo. – É coisa fina, então? – opinou Hans Castorp. – Será para uma festa ou coisa que o valha? O alfaiate deixou a pergunta por algum tempo sem resposta. Cortou o fio com os dentes e voltou a enfiar a agulha. Depois fez que sim. – Vai ficar bonito? – indagou Hans Castorp novamente. – É com mangas? – Sim, com mangas, é para uma velha – replicou Lukacek com nítido sotaque tcheco. A volta do criadinho interrompeu essa conversa entabulada no umbral da porta. O Sr. Naphta convidava os senhores a entrar, anunciou o rapaz, abrindo aos jovens uma porta situada a dois ou três passos para a direita e levantando um reposteiro. Os visitantes foram recebidos por Naphta, que os esperava de pé sobre um tapete verde-musgo, calçando chinelos enfeitados de galões. Ambos os primos ficaram surpreendidos diante do luxo do gabinete de trabalho, arejado por duas janelas; chegaram a sentir-se deslumbrados, pois a pobreza da casinha, de sua escada e do mísero corredor não deixava nem de longe prever aquilo, e o contraste dava à elegância do aposento de Naphta um cunho de conto de fadas, que ele em realidade não tinha e tampouco teria aos olhos de Hans Castorp e de Joachim Ziemssen. Inegavelmente, a mobília era distinta e até suntuosa, a tal ponto que, apesar da escrivaninha e das estantes de livros, não estava de acordo com o caráter de um gabinete de trabalho. Havia demasiada seda – seda cor de vinho, seda purpúrea: os reposteiros que escondiam as toscas portas constavam desse material, bem como as sanefas das janelas e os forros de um terno de móveis agrupados num dos lados mais estreitos da peça, em frente à segunda porta e diante de um gobelino que cobria a parede na quase totalidade da sua extensão. Eram poltronas de estilo barroco, com um leve estofamento nos braços, dispostas em torno de uma mesa redonda, incrustada de metal, atrás da qual se achava um sofá do mesmo estilo, guarnecido de almofadas de veludo de seda. As estantes de livros ocupavam as partes das paredes situadas entre as duas portas. Elas, tanto como a escrivaninha, ou melhor, a secretária provida de uma tampa de correr, e que tinha o seu lugar entre as janelas, eram de acaju lavrado, com portas envidraçadas e revestidas de seda verde. Mas, no canto à esquerda do sofá, via-se uma obra de arte, uma grande escultura de madeira pintada, posta sobre um pedestal recoberto de pano vermelho; uma Pietà cujo aspecto ingênuo e expressivo até as raias do grotesco causava profundo espanto. A Virgem era representada com uma touca, de cenho carregado, retorcendo de tanta mágoa a boca semi-aberta; tinha sobre os joelhos, o Salvador, uma figura de erros primários nas proporções, e cuja anatomia crassamente exagerada documentava a ignorância do artista; a cabeça caída estava crivada de espinhos; o rosto e os membros, manchados e mesmo inundados de sangue; grossas gotas de sangue coagulado brotavam da ferida lateral e dos sinais que os pregos haviam deixado nas mãos e nos pés. Inegavelmente, essa obra assombrosa dava um acento particular ao aposento abundante de seda. Também o papel de parede, que aparecia acima das estantes e ao lado das janelas, fora evidentemente escolhido pelo sub-locador: o verde das listras verticais era o mesmo do tapete macio estendido por cima de um revestimento vermelho. Somente para o teto baixo não houvera remédio; continuava frio e cheio de fendas. No entanto, pendia dele um pequeno lustre veneziano. As janelas achavam-se veladas por cortinas de cor creme que chegavam até o chão. – Viemos ter um colóquio com o senhor – disse Hans Castorp, enquanto os seus olhares se fixavam na piedosa e horripilante escultura, lá no canto, antes do que no dono do excêntrico gabinete. Este notava com satisfação que os primos haviam cumprido a sua palavra. Com um gesto convidativo da mãozinha direita, Naphta quis conduzi-los até as poltronas forradas de seda. Mas Hans Castorp, como que magnetizado, foi diretamente à Pietà de madeira e plantou-se diante dela, com os braços fincados nos quadris e a cabeça inclinada para o lado. – Que é isso que o senhor tem aqui? – perguntou em voz baixa. – É formidável. Onde já se viu tamanho sofrimento? É coisa antiga, naturalmente? – Século XIV – respondeu Naphta. – Com toda a probabilidade de origem renana. Impressiona o senhor? – Enormemente – disse Hans Castorp. – Quem olha isso simplesmente não pode deixar de ficar impressionado. Eu nunca teria pensado que uma coisa pudesse ao mesmo tempo ser tão feia – perdão! – e tão bela. – Produtos de um mundo da alma e da expressão – replicou Naphta – são sempre feios de tanta beleza e belos de tanta fealdade. Essa é a regra. Trata-se da beleza espiritual, não da beleza da carne, que é absolutamente estúpida. E não só isso, ela é também abstrata – acrescentou. – A beleza do corpo é abstrata. Unicamente a beleza interior, a da expressão religiosa, tem realidade. – Fico-lhe grato pela precisão com que o senhor discerniu e classificou isso – disse Hans Castorp. – Século XIV? – repetiu, para certificar-se. – Mil trezentos e tantos? Sim, isto é a encarnação da Idade Média. Reconheço, por assim dizer, a idéia que fiz dela nos últimos tempos. No fundo não sabia nada a seu respeito. Sou um homem do progresso técnico, se é que me cabe mencionar a minha pessoa. Mas aqui em cima tive diversas ocasiões para entrar em contato com os conceitos da Idade Média. A sociologia econômica ainda não existia naqueles tempos, é escusado dizer. Qual é o nome do artista? Naphta deu de ombros. – Que importa? – replicou. – Nós não deveríamos fazer essa pergunta, desde que na época em que a obra nasceu ninguém se preocupou com ela. Isso aí não é da autoria de um cavalheiro de marcada individualidade; é anônimo e coletivo. Provém, aliás, de uma Idade Média muito avançada, do gótico, signum mortificationis. Nessa escultura, o senhor nada mais encontrará daquela tendência de suavizar e de embelezar que ainda a época românica julgava indispensável para a representação do Crucificado. Nada de coroa real, nada de majestoso triunfo sobre o mundo e o martírio da morte. Tudo aqui revela da forma mais radical o sofrimento e a debilidade da carne. É com a estética gótica que na realidade começam o ascetismo e o pessimismo. O senhor talvez não conheça o tratado de Inocêncio III: De miseria humanae conditionis, uma pecinha literária sumamente engraçada, que data de fins do século XII. Mas somente esta arte pode servir para ilustrá-la. – Sr. Naphta – disse Hans Castorp, depois de ter dado um profundo suspiro –, tudo o que o senhor acaba de explanar interessa-me muito. Signum mortificationis, foi o que disse? Gravarei isso na memória. E antes o senhor usou os termos “anônimo” e “coletivo”; parece-me que vale a pena refletir sobre eles. Infelizmente o senhor supõe com razão que eu não conheço o livro daquele papa – acho que Inocêncio III foi um papa. Se bem compreendi o senhor, é uma obra ascética e engraçada, não é? Devo confessar que nunca teria imaginado que essas duas coisas pudessem andar juntas. Mas, pensando bem, compreendo. Claro, um tratado sobre a miséria humana oferece muitas oportunidades para gracejos à custa da carne. Pode-se obter essa obra? Recorrendo aos restos do meu latim, talvez seja capaz de entendê-la. – Tenho este livro – respondeu Naphta, indicando com a cabeça uma das estantes. – Fica à sua disposição. Mas, por que não nos sentamos? O senhor pode ver a Pietà também do sofá. Está justamente chegando um pequeno lanche... Era o criadinho que trazia o chá acompanhado de uma bonita cesta guarnecida de prata na qual havia um bolo cortado em fatias. Atrás dele, porém, pela porta aberta – quem é que entrava a passo alado, com um sorriso fino, e dizendo “Sapristi” e “Accidenti”? Era o Sr. Settembrini, domiciliado no andar superior e que descera na intenção de fazer companhia aos visitantes. Contou que pela sua pequena janela vira os primos chegar. Terminara depressa uma página da enciclopédia, que estava redigindo naquele momento, para, então, convidar-se a si mesmo. Era absolutamente natural que ele descesse. Sua familiaridade antiga com os habitantes do Berghof autorizava-o a isso, e havia ainda as suas relações e o seu intercâmbio intelectual com Naphta, que, apesar das profundas divergências de opinião, eram muito intensas. Assim, o anfitrião cumprimentou-o com um simples aceno, sem mostrar a mínima surpresa. Isso não impediu que a sua entrada deixasse em Hans Castorp, e bem nitidamente, uma dupla impressão. De um lado sentiu que o Sr. Settembrini acabava de comparecer para evitar que eles – Joachim e sobretudo ele, Hans Castorp – ficassem a sós com o pequeno e feioso Naphta, e para criar, pela sua presença, um contrapeso pedagógico; do outro, era manifesto que o italiano absolutamente não desprezava, senão aproveitava com muito gosto a oportunidade para abandonar por algum tempo a sua água-furtada e deixar-se estar no distinto aposento, forrado de seda, de Naphta, tomando um chá elegantemente oferecido. Antes de se servir, esfregou as mãos amareladas, por cujas costas se estendiam pêlos negros, a partir dos dedos mindinhos; a seguir, saboreou com evidente e não dissimulado prazer as fatias do bolo entremeado de veias de chocolate. A conversa continuou a ocupar-se da Pietà, porque Hans Castorp, com olhares e palavras, se agarrava ao assunto, dirigindo-se ao Sr. Settembrini e procurando, por assim dizer, pô-lo em contato crítico com aquela obra de arte. Entretanto, a fisionomia do humanista denotava com toda a clareza o horror que lhe causava esse adorno do quarto, quando se voltou para olhá-lo; pois ao sentar-se dera as costas ao canto onde se achava a escultura. Por demais cortês para dizer tudo o que pensava, limitou-se a criticar os erros nas proporções e na anatomia do grupo, infidelidades à verdade natural, que estavam longe de comovê-lo, por não terem a sua origem na incapacidade de um artista primitivo, senão que documentavam a má vontade, um princípio fundamentalmente hostil. Nesse ponto, Naphta concordou com ele maliciosamente. Sem dúvida não se podia falar de inabilidade técnica. Tratava-se, sim, de um consciente ato do espírito que se emancipava da natureza, cuja desprezibilidade era proclamada, no sentido religioso, pela enérgica negação do menor respeito a ela. Mas Settembrini declarou que o menosprezo da natureza e de seu estudo era incompatível com a humanidade e, em oposição à absurda falta de forma, cultivada pela Idade Média e pelas épocas que a imitavam, pos-se a encomiar em palavras eloqüentes a herança greco-romana, o Classicismo, a forma, a beleza, a razão e a alegria piedosamente fundada na natureza, que eram os únicos chamados a melhorar a causa do homem. Nisso interveio Hans Castorp, perguntando o que se devia pensar, nesse caso, de Plotino, o qual expressara a vergonha que sentia de seu corpo, e de Voltaire, que em nome da razão se revoltara contra o escandaloso terremoto de Lisboa. Absurdo? Aquilo também era absurdo, mas refletindo bem podia-se chegar à opinião de que no absurdo se revelava a honestidade do espírito, e a absurda hostilidade da arte gótica contra a natureza era, em última análise, tão honesta quanto a atitude de Plotino e de Voltaire, já que nela se expressava igual emancipação do fado e do fato, e o mesmo orgulho indócil que se recusava a abdicar diante do poder estúpido que representava a natureza... Naphta soltou uma risada, que lembrou muito o mencionado prato rachado e terminou num acesso de tosse. Settembrini disse com distinção: – O senhor prejudica o nosso anfitrião mostrando tanto espírito, e dessa forma demonstra a sua falta de gratidão pelos excelentes doces. Será que o senhor tem queda para a gratidão? Refiro-me àquele tipo de gratidão que consiste em fazermos um bom uso dos presentes que recebemos... Ao ver que Hans Castorp ficou envergonhado, o italiano acrescentou com a maior amabilidade: – O senhor é conhecido como maganão, meu caro engenheiro. Seu jeito de zombar amistosamente da verdade em absoluto não me faz desesperar do amor que tem a ela. O senhor sabe muito bem que somente pode ser qualificada de honesta aquela sublevação do espírito contra a natureza, que visa à dignidade e à beleza do homem, e não a outra que tem, senão por finalidade, pelo menos por conseqüência, o seu aviltamento e a sua humilhação. O senhor tampouco ignora quantas atrocidades desumanas, quanta intolerância sanguinária produziu a época à qual aquele artefato que se acha atrás de mim deve a sua existência. Basta que eu lhe chame à memória esse tipo horroroso do juiz de hereges, por exemplo a sinistra figura de um Conrado de Marburgo, e o infame furor dos sacerdotes contra tudo quanto se opusesse à tirania do sobrenatural. O senhor está longe de reconhecer a espada e a fogueira como instrumentos do amor aos homens... –... a cujo serviço – interrompeu-o Naphta – trabalhou a máquina por meio da qual a Convenção expurgou o mundo de maus cidadãos. Todos os castigos da Igreja, inclusive a fogueira, inclusive também a excomunhão, foram impostos para salvar as almas da pena eterna, o que não se pode dizer do entusiasmo exterminador dos jacobinos. Permito-me observar que toda justiça penal e capital que não brote da fé no além é uma sandice bestial. E quanto ao aviltamento do homem, sua história coincide exatamente com a do espírito burguês. O Renascimento, a Época das Luzes, as ciências naturais e a economia política do século XIX não se esqueceram de ensinar nada, absolutamente nada, que fosse próprio para favorecer esse aviltamento, começando pela nova astronomia, em virtude da qual o centro do universo, o magnífico cenário onde Deus e o Diabo disputavam a posse da criatura por ambos almejada, foi transformado num insignificante planetazinho, e que pôs um fim provisório à grandiosa posição do homem no cosmo, sobre a qual se fundava a astrologia. – Provisório? Quando Settembrini fez essa pergunta, ameaçadoramente, havia na sua expressão qualquer coisa de um inquisidor ou juiz de hereges que espera que a pessoa interrogada se comprometa com palavras abertamente criminosas. – Com efeito. Para algumas centenas de anos – confirmou Naphta friamente. – Se não nos enganam todos os sinais, estamos na iminência de uma reabilitação da escolástica, também nesse ponto. O processo já se acha em pleno andamento. Copérnico será derrotado por Ptolomeu. A teoria heliocêntrica encontra cada vez maior oposição espiritual, e as empresas inspiradas por essa resistência provavelmente surtirão êxito. A ciência sentirá a necessidade filosófica de restituir à Terra todas as honras que o dogma eclesiástico lhe queria reservar. – Mas como? Oposição espiritual? Necessidade filosófica? Surtir êxito? Que sorte de voluntarismo manifesta-se em tudo isso? E onde fica a pesquisa incondicional? E o conhecimento puro? Onde fica a verdade, senhor, que anda intimamente ligada à liberdade, e cujos mártires, longe de insultarem a Terra; como acha o senhor, permanecerão o eterno adorno deste astro? O Sr. Settembrini tinha uma maneira vigorosa de interrogar. Estava sentado, muito ereto, e deixava cair sobre o pequeno Naphta as suas palavras honestas. Pelo fim levantou a voz poderosamente, manifestando assim a mais absoluta certeza de que a resposta do seu adversário só poderia consistir num silêncio consternado. Enquanto falava, segurava entre os dedos um pedacinho de bolo. Depois, porém, depositou-o no prato, pois ao cabo de todas essas perguntas não tinha vontade de trincá-lo. Naphta retrucou com uma calma desagradável: – Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma idéia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la. Em todos os casos, chega-se ao “Quod erat demonstrandum”. A simples idéia da prova contém, psicologicamente considerada, um elemento muito voluntarista. Os grandes escolásticos dos séculos XII e XIII eram unânimes na convicção de que na filosofia não podia ser verdade o que era falso perante a teologia. Deixemos de lado a teologia, se o senhor assim o quiser; mas uma humanidade que não reconhecesse que nas ciências naturais não pode ser verdade o que é falso perante a filosofia não seria humanidade. A argumentação do Santo Ofício ante Galileu rezava que sua tese era filosoficamente absurda. Não pode haver argumentação mais incisiva. – Ora, ora! Os argumentos do nosso pobre e grande Galileu mostraram-se mais sólidos. Não, professore, falemos seriamente! Diante destes dois jovens atentos responda-me à seguinte pergunta: acredita o senhor em uma verdade, na verdade objetiva, científica, que a lei suprema de toda moralidade nos manda procurar, e cujos triunfos sobre a autoridade formam a gloriosa história do espírito humano? Hans Castorp e Joachim voltaram os seus rostos de Settembrini para Naphta, o primeiro mais rapidamente do que o segundo. – Tal triunfo – replicou Naphta – não é possível, porque a autoridade é o próprio homem, seu interesse, sua dignidade, sua salvação, e entre ela e a verdade não pode existir nenhum antagonismo. Elas coincidem. – A verdade seria, por conseguinte... – Verdadeiro é o que convém ao homem. Nele se acha resumida toda a natureza; em toda a natureza, apenas ele foi criado, e toda a natureza foi feita só para ele. Ele representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade. Um conhecimento teórico que carecesse da relação prática com a idéia da salvação do homem seria de tal maneira desprovido de interesse que deveríamos negar-lhe todo valor como verdade e não poderíamos admiti-lo. Os séculos cristãos achavam-se completamente de acordo a respeito da irrelevância das ciências naturais para o homem. Lactâncio, a quem Constantino, o Grande, escolheu como preceptor de seus filhos, perguntou com toda a franqueza que classe de bem-aventurança obteria por conhecer o lugar onde nasce o Nilo, ou por saber os disparates que os físicos dizem com referência ao céu. Será que o senhor pode refutá-lo? Se a filosofia platônica foi preferida a qualquer outra, é porque não se preocupava com o conhecimento da natureza e sim com o conhecimento de Deus. Posso lhes garantir que a humanidade está a ponto de reencontrar o caminho que leva a esse ponto de vista, e de perceber que a tarefa da ciência verdadeira não é correr atrás de conhecimentos ímpios, mas eliminar, por princípio, o que é nocivo ou apenas irrelevante sob o prisma da idéia; numa palavra: cabe-lhe dar provas de instinto, comedimento e capacidade de escolher. É pueril pensar que a Igreja tenha defendido as trevas contra a luz. Ela teve três vezes razão ao proscrever a busca incondicional do conhecimento das coisas, isto é, uma busca que despreze tomar em consideração o elemento espiritual, o objetivo da conquista da salvação. E o que mergulhou o homem nas trevas e o enterrará cada vez mais são precisamente as ciências naturais, incondicionais e afilosóficas. – O senhor acaba de ensinar um pragmatismo – retrucou Settembrini – que basta transportar para o plano político para lhe pôr em evidência o caráter pernicioso. É bom, é verdadeiro, é justo o que convém ao Estado. Sua salvação, sua dignidade, seu poder representam o critério ético. Muito bem! Isso abre as portas a qualquer crime, e a verdade humana, a justiça individual, a democracia que se arranjem... – Sugiro o emprego de um pouquinho de lógica – tornou Naphta. – Ou Ptolomeu e a escolástica têm razão, e o mundo é finito quanto ao tempo e ao espaço. Nesse caso, a divindade é transcendental; a oposição entre Deus e o mundo existe, e também o homem é um ser dualista: o problema de sua alma consiste no antagonismo entre o físico e o metafísico, e tudo quanto é social fica à distância, desempenhando papel secundário. Essa é a única forma de individualismo que julgo conseqüente. Ou então os seus astrônomos renascentistas encontraram a verdade, e o cosmo é infinito. Então não há mundo transcendental, não há dualismo. O além acha-se absorvido pelo aquém; desaparece a oposição entre Deus e a natureza; e como nesse caso a personalidade do homem, em vez de ser o campo de batalha de dois princípios inimigos, é harmoniosa e una, o conflito que se trava no interior do homem baseia-se exclusivamente naquele dos interesses individuais e coletivos. A finalidade do Estado torna-se, à boa maneira pagã, a lei moral. Ou um ou outro. – Protesto! – gritou Settembrini, enquanto o seu braço teso estendia ao anfitrião a xícara de chá. – Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! Protesto pela terceira vez contra aquela alternativa vexatória entre o prussianismo e a reação gótica diante da qual o senhor nos quer colocar! A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem superior, ao bem supra terreno. O Renascimento como origem da idolatria do Estado! Que lógica mais bastarda! As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade! Os ouvintes soltaram a respiração que haviam contido durante a grande réplica do Sr. Settembrini. Hans Castorp não pôde deixar de bater, embora discretamente, na borda da mesa com a palma da mão. – Magnífico! – murmurou entre dentes, e também Joachim mostrou-se altamente impressionado, conquanto o prussianismo houvesse sido mencionado em sentido desfavorável. A seguir, porém, ambos se voltaram para o interlocutor que acabava de ser rechaçado. Hans Castorp o fez com tamanha impaciência, que fincou o cotovelo na mesa e o queixo no punho mais ou menos na posição de quem desenha um porquinho, e fitou o Sr. Naphta de muito perto e com imensa atenção. Este se achava sentado calmamente, como que afiado, apoiando as mãos magras sobre os joelhos. – Tentei introduzir um pouco de lógica na nossa discussão – disse ele – e sua resposta baseia-se em sentimentos elevados. Que o Renascimento tenha dado à luz tudo aquilo que se chama liberalismo, individualismo, humanismo burguês é um fato que eu conhecia mais ou menos bem. Mas o seu “sentido literal” deixa-me inteiramente frio. A idade “conquistadora”, heróica, dos seus ideais há muito que passou; esses ideais estão mortos ou agonizantes, e aqueles que lhes darão o golpe de misericórdia já se acham próximos. Se não me engano, o senhor se arvora em revolucionário. Mas, se acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto – tal pedagogia pode obter ainda hoje passageiros triunfos retóricos, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras souberam sempre o que em realidade deve ser o último objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise, desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência. Joachim empertigou-se. Hans Castorp corou. O Sr. Settembrini torcia nervosamente o belo bigode. – Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. Do que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror. Abafara a voz ao pronunciar esta última palavra. Não se movera. Apenas as lentes dos seus óculos haviam relampejado rapidamente. Os ouvintes tinham estremecido, todos os três, também Settembrini, que imediatamente se dominou e tornou a sorrir. – E posso informar-me – indagou – quem ou o que (como vê, limito-me a interrogar e nem sei como formular a pergunta), quem ou o que o senhor imagina como portador desse – custa-me repetir a palavra – desse terror? Naphta continuou imóvel, afiado e relampejante. – Estou às ordens – disse. – Penso não me enganar quando pressuponho que estamos de acordo com respeito ao estado primitivo ideal do homem, à sua liberdade de governo e de poder, à sua relação filial e imediata com Deus, na qual não havia nada de domínio e de serviço, nada de lei e de castigo, nada de injustiça, de união carnal, de diferenças de classe, de trabalho e de propriedade, mas exclusivamente igualdade, fraternidade, perfeição moral. – Muito bem. Concordo com isso – declarou Settembrini. – Concordo, exceção feita do ponto da união carnal, que evidentemente deve ter existido sempre, uma vez que o homem é um vertebrado muitíssimo desenvolvido, em nada diferente de outros seres... – Como quiser. Verifico que em princípio somos da mesma opinião, no que se refere ao estado primordial, paradisíaco, isento de lei e ligado imediatamente a Deus, esse estado que se perdeu em virtude do pecado original. Creio que poderemos trilhar lado a lado mais um pedaço do caminho; reduziremos então o Estado a um contrato social que, levando em conta o pecado, foi estabelecido como proteção contra a injustiça, e veremos nisso a origem do poder soberano... – Benissimo! – exclamou Settembrini. – O contrato social! Aí temos o Século das Luzes, ali temos Rousseau. Eu nunca teria pensado... – Permita-me. Neste ponto separam-se os nossos caminhos. Do fato de que toda potência e todo governo pertenciam primitivamente ao povo, e que este transmitiu o seu direito de legislação e a totalidade de seu poder ao Estado, ao príncipe, deduz a sua escola, antes de mais nada, que o povo tem o direito de se rebelar contra a realeza. Nós, porém... “Nós?”, pensou Hans Castorp, cheio de curiosidade “Quem é nós? Não devo esquecer de perguntar a Settembrini a quem se refere este ‘nós’.” – Nós, porém – continuou Naphta —, talvez não sejamos menos revolucionários do que o senhor. Nós sempre concluímos desse fato, em primeiro lugar, a supremacia da Igreja sobre o Estado secular. Pois, se a origem não-divina do Estado não estivesse escrita na sua testa, bastaria recordar precisamente o fato histórico de ele derivar da vontade do povo e não, como a Igreja, de uma fundação de Deus, para demonstrar que ele é, se não uma obra do mal, pela menos um produto da emergência e da imperfeição pecaminosa. – O Estado, senhor... – Já sei o que o senhor pensa do Estado nacional. “Acima de tudo o amor à pátria e o infinito desejo de glória!” Esta frase é de Virgílio. Corrija-a o senhor pelo acréscimo de um pouco de individualismo liberal e surge a democracia. Mas isso não modifica em princípio a sua relação para com o Estado. O senhor não parece chocar-se com a circunstância de que a alma do Estado é o dinheiro. Ou tenciona, acaso, desmenti-la? A Antigüidade era capitalista, devido ao seu culto do Estado. A Idade Média cristã percebeu com toda clareza o iminente capitalismo do Estado secular. “O dinheiro será o imperador” é uma profecia do século XI. Nega o senhor que ela já se cumpriu integralmente e que dessa forma se realizou a diabolização total da nossa vida? – Meu amigo! O senhor continua com a palavra. Estou impaciente por saber quem é o Grande Desconhecido, o portador do terror. – Curiosidade muito ousada na boca do representante de uma classe social que é portadora daquela liberdade que arruinou o mundo! Posso a rigor dispensar a sua réplica, porque não ignoro a ideologia política da burguesia. O seu objetivo é o império democrático, a apoteose com que o princípio do Estado nacional eleva-se a si próprio a Estado universal. O imperador desse império? Conhecemo-lo. A sua utopia é horrorosa, e todavia neste ponto voltamos, de certo modo, a estar de acordo. Pois a sua república universal capitalista tem qualquer coisa de transcendental. Com efeito, o Estado universal é a transcendência do Estado secular, e acreditamos ambos em que à perfeição da fase primitiva da humanidade corresponde uma fase final perfeita, situada à distância no horizonte. Desde os dias de Gregório Magno, fundador da Cidade de Deus, a Igreja considerou-se incumbida de reconduzir os homens ao governo de Deus. O papa pretende a soberania não para si próprio; sua ditadura delegada era um meio e um caminho para alcançar a meta da salvação, uma forma de transição do Estado pagão ao reino celeste. O senhor falou, diante destes seus discípulos, dos atos sanguinários da Igreja e da sua intolerância vingadora, e mostrou-se sumamente tolo ao fazê-lo. Pois o zelo religioso naturalmente não pode ser pacifista, e o próprio Gregório disse: “Maldito seja o homem que impede a sua espada de derramar sangue!” Já sabemos que o poder é mau. Mas o dualismo do bem e do mal, do aquém e do além, do espírito e da potência, deve ser – para que chegue o reino – passageiramente substituído por um princípio que reúna o ascetismo e o domínio. É isso o que chamo a necessidade do terror. – O portador? Quem será o portador? – O senhor me pergunta ainda? Será que à sua mentalidade manchesteriana escapou a existência de uma doutrina sociológica que representa a vitória do homem sobre o economismo, e cujos princípios e objetivos coincidem inteiramente com os do Estado cristão de Deus? Os padres da Igreja qualificavam o “meu” e o “teu” de palavras funestas e chamavam à propriedade privada usurpação e roubo. Condenavam a posse de bens por ser a terra, segundo o direito natural e divino, comum a todos os homens, produzindo os seus frutos para o uso geral. Ensinavam que somente a cobiça, uma conseqüência do pecado original, defendia os direitos de posse e criara a propriedade particular. Eram bastante humanos, bastante hostis ao comércio para considerar a atividade econômica em geral um perigo para a salvação da alma, isto é, para a humanidade. Odiavam o dinheiro e os negócios, e a riqueza capitalista era para eles o combustível das chamas do inferno. A lei econômica fundamental, a saber, que o preço resulta da relação entre a oferta e a procura, foi desprezada de todo o coração por eles, que reprovavam o aproveitamento de circunstâncias favoráveis como exploração cínica da miséria do próximo. Existia contudo, aos seus olhos, uma exploração mais nefanda ainda: a do tempo, a monstruosidade de se fazer pagar um prêmio pelo simples transcurso do tempo, esse prêmio que são os juros, e de se abusar dessa forma, para vantagem de uns e para prejuízo de outros, de uma instituição divina e geral, o tempo. – Benissimo! – exclamou Hans Castorp, deixando-se levar, pelo seu entusiasmo, a empregar a fórmula de aprovação do Sr. Settembrini. – O tempo... Uma instituição divina e geral... Isto é sumamente importante! – Sim, senhor – prosseguiu Naphta. – Esses espíritos realmente humanos julgavam asquerosa a idéia de um aumento automático do dinheiro. Incluíam no conceito da usura qualquer especulação ou anatocismo e declaravam que todos os ricos ora eram ladrões ora herdeiros de ladrões. Iam ainda mais longe. Partilhavam a opinião de São Tomás de Aquino, segundo a qual o comércio em si, o mero negócio comercial, a compra e venda no intuito de obter um lucro, mas sem transformação nem melhoramento da mercadoria, representava uma profissão ignominiosa. Não eram propensos a apreciar muito o próprio trabalho, pois ele é apenas um assunto ético e não religioso, e se realiza a serviço da vida e não de Deus. E desde que não se tratava de outra coisa senão da vida e da economia, exigiam que uma atividade produtiva formasse a condição de toda vantagem econômica e a medida da respeitabilidade. Honrosos pareciam-lhes o agricultor e o artífice, mas não o mercador e o industrial. Queriam eles que a produção se acomodasse às necessidades e abominavam a produção em massa. Bem, depois de séculos de soterramento ressurgem todos esses princípios e padrões econômicos no movimento moderno do comunismo. A semelhança é completa, até no significado da reivindicação da soberania, que pleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho internacional, o proletariado do mundo, que hoje em dia opõe a humanidade e os critérios da Cidade de Deus à depravação burguês-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigência de salvação política e econômica dos nossos tempos, não tem o sentido de um domínio pelo domínio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, o sentido da transição e da transcendência, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes. Foi essa a sutil exposição de Naphta. Fez-se silêncio no pequeno grupo. Os jovens olhavam o Sr. Settembrini, como se fosse ele quem devesse reagir dessa ou daquela forma. – É pasmoso – disse o italiano. – Francamente, confesso que estou emocionado. Eu não teria esperado por essa. Roma locuta. E como falou! Diante dos nossos olhos executou um salto mortal hierático, e a contradição que porventura houvesse nesse adjetivo foi “ab-rogada temporariamente”. Sim, senhor! Repito: é pasmoso! O senhor admite a possibilidade de objeções, meu caro professor? Falo de objeções feitas exclusivamente sobre o fundamento da lógica. O senhor acaba de esforçar-se por nos fazer compreender um individualismo cristão, baseado na dualidade de Deus e do mundo e por demonstrar a sua primazia sobre toda mobilidade determinada pela política. Poucos minutos depois levou o socialismo até a ditadura e o terror. Como consegue o senhor reconciliar essas duas coisas? – As contradições – replicou Naphta – podem reconciliar-se. Somente o meio-termo, e a mediocridade são irreconciliáveis. Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. Corrige a sua ética paga por meio de um pouco de cristianismo, um pouco de direito do indivíduo e um pouco de pretensa liberdade. Isso é tudo. Um individualismo, porém, que parte da importância cósmica, da importância astrológica da alma individual, um individualismo não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, mas como o conflito entre o eu e Deus, entre a carne e o espírito – tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva... – É anônimo e coletivo – disse Hans Castorp. Settembrini mirou-o com os olhos arregalados. – Cale-se, engenheiro! – ordenou com uma severidade que se devia atribuir ao seu nervosismo e à tensão do seu espírito. – Instrua-se, mas deixe de externar suas opiniões!... Recebi uma resposta – prosseguiu, voltando-se novamente para Naphta. – Ela pouco me consola, mas, ao menos, é uma resposta. Encaremos todas as conseqüências que provêm dela... Com a indústria, o comunismo cristão rejeita a técnica, a máquina, o progresso. Com aquilo que o senhor qualificou de camada de comerciantes, com o dinheiro e os negócios lucrativos, que a Antigüidade colocava muito acima da agricultura e do artesanato, reprova a liberdade. É evidente, salta aos olhos que dessa forma – tal como aconteceu na Idade Média – todas as relações particulares e públicas ficam presas ao solo. E o mesmo se dá – custa-me dizê-lo – com a personalidade. Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possuí. Com efeito, até uma fase muito adiantada da Idade Média, as grandes massas, inclusive nas cidades, compunham se de servos. No curso da nossa palestra, o senhor mencionou de vez em quando a dignidade humana. Não obstante, defende uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o aviltamento da personalidade do homem. – Sobre a dignidade e o aviltamento – disse Naphta – pode-se discutir. Por enquanto, eu ficaria muito satisfeito se essa associação o fizesse ver na liberdade menos um belo gesto do que um problema. O senhor observa que a moral econômica cristã, com toda a sua beleza e mentalidade humana, cria servos. Eu oponho a isso que a causa da liberdade ou das cidades, como se poderia dizer de uma forma mais concreta —, que essa causa, por elevada e ética que seja, acha-se historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades do espírito moderno de comerciantes e especuladores, à dominação diabólica do dinheiro e dos negócios. – Faço questão de que o senhor não se esquive por meio de antinomias e de ambigüidades, mas professe clara e inequivocamente ser partidário da mais negra das reações. – O primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar esse medo covarde da idéia de reação. – Agora basta! – disse o Sr. Settembrini numa voz levemente trêmula, enquanto afastava de si a xícara e o prato, que já estavam vazios. Levantou-se do sofá forrado de seda. – Por hoje chega, é suficiente para um só dia, segundo me parece. Professor, obrigado pelo saboroso lanche e pela conversa sumamente espirituosa. Os deveres do regime reclamam os meus amigos do Berghof, e eu gostaria, antes de irem, de mostrar-lhes o meu cubículo lá em cima. Vamos, cavalheiros! Addio, padre! Desta vez até chamou Naphta de “padre”. Hans Castorp, com as sobrancelhas franzidas, tomou nota do apelido. Os primos deixaram que Settembrini organizasse a partida, dispondo deles e nem sequer perguntando se Naphta queria ou não unir-se a eles. Os jovens despediram-se também, agradecendo, e foram convidados a voltar em breve. Acompanharam o italiano, Hans Castorp levando emprestada a obra De misria humanae conditionis, um volume cartonado, em precário estado de conservação. Lukacek, com a sua barba, melancólica, continuava sentado à mesa, trabalhando no vestido com mangas, destinado àquela velha, quando passaram pela sua porta, para ganhar a íngreme escada que conduzia à água-furtada. No fundo não se tratava de mais um andar, senão simplesmente do vão do sótão, com o madeiramento despido abaixo das telhas e com a atmosfera estival de um depósito, cheirando a madeira quente. Mas o sótão abrigava dois compartimentos que o capitalista republicano habitava. Serviam de gabinete de estudo e de dormitório ao colaborador beletrista da Sociologia dos males. Mostrou-se alegremente aos jovens amigos. Qualificou a habitação de isolada e íntima, a fim de lhes sugerir os epítetos adequados de que poderiam servir-se para elogiá-la, o que de fato fizeram unanimemente. Era encantadora – acharam ambos —, tão isolada e tão íntima, exatamente como dissera o Sr. Settembrini. Lançaram um olhar ao pequeno dormitório, onde, à frente do estreito leito, se estendia um pequeno tapete de retalhos, e depois voltaram ao gabinete de trabalho, mobiliado de modo não menos despojado, mas que mostrava, ao mesmo tempo, uma ordem um tanto espalhafatosa e até fria. Cadeiras toscas e antiquadas em número de quatro, com assentos de palha, achavam-se colocadas simetricamente dos lados das portas, e também o sofá estava encostado à parede, de modo que o centro da peça pertencia somente a uma solitária mesa redonda, coberta com uma toalha verde, na qual se via, para fins de adorno ou de refresco, uma sóbria garrafa de água com um copo enfiado sobre o gargalo. Livros encadernados e brochuras encontravam-se apoiados obliquamente uns nos outros sobre uma pequena estante, e junto à janelinha erguia-se sobre pernas altas uma papeleira leve, diante da qual havia um pedacinho de feltro espesso, de tamanho apenas suficiente para que se pudesse ficar de pé em cima dele. Durante um momento, Hans Castorp, a título de experiência, pôs-se no lugar onde o Sr. Settembrini costumava trabalhar, estudando, para fins enciclopédicos, as belas-letras sob o ponto de vista do sofrimento humano. Fincando os cotovelos na tábua inclinada, o jovem declarou que ali se podia viver de um modo isolado e íntimo. Nessa mesma posição – opinou – devia o pai de Lodovico, com seu nariz fino e comprido, ter ficado diante da sua escrivaninha, em Pádua. E Hans Castorp inteirou-se de que realmente essa era a papeleira do saudoso sábio; também as cadeiras de palhinha, a mesa e a própria garrafa de água haviam pertencido a ele. E mais ainda: as cadeiras provinham do avô, o carbonário; haviam feito parte da mobília do seu escritório em Milão. Isso era impressionante. A fisionomia das cadeiras tomava aos olhos dos jovens ares de insubmissão política. Joachim levantou-se daquela em que se instalara inocentemente, com as pernas cruzadas, e olhou-a desconfiado, sem voltar a sentar-se. Hans Castorp, porém, de pé diante da papeleira de Settembrini-pai, pensava no filho que agora trabalhava nela, associando a política do avô e o humanismo do genitor, com o fim de criar obras beletrísticas. Pouco depois saíram todos os três. O escritor ofereceu-se a acompanhar os primos pelo caminho de regresso. Caminharam um bom pedaço sem falar, mas o seu silêncio estava relacionado com Naphta, e Hans Castorp não tinha pressa. Estava certo de que o Sr. Settembrini não deixaria de mencionar o vizinho, e que só os acompanhara na intenção de fazê-lo. Não se enganou. Depois de um suspiro dado para tomar impulso, o italiano começou dizendo: – Senhores, eu desejaria adverti-los. Como Settembrini fizesse uma pausa, Hans Castorp indagou com fingida surpresa: – Contra o quê? – Poderia ter perguntado: “Contra quem?” Mas preferiu a forma impessoal, para documentar a extensão da sua inocência, ainda que o próprio Joachim soubesse muito bem de que se tratava. – Contra a personalidade que acabamos de visitar – respondeu Settembrini – e que eu tive de apresentar-lhes contra a minha vontade. Os senhores sabem que isso aconteceu por mero acaso e não houve jeito de evitá-lo. Mas a responsabilidade me cabe e pesa sobre mim penosamente. É minha obrigação expor à juventude, da qual os senhores fazem parte, os perigos espirituais que acarreta o contato com esse homem. Devo pedir-lhes que mantenham em limites seguros as relações com ele. Sua forma é lógica, mas sua natureza é confusão. Hans Castorp replicou que, realmente, não se sentia à vontade com Naphta. Suas palavras deixavam-no às vezes com uma sensação esquisita. Podia-se pensar em alguns momentos que ele pretendia afirmar seriamente que o Sol girava em torno da Terra. Mas, como poderiam eles, os primos, ter imaginado que fosse inconveniente travar relações sociais com um amigo do Sr. Settembrini? Não acabava ele próprio de dizer que haviam conhecido Naphta por seu intermédio? Tinham-no encontrado em sua companhia; o homem passeava com ele, que tomava o chá na sua casa, assim sem cerimônia, e tudo isso demonstrava, afinal... – Sem dúvida, meu caro engenheiro, sem dúvida! – a voz do Sr. Settembrini soava suave, resignada, e contudo levemente trêmula. – São objeções que se impõem, e por isso o senhor tem razão de fazê-las. Muito bem, estou disposto a defender-me. Vivo sob o mesmo teto com esse senhor. Freqüentes encontros são inevitáveis. Uma palavra traz a outra. A gente trava conhecimento. O Sr. Naphta é homem inteligente, o que é coisa rara. Tem um temperamento discursivo, assim como eu. Que me condene quem quiser, mas aproveito a oportunidade de cruzar as lanças da idéia com um adversário de qualidade até certo ponto igual. Não tenho mais ninguém, nem perto nem longe... Numa palavra, não nego que o visito e que ele me visita. Também passeamos juntos. E discutimos. Discutimos encarniçadamente, quase todos os dias. Mas confesso que a oposição e a hostilidade da sua maneira de pensar representa para mim precisamente um atrativo a mais para me encontrar com ele. Tenho necessidade do atrito. As convicções não vivem, a não ser que tenham ocasião de lutar, e eu, por minha parte, tenho sólidas convicções. Mas como poderiam os senhores afirmar o mesmo das suas próprias pessoas? O senhor, tenente, ou o senhor, engenheiro? Não estão armados para se defender contra miragens intelectuais. Correm o perigo de que essas sutilezas meio fanáticas, meio maliciosas, lhes prejudiquem o espírito e a alma. Hans Castorp admitiu tudo isso. Seu primo e ele próprio eram, provavelmente, naturezas um tanto expostas. A velha história dos filhos enfermiços da vida; claro! Mas a ela podia-se opor Petrarca com a sua divisa, que o Sr. Settembrini conhecia. Em todo caso era digno de ser ouvido o que Naphta explanava. Que não fossem injustos: aquilo que ele dissera sobre o tempo comunista, por cujo transcurso ninguém deveria receber um prêmio, era mesmo notável. E também eram muito interessantes as suas idéias sobre a pedagogia, coisas que ele, Hans Castorp, nunca teria chegado a saber sem Naphta... Settembrini cerrou os lábios, e Hans Castorp apressou-se a acrescentar que, naturalmente, ele se abstinha de tomar partido e de formar uma opinião. Simplesmente achara dignos de serem ouvidos os argumentos de Naphta sobre os desejos da juventude. – Explique-me o senhor uma coisa – continuou. – Esse Sr. Naphta (digo “esse senhor” para indicar que não simpatizo com ele irrestritamente; pelo contrário, observo com relação a ele uma rigorosa reserva mental...) – E o senhor faz muito bem! – exclamou Settembrini, cheio de gratidão. – ...ele acaba de dizer horrores contra o dinheiro, a alma do Estado, segundo se expressava, e contra a propriedade particular, que tachava de roubo; numa palavra, atacou a riqueza capitalista, da qual, se não me engano, afirmou que era o combustível das chamas do inferno. Parece-me que se serviu dessa expressão. Em altos brados elogiou a condenação medieval do anatocismo. E apesar de tudo isso ele próprio faz... O senhor me desculpe, mas ele deve... É uma verdadeira surpresa quando se entra na casa dele. Toda aquela seda... – Pois é – sorriu Settembrini. – A tendência dos seus gostos é característica. – ...e os belos móveis antigos – prosseguiu Hans Castorp nas suas reminiscências —, a Pietà do século XIV... o lustre veneziano... o criadinho de libré... e bolo de chocolate em abundância... É preciso que ele pessoalmente... – O Sr. Naphta, pela sua pessoa – explicou Settembrini —, é tão pouco capitalista quanto eu. – Mas... – perguntou Hans Castorp. – As suas palavras escondem um “mas”, Sr. Settembrini. – Bem, essa gente não deixa nenhum dos seus na miséria. – Quem é “essa gente”? – Aqueles padres. – Padres? Que padres? – Ora, engenheiro, eu falo dos jesuítas. Fez-se um momento de silêncio. Os primos mostraram sinais da mais viva consternação. Hans Castorp exclamou: – Não é possível!... Cruzes! O homem é um jesuíta? – O senhor adivinhou – respondeu o Sr. Settembrini cerimoniosamente. – Não, nunca na vida teria eu... Como poderia pensar? É por isso que o senhor o chamou de “padre”. – Foi um pequeno excesso de cortesia – tornou Settembrini. – O Sr. Naphta não é padre. Se por enquanto ainda não atingiu esse grau, a culpa é da enfermidade. Mas ele passou pelo noviciado e fez os primeiros votos. A doença forçou-o a interromper os estudos teológicos. Depois, teve ainda alguns anos de serviço como prefeito num instituto da ordem, isto é, como preceptor ou mentor de jovens alunos. Isso vinha ao encontro das suas inclinações pedagógicas. E aqui pode continuar a satisfazê-las, ensinando latim no Fredericianum. Vive em Davos faz cinco anos. Não se pode dizer ao certo quando será capaz de partir, se é que um dia o será. Mas Naphta pertence à ordem, e mesmo que os laços que o ligam a ela fossem mais frouxos, nunca lhe faltaria nada. Eu já expliquei aos senhores que ele, pessoalmente, é pobre, quer dizer, não possui bens. Claro, é a regra! A ordem, por sua vez, dispõe de imensas riquezas e cuida dos seus, como os senhores podem ver. – Barba...ridade! – murmurou Hans Castorp. – E eu nem sabia ou pensava que uma coisa dessas pudesse existir realmente! Um jesuíta! Sim, senhor!... Mas diga-me mais uma coisa: se ele está bem provido e amparado por aquela gente, por que cargas d'água vive então... Absolutamente não quero criticar a sua habitação, Sr. Settembrini O senhor está muito bem instalado na casa de Lukacek, de um modo agradavelmente isolado e sobretudo tão íntimo... Mas sou de opinião que esse Naphta, uma vez que anda tão cheio da nota, para usar esse termo vulgar... Por que não aluga uma moradia mais vistosa, com uma entrada elegante e peças grandes, numa casa distinta? Há mesmo qualquer coisa de misterioso e aventureiro nesse jeito de morar num quartinho desses, com todas aquelas sedas... Settembrini deu de ombros. – Devem ser razões de tato e de gosto que determinaram a escolha – disse então. – Acho que sua consciência anticapitalista se sente melhor quando ele habita o quarto de homem pobre e compensa isso pela maneira como o habita. Talvez haja também questões de discrição metidas nisso. Não se deve ostentar a todo mundo que se é abastecido pelo Diabo. Adota-se uma fachada pouco impressionante, atrás da qual se dá livre curso ao gosto sacerdotal pela seda... – É esquisito! – disse Hans Castorp. – É completamente novo e emocionante para mim, como confesso com toda a franqueza. Não, de fato estamos muito gratos, Sr. Settembrini, porque nos apresentou esse homem. Creia-me que freqüentemente voltaremos a visitá-lo. Isso ficou combinado. Relações assim ampliam o horizonte de maneira inesperada e permitem olhar para um mundo cuja existência a gente absolutamente ignorava. Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores? É compatível com a doutrina romana, uma vez que dizem que a ordem intriga o mundo inteiro em prol dela? Não é tudo isso – como se diz? – herético, anormal, incorreto? Essas idéias me ocorrem a respeito de Naphta, e eu gostaria muito de saber o que o senhor pensa. Settembrini sorriu. – É muito simples. O Sr. Naphta é, realmente e antes de mais nada, um jesuíta genuíno e completo. Mas em segundo lugar é um homem de espírito – do contrário eu não procuraria a companhia dele – e como tal empenha-se em encontrar novas combinações, adaptações e associações, ainda em busca de variações modernas. Os senhores me viram surpreendido diante das suas teorias. Comigo, ele nunca se revelara até esse ponto. Servi-me do estímulo que a presença dos senhores evidentemente exercia sobre ele para provocá-lo, a fim de que dissesse, em certo sentido, a última palavra. E essa palavra foi bastante excêntrica e bastante monstruosa... – Sim... E por que não chegou a ser padre? Acho que ele tem a idade necessária. – Eu já lhe disse que a doença o impediu, temporariamente... – Hum... Mas, se Naphta é em primeiro lugar um jesuíta, e em segundo, um homem de espírito que anda em busca de combinações, não acredita o senhor que esse outro elemento, o acessório, provém da enfermidade? – Que quer dizer com isso? – Olhe, Sr. Settembrini, parece-me o seguinte: ele tem uma mancha úmida que o impede de ser padre. Mas aquelas suas combinações também o teriam impedido, e sob esse aspecto podese dizer que as combinações e a mancha úmida pertencem à mesma categoria. Ele é, à sua maneira, uma espécie de filho enfermiço da vida, um joli jésuite com uma petite tache humide. Haviam chegado ao sanatório. No terraço em frente ao edifício detiveram-se ainda um instante, antes de se separarem. Formaram um pequeno grupo, enquanto outros pensionistas, que andavam ociosos nas proximidades do portão, observavam a sua palestra. O Sr. Settembrini disse: – Mais uma vez, meus jovens amigos, advirto-os. Não posso proibir-lhes a continuação das relações uma vez estabelecidas, desde que se sintam impelidos pela curiosidade. Mas criem em torno do coração e do cérebro uma couraça de desconfiança. Nunca deixem de opor uma resistência crítica. Eu definirei esse homem numa única palavra: é um voluptuoso. Os primos fizeram uma careta. A seguir perguntou Hans Castorp: – Um quê? Ora veja! Mas ele pertence a uma ordem. Pelo que sei, existem ali alguns votos que devem ser feitos, e além disso Naphta é tão minguado e tão débil... – O senhor fala muito ingenuamente, engenheiro – retrucou o Sr. Settembrini. – Aquilo nada tem que ver com a debilidade, e quanto aos votos há certas reservas. Porém, eu falei num sentido mais lato e mais espiritual, na esperança de encontrar alguma compreensão da sua parte. Lembra-se ainda do dia em que o visitei no seu quarto – já faz muito, muitíssimo tempo –, o senhor passava pelo período de acamamento obrigatório, logo depois da sua admissão como paciente... – Como não! O senhor entrou na hora do crepúsculo e acendeu a luz. Recordo-me como se fosse hoje... – Bem, naquele dia o curso da palestra, como graças a Deus acontece freqüentemente, levou-nos a certos assuntos elevados. Creio que falamos até da vida e da morte, da natureza digna da morte, contanto que seja uma condição e um complemento da vida, e do caráter de bichopapão que ela assume quando o espírito comete o pavoroso erro de isolá-la como princípio. Senhores – prosseguiu o Sr. Settembrini, aproximando-se muito dos dois jovens e estendendolhes o polegar e o dedo médio da mão esquerda à maneira de uma forquilha, como para apanharlhes a atenção, enquanto erguia o indicador da direita em sinal de admoestação... –, gravem na sua memória que o espírito é soberano, que sua vontade é livre, que determina o mundo moral. Porém, se dualisticamente isola a morte, esta se converte, real e virtualmente, graças à vontade do espírito, numa potência própria, oposta à vida, num princípio antagônico, na grande sedução; e seu império é o da voluptuosidade. Os senhores perguntam: “Por que da voluptuosidade?” E eu respondo: porque a morte dissolve e redime, porque traz a redenção, mas não a redenção do mal, e sim a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia. Se os advirto contra o homem que os senhores, malgrado meu, conheceram por meu intermédio, se os exorto a que blindem os corações com a tríplice couraça da crítica, no contato e nas discussões com ele, é porque todos os seus pensamentos têm caráter voluptuoso, pois estão colocados sob a proteção da morte, que é uma potência sumamente licenciosa, como eu já lhe disse, engenheiro, naquela ocasião – lembro-me bem da expressão que usei; sempre guardo na memória as expressões precisas e incisivas que tive oportunidade de formular –, é uma potência dirigida contra a civilização, o progresso, o trabalho e a vida. E o mais nobre dever do educador é pôr as almas dos jovens ao abrigo das suas emanações mefíticas. Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer. Hans Castorp e Joachim Ziemssen agradeceram-lhe todos os conselhos, despediram-se e subiram até o portal do Berghof, ao passo que o Sr. Settembrini regressava à sua papeleira de humanista, um andar acima da cela forrada de seda do Sr. Naphta. A visita dos primos à casa de Naphta, que acabamos de descrever, foi a primeira que lhe fizeram. Seguiram-se a ela duas ou três outras, uma até na ausência do Sr. Settembrini, e todas elas forneciam ao jovem Hans Castorp material para as suas reflexões, quando se deixava estar no seu retiro florido de azul e “reinava”, enquanto pairava ante seus olhos interiores aquela forma sublime que se chama Homo Dei. Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante Dessa forma veio o mês de agosto e, logo no seu princípio, o primeiro aniversário da chegada do nosso herói. Felizmente, a data passou despercebida. Ainda bem que foi assim. Hans Castorp pressentira-a com certo mal-estar. E isso era a regra ali em cima. Ninguém gostava do dia da chegada. Os veteranos e mesmo os pensionistas com apenas um ano de permanência não costumavam comemorá-lo. Se bem que normalmente se aproveitasse qualquer pretexto para festividades e bebedeiras alegres, se bem que o número dos acentos gerais e importantes que marcavam o ritmo e a pulsação do ano fosse aumentado por muitíssimos outros de natureza privada e irregular, se bem que aniversários natalícios, exames médicos, iminências de partidas, quer autorizadas, quer “em falso”, dessem motivos para comezainas no restaurante e para festins regados a champanha, essa data habitualmente era relegada ao silêncio. Os pensionistas passavam por cima dela ou esqueciam-na realmente. Em todo caso, podiam-se fiar em que os outros tampouco a recordariam com muita precisão. Sem dúvida, era costume prestar atenção às subdivisões do tempo; observava-se o calendário, a sucessão, a volta de determinado dia. Mas medir e contar aquele tempo que para uma certa pessoa se associava ao espaço ali de cima – isto é, o tempo particular e individual – cabia a principiantes e a pacientes de curto prazo; os mais traquejados preferiam a imensidão, a eternidade despercebida, o dia que era sempre o mesmo, e cada um tinha suficiente delicadeza para supor nos demais o desejo que ele próprio alimentava. Dizer a um enfermo: “Hoje faz três anos que o senhor está aqui”, seria julgado inábil e brutal. Era coisa que não acontecia. A própria Srª. Stöhr, por maiores que fossem os seus defeitos, demonstrava nesse ponto bastante tato e polidez, de maneira que nunca cometeria tamanha gafe. Sua enfermidade, o estado febril de seu corpo, estavam ligados, inegavelmente, a uma crassa ignorância. Havia só poucos dias, ela falara à mesa da “afetação” dos ápices dos seus pulmões, e durante uma conversa sobre assuntos históricos, declarara que as datas dos grandes feitos da história eram para ela uma espécie de “anel de Polícrates”, deixando estupefatos os comensais. Era, porém, inimaginável que fosse recordar, em fevereiro, ao jovem Ziemssen a data do seu jubileu, ainda que talvez se lembrasse dela; pois a sua infortunada cabeça estava naturalmente cheia de datas e coisas inúteis, e a Srª. Stöhr gostava de fazer as contas dos outros. Mas a tradição impedia-a de falar. E o mesmo se deu no aniversário da chegada de Hans Castorp. No curso da refeição, a desgraçada procurara uma vez piscar-lhe o olho de modo significativo; mas como a fisionomia do jovem não desse nenhum sinal de compreensão, apressara-se a bater em retirada. Também Joachim deixará de manifestar-se, e todavia não esquecera a data em que fora à estação de Davos- Dorf para receber o primo visitante. Mas Joachim, por natureza pouco inclinado a conversar – muito menos do que Hans Castorp se mostrava ali em cima, sem falar de certos humanistas e disputadores da sua roda —, Joachim exibia nos últimos tempos uma taciturnidade singular e surpreendente. Só se expressava em monossílabos, embora o seu semblante revelasse um violento trabalho interior. Era evidente que a estação de Davos-Dorf despertava nele outras idéias que não as de chegada e de recepção... Mantinha intensa correspondência com a planície. Dentro dele, decisões iam amadurecendo. Os preparativos que fazia aproximavam-se do fim. O mês de julho fora quente e cheio de sol. Mas com o princípio do novo mês irrompeu uma onda de mau tempo, com uma umidade brumosa e com chuvas mescladas de neve, seguidas de uma nevada incontestável. Esse tempo estendeu-se, interrompido por alguns esplêndidos dias de verão, além dos fins de agosto, até pleno setembro. No começo, os quartos continuavam conservando o calor do período estival precedente; registravam-se dez graus no seu interior, o que passava por temperatura agradável. Mas aos poucos aumentava o frio, e o aspecto da neve que caía sobre o vale causou viva satisfação, porque só ele – a queda de temperatura não teria bastado – decidiu a “administração” a acender o aquecimento central, em primeiro lugar na sala de refeições e depois também nos quartos; e quem, após ter cumprido o dever do repouso, se desembaraçasse dos seus dois cobertores e, abandonando a sacada, entrasse no aposento, podia tocar com as mãos úmidas e enregeladas os radiadores reanimados, cuja emanação seca intensificava o ardor das faces. Era isso o inverno? Os sentidos dificilmente se esquivavam a essa impressão, e todos lamentavam “terem sido roubados do verão”, posto que eles mesmos, ajudados por circunstâncias artificiais e naturais, por um pródigo consumo de tempo, o tivessem escamoteado a si próprios. A razão argumentava que ainda viriam uns belos dias de outono, talvez até toda uma série deles, e de tamanho esplendor cálido que não seria excessiva honra atribuir-lhes o nome de verão – uma vez que se fizesse abstração da órbita do sol já menos oblíqua e do fato de anoitecer mais cedo. Mas o efeito que a paisagem hibernal exercia sobre a alma era mais forte do que esse tipo de consolo.. Os enfermos colocavam-se junto à porta cerrada da loggia e contemplavam com repugnância o torvelinho que se abatia lá fora. Pelo menos era essa a atitude de Joachim, que disse numa voz oprimida: – Será que aquilo vai recomeçar agora? Hans Castorp respondeu do fundo do quarto: – Seria um pouco prematuro. Só pode ser passageiro, apesar da aparência terrivelmente definitiva. Se o inverno consiste na escuridão, na neve, no frio e nos radiadores quentes, temos outra vez inverno; não há como negar. E quando considero que o inverno apenas acaba de terminar e mal passou o degelo – em todo caso nos parece que recém-saímos da primavera; não acha também? –, bem, então tomo um susto, francamente! Essas idéias são perigosas para o nosso otimismo. Vou lhe explicar por quê. Quero dizer que o mundo normalmente está organizado de maneira a corresponder às necessidades do homem e a estimular-lhe a alegria de viver; isso se deve admitir. Não vou ao ponto de dizer que a ordem natural das coisas, por exemplo, o tamanho da Terra, o tempo que ela precisa para dar uma volta em torno de si mesma e em torno do Sol, o ciclo das estações, o ritmo cósmico, se o quer chamar assim – que tudo isso obedeça às nossas necessidades; tal afirmação seria muito pretensiosa e simplista; seria pura ideologia, como dizem os filósofos. Mas o caso é que as nossas necessidades e os fatos básicos e gerais da natureza estão, graças a Deus, de acordo uns com os outros. Digo: “Graças a Deus!” porque aí temos realmente um motivo para dar graças a Ele. Na planície, quando vem o verão ou o inverno, já passou tanto tempo desde o verão ou o inverno anterior, que a estação que chega nos é outra vez nova e bem-vinda, e disso deriva a alegria de viver. Mas aqui em cima essa ordem e esse acordo têm sido perturbados, primeiro porque no fundo não há verdadeiras estações, como você mesmo me disse certa vez, mas somente dias de inverno e dias de verão pêle-mêle, numa completa mixórdia, e segundo porque aquilo que decorre para nós aqui não é tempo, de maneira que o inverno, quando chega, não é novo, mas sim o mesmo que o passado. Daí se explica o mau humor com que você está olhando pela janela. – Muito obrigado – disse Joachim. – E agora que você me explicou o fato, parece-me tão satisfeito que até se conforma com a coisa em si, apesar de que ela... Não senhor! – exclamou Joachim. – Basta! Isso é uma porcaria! Tudo é uma enorme e nojenta porcaria! E se você, pela sua conta... Eu... – A passo apressado saiu do quarto, fechando furiosamente a porta atrás de si e, se não enganavam todos os sinais, havia lágrimas nos seus belos e brandos olhos. O outro ficou atrás, consternado. Não tomara muito a sério certas decisões do primo, enquanto este se limitara a ameaças feitas em altos brados. Agora, porém, que alguma força operava silenciosamente no interior de Joachim e o primo se comportava como acabava de fazer, Hans Castorp aterrorizou-se, porque compreendia que esse militar era bastante homem para passar a agir. E o jovem ficou pálido de medo, medo que sentia por ambos, pelo outro e por si próprio. “Fort possible qu'il aille mourir”, pensou, e como isso indubitavelmente fosse uma sabedoria de terceira mão, mesclou-se com ela ainda a tortura de uma velha e jamais tranqüilizadora suspeita, enquanto continuava a cismar: “Será possível que ele me vá deixar sozinho aqui em cima, a mim que somente subi para visitá-lo?” E daí chegou a acrescentar: “Mas isso seria maluco e horroroso, a tal ponto que sinto como meu rosto se gela e meu coração lateja desordenadamente. Pois se eu ficar sozinho nestas alturas – e é isso o que farei, se ele partir; que o acompanhe absolutamente não entra em questão! —, nesse caso (agora o meu coração parou por completo!), nesse caso é para sempre, é para todos os tempos, porque eu sozinho nunca na vida reencontrarei o caminho que conduz à planície...” Tais foram as temerosas reflexões de Hans Castorp. Aquela mesma tarde devia trazer-lhe certeza sobre o curso do porvir. Joachim declarou as suas intenções. Foram lançados os dados. Caiu o golpe decisivo. Depois do chá desceram ao bem-iluminado subterrâneo para apresentar-se ao exame mensal. Era em princípios de setembro. Ao entrarem na atmosfera seca do consultório encontraram o Dr. Krokowski sentado no seu lugar diante da escrivaninha, ao passo que o conselheiro, com as faces muito azuladas, e com os braços cruzados, encostava-se à parede. Com o estetoscópio, que segurava numa das mãos, ia dando leves golpes no seu ombro. Bocejou em direção ao teto. – Bom dia, meus filhos – disse em voz fatigada. No decorrer da cena que se seguiu, continuou manifestando uma disposição bastante lânguida, cheia de melancolia e de renúncia geral. Provavelmente acabava de fumar. Mas tivera também alguns desgostos autênticos, dos quais os primos já tinham ouvido falar, incidentes de sanatório, de um gênero suficientemente conhecido. Tratava-se de uma jovem, de nome Ammy Nölting, que se internara no Berghof pela primeira vez no outono do ano retrasado e recebera alta nove meses depois, em agosto; mas já em setembro reaparecera, porque não “se sentira bem” em casa; em fevereiro, fora novamente mandada para a planície, com pulmões onde já não se percebia o menor ruído estranho; mas em meados de julho voltara a ocupar o seu lugar à mesa da Srª. Iltis. Haviam surpreendido a dita Ammy, à uma hora da madrugada, em companhia de um enfermo chamado Polypraxios, o mesmo grego que na noite do carnaval causara sensação pela elegância das suas pernas, um jovem químico, cujo pai possuía uma fábrica de tintas no Pireu. Polypraxios fora apanhado no quarto de Ammy, por uma amiga loucamente enciumada, que ali chegara pelo mesmo caminho que ele, isto é, pelas sacadas, e, dilacerada de mágoa e de raiva diante do quadro que se lhe oferecera, fizera uma gritaria medonha, alarmando todo mundo e dando origem a um escândalo extraordinário. Behrens vira-se obrigado a despedir os três, o ateniense, a Nölting e a amiga, que, de tanta paixão, não se importara com a própria honra. Acabava de discutir o chocante assunto com o assistente a cuja clientela particular haviam pertencido tanto Ammy como a amiga. Ainda durante o exame dos primos prosseguiu preocupando-se com o caso, num tom sombrio e resignado; era um perito tão consumado na arte da auscultação que sabia explorar o interior de um enfermo enquanto falava de outra coisa, e ainda ditava ao assistente os fenômenos verificados. – Pois é, gentlemen, sempre essa maldita libido! – disse. – Claro que os senhores se divertem com a história. Pouco se lhes dá... Vesicular... Mas um diretor de sanatório fica com nojo dessas coisas; podem... Maciez... podem me acreditar. Que culpa tenho eu de que a tísica ande freqüentemente acompanhada de extrema concupiscência? Respiração levemente rude... Não fui eu quem arranjou o mundo dessa maneira. Mas antes que a gente se dê conta disso, acha-se no papel de um dono de rendez-vous. Diminuição do murmúrio, abaixo da axila esquerda... Temos a análise, proporcionamos oportunidades para desabafarem. Que adianta? Quanto mais se abrem esses piratas, mais assanhados se tornam. Eu recomendo as matemáticas... Aqui melhorou; desapareceram os roncos... A ocupação com as matemáticas, digo eu, é o melhor remédio que existe contra a lascívia. O Promotor Paravant, que muito sofria da tentação, meteu-se a estudálas. Anda às voltas com a quadratura do círculo e sente-se bastante aliviado. Mas a maioria é por demais estúpida e preguiçosa para isso; quê Deus lhes perdoe!... Vesicular... Olhe, eu sei perfeitamente que a mocidade aqui em cima facilmente toma um mau caminho e se deprava por completo. Antigamente fiz algumas tentativas de intervir nesses casos de devassidão. Mas aconteceu que qualquer irmão ou noivo me perguntava à queima-roupa o que eu tinha com isso. Desde então limito-me a ser um simples médico e nada mais. Ligeiro estertor à direita, na parte superior... Estava terminado o exame de Joachim. O Dr. Behrens enfiou o estetoscópio no bolso do avental e esfregou os olhos com a manzorra esquerda, como costumava fazer, quando “se ausentava” ou se sentia melancólico. Quase maquinalmente, entre bocejos mal-humorados, recitou a sua lição: – Pois então, Ziemssen, ânimo! É verdade que nem tudo corre exatamente como o exige o manual de fisiologia. Aqui e ali anda ainda encrencado, e o senhor, por enquanto não liquidou a sua conta com Gaffky. Pelo contrário, comparado com a última vez, até subiu um grau na escala. Desta vez são seis. Mas não chore por causa disso! Quando chegou aqui, estava mais doente do que hoje; isso lhe dou por escrito. E se o senhor ficar conosco ainda uns cinco ou seis menses... Não acha que menses soa melhor do que meses? Eu tenciono só dizer menses, daqui em diante... – Senhor conselheiro... – começou Joachim. Estava de pé, com o torso desnudo, numa atitude tesa. Tinha o peito saliente, os calcanhares unidos e as mesmas manchas terrosas no rosto que tivera em certa ocasião, quando Hans Castorp pela primeira vez notara que esse era o modo como empalidecia a tez bronzeada. – Se o senhor – prosseguiu Behrens, sem se importar com a interrupção – continuar aqui cumprindo religiosamente os deveres do regime, durante meio ano, pouco mais ou menos, será um homem curado e poderá tomar Constantinopla de assalto. Terá bastante fortaleza para conquistar todas as fortalezas que quiser... Deus sabe quantos trocadilhos o médico, na sua disposição sombria, ainda teria feito, não o tivessem desconcertado o aspecto imperturbável de Joachim e a sua manifesta intenção de falar, e de falar corajosamente. – Senhor conselheiro – disse o jovem –, eu lhe queria dar parte de que resolvi viajar. – Ora veja! Quer tornar-se viajante? Eu pensava que o senhor, uma vez curado, pretendia ingressar nas fileiras. – Não, senhor conselheiro, tenho de partir imediatamente, daqui a uns oito dias. – Escute! Será que o entendo bem? O senhor quer ir-se, quer pôr-se em fuga? Sabe que isso se chama deserção? – Não, senhor conselheiro, eu não o considero assim. Preciso apresentar-me ao meu regimento. – Mesmo que eu lhe diga que dentro de meio ano sem falta poderei autorizá-lo a partir, mas antes desse prazo, não? Joachim ia assumindo atitude cada vez mais militar. Recolhendo o ventre, disse laconicamente, em voz sufocada: – Faz mais de um ano e meio que estou aqui, senhor conselheiro. Não posso esperar mais tempo. No começo, o senhor me disse: “Três meses”. Depois, o meu tratamento foi sucessivamente prolongado por outros três ou seis meses, e ainda não estou curado. – A culpa é minha? – Não, senhor conselheiro. Mas eu não posso esperar mais tempo. Não me é possível aguardar aqui a cura completa, a não ser que eu queira perder o momento oportuno. Tenho de partir logo. Necessito ainda de algum tempo para me equipar e para tomar diversas providências... – A sua família concorda com o seu procedimento? – Minha mãe está de acordo. Já ficou tudo combinado. A 1.° de outubro entrarei no Regimento 76, como aspirante. – Enfrentando todos os riscos? – perguntou Behrens, fixando nele os olhos injetados... – Sim, senhor conselheiro – respondeu Joachim, com os lábios trêmulos. – Hum! Está bem, Ziemssen – disse o conselheiro, mudando de expressão. Relaxando a sua posição, cedeu em toda a linha. – Está bem, Ziemssen. Mexa-se! Parta! Deus o acompanhe! Já vejo que o senhor sabe o que quer. Uma coisa é certa, que as conseqüências são da sua conta e não da minha, desde o momento em que o senhor toma a si a responsabilidade. Ajuda-te, e ajudar-te-ei. O senhor parte por sua conta e risco; eu não garanto nada. Mas, afinal, tudo pode sair bem. O senhor escolheu uma profissão que se exerce ao ar livre. É perfeitamente possível que se dê bem com ela e consiga triunfar. – Sim, senhor conselheiro. – E esse jovem da classe dos civis? Será que o senhor deseja participar da romaria? Essa pergunta dirigia-se a Hans Castorp. Achava-se este ali, tão pálido como há um ano atrás, quando daquele exame do qual resultará o seu internamento; quedava-se no mesmo lugar de então; e novamente se viam com absoluta nitidez as batidas do seu coração, que pulsava à flor da pele. – Para mim depende tudo da sua opinião, senhor conselheiro – respondeu. – Da minha opinião? Bem! – E puxando-o pelo braço, Behrens aproximou-o de si. Auscultou. Percutiu. Não ditou nada. A coisa foi rápida. Quando terminou, disse: – O senhor pode partir. Hans Castorp balbuciou: – Quer dizer... Mas como? Estou curado? – Sim, o senhor está curado. Daquele lugar à esquerda, em cima, já não vale a pena falar. Sua temperatura não pode ter relação com ele. Não sei dizer de onde ela vem. Acho que não tem grande importância. Quanto a mim, o senhor pode partir. – Mas, senhor conselheiro... Permita-me a pergunta... O senhor está falando sério? – Se eu falo sério? Mas como? Que idéia é essa? Eu queria saber o que o senhor pensa de mim. Por quem me toma? Por um dono de rendez-vous? Era uma explosão de cólera. O azul das faces do médico intensificara-se, assumindo um tom violeta, devido à congestão ardente. A crispação unilateral do lábio, sob o bigodinho, acentuara-se violentamente, a ponto de descobrir os amarelados dentes de cima. Avançando como um touro a cabeça com os olhos saltados, lacrimosos e estriados de sangue, berrou: – Não admito isso! Antes de tudo fique sabendo que não sou dono de nada! Sou um funcionário desta empresa! Sou médico! Sou exclusivamente médico; o senhor me compreende? Não sou alcoviteiro, não sou nenhum Signor Amoroso da Via Toledo, na bela Nápoles; entendeume bem? Sou um servidor da humanidade sofredora! E se os senhores tiverem formado uma opinião diferente a respeito da minha pessoa, podem ambos ir às favas ou ao diabo ou águas abaixo, conforme a sua livre escolha! Boa viagem! A passos longos e apressados saiu pela porta que dava para a ante-sala do gabinete de radiografia, e fechou-a estrondosamente atrás de si. Os primos olharam para o Dr. Krokowski em busca de um conselho. Mas este enterrou o nariz na papelada, que o absorvia por completo. Vestiram-se às pressas. Enquanto subiam pela escada, disse Hans Castorp: – Foi terrível, aquilo. Você já o viu assim em outra ocasião? – Assim, nunca. São aqueles seus ataques de loucura cesárea. A única coisa que se pode fazer é agüentá-los sem perder a linha. Claro que ele estava nervoso por causa da história de Polypraxios e da Nölting. Mas você viu... – continuou Joachim, e era visível que o prazer de ter lutado com êxito lhe enchia o coração e lhe oprimia o peito – você viu como ele cedeu terreno e capitulou, quando percebeu que eu não estava brincando? Basta que a gente se mostre enérgico e não se deixe atemorizar. Agora recebi uma espécie de autorização... O próprio Behrens disse que, provavelmente, conseguirei triunfar... Daqui a oito dias partiremos... Em três semanas, já me apresentarei ao meu regimento – terminou, corrigindo-se a si próprio e limitando à sua própria pessoa esses projetos que lhe faziam a voz vibrar de alegria. Hans Castorp permaneceu calado. Não comentou a “autorização” de Joachim, nem tampouco a sua própria, da qual igualmente poderia ter falado. Preparou-se para o repouso. Introduziu o termômetro na boca. Com umas poucas manobras velozes e precisas, cheias de arte aperfeiçoada, envolveu-se nos seus dois cobertores de lã de camelo, em conformidade com aquela prática sagrada da qual ninguém tinha idéia na planície. Depois, deixou-se ficar estendido, imóvel, transformado num rolo simétrico, sobre a excelente espreguiçadeira, no meio da umidade fria da tarde de princípios de outono. As nuvens carregadas de chuva deslizavam muito baixo. A bandeira do estabelecimento achava-se arriada. Restos de neve encontravam-se nos galhos molhados do abeto. Do alpendre do andar térreo, donde, fazia mais de um ano, ressoara pela primeira vez a voz do Sr. Albin, o murmúrio de conversas abafadas subia até os ouvidos do jovem que cumpria o seu serviço, enquanto seus dedos e seu rosto rapidamente se tornavam frios, úmidos e enregelados. Hans Castorp estava acostumado a isso e aceitava com gratidão o estilo de vida ali de cima, que havia muito era para ele o único imaginável e lhe outorgava a bênção de ficar deitado ao abrigo de tudo e de poder entregar-se a toda sorte de pensamentos. Era coisa resolvida. Joachim partiria. Radamanto dera-lhe alta – não rite, não como curado, mas em todo caso dera-lhe alta, com uma meia aprovação, em virtude da sua atitude firme. O primo viajaria no trem de bitola estreita, desceria à “baixada”, até Landquart, até Romanshorn, para depois transpor o vasto e profundo lago, sobre o qual cavalgara o cavaleiro da lenda; e finalmente, regressaria, atravessando a Alemanha inteira. Viveria lá embaixo, no ambiente da planície, rodeado de pessoas que ignoravam por completo como se devia viver, que nada sabiam do termômetro, nem da arte de se envolver nos cobertores, do saco de peles, dos três passeios cotidianos, de... Era difícil, difícil esgotar tudo quanto desconheciam lá embaixo. Mas a idéia de que Joachim, depois de ter passado mais de um ano e meio ali em cima, viveria doravante entre os ignorantões – essa idéia que só dizia respeito a Joachim, e apenas vaga, hipoteticamente, a ele, Hans Castorp, perturbou-o de tal forma que fechou os olhos e fez com a mão um gesto de defesa. – Impossível, impossível! – murmurou. Uma vez que era impossível, continuaria ele a viver ali em cima sozinho, sem Joachim? Sim. Por quanto tempo? Até que Behrens lhe desse alta como curado, e isso seriamente, não como acabava de fazê-lo. Mas, em primeiro lugar era esse momento de tal forma indeterminado, que para fixá-lo só se podia repetir aquele gesto vago que Joachim esboçara em certa ocasião; e, em segundo lugar, era duvidoso que o impossível de agora se tornasse mais possível no futuro. O contrário parecia mais provável. Era preciso reconhecer lealmente que nesse momento em que o impossível talvez ainda não fosse tão impossível como o seria mais tarde, uma mão estava sendo estendida para segurá-lo; pelo fato da partida “em falso” de Joachim, eram-lhe oferecidos um bastão e um guia para conduzi-lo à planície, para onde ele, pela sua própria força, jamais encontraria o caminho. A pedagogia humanística, se ficasse sabendo dessa oportunidade, quanto não o exortaria a que agarrasse o bastão e aceitasse o guia! Ora, o Sr. Settembrini representava coisas e potências interessantes, sem dúvida, mas não exclusivas e absolutas; e o mesmo ocorria com Joachim. O primo era militar. Partia, quase na hora do projetado regresso de Marusja, a moça dos seios opulentos, que, como sabemos, devia voltar a 1.° de outubro. Ao civil Hans Castorp, porém, a partida afigurava-se impossível precisamente porque ele tinha de esperar por Clávdia Chauchat, de cuja volta, por enquanto, nem sequer se falava. “Eu não o considero assim”, dissera o primo, quando Radamanto usara o termo “deserção”, que, com referência a Joachim, evidentemente não passava de um disparate e de um exagero do médico agastado. Mas ao civil apresentavam-se as coisas sob um aspecto diferente. No seu caso – ah, indubitavelmente era assim, e fora na intenção de desenvolver essa idéia decisiva do complexo dos seus sentimentos que se estendera na espreguiçadeira, apesar do frio úmido – no seu caso seria mesmo desertar se ele aproveitasse a ocasião e partisse mais ou menos “em falso” para a planície; fugiria então das responsabilidades que se desdobravam diante dele, devido à visão daquela forma sublime que se chamava Homo Dei; desatenderia os deveres que lhe impunha o seu “reino”, deveres laboriosos e excitantes, que ultrapassavam as suas forças inatas e todavia o enchiam de uma felicidade aventurosa, quando se consagrava a eles no seu compartimento de sacada ou naquele lugar florido de azul. Hans Castorp tirou o termômetro da boca, com tamanha violência como só lhe acontecera numa única ocasião: quando o usara pela primeira vez, logo depois de ter adquirido da Superiora o delgado instrumento. Examinou-o com a mesma curiosidade de então. O mercúrio subira consideravelmente. Mostrava 37,8 – quase 9. O jovem jogou para longe os cobertores, levantou-se de um salto, deu alguns passos rápidos através do quarto, em direção à porta do corredor. Depois voltou à cadeira. Achando-se novamente na posição horizontal, chamou em voz baixa a Joachim e informou-se da temperatura do primo. – Não tirei – respondeu este. – Bem, eu tenho tempus – disse Hans Castorp, servindo-se da expressão da Srª. Stöhr. Joachim, atrás da divisão de vidro, permaneceu silencioso. Mais tarde nada disse tampouco, nem nesse dia nem nos seguintes. Não fez perguntas a respeito dos projetos e das decisões de Hans Castorp, que, dada a brevidade do prazo, tinham de se revelar naturalmente, por atos ou pela ausência de atos. E foi a segunda alternativa que se deu. Hans Castorp parecia ter aderido ao quietismo, segundo o qual agir significava ofender a Deus, que se reserva o privilégio de fazê-lo. Em todo caso limitara-se sua atividade, nesses últimos dias, a uma visita a Behrens, da qual Joachim sabia, e cujo resultado lhe era fácil imaginar. O primo havia declarado que se permitia recordar as numerosas advertências antigas que o conselheiro lhe fizera no sentido de que esperasse a cura completa, para que não tivesse necessidade de voltar, e atribuir-lhes maior importância do que às palavras veementes, pronunciadas num minuto de exaspero. Tinha 37,8 e não se podia considerar como formalmente autorizado a partir. A não ser que aquilo que o conselheiro proferira naquela ocasião devesse ser interpretado como uma expulsão – medida que ele, Hans Castorp, não achava merecer –, desejava comunicar a sua decisão, à qual chegara pelo caminho do raciocínio calmo e em desacordo consciente com Joachim: permaneceria por enquanto ali e aguardaria sua desintoxicação total. A isso, o médico respondera aproximadamente: “Muito bem” e “Vamos pôr uma pedra no que se passou!” e “Isso é falar razoavelmente. Eu vi logo que o senhor tem mais talento para ser um bom paciente do que aquele desertor, aquele ferrabrás”. E outras coisas nesse gênero. Fora esse, segundo as conjeturas mais ou menos exatas de Joachim, o curso da entrevista. Por isso não disse nada. Apenas verificou em silêncio que Hans Castorp não imitava as medidas que ele mesmo tomava para preparar a viagem. Por outro lado, o bom Joachim andava mais que atarefado com os seus próprios problemas. Realmente não lhe era possível preocupar-se com a sorte e o futuro domicílio do primo. Uma tempestade agitava-lhe o peito, como facilmente se pode compreender. Ainda bem que tinha deixado de tomar a temperatura pretendendo que o termômetro se quebrara, caindo no chão; se a houvesse tomado, teria talvez obtido resultados perturbadores, sobreexcitado como estava, possuído de alegria e de impaciência, que ora lhe abrasavam as faces com um ardor sombrio, ora as faziam empalidecer. Já não era capaz de permanecer deitado. Durante todo o dia, Hans Castorp ouvia-o percorrer o aposento a passos largos, e eram precisamente as horas, quatro vezes por dia, em que no Berghof predominava a posição horizontal... Um ano e meio! E agora voltaria à planície, estaria em casa, apresentar-se-ia realmente ao regimento, se bem que para isso tivesse apenas meia autorização. Não era brinquedo, absolutamente! Hans Castorp tinha plena compreensão dos sentimentos do primo que ali caminhava, irrequieto. Dezoito meses, todo o ciclo de um ano e mais a metade de outro – Joachim passara-os nessas alturas, criando raízes profundas nesse solo, seguindo os trilhos do regime que aqui vigorava, desse plano inalterável da vida de sanatório, que observara durante sete vezes setenta dias, em todas as estações – e agora regressaria aos seus, viveria no “estrangeiro”, entre os ignorantes! Quantas dificuldades de aclimatação não o esperariam lá embaixo? E seria de admirar que não somente houvesse alegria na grande excitação de Joachim, senão também um quê de angústia, de mágoa causada pela despedida de tantas coisas muitíssimo costumeiras? Sem falar de Marusja... Mas a alegria preponderava. O coração e a boca do bom Joachim estavam transbordantes dela. Ocupava-se só de si próprio, desinteressando-se do futuro do primo. Dizia que tudo seria novo e viçoso – a vida, ele mesmo, o tempo, cada dia, cada hora. Voltaria a desfrutar um tempo valioso, anos de juventude que decorreriam lentamente e pesariam na balança. Falava da mãe, a tia de Hans Castorp, que tinha os mesmos olhos meigos e negros de Joachim; da mãe que não vira durante todo esse tempo passado nas montanhas, porque ela, esperando a volta do filho, do mesmo modo que este, de mês em mês, de semestre em semestre, nunca se resolvera a visitá-lo. Falava, com um sorriso entusiástico, do juramento à bandeira que prestaria dentro em breve: a cerimônia solene era realizada em presença da bandeira, e jurava-se sobre o próprio estandarte. – Não diga! – admirou-se Hans Castorp. – Seriamente? Sobre um pau e um pedaço de pano? – Sim, senhor. E na artilharia juram sobre o canhão, simbolicamente. – Que costumes românticos! – observou o civil. – Costumes que merecem a qualificação de sentimentais e fanáticos. A isso, Joachim limitou-se a sacudir a cabeça, cheio de orgulho e de felicidade. Absorvia-se nos preparativos. Pagou a última conta na “administração”. Dias antes do prazo que se fixara a si mesmo, começou a arrumar as malas. Emalou as roupas de verão e as de inverno. Mandou o criado costurar dentro de uma capa de aniagem o saco de peles e os cobertores de lã de camelo; talvez lhe pudessem ser úteis por ocasião das grandes manobras. Pôsse a dizer “adeus” a todo mundo. Fez uma visita de despedida a Naphta e Settembrini – sozinho, pois o primo não o acompanhou, dessa vez, nem tampouco perguntou pelo que o italiano observara quanto à partida iminente de Joachim e à “não-partida” de Hans Castorp. Para este, pouco importava saber se Settembrini dissera “Vejam só!” ou “Sim, sim, sim!”, ou talvez um e outro, ou se ainda acrescentara “Poveretto!” Chegou então a véspera da viagem, o dia em que Joachim percorreu pela última vez todas as fases do programa diário, cada refeição, cada repouso, cada passeio, e também se despediu dos médicos e da Superiora. E surgiu a própria manhã do dia da partida. Com os olhos ardentes e as mãos frias, Joachim apareceu na hora do café. Não dormira a noite toda. Mal engoliu um bocado, e quando a anã anunciou que a bagagem já se achava amarrada no carro, levantou-se de um pulo, a fim de dizer adeus aos companheiros de mesa. A Srª. Stöhr verteu lágrimas, durante a despedida, as lágrimas fáceis e insípidas peculiares às pessoas incultas; mas, por trás das costas de Joachim, fez à professora uma careta, encolhendo os ombros e meneando a mão espalmada para manifestar, de uma forma sumamente ordinária, as suas dúvidas quanto à propriedade da partida do jovem e ao seu futuro bem-estar. Hans Castorp reparou nesse gesto, enquanto, já de pé, esvaziava a sua xícara, para seguir o primo. Restava ainda distribuir as gorjetas e retribuir, no vestíbulo, os cumprimentos oficiais de um emissário da “administração”. Como sempre, alguns pensionistas estavam presentes para assistir ao bota-fora: a Srª. Iltis, com o “esterilete”, a Levi, a moça da pele de marfim, o excêntrico Professor Popov, em companhia da noiva. Abanaram os lenços, quando o coche, refreado nas rodas traseiras, desceu pela rampa. Joachim recebera um ramalhete de rosas. Usava chapéu, ao contrário de Hans Castorp. A manhã era magnífica, o primeiro dia de sol depois de muitos nublados. O Schiahorn, as Grüne Türme, o cimo do Dorfberg, destacavam-se do azul como símbolos inabaláveis, e os olhos de Joachim repousavam sobre eles. – É mesmo uma lástima – observou Hans Castorp – que o tempo tenha melhorado tanto, precisamente no momento da partida. Parece que há nisso uma certa maldade, uma vez que a impressão final desfavorável facilita a separação. – Ao que Joachim replicou que não precisava de nada que lhe tornasse a separação mais fácil, e que esse tempo era ótimo para o seu preparo militar. Assim se daria muito bem lá embaixo. Afora essas poucas palavras, não falaram muito. Dada a situação de cada um deles em particular e a que existia entre eles, realmente não sobrava assunto para grandes conversas. Além disso, o porteiro coxo achavase sentado à sua frente, ao lado do cocheiro. Eretos, sacudidos sobre o estofamento duro do carro, haviam deixado atrás o regato e os trilhos de bitola estreita. Seguiram então a estrada espaçadamente ladeada de habitações e paralela ao leito da via-férrea. Finalmente, pararam na praça pedregosa, em frente à estação de Davos- Dorf, que não era muito mais que um telheiro. Hans Castorp assustou-se ao reconhecer tudo isso. Desde a sua chegada, que se realizara de tardezinha, fazia mais de treze meses, não voltara a ver a estação. – Foi aqui que cheguei – constatou desnecessariamente, e Joachim limitou-se a responder: – Pois é... – enquanto pagava o cocheiro. O enérgico porteiro coxo dedicou-se à compra da passagem e ao despacho das bagagens. Os primos achavam-se lado a lado sobre a plataforma, diante do trenzinho, junto do pequeno compartimento forrado de cinzento, onde Joachim pusera o sobretudo, o cobertor de viagem enrolado e as rosas, para reservar o seu lugar. – Bem, agora pode ir prestar o seu romântico juramento – disse Hans Castorp, e Joachim tornou: – Sem falta! – E que mais? Encarregou o outro de transmitir as últimas saudações, lembranças aos de baixo, lembranças aos de cima. Depois, Hans Castorp limitou-se a desenhar com a bengala no asfalto. Quando soou o sinal prevenindo os passageiros da iminência da partida, sobressaltou-se. Olhou Joachim, e este o olhou por sua vez. Apertaram-se as mãos. Hans Castorp esboçou um sorriso indeciso, ao passo que os olhos do primo mostravam-se sérios, tristes e insistentes. – Hans! – disse então... Grande Deus! Onde, em todo o vasto mundo, já se viu uma coisa tão chocante? Joachim acabava de tratar Hans Castorp pelo primeiro nome, não por “você” ou “rapaz”, como sempre havia feito; desconsiderando todos os seus princípios de rigidez e de reserva, abandonando-se a uma exuberância escandalosa, pronunciara o nome de batismo do primo. – Hans – repetiu, enquanto lhe apertava a mão com uma pressa angustiada. Hans Castorp notou que a nuca de Joachim, exausto pela insônia, pelo nervosismo da viagem e pelo abalo da despedida, tremia como fazia a sua própria, quando estava “reinando”. – Hans – disse Joachim, instantemente —, não deixe de seguir-me em breve! – Com isso saltou para o estribo. Fechou-se a porta. Ouviu-se um apito. Os carros entrechocaram-se. A pequena locomotiva pôs-se em movimento. O trem estava partindo. O viajante abanou o chapéu pela janela. O outro, que ficava atrás, respondeu com a mão. Com o coração profundamente emocionado permaneceu ainda por muito tempo ali, sozinho. Depois, regressou devagar pelo caminho que Joachim, havia mais de um ano, lhe tinha mostrado. Assalto rechaçado A roda girava. O ponteiro ia avançando. Já terminara a época do salepo e da aqüilégia; o cravo silvestre desaparecera também. As estrelas azuis da genciana, bem como os pálidos e venenosos lírios verdes, tornavam a apontar na grama úmida. Por cima dos bosques pairava uma aura avermelhada. O equinócio de outono acabava de transcorrer. O Dia de Finados achava-se próximo, e para os mais treinados consumidores do tempo, também o domingo do Advento, o dia mais curto do ano, e a festa do Natal. Por enquanto, porém, desfiava-se ainda uma série de belos dias de outubro, dias da espécie daquele em que os primos haviam ido ver os quadros do conselheiro. Desde a partida de Joachim, Hans Castorp não mais tomava as refeições à mesa da Srª. Stöhr, a mesma que o Dr. Blumenkohl abandonara para morrer, e onde Marusja procurara abafar no lencinho perfumado de flor de laranjeira a sua maljustificada hilaridade. Agora achavam-se ali pensionistas novos, pessoas completamente desconhecidas. O nosso amigo, porém, entrado no terceiro mês do segundo ano da sua estadia, recebera da “administração” um outro lugar, numa mesa vizinha, mais próxima da porta que dava para o avarandado, colocada perpendicularmente entre a antiga e a dos “russos distintos”, numa palavra: a mesa de Settembrini. Sim, novamente lhe coubera a ponta, em frente ao lugar do médico, que em cada uma das sete mesas ficava reservado ao uso esporádico do conselheiro ou do seu assistente. Na outra extremidade, à esquerda do assento do médico-presidente, tronejava sobre diversas almofadas aquele mexicano corcunda, o fotógrafo diletante, cuja expressão, em virtude de seu isolamento lingüístico, se assemelhava à de um surdo. A seu lado ficava a solteirona da Transilvânia, que como já deplorara Settembrini, pretendia interessar o mundo inteiro pelo seu cunhado, se bem que ninguém soubesse nada desse homem nem quisesse saber. Tendo atrás da nuca uma bengala de punho de prata, que também lhe prestava serviços durante os passeios regulamentares, via-se essa criatura, a certas horas do dia, junto da platibanda da sua sacada, empenhada em alargar o peito chato como uma bandeja por meio de exercícios respiratórios. Defronte a ela achava-se um tcheco, que chamavam Sr. Wenzel, já que ninguém era capaz de pronunciar o seu nome de família. Settembrini, em seu tempo, fizera às vezes tentativas no sentido de articular a exótica seqüência de consoantes de que se compunha esse nome; claro que não o fizera numa intenção séria, senão para demonstrar graciosamente a impotência da sua nobre língua de latino em face daquele amontoado selvagem de sons. Esse homem, embora fosse redondo como uma bola e se distinguisse por uma voracidade sensacional mesmo entre os pensionistas, afirmava, desde havia quatro anos, que estava fadado a morrer. Durante as reuniões noturnas, tocava de vez em quando, num bandolim enfeitado de fitas, as canções da sua terra, ou contava historietas das suas plantações de beterrabas, onde trabalhavam exclusivamente lindas pequenas. Mais perto de Hans Castorp, a ambos os lados da mesa, encontravam-se os Magnus, o cervejeiro de Halle e a sua esposa. Uma atmosfera de melancolia pairava em torno desse casal, porque ambos estavam perdendo substâncias essenciais para o metabolismo: o homem, açúcar, e a mulher, proteínas. A disposição de alma, sobretudo da pálida Srª. Magnus, parecia desprovida do menor traço de esperança. A vacuidade do espírito desprendia-se dela como um bafio de adega, e de forma ainda mais pura do que a inculta Srª. Stöhr representava ela a combinação de enfermidade e estupidez, de que Hans Castorp se escandalizara espiritualmente, sendo por isso repreendido pelo Sr. Settembrini. O Sr. Magnus revelava maior viveza e loquacidade, embora só daquele gênero que outrora originara as explosões da impaciência literária de Settembrini. Além disso, era colérico e freqüentemente tinha atritos com o Sr. Wenzel por motivos políticos e outros. Exasperavam-no as aspirações nacionalistas do tcheco, e ainda mais o fato de ele ser partidário do antialcoolismo e pôr em dúvida a moralidade da profissão de cervejeiro. Em oposição a isso, o Sr. Magnus, com o rosto rubro, defendia a perfeição higiênica da bebida à qual os seus interesses se achavam tão intimamente ligados. Em tais ocasiões, o Sr. Settembrini costumava fazer, humoristicamente, o papel de pacificador. Hans Castorp, no lugar dele, sentia-se menos hábil e não dispunha de suficiente autoridade para substituir o italiano. O jovem não mantinha relações pessoais senão com dois dos seus comensais: o primeiro era A. C. Ferge, de Petersburgo, seu vizinho da esquerda, o sofredor bonachão que, sob as brenhas do bigode ruivo, sabia falar ora da fabricação de galochas ora de regiões longínquas, do círculo polar, das neves eternas do cabo Norte, e de vez em quando acompanhava Hans Castorp num dos passeios regulamentares. O segundo, porém, que se unia a eles cada vez que se oferecia uma oportunidade, e tinha o seu lugar na outra extremidade da mesa, em frente ao mexicano corcunda, era o homem de Mannheim, aquele moço de cabelos ralos e dentes defeituosos; chamava-se Wehsal, Ferdinand Wehsal, comerciante, e era o mesmo cujos olhares haviam ficado presos, com um desejo melancólico, à graciosa pessoa de Mme. Chauchat; desde o carnaval procurava obter a amizade de Hans Castorp. Fazia-o com obstinação e humildade, com um servilismo suplicante que tinha, aos olhos de Hans Castorp, qualquer coisa de horroroso e repulsivo, porque compreendia o seu sentido complicado; mesmo assim, o jovem esforçava-se por acolhê-lo humanamente. Com uma expressão calma – pois sabia que o menor franzimento do cenho deixaria o rapaz pusilânime encolhido e sobressaltado – tolerava as maneiras subservientes de Wehsal, que aproveitava todas as ocasiões para inclinar-se diante dele e para bajulá-lo; permitia até que o outro, durante os passeios, lhe carregasse o sobretudo, função de que Wehsal se desempenhava com certo fervor; suportava a própria conversa escusa do homem de Mannheim. Wehsal tinha a mania de ventilar problemas como este: era ou não era razoável declarar o seu amor a uma mulher que se amava, mas que manifestamente não correspondia? Que achava da declaração de amor sem esperança? Ele, da sua parte, atribuía-lhe extraordinário valor; segundo a sua opinião, encerrava ela uma felicidade indizível. O ato da confissão, embora despertando repulsa e acarretando grandes vexames, garantia contudo por um instante o pleno contato amoroso com o objeto do desejo, que era forçado a receber a confidencia e a entrar na esfera da própria paixão. Mesmo que tudo terminasse nesse ponto, a perda eterna não representaria um preço excessivo pela volúpia desesperada de um único momento. O desabafo era um ato violento, e quanto maior a repugnância que se lhe opusesse, mais gozo proporcionaria... A essa altura, uma lua que anuviou a fisionomia de Hans Castorp fez com que Wehsal retrocedesse. Para dizer a verdade, tinha ela a sua origem na presença do jovial Sr. Ferge, o qual, como afirmava com freqüência, ficava totalmente alheio a quaisquer assuntos elevados e complexos, e não na austeridade puritana do nosso herói. Como sempre nos empenhamos em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era, não omitimos o seguinte fato: certa noite, quando estava a sós com Hans Castorp, o pobre Wehsal, em palavras incolores, insistiu com ele para que lhe confiasse, por amor de Deus, alguns pormenores daqueles acontecimentos e daquelas experiências da noite de carnaval, que se haviam realizado depois do fim do baile; Hans Castorp atendeu a esse pedido com tranqüilidade benevolente, sem que – ao contrário do que o leitor talvez acredite – esse diálogo tivesse cunho leviano ou vil. Temos todavia razões fortes para manter afastados dessa cena tanto o leitor como nós próprios, e limitamo-nos a acrescentar que a partir do referido dia Wehsal carregava com redobrado ardor o casacão do condescendente Hans Castorp. Já falamos bastante a respeito dos comensais de Hans Castorp. O lugar à sua direita estava vazio. Não fora ocupado senão passageiramente durante alguns dias, por um visitante. Um parente viera de visita da planície, um emissário, como se poderia dizer – numa palavra: tratava-se de James Tienappel, tio de Hans. Era fantástico ver de repente como vizinho de mesa um representante e enviado da pátria, um homem que ainda trazia fresca no tecido inglês do terno a atmosfera do antigo, do submerso, da vida passada, do mundo dos vivos que existia lá embaixo. Mas era forçoso que isso acontecesse. Havia muito que Hans Castorp contara com tal ofensiva da planície e mesmo previra com exatidão a personalidade que seria incumbida do reconhecimento; o que, aliás, não fora muito difícil, já que Peter, o navegante, mal entrava em questão, e quanto ao tio-avô Tienappel era coisa sabida que nem dez cavalos o arrastariam a essas regiões, cuja pressão atmosférica lhe seria sumamente perigosa. Não, tinha de ser James o encarregado de investigar, em nome da família, a situação do parente extraviado. Hans Castorp esperara mesmo que ele chegasse antes. Desde que Joachim regressara sozinho e pusera a família a par do estado das coisas ali de cima, o assalto era iminente, mais do que iminente. Dessa forma, Hans Castorp não se surpreendeu nem um pouquinho, quando, duas semanas exatas depois da partida do primo, o porteiro lhe entregou um telegrama. Abriu-o, cheio de pressentimentos, e ficou sabendo da próxima chegada de James Tienappel. Este teria de resolver alguns assuntos pendentes na Suíça e aproveitaria a ocasião para fazer uma excursão até as alturas de Hans. Chegaria daí a dois dias. – Bem! – pensou Hans Castorp. – Ótimo! – pensou, e acrescentou intimamente qualquer coisa parecida com “Corno quiser!” – Ah, se você tivesse idéia – disse, falando, nos seus pensamentos, com o parente que se aproximava. Numa palavra, inteirou-se da notícia com a mais completa calma. Transmitiu-a ao Dr. Behrens e à “administração”. Mandou reservar um quarto; o de Joachim estava ainda disponível. Dois dias após, à hora da sua própria chegada, isto é, pelas oito horas, já depois do escurecer, entrou no mesmo veículo mal-estofado em que havia pouco acompanhara Joachim, e encaminhou-se à estação de Davos-Dorf, para receber o emissário da planície que vinha endireitar a situação. Com a tez rubicunda, sem chapéu nem sobretudo, achava-se à beira da plataforma quando o trenzinho entrou na estação. Pela janela do compartimento convidou o tio a descer tranqüilamente, porque já chegara ao seu lugar de destino. O Cônsul Tienappel – era vice-cônsul e substituía dignamente o pai também nesse cargo honorário – apareceu friorento, envolto no seu casaco de inverno. (Com efeito, a noite de outubro estava bastante fria, e pouco faltava para que pudesse ser qualificada de gélida; de madrugada certamente faria uma temperatura abaixo de zero.) Desembarcou, ali Clemente surpreendido, o que manifestou à maneira um tanto preciosa, ultracivilizada, peculiar aos cavalheiros distintos do norte da Alemanha. Cumprimentou o sobrinho-quase-primo, expressando, com enfáticos elogios, a satisfação que experimentava ao encontrá-lo com tão bom aspecto. Verificou que o porteiro coxo o dispensava de preocupar-se com a bagagem. Saiu da estação e galgou, em companhia de Hans Castorp, o alto e duro assento do coche. Sob o céu abundantemente estrelado puseram-se a caminho, e Hans Castorp, com a cabeça deitada para trás, explicou ao tio-primo as paragens celestes, circunscrevendo com palavras e gestos esta ou aquela constelação cintilante, e chamando os planetas pelos nomes. Enquanto isso, o outro, prestando maior atenção à pessoa do seu companheiro do que ao cosmo, dizia de si para si que era talvez admissível e não rematada loucura falar das estrelas, precisamente nesse momento, nesse lugar, e sem mais aquela, mas que existiam outros assuntos mais urgentes. Perguntou desde quando Hans Castorp estava tão familiarizado com aquele mundo longínquo, ao que o sobrinho replicou que devia esses conhecimentos ao repouso noturno que fazia na sacada, durante a primavera, o verão, o outono e o inverno. – Como? Você fica de noite na sacada? – Sim. E você fará a mesma coisa. Não há jeito de escapar a isso. – Perfeitamente, compreendo – disse James Tienappel, complacente e um tanto intimidado. Seu irmão de criação continuou conversando sossegada e monotonamente. Sem chapéu, sem sobretudo, estava sentado junto dele, na frescura quase gelada da noite outonal. – Você não se ressente do frio? – perguntou James, que tiritava sob a grossa fazenda do casacão. Sua maneira de falar parecia ao mesmo tempo precipitada e hesitante, já que os seus dentes manifestavam a tendência de entrechocar-se. – Nós não sentimos o frio – respondeu Hans Castorp calma e laconicamente. O cônsul não se cansava de olhá-lo de lado. Hans Castorp não procurou informar-se sobre os parentes e os conhecidos de casa. Recebeu, agradecendo impassivelmente, as lembranças que James lhe transmitiu, inclusive as de Joachim, que já se apresentara ao regimento e estava radiante de alegria e orgulho. Fê-lo sem pedir informações pormenorizadas a respeito das coisas da sua terra. James sentiu-se inquietado por um quê de natureza vaga, o qual não sabia se era irradiado pelo sobrinho ou se tinha a sua origem no seu próprio estado físico. Olhou em torno, sem distinguir muita coisa da paisagem alpina. Aspirou profundamente o ar, soltou-o e declarou que o achava magnífico. – Certamente – respondeu o outro. Não era sem motivo que esse ar adquirira tanta fama. Possuía virtudes poderosas. Acelerava a combustão geral, e no entanto permitia ao corpo assimilar as proteínas. Curava doenças que todos os homens traziam latentes em si, mas antes costumava dar a elas um vigoroso estímulo e causar, por meio de um impulso geral proporcionado ao organismo, a sua irrupção triunfal. – Perdão! Por que triunfal? – Sim. Você nunca notou que a irrupção de uma doença representa uma espécie de triunfo e constitui de certo modo uma festa do corpo? – Perfeitamente, compreendo – apressou-se o tio a concordar, sem que pudesse conter o tremor da mandíbula inferior. A seguir anunciou que permaneceria oito dias, isto é, uma semana, ou melhor uns sete ou apenas seis dias. Repetiu que o aspecto de Hans Castorp lhe parecia extraordinariamente bom; o sobrinho estava muito mais robusto, devido a esse tratamento, cuja duração se estendera além de toda expectativa. Assim, era de supor que Hans Castorp regressaria junto com ele. – Ora, ora, que precipitação é essa? – disse o jovem. O tio James falava à maneira lá de baixo. Bastaria que estudasse um pouco o “nosso” ambiente e se aclimatasse a ele, para que mudasse de idéia. Tudo dependia da cura definitiva. Só o definitivo tinha importância, e recentemente o Dr. Behrens lhe pespegara mais seis meses. Ao ouvir isso, o tio tratou-o por “meu filho” e perguntou se estava louco. – Está completamente doido?! – exclamou. Afinal de contas, essas férias já duravam quinze meses, e agora se falava de mais meio ano! Deus do céu, a gente não tinha tanto tempo! Mas Hans Castorp deu uma risada serena e abrupta, com a cabeça erguida em direção às estrelas. Pois sim, o tempo! Nesse ponto, justamente, com referência ao tempo humano, James teria de retificar, antes de mais nada, os conceitos que trouxera consigo da planície, antes de abrir a boca aqui em cima. – No seu interesse falarei seriamente com o Dr. Behrens, amanhã mesmo – prometeu Tienappel. – Não deixe de falar – disse Hans Castorp. – Você gostará dele. É um tipo interessante, ao mesmo tempo enérgico e melancólico. – A seguir apontou para as luzes do Sanatório Schatzalp e se referiu, de passagem, aos cadáveres que eram transportados pela pista do trenó. Jantaram juntos no restaurante do Berghof, depois de Hans Castorp ter levado o visitante ao quarto de Joachim, para dar-lhe uma oportunidade de se lavar um pouco. A peça fora fumigada com H2CO – contou Hans Castorp – Como se se tratasse, não de uma partida “em falso”, mas de uma de caráter bem diferente, quer dizer, de um exitus em vez de um exodus. E quando o tio pediu uma explicação do sentido dessas palavras, disse o sobrinho: – É a gíria local; nossa maneira de falar... Joachim desertou. Fugiu para as fileiras do exército. Isto também existe. Mas, vamos, ligeiro, para que a gente ainda arranje alguma comida quente! – Sentaram-se um à frente do outro no restaurante agradavelmente aquecido, sobre o alto estrado. A anã atendeu-os sem demora, e James encomendou uma garrafa de borgonha, que foi trazida deitada numa cestinha. Chocaram os copos e deixaram-se penetrar pelo doce ardor do vinho. O sobrinho falou da vida que se levava ali em cima, no ciclo das estações; mencionou certas personagens da sala de refeições; passou para o pneumotórax, cujo processo explicou, citando o caso do jovial Sr. Ferge e alongando-se sobre o fenômeno horripilante do choque pleural, sem omitir as três síncopes de cor diferente, que o russo pretendia ter sofrido, bem como a alucinação do olfato, que desempenhava um papel importante no momento do choque, e da gargalhada que soltara ao desmaiar. Hans Castorp conduzia toda a conversa. James comeu e bebeu muito, segundo o seu costume, com um apetite que a mudança de ar e a viagem haviam estimulado. Mesmo assim interrompia de vez em quando o processo de alimentação e permanecia com a boca cheia, sem pensar em mastigar; mantendo a faca e o garfo em ângulo obtuso sobre o prato, cravava os olhos em Hans Castorp, aparentemente sem se dar conta disso. De resto, o sobrinho tampouco se melindrava com esse procedimento do tio. As veias inchadas ressaltavam nas fontes do Cônsul Tienappel, que estavam cobertas de ralos cabelos louros. Não trataram dos acontecimentos da pátria, nem de coisas familiares ou pessoais, nem da cidade, nem dos negócios, nem finalmente da firma Tunder & Wilms, Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras, que prosseguia aguardando a chegada do jovem Hans Castorp, o que, porém, estava tão longe de ser a sua única ocupação, que caberia perguntar se de fato continuava esperando. Decerto, James Tienappel já aludira a todos esses assuntos, enquanto o carro os levava ao sanatório, e mais tarde tornara a fazê-lo, mas eles haviam caído ao chão e jaziam mortos, rejeitados pela indiferença tranqüila, decidida e perfeitamente natural de Hans Castorp, por algo que o tornava, em certo sentido, intangível e inatacável e fazia pensar na sua insensibilidade quanto ao frio da noite outonal ou naquelas suas palavras: “Nós não sentimos o frio”. Talvez fosse por isso que o tio o olhava de vez em quando, fixamente. A conversa focalizou também a Superiora, os médicos, as conferências do Dr. Krokowski. James poderia assistir a uma delas, se a sua estadia durasse oito dias. Quem dissera ao sobrinho que o tio tinha a intenção de ouvir a palestra do médico? Ninguém. Mas dava-o por garantido, presumia-o com uma segurança tão plácida, que o simples pensamento de não presenciar esse espetáculo devia parecer absurdo ao outro. Daí sucedeu que o tio se apressou a dizer “Perfeitamente, compreendo”, como para prevenir a suspeita de ter projetado uma coisa impossível. Era precisamente essa a força cujo efeito indistinto, porém imperioso, fazia com que o Sr. Tienappel, sem querer, fitasse o sobrinho – agora já com a boca aberta, pois obstruíra-se-lhe o canal respiratório do nariz, ainda que o cônsul não tivesse gripado. Ouviu como o parente falava da enfermidade que ali em cima formava o interesse profissional comum a todos, e da predisposição que certas pessoas tinham para contrai-la. Foi posto a par do caso do próprio Hans Castorp, caso sem gravidade, mas de cura lenta; da atração que os bacilos exerciam sobre o tecido celular das ramificações dos brônquios e dos alvéolos pulmonares; da formação de tubérculos; da secreção de venenos solúveis e embriagadores; da decomposição das células e do processo de caseificação, a cujo respeito era interessante saber se o mal se deteria em virtude de uma petrificação calcária e de uma cicatrização do tecido conjuntivo, curando-se dessa forma, ou se, pelo contrário, estenderia a sua área, criando cavernas cada vez maiores e corroendo o órgão. James Tienappel ficou sabendo da forma loucamente acelerada, “galopante”, desse processo, que em poucos meses e mesmo em algumas semanas levava ao exitus; informou-se sobre a pneumotomia, técnica magistralmente praticada pelo conselheiro, e sobre a ressecção pulmonar, que fariam no dia seguinte, ou em breve, numa doente recém-chegada em estado gravíssimo, uma escocesa outrora muito formosa, mas agora atacada de gangraena pulmonum, a necrose dos pulmões, de modo que nela operava uma peste negro-esverdeada, que a obrigava a respirar durante todo o dia uma solução vaporizada de ácido carbólico, para que não perdesse o juízo de tanto nojo de si própria... E de súbito aconteceu ao cônsul, inopinadamente e para a sua maior confusão, desatar a rir. Explodiu numa gargalhada, procurou imediatamente conter-se, dominou-se, espantado, tossiu e empenhou-se em disfarçar, por todos os meios, a gafe inexplicável. Verificou, porém, entre tranqüilizado e novamente inquieto, que Hans Castorp absolutamente não prestara atenção a esse incidente que não lhe podia ter escapado; bem ao contrário, o sobrinho passou por cima dele com uma displicência que não era devida ao tato, à consideração ou à cortesia, senão à mera indiferença e impassibilidade, e manifestava uma tolerância de dimensões exorbitantes, como se, de havia muito, fosse incapaz de estranhar ocorrências dessa espécie. No entanto, o cônsul, seja porque desejava encobrir posteriormente com um manto de siso e de lógica o seu acesso de hilaridade, seja por qualquer outro motivo, enveredou de repente numa conversa “só para homens” e, com as veias frontais túrgidas, meteu-se a falar de uma chansonnette, cantora de cabaré, mulher para lá de boa, que a essa época se exibia no bairro de Sankt Pauli e com os seus encantos carregados de paixão virava a cabeça ao mundo masculino da república hamburguesa. No decorrer dessa narrativa, a língua do tio James mostrou-se um tanto embargada, mas não havia necessidade de se preocupar com isso uma vez que a complacência inabalável do seu interlocutor evidentemente incluía esse fenômeno. Contudo, notou o tio, pouco a pouco, a imensa fadiga da viagem que o dominava, a tal ponto que já por volta das dez e meia optou pelo fim do encontro. Intimamente sentiu pouca satisfação quando no vestíbulo toparam com o Dr. Krokowski, que estava lendo um jornal junto à porta de um dos salões, e ao qual James Tienappel foi apresentado pelo sobrinho. Como resposta às palavras enérgicas e alegres do assistente, o cônsul foi incapaz de proferir mais do que “Perfeitamente, compreendo”. Deu-se por feliz quando o sobrinho, anunciando que iria buscá-lo às oito para o café da manhã, passou pelo caminho da sacada, do quarto desinfetado de Joachim para o seu próprio. Então o cônsul pôde finalmente deixar-se cair sobre a cama do desertor. Tinha na boca o cigarro que estava habituado a fumar antes de adormecer, e por um triz não provocou um incêndio, porque duas vezes começou a cochilar com o toco aceso entre os lábios. James Tienappel, que Hans Castorp chamava “tio James” ou simplesmente “James”, era um homem de pernas longas, à beira dos quarenta, que trajava ternos de tecidos ingleses e roupa de baixo de nívea alvura; tinha cabelos de um amarelo canário, olhos azuis, pouco distantes entre si, um bigodinho de palha, semi-aparado, e mãos cuidadosamente tratadas. Esposo e pai havia alguns anos, nem por isso se vira forçado a abandonar a espaçosa vivenda do velho cônsul, à Avenida de Harvestehude; desposara uma moça da sua classe social, que era tão civilizada e distinta quanto ele e falava da mesma maneira suave, acelerada, correta e polida. Lá embaixo, era considerado um homem de negócios muito enérgico, circunspecto e – apesar de toda a sua elegância – friamente realista. Mas, num ambiente onde reinavam costumes diferentes, por ocasião de viagens, pelo sul da Alemanha, por exemplo, assumia certa atitude de adaptação precipitada, uma pressurosa e cortês tendência para renegar a si mesmo, que absolutamente não revelava uma falta de fé na própria cultura, senão, ao contrário, a consciência da limitação que a fazia forte, bem como o desejo de corrigir o seu particularismo aristocrático e de não deixar perceber a menor surpresa diante de formas de existência que lhe pareciam incríveis. “Claro, perfeitamente, compreendo”, apressava-se a dizer, para que ninguém pensasse que ele, embora distinto, era um espírito estreito. Chegara a Davos com uma missão precisa e concreta, com o encargo e na intenção de intervir com firmeza na situação do parente pachorrento, de “arrancálo”, segundo ele mesmo dizia, e de devolvê-lo ao lar. E, todavia, não deixara de perceber que estava operando em terreno estranho. Desde o primeiro momento sentira-se acolhido por um mundo singular, um ambiente moral cuja segurança de si próprio não era menos forte do que a sua, e até a ultrapassava. Aconteceu assim que a sua energia de homem de negócios entrou imediatamente num conflito com a sua boa educação, e mesmo num conflito dos mais graves, uma vez que a confiança altiva desse ambiente novo se manifestava deveras esmagadora. Era precisamente isso o que previra Hans Castorp, quando, no seu íntimo, respondera ao cônsul com um sereno “Como quiser”. Mas não há motivo para acreditar que o sobrinho conscientemente tirasse partido, contra o seu tio, da força de caráter do mundo ambiente. Hans Castorp já estava por demais identificado com esse meio para que pudesse proceder assim. Não era ele quem se valia dessa força; pelo contrário, tudo ocorria com a simplicidade mais natural, a partir do momento em que o primeiro pressentimento da inutilidade da sua empresa vagamente roçou o espírito do cônsul, até o clímax e o desfecho, que Hans Castorp, apesar de tudo, não pôde deixar de acompanhar com um sorriso melancólico. Na primeira manhã, depois do café, durante o qual o veterano apresentou o visitante à roda dos comensais, Tienappel travou conhecimento com o Dr. Behrens, que, comprido e corado, remando com as mãos, atravessava a sala em companhia do assistente pálido, vestido de preto, e passava de mesa em. mesa com o seu retórico “Dormiu bem?” de todos os dias. E o cônsul ficou sabendo, da parte do conselheiro, que não somente era uma excelente idéia fazer companhia ao neveu solitário, mas que isso parecia recomendável também no seu próprio interesse, porque, evidentemente, estava muito anêmico. Anêmico, ele, Tienappel? – E bastante! – retrucou Behrens, enquanto, com o indicador, abaixava uma das pálpebras inferiores do cônsul. – No mais alto grau – acrescentou. – O senhor faria muito bem se durante algumas semanas se instalasse comodamente na sacada, estendendo-se na espreguiçadeira e imitando em todos os pontos o exemplo de seu sobrinho. No seu estado, o procedimento mais inteligente é portar-se como se estivesse atacado de uma leve tuberculosis pulmonum, que, aliás, existe latente em todas as pessoas. – Perfeitamente, compreendo – apressou-se o cônsul a responder. Com os olhos acompanhando por um instante a figura do médico, com a nuca saliente, que remava ao se afastar, deixou-se ficar com a boca semiaberta, numa atitude polida e pressurosa, ao passo que Hans Castorp, a seu lado, se mantinha perfeitamente calmo e impassível. Depois começaram o passeio em direção ao banco junto do curso de água, que era o que o momento exigia. A seguir, James Tienappel fez a sua primeira hora de repouso, instruído por Hans Castorp, que, além do plaid que o tio trouxera consigo, lhe emprestou ainda um dos seus cobertores de lã de camelo – por causa do bom tempo outonal bastava-lhe sobejamente um só cobertor – e lhe ensinou com todo o cuidado, manobra por manobra, a arte tradicional de se enrolar. Mesmo depois de o cônsul já se achar agasalhado e convertido numa múmia lisa e cilíndrica, o sobrinho desmanchou tudo e mandou o tio repetir o processo inteiro, corrigindo-o apenas em caso de necessidade. Mostrou-lhe ainda como o guarda-sol era fixado na cadeira e orientado em relação ao sol. O cônsul pôs-se a gracejar. O espírito da planície era ainda forte nele e fê-lo zombar daquilo que aprendia, assim como já zombara da extensão preestabelecida do passeio que haviam dado depois do café. Mas, ao ver o sorriso plácido e incompreensivo com que o sobrinho acolhia as suas ironias, e no qual se espelhava toda a confiança serena que inspirava a tradição local, assustou-se, temeu pela sua energia de negociante e resolveu solicitar a entrevista decisiva com o conselheiro, sem demora, o mais rápido possível, nessa mesma tarde, quando ainda pudesse conduzi-la com as forças e idéias lá de baixo. Pois sentia que estas iam diminuindo, e que o espírito do lugar, aliado à sua boa educação, constituía adversário perigoso. Notou além disso que o médico lhe dera um conselho totalmente supérfluo, ao sugerirlhe que, em virtude da sua anemia, se submetesse ao regime dos enfermos; evidenciou-se que isso vinha por si mesmo, que, aparentemente, não se podia imaginar nenhuma outra alternativa, e de antemão era impossível para um homem bem-educado como ele discernir até que ponto a tranqüilidade e a imperturbável segurança de Hans Castorp criavam essa aparência, e até onde essa impossibilidade existia real e irrestritamente. O fato de o segundo café da manhã sumamente abundante seguir-se ao primeiro repouso pareceu-lhe apenas natural, e dessa refeição resultou, de um modo convincente, o passeio até Davos-Platz, depois do qual Hans Castorp tornou a embrulhar o tio. Embrulhou-o – essa é a palavra adequada. E ao sol de outono, numa cadeira cujo conforto era indiscutível e mesmo digno dos mais altos elogios, deixou-o estendido, assim como ele próprio ficava, até que o ribombante gongo os convidou a tomar, em companhia dos demais pensionistas, o almoço, que estava excelente, saborosíssimo, e era de tal maneira farto, que o subseqüente repouso geral se afigurava, não como um mero hábito exterior, senão como uma necessidade interior, à qual todos se submetiam por convicção pessoal. Isso continuou até o estupendo jantar e a reunião noturna no salão, em torno dos instrumentos ópticos. Nada havia que objetar contra uma ordem do dia que se impunha com tão branda naturalidade; ela não teria oferecido nenhuma oportunidade para objeções, mesmo que as capacidades críticas do cônsul não se encontrassem minguadas em virtude do seu estado, que ele não queria qualificar precisamente de mal-estar, mas que representava uma combinação desagradável de fadiga e excitação, acrescida de calor e de frio. A fim de marcar uma hora para a ansiosamente almejada entrevista com o conselheiro Behrens, James Tienappel seguira a via hierárquica. Hans Castorp dirigira o requerimento ao massagista, que o encaminhara à Superiora, cuja pessoa singular o Cônsul Tienappel chegou a conhecer nessa ocasião. Surgiu ela na sua sacada, onde o achou deitado, e suas maneiras estranhas sujeitaram a dura prova a boa educação do cônsul, estendido sem defesa no invólucro cilíndrico dos cobertores. Que o prezado rapaz – assim se expressou a enfermeira-chefe – tivesse paciência durante alguns dias, pois o conselheiro andava atarefado com intervenções cirúrgicas e exames gerais. A humanidade sofredora tinha preferência, em conformidade com a ética cristã, e como o cônsul alegasse estar bem de saúde, devia acostumar-se ao fato de não ser ali em cima o número 1 e de ter de esperar na fila até chegar a sua vez. Seria diferente se porventura quisesse pedir um exame médico, o que a ela, Adriática, não causaria espécie. Bastava olhar-lhe os olhos, assim de perto, para ver que estavam turvos e irrequietos. A julgar pelo seu aspecto, absolutamente não dava a impressão de estar com o organismo em perfeita ordem; que a compreendesse bem: não lhe parecia lá muito limpo... Tratava-se de saber – terminou a Superiora – se o cônsul desejava uma consulta ou uma entrevista de caráter particular. – Uma entrevista particular, naturalmente – assegurou o cônsul, do seu leito. Nesse caso devia esperar até que fosse chamado. O conselheiro não dispunha de muito tempo para entrevistas particulares. Numa palavra, tudo se passou de modo bem diverso daquele que James imaginara. A conversa com a Superiora abalara-lhe consideravelmente o equilíbrio. Por demais civilizado para dirigir-se com desabrida franqueza ao sobrinho cuja calma impassível demonstrava o pleno acordo em que Hans Castorp se achava com os fenômenos ali de cima, e para dizer-lhe quão horrorosa lhe parecia aquela megera, limitou-se a sondar cautelosamente o terreno. Fez notar que a Superiora era, sem dúvida, uma senhora muito original, o que o sobrinho admitiu em parte, após ter lançado ao ar um olhar vagamente interrogador. Perguntou por sua vez ao tio se a Mylendonk lhe vendera um termômetro. – Não! A mim? Ela costuma fazer isso? – tornou o tio... Mas a fisionomia do sobrinho demonstrava claramente – e isso era o pior – que ele não se teria admirado nem um pouquinho se o contrário tivesse acontecido. “Nós não sentimos o frio”, podia-se ler no rosto de Hans Castorp. O cônsul, porém, ressentia-se do frio, ressentia-se dele sem cessar, apesar de a cabeça lhe arder. Se a Superiora realmente lhe houvesse oferecido um termômetro – disse ele de si para si –, decerto o teria rejeitado; mas talvez tivesse feito mal, porquanto não convinha a um homem civilizado usar o termômetro de outra pessoa, como, por exemplo, o do sobrinho. Assim decorreram alguns dias, uns quatro ou cinco. A vida do emissário avançava sobre trilhos – sobre os trilhos que se achavam preparados para ela, e dos quais parecia inimaginável apartar-se. O cônsul fez experiências, recebeu impressões – não nos queremos dar o trabalho de observa-lo nessa empresa. Um belo dia, no quarto de Hans Castorp, apanhou uma chapinha de vidro preto que, recostada num minúsculo cavalete lavrado, se achava na cômoda, junto com outros objetos pessoais com que o morador do asseado aposento comprazia-se em adorná-lo. Mantendo-a contra a luz, verificou tratar-se de um negativo fotográfico. – Que é isso? – perguntou o tio, enquanto o olhava... Havia motivo para perguntar assim. O retrato não tinha cabeça; era o esqueleto de um torso humano, envolto numa névoa de carne um torso feminino, segundo se podia reconhecer. – Isso? É uma lembrança – disse Hans Castorp. Ao que o tio replicou: – Perdão! – Repôs o retrato no cavalete e afastou-se depressa. Isto é apenas um exemplo das experiências e das impressões por que James Tienappel passou nesses quatro ou cinco dias. Participou também de uma conferência do Dr. Krokowski, uma vez que era impossível não fazê-lo. E quanto à ambicionada entrevista particular com o Dr. Behrens, teve a satisfação de obtê-la no sexto dia. Marcaram-lhe uma hora, e depois do café da manhã desceu ao subsolo, decidido a dizer algumas palavras enérgicas a respeito de seu sobrinho e do tempo que este desperdiçava ali. Quando voltou, perguntou numa voz suavizada: – Onde já se viu isso? No entanto, era evidente que Hans Castorp já ouvira coisa semelhante e que essa impressão tampouco o faria sentir frio. Assim o tio cortou a conversa, e às perguntas pouco curiosas do sobrinho limitou-se a responder: – Ah, nada! – A partir daquele momento, porém, manifestou um novo hábito: o de olhar obliquamente para cima, com o cenho franzido e os lábios em bico, para, logo depois, virar a cabeça num movimento brusco e fixar em direção oposta o olhar que acabamos de descrever... Seguira também a entrevista com Behrens um curso diferente daquele que o cônsul previra? Falara-se, no curso dela, não somente de Hans Castorp, mas também do próprio James Tienappel, a tal ponto que a conversa perdera o caráter de uma entrevista particular? A conduta do cônsul indicava isso. Mostrava-se ele altamente animado, tagarelando muito, rindo-se sem motivo, acotovelando o flanco do sobrinho e exclamando: – Que tal, meu velho? – De vez em quando reaparecia aquele olhar primeiro numa e depois noutra direção. Mas seus olhos seguiam também rumos mais precisos, tanto à mesa como durante os passeios regulamentares e as reuniões noturnas. A princípio, o cônsul não prestara maior atenção a uma certa Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, que tinha o seu lugar à mesa da Srª. Salomon, de momento ausente, e do colegial voraz, com os óculos redondos. E de fato não passava ela de uma das numerosas damas que povoavam os alpendres de repouso; era uma baixinha morena, cheia de corpo, já não muito jovem, ligeiramente grisalha, com uma pequena papada engraçadinha e olhos castanhos bastante vivos. Sob o ponto de vista da sua cultura, absolutamente não poderia comparar-se com a esposa do Cônsul Tienappel, lá embaixo, na planície. Mas, na noite de domingo, depois do jantar, o cônsul fizera, no vestíbulo, uma descoberta, graças a um vestido preto, muito decotado e enfeitado de lantejoulas, que a Srª. Redisch trajava: tinha ela seios, seios de mulher, muito comprimidos e de uma alvura mate, seios cuja linha de separação era visível até muito embaixo. Essa descoberta abalara o homem maduro e refinado até o fundo da sua alma, entusiasmando-o como se fosse coisa inédita, insuspeitada e nunca vista. Procurou travar conhecimento com a Srª. Redisch e conseguiu-o. Conversou demoradamente com ela, primeiro de pé e depois sentado. Cantarolava quando ia recolher-se. No dia seguinte, a Srª. Redisch já não envergava o vestido preto com as lantejoulas, mas apareceu toda encoberta. O cônsul, porém, sabia o que sabia e permanecia fiel às suas impressões. Empenhava-se em encontrar-se com a senhora durante os passeios regulamentares, a fim de caminhar a seu lado, palestrando com ela de forma particularmente galante e insistente. À mesa bebia à sua saúde, o que ela retribuía com um sorriso que fazia brilhar as cápsulas de ouro que revestiam alguns dos seus dentes. Numa conversa com o sobrinho, o cônsul chegou a declarar que a Srª. Redisch era realmente uma “mulher divina”, depois do que tornou a cantarolar. Hans Castorp suportava tudo isso com serena indulgência, e sua fisionomia expressava que essas coisas lhe pareciam naturais. Mesmo assim não contribuíam para consolidar a autoridade do parente mais velho e condiziam mal com a missão do cônsul. A refeição durante a qual ele saudou a Srª. Redisch com o copo erguido – e isso por duas vezes, ao chegar o prato de peixe, e mais tarde, quando serviam o sorvete – era a mesma que o Conselheiro Behrens tomou à mesa de Hans Castorp e do visitante, uma vez que era seu costume comer sucessivamente em cada uma das sete mesas, onde lhe ficava reservado um talher numa das pontas. Com as enormes manzorras juntas diante do prato, e com o bigodinho retorcido, o médico deixava-se ficar entre o Sr. Wehsal e o corcunda mexicano, com o qual conversava em espanhol – sabia todas as línguas, inclusive o húngaro e o turco. Com os olhos azuis, saltados e estriados de sangue, observou como o Cônsul Tienappel saudava a Srª. Redisch com a taça de bordeaux. Mais tarde, no decorrer da refeição, o conselheiro fez uma pequena preleção, animado por James, que, através de toda a extensão da mesa, lhe perguntou à queima-roupa o que se passava com o homem quando apodrecia. Pediu ao conselheiro, que estudara todas as coisas fisiológicas, cuja especialidade era o corpo, e que se podia intitular uma espécie de príncipe do corpo, que lhes informasse do que ocorria quando a carne se decompunha. – Antes de tudo lhe estoura a barriga – explicou o conselheiro, fincando os cotovelos na mesa e inclinando-se para as mãos postas. – O senhor acha-se estendido sobre o seu leito de serragem e de estilhas, e os gases – não sabe? – começam a inchar-lhe o cadáver, a intumescê-lo poderosamente, assim como meninos malvados fazem com as rãs que enchem de ar. Aos poucos, o senhor se transforma num verdadeiro balão. Finalmente, a pele do seu ventre não suporta mais a tensão e rebenta. Pum! Com isso, o senhor sente grande alívio. Faz como Judas Iscariotes quando caiu do galho: todas as suas entranhas se derramam. Bem, e depois disso o senhor volta, em certo sentido, a ser apresentável. Se lhe concedessem uma licença poderia visitar a sua família sem causar o menor escândalo. É o que se chama deixar de feder. Quando a gente sai então ao ar livre, torna-se de novo um tipo decente, como aqueles cidadãos de Palermo que estão pendurados nos subterrâneos do convento dos capuchinhos, fora da Porta Nuova. Pendem ali sequinhos e elegantes e gozam de estima geral. O que importa é somente deixar de feder. – Compreendo – disse o cônsul. – Muito obrigado. E no dia seguinte, pela manhã, tinha desaparecido. Fora-se, partira com o primeiro trenzinho para a planície. Claro que deixara tudo em ordem. Quem poderia pensar o contrário? Liquidara a conta, pagara o preço de um exame médico, e clandestinamente, sem nada dizer ao sobrinho, aprontara as duas maletas. Provavelmente o fizera à noite ou de madrugada. Quando Hans Castorp, na hora do café da manhã, entrou no quarto do tio, encontrou-o desocupado. Com as mãos nos quadris, exclamou: – Ora essa! – Foi nesse instante que a sua fisionomia esboçou um sorriso melancólico. – Ah, sim! – disse, sacudindo a cabeça. Alguém acabava de fugir, precipitadamente, numa pressa silenciosa, como se precisasse aproveitar a resolução de um dado momento e tudo se tratasse de não perder a oportunidade. Atirara as suas coisas na maleta e sumira, sozinho, não acompanhado, sem ter cumprido a sua honrosa missão, dando-se por muitíssimo feliz por ter escapado são e salvo, esse homem de valor, o trânsfuga que desertava para a bandeira da planície, o tio James! Pois então, boa viagem! Hans Castorp não deixou ninguém perceber que nada soubera da iminência da partida do parente visitante. Especialmente escondeu a sua surpresa ao porteiro coxo, que acompanhara o tio até a estação. Recebeu do lago de Constança um cartão-postal que o informava de que James, chamado por telegrama, se vira obrigado a regressar à planície por causa de negócios. Não quisera incomodar o sobrinho... Uma mentira formal! “Desejo que sua estadia continue agradável.” Era ironia? Nesse caso seria bastante forçada, julgou Hans Castorp, pois o tio decerto não pensara em gracejos e zombarias quando se lançara ao trem. Pelo contrário, verificara, pálido de terror, numa visão íntima, que, se agora voltasse à planície, depois de ter passado oito dias ali em cima, continuaria ainda durante um tempo considerável a achar redondamente errada, contrária à natureza e inconveniente, a vida de uma pessoa que, após o café da manhã, ao invés de sair para o passeio regulamentar e a seguir estender-se ao ar livre, embrulhada em cobertores segundo o ritual, se encaminhasse ao escritório. E essa percepção assustadora fora o motivo imediato da sua fuga. Terminou assim a tentativa da planície de se reapossar do fugitivo Hans Castorp. O jovem não se iludiu quanto à importância decisiva que o malogro completo, por ele previsto, tinha no que se referia às suas relações para com a gente lá de baixo. Significava isso, da parte da planície, a renúncia definitiva, que ela aceitava dando de ombros, e para ele, a liberdade completa, em face da qual o seu coração aos poucos deixava de estremecer. “Operationes spirituales” Leo Naphta era natural de um lugarejo situado nas proximidades da fronteira entre a Galícia e a Volínia. Seu pai, do qual falava com respeito – sentindo evidentemente que já se distanciara bastante do mundo da sua origem para poder julgá-lo com benevolência – seu pai fora schochet, açougueiro ritual. Esse ofício era diferente – e quanto! – daquele que exercia o açougueiro cristão, um mero artífice e comerciante. O pai de Leo não era nem uma nem outra coisa. Era uma autoridade de caráter religioso. Examinado pelo rabino quanto à sua habilidade piedosa, autorizado por ele a abater, em conformidade com os preceitos do Talmude, o gado que a lei de Moisés considerava apto para esse fim, Elia Naphta, cujos olhos cheios de espiritualidade plácida haviam brilhado, segundo a descrição do filho, com um esplendor estelar, revelara ele próprio, em todo o seu ser, o cunho sacerdotal, uma solenidade que relembrava que a função de degolar animais coubera nos tempos antigos aos sacerdotes. Às vezes, Leo, ou Leib, como o chamavam na infância, tinha ocasião de ver o pai desempenhar-se das suas tarefas rituais, o que fazia no pátio, ajudado por um oficial enorme, um rapagão daquele tipo atlético que se encontra entre os judeus. Ao lado desse gigante, o frágil Elia, com a barba loura aparada em forma oval, parecia ainda mais delgado e mais franzino. E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical, enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência, e que o filho de Elia, o dos olhos estelares, deve ter possuído em grau incomum. Sabia Leo que os açougueiros cristãos tinham a obrigação de atordoar os animais com um golpe de maceta ou de machado, antes de matá-los, e que essa prescrição lhes era imposta a fim de evitar ao gado um tratamento torturante e impiedoso. Seu pai, por sua vez, embora muito mais delicado e muito mais sábio do que aqueles lorpas, e ainda dotado de olhos estelares como nenhum deles, procedia conforme a lei, dando o golpe mortal à rês não aturdida e deixando-a derramar o seu sangue até cair exausta. O menino Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar acompanhavam a idéia do sagrado e do espiritual. Pois compreendia perfeitamente que o pai não se devotara ao seu ofício sanguinário pelo mesmo gosto brutal que talvez determinasse a escolha de robustos rapazes cristãos e do seu próprio ajudante; motivos espirituais haviam-no influenciado, apesar do seu físico frágil, e em harmonia com os seus olhos estelares. Com efeito, Elia Naphta era um sonhador e um pensador; não se limitava a estudar a Tora, mas também interpretava a Escritura, cujas máximas discutia com o rabino, altercando com ele não raras vezes. Na região, e não somente entre os seus correligionários, era considerado homem extraordinário, que sabia mais do que os outros, em parte devido à sua piedade, em parte também graças a conhecimentos suspeitos, talvez, e em todo caso contrários, à ordem natural das coisas. Havia nele um quê de irregularidade sectária, algo de um confidente de Deus, de um Baal- Chem ou Zaddik, quer dizer, um taumaturgo, tanto mais que realmente curara certa feita uma mulher de uma erupção maligna, e em outra ocasião, um garoto de convulsões, e tudo isso por meio de sangue e de versículos. Mas foi precisamente esse nimbo de uma piedade um tanto ousada, no qual o cheiro de sangue da sua profissão desempenhava o seu papel, que se tornou a causa da sua perdição. Em conseqüência de um motim e de uma irrupção ,da fúria popular, provocada pela morte não esclarecida de duas crianças cristãs, Elia foi trucidado de forma horrorosa: encontraram-no crucificado, fixo com cravos à porta da sua casa incendiada. Sua esposa, tísica e acamada, abandonou em seguida o país, com os filhos, o menino Leib e seus quatro irmãozinhos, todos se lamentando e gemendo, de braços erguidos ao céu. Graças à previdência de Elia, a família não estava inteiramente desprovida de recursos. Encontraram asilo numa cidadezinha do Vorarlberg. Ali a Srª. Naphta se empregou numa fiação de algodão, onde trabalhou enquanto as suas forças lhe permitiram, e os filhos mais velhos freqüentaram a escola primária. Mas se a sabedoria ministrada por esse estabelecimento bastava ao talento e às necessidades dos irmãos de Leo, absolutamente não se dava o mesmo com ele. Herdara da mãe o germe da doença pulmonar, e do pai, além da compleição delgada, um discernimento fora do comum, dons intelectuais que desde cedo andavam unidos com instintos altivos, com a ambição do sublime, com a nostalgia angustiosa de formas de vida mais aristocráticas, e lhe infundiam o desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera da sua origem. Fora da escola, o adolescente de catorze ou quinze anos formava o seu espírito de modo impaciente e descontrolado, por meio de livros que soube arranjar e com os quais nutria a inteligência. Pensava coisas e manifestava idéias que induziam a mãe a encolher a cabeça entre os ombros e a levantar ao céu as magras mãos espalmadas. Pela sua índole e pelas suas respostas chamou durante o ensino religioso a atenção do rabino distrital, homem pio e erudito, que o escolheu para aluno particular e lhe satisfez a predileção formal com aulas de hebraico e de línguas clássicas, e a ânsia de lógica com ensinamentos matemáticos. Mas a solicitude do homem foi muito mal recompensada. Evidenciou-se cada vez mais nitidamente que ele acolhera uma serpente em seu seio. Repetiram-se as contendas que outrora houvera entre Elia Naphta e seu rabino; não se puseram de acordo; entre o professor e o discípulo surgiram divergências religiosas e filosóficas que se agravavam de forma crescente, e o honrado teólogo muito teve que sofrer em virtude da insubmissão intelectual do jovem Naphta, da sua tendência crítica e cética, do seu espírito de contradição e da sua dialética afiada. Acrescia a isso o fato de que a sutileza e a rebeldia intelectual de Leo acabavam de assumir um caráter revolucionário. O contato com o filho de um deputado socialista do Reichsrat e com o próprio representante popular haviam orientado para a política o espírito do adolescente e imprimido o rumo da crítica social à sua paixão pela lógica. Leo ousou manifestar idéias que fizeram eriçar-se os cabelos do bom talmudista, orgulhoso da sua própria lealdade, e que finalmente desmancharam a amizade entre o professor e o aluno. Numa palavra, as coisas chegaram ao ponto de Naphta ser amaldiçoado pelo seu mestre e definitivamente expulso do seu gabinete de estudos. Isso sucedeu justamente na época em que sua mãe, Rakel Naphta, estava agonizante. Também por esse tempo, imediatamente após o transpasse da mãe, Leo travou conhecimento com o Padre Unterpertinger. O jovem de dezesseis anos estava sentado, solitário, num banco do parque de Margaretenkopf, numa colina situada a oeste da cidadezinha, à beira do Ill, donde se descortinava uma vista ampla e alegre sobre o vale do Reno. Achava-se ali, absorto em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro, quando um professor do Instituto Jesuítico Stella Matutina, ao passear pelo parque, sentou-se a seu lado, pôs o chapéu no banco, cruzou as pernas sob a sotaina de padre secular, e após ter lido algumas páginas do seu breviário, entabulou uma conversa que se tornou muito animada e estava fadada a decidir a sorte de Leo. O jesuíta, homem experiente, de trato afável, pedagogo apaixonado, bom psicólogo e hábil pescador de almas, aguçou o ouvido, desde as primeiras frases, articuladas com sarcástica clareza, que o mísero judeuzinho proferia em resposta às suas perguntas. Sentiu nelas o sopro de uma espiritualidade aguda e atormentada, e penetrando mais a fundo, topou com uma sabedoria e uma elegância maliciosa do pensamento que o exterior maltrapilho do rapaz apenas tornava mais surpreendentes. Falaram de Marx, cujo Capital Leo Naphta estudara numa edição popular, e daí passaram para Hegel, do qual ou sobre o qual o jovem também lera o suficiente para formular algumas observações incisivas. Fosse por uma inclinação geral para o paradoxo, fosse devido à intenção de agradar, chamou Hegel de “pensador católico”; quando o padre, sorrindo, lhe perguntou em que se fundava essa opinião, uma vez que Hegel, na sua qualidade de filósofo oficial da Prússia, devia ser considerado lógica e essencialmente como protestante, replicou o jovem que as próprias palavras “filósofo oficial” confirmavam que, no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático, a sua afirmação da catolicidade de Hegel estava certa. Pois – Naphta gostava muitíssimo dessa conjunção que na sua boca adquiria um caráter triunfal e inexorável e fazia-lhe os olhos relampejar atrás dos óculos, cada vez que tinha oportunidade de inseri-las nas suas deduções – pois o conceito da política se achava psicologicamente ligado ao do catolicismo; formavam eles uma categoria que abrangia tudo quanto era objetivo, operante, ativo, realizador, e produzia efeitos exteriores. A essa categoria opunha-se a esfera pietista, protestante, que tinha a sua origem na mística. No jesuitismo – acrescentou —, tornava-se evidente a natureza política e pedagógica do catolicismo. Essa ordem sempre considerara seu domínio a estadística e a educação. E citou Goethe, que, embora arraigado do pietismo e indiscutivelmente protestante, tinha um forte cunho católico, em virtude do seu objetivismo e da sua doutrina de ação, chegando a defender a confissão auricular e mostrando-se quase jesuíta como educador. Não importa que Naphta tivesse dito essas coisas, por acreditar nelas, ou por achá-las espirituosas, ou finalmente na intenção de comprazer ao seu interlocutor, como faz um homem pobre que deve lisonjear e calcula com precisão o que lhe pode ser útil ou prejudicial. Fosse como fosse, o padre preocupou-se menos com o valor verdadeiro dessas palavras do que com a inteligência geral que elas documentavam. A conversa foi continuada, e dentro em pouco o jesuíta conhecia a situação particular de Leo. A entrevista terminou com um convite de Unterpertinger para que Naphta o visitasse no instituto. Destarte aconteceu que Naphta pôs os pés no solo do Stella Matutina, cujo nível científica e socialmente elevado desde muito o atraía. E mais do que isso: graças ao rumo que as coisas acabavam de tomar, obteve um novo mestre e protetor, mais disposto do que o anterior a lhe apreciar e estimular a índole; um mentor cuja bondade, fria por natureza, baseava-se no conhecimento do mundo, e em cujo circulo de vida o jovem anelava penetrar. Semelhante a muitos judeus talentosos, Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada. A primeira manifestação que lhe inspirara a presença de um teólogo católico fora, embora se apresentasse sob a forma de pura análise comparativa, uma declaração de amor à Igreja Romana, que se lhe afigurava como uma potência nobre e espiritual, quer dizer antimaterial, contrária à realidade hostil do mundo, e portanto revolucionária. Essa homenagem era sincera e tinha raízes no fundo do seu ser: como ele próprio explicava, o judaísmo, graças à sua orientação terrena e objetiva, graças ao seu caráter socialista e à sua espiritualidade política, achava-se muito mais próximo da esfera católica, era infinitamente mais congênere dela, do que o protestantismo na sua mania de ensimesmar-se e na sua subjetividade mística. Assim, a conversão de um judeu à religião católica representava, do ponto de vista da Igreja, um processo muito mais fácil do que a de um protestante. Separado do pastor da sua comunidade religiosa de origem, órfão, desamparado, e ainda ansioso por respirar um ar mais puro, por gozar o estilo de vida que lhe cabia devido ao seu talento, Naphta, que desde havia algum tempo atingira a idade legal que o capacitava para escolher a sua religião, estava tão impaciente por consumar o ato da conversão, que o seu “descobridor” podia dispensar o menor esforço no sentido de conquistar essa alma, ou melhor, esse cérebro extraordinário, para o mundo da sua confissão. Já antes de receber o sacramento do batismo, Naphta encontrara, através da influência do padre, asilo provisório no Stella Matutina, que lhe garantia o seu alimento material e intelectual. Domiciliou-se ali, abandonando, com a maior equanimidade e com a insensibilidade de um aristocrata do espírito, os seus irmãos mais moços à caridade pública e àquele destino que eles mereciam em virtude dos seus dons medíocres. As terras do educandário eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral. A disciplina, a elegância, a alegria discreta, a espiritualidade, a cultura esmerada, a precisão do variadíssimo programa diário – tudo isso afagava os instintos mais profundos de Leo. O moço transbordava de felicidade. Ministravam-lhe excelentes manjares num vasto refeitório, onde o silêncio era de regra, assim como nos corredores do estabelecimento, em cujo centro um jovem prefeito, sentado numa cátedra elevada, lia em voz alta para os alunos que tomavam a refeição. O zelo que Naphta desenvolvia nos estudos era ardente, e apesar da sua debilidade física fazia toda espécie de esforços para não se deixar superar, à tarde, nos jogos desportivos. A devoção com que todas as manhãs assistia à primeira missa e participava do ofício dominical devia causar prazer aos padres pedagogos. Seu comportamento e suas maneiras satisfaziam-nos da mesma forma. Nos dias de festa, pela tarde, depois de comer doces e beber vinho, ia passear, trajando o uniforme cinzento e verde, com o colarinho engomado, boné e barras nas calças. Sentia-se deslumbrado de gratidão diante das considerações com que eram tratados a sua origem, o seu cristianismo recente e a sua situação particular em geral. Ninguém parecia saber que ele se beneficiava de uma bolsa. O regulamento da casa desviava a atenção dos companheiros do fato de ele não ter nem família nem pátria. Quanto à remessa de víveres ou guloseimas existia uma proibição geral. Encomendas que chegavam apesar disso eram repartidas entre todos, e também Leo recebia a sua parte. O cosmopolitismo da instituição impedia que a sua origem racial aparecesse de modo evidente. Existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sulamericanos de raça lusa, cujo aspecto era mais “judeu” do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de subir à tona. O príncipe etíope que entrara ao mesmo tempo que Naphta era até um negro típico, com cabelos lanosos, e contudo sumamente distinto. Na classe de retórica, Leo manifestou o desejo de estudar teologia, para que pudesse um dia pertencer à ordem, se é que fosse julgado digno. Isso teve por conseqüência que a sua bolsa foi transferida do segundo internato, onde o regime era mais modesto, para o primeiro. Agora era servido à mesa por criados, e seu cubículo no dormitório achava-se situado entre o de um nobre silesiano, o Conde von Harbuval e Chamaré, e o do Marquês di Rangoni-Santacroce, de Modena. Passou brilhantemente pelos exames e, fiel aos seus propósitos, abandonou o educandário e mudou-se para o noviciado na vizinha aldeia de Tisis, onde passou a levar a vida de humildade obediente, de subordinação muda e de adaptação religiosa, vida que lhe proporcionava prazeres espirituais no sentido das concepções fanáticas de épocas distantes. Nesse meio tempo, a sua saúde sofreu um abalo, menos por causa do rigor da vida de noviço, que não carecia de oportunidades para fortalecer o corpo, do que em virtude de processos que se desenvolviam no seu íntimo. A sutileza e a sagacidade dos processos pedagógicos de que ele era objeto iam ao encontro dos seus talentos particulares, e ao mesmo tempo provocavam-nos. Durante as operações espirituais às quais consagrava os seus dias e ainda parte das suas noites, no curso de todos esses exames de consciência, contemplações, ponderações e introspecções, enredava-se ele, devido a uma paixão maliciosa pela contenda, em milhares de dificuldades, contradições e dúvidas. Leo era o desespero, e também a grande esperança, do diretor dos seus exercícios, a quem cossava dia a dia com sua fúria dialética e sua falta de ingenuidade... “Ad haec quid tu?”, perguntava, com as lentes dos óculos cintilando. E o padre, posto contra a parede, não tinha outro recurso senão recomendar-lhe a prece, para que conseguisse a tranqüilidade do coração, ut in aliquem gradum quietis in anima perveniat. Mas, essa “tranqüilidade” consistia, quando obtida, num completo embotamento da vida individual e na redução fatal a um mero instrumento, era a paz de um cemitério do espírito, cujos sinistros sinais exteriores Naphta podia muito bem estudar entre os seus companheiros em mais de uma fisionomia de olhar parado, e que ele mesmo nunca lograria alcançar por outro caminho que não o da ruína corporal. Fala em favor do nível intelectual dos seus superiores que essas reservas e objeções não diminuíam a estima que Naphta gozava junto deles. O próprio padre provincial chamou-o pelo fim dos dois anos de noviciado, conversou com ele e autorizou-lhe a admissão na ordem. O jovem escolástico, que recebera quatro ordenações inferiores – as do porteiro, do acólito, do leitor e do exorcista – e também fizera os votos “simples”, ficou assim pertencendo definitivamente à Companhia. Partiu para o colégio de Falkenburgh, na Holanda, a fim de se dedicar aos estudos de teologia. Tinha então vinte anos, e nos três anos seguintes, sob a influência de um clima prejudicial e de excessivos esforços intelectuais, o mal hereditário realizou tamanhos progressos, que sua permanência no colégio só teria sido possível com perigo de vida. Uma hemoptise que sofreu alarmou os seus superiores, e depois de ele se achar durante semanas inteiras entre a vida e a morte, enviaram o jovem precariamente restabelecido ao lugar donde viera. No mesmo estabelecimento onde fora educado, encontrou Leo uma colocação como prefeito, vigilante dos alunos e professor de humanidades e filosofia. Esse interlúdio fazia parte do regulamento, só que normalmente depois de poucos anos de serviço se voltava ao colégio, para prosseguir e concluir os sete anos de estudos teológicos. Isso não foi dado ao Irmão Naphta. Ele continuava enfermo. O médico e os superiores julgaram que o serviço nesse lugar, com o seu ar saudável, a companhia dos alunos, e as ocupações agrícolas eram o que lhe convinha por enquanto. Naphta recebeu a primeira ordenação superior e obteve assim o direito de cantar a Epístola na missa solene dos domingos – direito que ele não exercia, em primeiro lugar porque lhe faltava por completo o talento musical, e em segundo, por causa da doença, que lhe tornava a voz esganiçada e fazia-a pouco apta para cantar. Não progrediu além do subdiaconato. Não alcançou o diaconato, tampouco a ordenação sacerdotal. Como a hemoptise se repetisse e a febre não desse mostras de ceder, teve que submeter-se, à custa da ordem, a um tratamento prolongado. Instalara-se em Davos, onde se encontrava fazia mais de cinco anos. Mal se podia falar de um tratamento, senão de uma condição fixa da sua existência, que exigia atmosfera rarefeita, e que alguma atividade como professor de latim no ginásio dos enfermos tornava menos penosa... Essas coisas, além de outros pormenores, chegavam ao conhecimento de Hans Castorp pela boca do próprio Naphta, quando o visitava na sua cela forrada de seda, ora sozinho, ora acompanhado dos seus comensais Ferge e Wehsal, que apresentara ao seu anfitrião, ou quando o encontrava num passeio e regressava junto com ele até a “aldeia”. Ia conhecendo esses detalhes ao acaso, em fragmentos ou sob a forma de narrativas coesas, e não somente os achava extraordinariamente interessantes, mas também incitava Ferge e Wehsal a considerá-los sob o mesmo prisma, o que de fato acontecia. Verdade é que o primeiro nunca deixava de acrescentar a restrição de não entender de coisas sublimes (uma vez que unicamente a experiência do choque pleural o elevara acima das mais humildes entre as contingências humanas). Wehsal, porem, regozijava-se visivelmente com a carreira afortunada de um homem outrora opresso pelo destino, essa carreira que agora, como para abater qualquer soberba, se via interrompida e parecia encalhar no mal físico que eles tinham em comum. Hans Castorp, por sua vez, lamentava essa estagnação e recordava com orgulho e desassossego o honrado Joachim, que num esforço heróico rasgara a rede resistente da retórica de Radamanto e desertara para a sua bandeira, a cuja haste – segundo imaginava o jovem – devia estar agarrado, erguendo três dedos da mão direita para prestar o juramento de fidelidade. Também Naphta tinha uma bandeira à qual jurara, e sob cuja proteção se encontrava, como ele mesmo dizia, ao informar Hans Castorp acerca da organização da ordem; mas, manifestamente, em vista de todas as suas reservas e combinações, era-lhe menos fiel do que Joachim à sua. O civil Hans Castorp, amigo da paz, sempre que escutava o antigo ou futuro jesuíta, sentia, contudo, consolidada a sua opinião de que cada um dos dois devia olhar com simpatia a profissão do outro e perceber o parentesco estreito que existia entre ela e a própria. Eram castas militares, tanto uma como a outra, e isso sob muitos aspectos, o do ascetismo e o da hierarquia, o da obediência e o do pundonor espanhol. Este último desempenhava um papel importantíssimo na ordem de Naphta, que tinha a sua origem na Espanha, e cuja regra de exercícios espirituais, espécie de precursora do regulamento que Frederico da Prússia deu à infantaria, era, na sua forma original, redigida em espanhol. Por isso ocorria freqüentemente a Naphta empregar termos espanhóis nas suas narrativas e explicações. Falava então das dos banderas em torno das quais os exércitos se agrupavam para a grande batalha, o do Inferno e o da Igreja, um na região de Jerusalém, chefiado por Cristo, o capitán general de todos os justos, e o outro na planície da Babilônia, onde Lúcifer exercia o cargo de caudillo ou chefe de bando... Não era o Instituto Stella Matutina uma verdadeira escola de cadetes, cujos alunos, distribuídos em “divisões”, iam sendo orientados no sentido honroso de uma bienséance militar e clerical, que representava, por assim dizer, uma combinação de “colarinho engomado” e “golilha espanhola”? As idéias da honra e da distinção, que na classe de Joachim desempenhavam tão brilhante papel, com quanta nitidez – assim pensava Hans Castorp – não apareciam naquela que Naphta desgraçadamente tivera de abandonar devido à doença! A crer nele, a ordem compunhase exclusivamente de oficiais ambiciosos, cujo único pensamento era distinguir-se no serviço. (Insignes esse, dizia-se em latim.) Segundo a doutrina e o regulamento do fundador e primeiro geral, o espanhol Loyola, tais homens prestavam serviços maiores, serviços mais grandiosos do que todos aqueles que agiam guiados pela mera razão. Realizavam a sua obra ex superrogatione, indo além do seu dever; não se limitavam a resistir à rebelião da carne (rebellioni carnis), o que não passava, em suma, daquilo que faz todo homem dotado de mediano bom senso, mas também combatiam as tendências para a sensualidade, o egoísmo e o amor às coisas mundanas, até em assuntos que geralmente eram considerados lícitos. Pois agir em detrimento do inimigo (agere contra), quer dizer, atacar, era mais honroso e mais importante do que apenas defender-se (resistere). “Debilitar e desbaratar o inimigo”, rezava o regulamento de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava plenamente de acordo com o capitán general de Joachim, o prussiano Frederico e sua máxima estratégica: “Atacar, atacar! Não dar tréguas ao inimigo! Attaquez donc toujours!” Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, antes de mais nada, era a relação com o sangue e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso, sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como classes, e a um amigo da paz parecia notável o que Naphta contava de tipos de monges-guerreiros da Idade Média, que, ascetas até o esgotamento e no entanto ávidos de poder espiritual, não haviam poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que na cama, e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, senão glória suprema. Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas idéias! Caso contrário, não teria deixado de fazer o papel de tocador de realejo desmancha-prazeres e de fazer soar a flauta pastoril da paz, não obstante o seu próprio projeto de guerra santa, nacional, civilizadora, contra Viena, que ele absolutamente não rejeitava, ao passo que o sarcasmo e a mordacidade de Naphta castigavam de preferência essa paixão e esse fraco do seu adversário. Cada vez que o italiano se inflamava por esse gênero de sentimentos, o outro lhe opunha um cosmopolitismo cristão, chamando todos os países, e ao mesmo tempo nenhum, de sua pátria e repetindo em voz cortante a frase de um geral da sua ordem, de nome Nickel, segundo o qual o patriotismo era “uma peste e a morte certa do amor cristão”. Lógico que era em nome do ascetismo que Naphta tratava de peste o amor à pátria – pois, quanta coisa não encerrava esse termo, aos seus olhos, quanta coisa não contrariava, segundo a sua opinião, a ascética e o reino de Deus! Isso não somente se aplicava ao afeto à família e ao lar, mas também ao apego à saúde e à vida. Era precisamente por eles que Naphta censurava o humanista, quando este encomiava a paz e a felicidade; num tom rixoso, acusava-o de amor carnalis, de amor ao conforto do corpo, commodorum corporis, e declarava à queima-roupa que conceder a menor importância à vida e à saúde demonstrava a impiedade de pequenos burgueses. Isso se deu durante a grande controvérsia sobre a saúde e a doença, que certo dia, já nas proximidades do Natal, surgiu dessas divergências, no curso de um passeio de ida e volta a Davos-Platz, através da neve. Todos eles participaram dela, Settembrini, Naphta, Hans Castorp, Ferge e Wehsal – todos ligeiramente febris, aturdidos e ao mesmo tempo excitados pela caminhada e pela discussão no frio glacial das alturas, e sem exceção sujeitos a calafrios. E fosse o seu papel preponderantemente ativo, como o de Naphta ou Settembrini, ou sobretudo receptivo, limitado a breves apartes, sentiam-se todos tomados de tão intenso zelo que, esquecidos de tudo, estacavam aqui e ali, formando um grupo absorto, gesticulante, de pessoas que falavam simultaneamente e obstruíam o caminho, sem se importar com os demais transeuntes, os quais tinham de contorná-los, a não ser que se detivessem também, aguçando o ouvido e escutando, pasmados, aquelas digressões extravagantes. O ponto de partida da disputa era no fundo Karen Karstedt, a pobre Karen, com as pontas dos dedos corroídas, que acabava de falecer. Hans Castorp nada soubera da repentina piora e do exitus; do contrário não teria deixado de assistir, como bom camarada, ao seu enterro, tanto mais que gostava de funerais. Mas, devido à costumeira discrição, inteirara-se demasiado tarde do passamento de Karen, quando esta já se adaptara definitivamente à existência horizontal no jardim do anjinho de pedra, com o oblíquo boné de neve. Requiem aetemam... Hans Castorp dedicou à sua memória algumas palavras amistosas, o que induziu o Sr. Settembrini a zombar das atividades caritativas de Hans e das visitas que fizera a Leila Gerngross, ao comerciante Rotbein, à abarrotada Srª. Zimmermann, ao filho fanfarrão de Tous-les-deux e à torturada Natalie von Mallinckrodt. Retrospectivamente caçoou das flores caras com que o engenheiro homenageara essa ridícula e miserável cambada. Hans Castorp observou que os beneficiários das suas atenções, exceção feita, provavelmente, à Srª. von Mallinckrodt e ao adolescente Teddy, estavam efetivamente mortos, ao que Settembrini retrucou perguntando se esse fato, porventura, os fazia mais respeitáveis. – Mas existe uma coisa – tornou Hans Castorp – que se chama reverência cristã diante do infortúnio. – E antes que Settembrini tivesse ocasião de corrigi-lo, começou Naphta a falar de piedosos excessos de caridade que a Idade Média presenciara, de casos assombrosos de fanatismo e fervor, a que haviam conduzido os cuidados prestados aos doentes; filhas de reis tinham beijado as fedorentas chagas de lázaros, expondo-se voluntariamente ao contágio da lepra e chamando de rosas as úlceras assim contraídas; haviam bebido a água na qual acabavam de banhar enfermos purulentos, e declarado que nada no mundo lhes sabia melhor. Settembrini fez menção de vomitar. Alegou que o estômago se lhe revolvia, menos por causa do asco físico que provocavam essas imagens e visões do que devido à loucura monstruosa que se documentava em tal concepção de filantropia ativa. Aprumando-se, voltou à sua antiga dignidade alegre, ao falar das formas modernas e progressistas da caridade humanitária e da repressão triunfal das epidemias. Aquelas atrocidades opôs a higiene, a reforma social e os grandes feitos da ciência médica. – Esses produtos da probidade burguesa – replicou Naphta – teriam sido de pouca utilidade para os séculos a que o senhor se refere. Nenhuma das partes interessadas poderia ter lucrado com eles, nem os enfermos e os míseros, nem tampouco os felizes que se mostravam caridosos, não por compaixão, mas em prol da salvação da própria alma. Ora, uma reforma social coroada de êxito teria privado os afortunados do meio mais importante de que dispunham para justificar-se, e os outros, do seu estado sagrado. A manutenção constante da pobreza e da enfermidade realizou-se portanto no interesse de ambos os partidos, e esse conceito continuará sustentável enquanto for possível defender o ponto de vista puramente religioso. – Um ponto de vista sórdido – declarou Settembrini e um conceito cuja imbecilidade quase não vale a pena combater. Pois a idéia do “estado sagrado”, bem como aquilo que o engenheiro, sem pensar independentemente, disse a respeito da “reverência cristã diante do infortúnio”, são mentiras, baseadas numa ilusão, numa simpatia errônea, num engano psicológico. A compaixão que uma pessoa sadia manifesta a um enfermo, levando-a até a veneração simplesmente por ser incapaz de imaginar como ela mesma suportaria tais sofrimentos – essa compaixão é exagerada. O enfermo não tem direito a ela, que surge de um erro de raciocínio ou de imaginação, uma vez que o homem são atribui ao doente a sua própria maneira de experimentar emoções, ideando que este seja, de certo modo, uma pessoa sadia que tenha de suportar os tormentos de um enfermo – o que é um equívoco crasso. O enfermo é justamente um enfermo, com a natureza particular e o modo de sentir modificado que a doença acarreta. Esta prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, desfalecimentos, narcoses providenciais, medidas da natureza, no sentido do ajustamento e alívio morais e espirituais, fenômenos que o homem são, na sua ingenuidade, se esquece de levar em conta. O melhor exemplo, oferece-o toda essa súcia de tuberculosos aqui de cima, com a sua luxúria, sua estupidez, sua leviandade e sua falta de vontade de curar-se. Numa palavra, basta o compassivo e reverente homem sadio adoecer, para que note que a enfermidade o põe realmente num estado à parte, mas não num estado honroso, e que ele costuma levá-la excessivamente a sério. A essa altura da controvérsia, Anton Karlowitch Ferge indignou-se, tomando a defesa do choque pleural contra aquela difamação e falta de respeito. Mas como? Seu choque pleural era levado excessivamente a sério? Impossível! O enorme pomo-de-adão e o jovial bigode subiam e desciam, enquanto ele se revoltava contra qualquer menosprezo dos sofrimentos por que passara naquela ocasião. Declarou ser apenas um homem simples, viajante de uma companhia de seguros, alheio a todas as coisas sublimes. A própria conversa de que estava participando ultrapassava de muito o seu horizonte. Mas, se Settembrini tencionava incluir o choque pleural no que acabava de dizer – esse inferno de cócegas, com o fedor de enxofre e as três síncopes de cores diferentes –, via-se na obrigação de protestar com toda a cortesia e humildade. Pois nesse caso não cabia falar de diminuições de sensibilidade, de narcoses providenciais e de erros de imaginação. Tratava-se, sim, da maior e mais horrível infâmia que existia sob o sol, e sem a ter experimentado não se podia imaginar a atrocidade que... – Ora, ora, ora! – disse Settembrini. O colapso do Sr. Ferge ia ficando cada vez mais grandioso à proporção que o tempo passava. Chegava aos poucos a ser usado em torno da cabeça como uma auréola. Quanto a ele, Settembrini, fazia pouco-caso de enfermos que exigiam ser admirados. Ele próprio estava doente, e bastante; mas, sem a menor afetação, sentia-se antes inclinado a envergonhar-se disso. De resto, falava de um modo impessoal, filosófico, e o que acabava de observar sobre as diferenças entre o homem sadio e o enfermo, no que se referia à sua natureza e sua maneira de sentir, não era coisa sem pé nem cabeça. Que eles se lembrassem das doenças mentais, das alucinações, por exemplo. Se um dos seus interlocutores – o engenheiro ou o Sr. Wehsal – descobrisse essa noite, à hora do crepúsculo, num canto do quarto o seu falecido pai, que o olhasse e lhe dirigisse a palavra, seria isso, para a pessoa em apreço, uma experiência muitíssimo emocionante e perturbadora, que a faria duvidar dos seus sentidos e da sua razão e a induziria a sair imediatamente do quarto e a consultar um psiquiatra. Não era verdade? Mas o engraçado consistia precisamente no fato de essas coisas não poderem acontecer a nenhum deles, porque tinham o espírito são. Se, porventura, lhes ocorresse, já não estariam sãos, mas doentes, e não reagiriam como um homem sadio, quer dizer, espantando-se e fugindo, senão que aceitariam o fenômeno como se fosse perfeitamente normal, entabulando uma conversa com o espectro, como os alucinados costumavam fazer. E acreditar que a alucinação constituía para estes um motivo de espanto saudável era justamente o erro de imaginação que cometiam aqueles que não estavam enfermos. O Sr. Settembrini falava de forma cômica e plástica do pai defunto no canto do aposento. Ninguém pôde evitar o riso, nem sequer Ferge, apesar de sentir-se melindrado pelo desdém com que o humanista encarara a sua aventura infernal. Este, por sua vez, aproveitou-se da animação reinante para expor e defender pormenorizadamente a não-respeitabilidade dos alucinados e dos pazzi em geral. Essa gente disse – permitia-se, sem motivo justificável, muita coisa, e freqüentemente seria bem capaz de refrear a sua demência, como ele mesmo pudera verificar por ocasião de visitas que fizera a asilos de lunáticos. Quando um médico ou uma pessoa estranha aparecia no limiar da cela, o alucinado, na maioria das vezes, reprimia as suas caretas, seu falatório e sua gesticulação, e conduzia-se decentemente, durante todo o tempo que se sentia observado, para logo depois relaxar de novo. Pois, em muitos casos, a loucura representava um relaxamento, uma vez que servia de refúgio a naturezas débeis e de medida de proteção contra golpes excessivamente graves do destino, que tais pessoas não se atreviam a suportar com lucidez. Mas todo mundo poderia alegar o mesmo, e ele, Settembrini, guiara à razão, pelo menos passageiramente, numerosos loucos, pela simples força do seu olhar, opondo a suas divagações uma atitude de lógica inexorável... Naphta deu uma risada sardônica, ao passo que Hans Castorp afirmou crer literalmente em tudo quanto o Sr. Settembrini acabava de dizer. Imaginava como este, esboçando um sorriso sob o bigode, fitara o débil mental com intransigente lógica, e compreendia então perfeitamente por que o pobre-diabo se via forçado a conter-se e a fazer honra à lucidez, embora, provavelmente, considerasse a chegada do Sr. Settembrini uma importunação sobremodo desagradável... Mas também Naphta visitara hospícios de alienados. Recordava-se de ter passado pelo pavilhão dos “furiosos”, onde havia deparado com cenas e quadros perante os quais – Deus Nosso Senhor! – o olhar razoável e a influência corretiva do Sr. Settembrini dificilmente teriam logrado êxito. Cenas dantescas, quadros grotescos, cheios de horror e de tormento: os loucos desnudos, acocorados no banho contínuo, em todas as posições do terror de espírito e do estupor apavorado, alguns gritando de tanta desolação, outros com os braços erguidos e as bocas escancaradas, soltando gargalhadas nas quais se misturavam todos os ingredientes do inferno... – Pois é! – disse o Sr. Ferge, tomando a liberdade de relembrar-lhes aquela risada que lhe escapara antes do colapso. Numa palavra, a pedagogia inexorável do Sr. Settembrini teria falhado por completo em face das visões do pavilhão dos “furiosos”. O espanto brotado da reverência religiosa seria nesse caso uma reação mais humana do que aqueles raciocínios arrogantes e moralistas que o nosso iluminadíssimo cavaleiro rosacruz e vigário de Salomão se comprazia em opor à insânia. Hans Castorp não teve tempo de refletir sobre os títulos que Naphta acabava de conferir a Settembrini. Apressadamente decidiu informar-se a esse respeito na primeira ocasião que se oferecesse. No momento, porém, o curso da conversa monopolizava-lhe a atenção, porque Naphta estava examinando com acrimônia as tendências gerais que determinavam o humanista a tributar, por princípio, todas as honras à saúde e a fazer o possível para aviltar e menosprezar a doença – ponto de vista que, na verdade, manifestava extraordinária e quase admirável renegação de si mesmo, uma vez que o próprio Sr. Settembrini estava enfermo. Mas a sua atitude que, apesar da dignidade impressionante, não deixava de ser redondamente errada, resultava de uma estima e de uma deferência em face do corpo que não se podiam justificar senão quando este ainda se encontrava no seu estado primordial, próximo de Deus, e não no da degradação, in statu degradationis. Criado imortal, tornara-se ele presa da perversidade e da corrupção, devido à depravação da natureza e por causa do pecado original; era mortal e putrescível e só podia ser considerado um cárcere ou calabouço, útil, quando muito, para despertar o senso do pudor e da confusão, pudoris et confusionis sensum, como dizia Santo Inácio. Hans Castorp intrometeu-se dizendo que também o humanista Plotino dera expressão a esse mesmo senso. Mas o Sr. Settembrini, levantando a mão por cima da cabeça, pediu-lhe que não confundisse os conceitos e se limitasse a um papel receptivo. Continuando nas suas deduções, Naphta derivou o respeito que a Idade Média cristã devotava à miséria do corpo da aprovação religiosa que demonstrava ante o aspecto do sofrimento da carne. Pois as chagas do corpo não somente tornavam manifesta a queda que lhe acontecera, mas também correspondiam, de modo edificante e religiosamente satisfatório, à perversidade venenosa da alma, enquanto a formosura do corpo era um fenômeno falaz, ofensivo à consciência, que era conveniente rejeitar mediante a mais profunda humilhação diante da enfermidade. Quis me liberabit de corpore mortis hujus? Quem me libertará do corpo desta morte? Nessas palavras expressava-se a voz do espírito, que era para todos os tempos, a voz da verdadeira humanidade. Nunca! Era uma voz das trevas, segundo a opinião que o Sr. Settembrini adiantou em palavras emocionadas; a voz de um mundo para o qual ainda não nascera o sol da razão e da humanidade. Sim, embora a sua própria pessoa física se achasse cheia de tóxicos, mantivera o seu espírito bastante sadio e livre de pestilência para enfrentar garbosamente o papista Naphta em matéria de corpo, e para expor a alma ao ridículo. Chegou até a glorificar o corpo humano como autêntico templo de Deus. A isso Naphta retrucou que esse tecido não era outra coisa senão o véu estendido entre nós e a eternidade; o que teve por conseqüência que Settembrini lhe proibiu de uma vez por todas servir-se da palavra “humanidade”; e assim por diante... Com os rostos transidos de frio, sem chapéus, os pés protegidos por galochas, pisavam a superfície endurecida, rangente, polvilhada de cinzas, da camada de neve que aumentava a altura da calçada, ou abriam caminho através das massas porosas que enchiam a sarjeta; Settembrini estava abrigado num jaquetão de inverno, cuja gola e punhos de castor, puídos devido ao uso, pareciam como que sarnentos, mais que vestia com elegância; Naphta trajava um sobretudo preto, completamente fechado, que lhe ia até os pés e estava forrado de peles, das quais, porém, nada se via na parte exterior. Assim caminhavam, discutindo com apaixonado ardor todos aqueles princípios. Acontecia freqüentemente que, em vez de se dirigirem um ao outro, interpelavam Hans Castorp; cada qual lhe expunha e submetia o seu ponto de vista, limitando-se a designar o adversário com a cabeça ou o polegar. O jovem ia entre eles e voltava a cabeça para o respectivo interlocutor, aprovando ora este, ora aquele; às vezes estacava, com o corpo inclinado para trás, gesticulando com a mão agasalhada por uma luva de pelica forrada, e proferia uma opinião particular, naturalmente pouco valiosa. Enquanto isso, Ferge e Wehsal giravam em torno dos três, quer se mantendo à sua frente, quer ficando atrás, ou também avançando na mesma fila, até o tráfego interromper o alinhamento. Sob a influência de apartes destes últimos, a conversa começou a ocupar-se de assuntos mais concretos. Em rápida seqüência, e sob crescente interesse de todos, foram tratados os problemas da incineração dos mortos, do castigo corporal, da tortura e da pena de morte. Foi Wehsal quem trouxe à baila o açoitamento e Hans Castorp achou que esse tema condizia com a índole do rapaz de Mannheim. Ninguém se surpreendeu quando o Sr. Settembrini, em palavras esmeradas, invocando a dignidade humana, investiu contra o emprego desse método brutal na pedagogia e além disso no direito penal. Tampouco causou surpresa o fato de Naphta falar a favor das bastonadas, e apenas a sinistra audácia com que o fazia provocou um leve espanto. Segundo ele, era absurdo proferir, nesse caso, disparates acerca da dignidade humana, já que a nossa verdadeira dignidade se baseava no espírito e não na carne; e como a alma humana estivesse por demais inclinada a tirar do corpo toda a sua alegria de viver, os sofrimentos infligidos a este representavam um meio altamente recomendável para estragar o prazer que na alma despertavam as coisas sensuais; para separá-la da carne e reconduzi-la ao espírito, que dessa forma voltaria a dominar. Era pura tolice considerar o castigo corporal como particularmente humilhante. Santa Isabel foi fustigada, até sangrar, pelo seu confessor, Conrado de Marburgo, e como conta a lenda, isso “arrebatou-lhe a alma até o terceiro coro”; ela mesma vergastou uma pobre velha que estava muito sonolenta para se confessar. Era possível que alguém seriamente se atrevesse a qualificar de inumanas e bárbaras as flagelações a que se sujeitavam os membros de certas ordens ou seitas, e de um modo geral as pessoas de sentimentos mais profundos, a fim de fortalecer dentro de si o princípio do espírito? Ver um progresso real na abolição do açoitamento pelos países que se julgavam adiantados era uma opinião que apenas se tornava mais cômica pela inabalável firmeza com que costumava ser defendida. – Bem, em todo caso deve-se admitir – opinou Hans Castorp – que, no antagonismo entre a carne e o espírito, é sem dúvida alguma a carne quem encarna (a carne encarna; ah, ah, essa é boa!) o princípio mau e diabólico. Pois o corpo pertence naturalmente à natureza (Que acham desta?), e a natureza, em oposição ao espírito e à razão, é intrinsecamente má, misticamente má, como eu poderia dizer, se quisesse ostentar minha cultura e meus conhecimentos. Partindo desse ponto de vista, é apenas lógico tratar o corpo de acordo com ele, quer dizer, aplicar-lhe meios de castigo que também merecem ser designados como, misticamente maus. Se o Sr. Settembrini tivesse tido a seu lado Santa Isabel, quando a fraqueza do corpo o impediu de participar do congresso progressista em Barcelona, quem sabe... Todos se riram, e como o humanista fizesse menção de protestar, Hans Castorp apressou-se a contar das sovas que ele mesmo levava em outros tempos. – Nos primeiros anos do ginásio ainda existia o costume de ministrar esse castigo; havia palmatória, e embora os professores, por certas considerações sociais, se abstivessem de me pôr as mãos, apanhei certa vez uma surra de um condiscípulo mais forte, um rapagão robusto, que me bateu com uma vara flexível nas nádegas e nas barrigas das pernas, que estavam cobertas somente pelas meias. Aquilo doeu de maneira infame, pavorosa, inesquecível, realmente mística. Entre soluços convulsivos, cheios de vergonha íntima, brotaram-me lágrimas de raiva, de humilhação e de desespero. – E Hans Castorp acrescentou ter lido que nas prisões os mais rudes assassinos choramingavam que nem criancinhas quando eram açoitados. Enquanto o Sr. Settembrini escondia o rosto nas mãos revestidas de luvas de couro muito gasto, Naphta, com o sangue-frio de um estadista, perguntou como poderiam ser iluminados criminosos renitentes a não ser por meio do cavalete e do bastão, que eram perfeitamente adequados ao ambiente de uma casa de correção. Um cárcere humano era um meio-termo estético, um compromisso, e o Sr. Settembrini, apesar da sua bela eloqüência, no fundo nada entendia de beleza. No que dizia respeito à pedagogia, o conceito da dignidade humana defendido por aqueles que queriam excluir os castigos corporais tinha, segundo Naphta, a sua raiz no individualismo liberal da época burguesa e humanitária, no absolutismo esclarecido do Eu, que estava a ponto de extinguir-se e de dar lugar a idéias sociais menos efeminadas, que já se achavam iminentes, idéias de disciplina e de docilidade, de coação e de obediência, às quais era inerente uma sagrada crueldade, e que modificariam novamente a concepção da escarnação do nosso cadáver. – Vem daí a célebre frase “Perinde ac cadaver” – chacoteou Settembrini. A isso, Naphta objetou que não era um crime de lesa-majestade administrar uma sova ao mesmo corpo que Deus destinara à horrorosa ignomínia da putrefação, para punir o nosso pecado. E assim começaram a falar da incineração dos mortos. Settembrini fez o elogio desse processo: – Essa ignomínia pode ser remediada – disse alegremente. Considerações práticas e motivos idealistas determinavam a humanidade a acabar com ela. E o italiano declarou ter participado dos preparos de um congresso internacional para a cremação, que se reuniria provavelmente na Suécia. Projetava-se expor um crematório modelo, junto com um columbário, ambos construídos em conformidade com as experiências feitas até essa época. Era de prever que tal apresentação originaria sugestões e estímulos de vasto alcance. Que método mais antiquado e obsoleto, esse de enterrar os mortos, dadas as condições da vida moderna! A extensão das cidades! A transferência dos chamados campos-santos para a periferia, em vista do espaço que exigiam! Os preços dos terrenos! O caráter prosaico que assumiam os funerais, devido à necessidade de se usarem os meios modernos de transporte! Sobre todas essas coisas, o Sr. Settembrini conseguiu fazer observações sensatas e incisivas. Motejou da figura do viúvo inconsolável que realizava todos os dias uma peregrinação à sepultura da saudosa defunta, para palestrar com ela no próprio local. Era necessário que um homem com essa mentalidade idílica dispusesse em abundância inexplicável do mais precioso bem da nossa vida, a saber: do tempo. Além disso, o intenso movimento que reinava nos cemitérios centrais das cidades modernas decerto o curaria desse sentimentalismo atávico. A destruição do cadáver pelo fogo – quanto mais limpa, mais higiênica, mais digna e mesmo mais heróica não era essa visão, em confronto com o costume de abandoná-lo à lamentável decomposição e à assimilação executada por organismos inferiores! O próprio sentimento se conformava mais facilmente com esse processo novo que correspondia à necessidade de permanência, peculiar aos homens. O que sucumbia à ação do fogo eram as partes inconstantes do corpo, que já em vida estavam sujeitas ao metabolismo, ao passo que as outras, que menos participavam desse fenômeno e acompanhavam o homem quase sem modificação, através da sua existência de adulto, eram também as que resistiam ao fogo e formavam as cinzas, com as quais os sobreviventes recolhiam aquilo que o falecido possuíra de imperecível. – Que maravilha! – disse Naphta. Ah, essa era muito, mas muito boa! As cinzas como a parte imperecível do homem! – Claro! – retorquiu o italiano. Naphta pretendia manter a humanidade na sua atitude irracional diante dos fatos biológicos. Persistia naquela fase de religião primitiva, para a qual a morte representava um bicho-papão, rodeado de tão misterioso terror que era impossível dirigir sobre ele o claro olhar da razão. Que barbárie! O espanto em face da morte remontava a épocas de um nível cultural extremamente baixo, nas quais a morte violenta fora a regra, e o cunho horripilante que a revestia por muito tempo se associara, no sentimento do homem, à idéia da morte em geral. Graças ao desenvolvimento da higiene e da consolidação da segurança pessoal, porém, a morte natural tornava-se comum, e ao trabalhador moderno a visão do repouso eterno, após o esgotamento normal das suas forças, absolutamente não se afigurava medonha, senão esperada e desejável. Não, a morte nada tinha de fantasma nem de mistério; era, sim, fenômeno inequívoco, racional, fisiologicamente necessário e simpático. Perder um tempo excessivo com a sua contemplação seria roubar à vida o que lhe cabe. Por isso tencionava-se combinar com aquele crematório modelo e o columbário, que era o “recinto da morte”, um “recinto da vida”, no qual se aliariam a arquitetura, a pintura, a escultura, a música e a poesia, no sentido de afastar o espírito dos sobreviventes do espetáculo da morte, do luto obtuso e da lamentação inativa, e de encaminhá-lo para os bens que a vida oferecia... – O mais depressa possível – zombou Naphta. – Para que não se exceda no culto da morte e não vá demasiado longe na reverência tributada a um fato tão simples. Verdade é que sem esse fato não haveria arquitetura, nem pintura, nem escultura, nem música, nem poesia. – Ele foge para as fileiras do exército – murmurou Hans Castorp, como que num sonho. – A obscuridade da sua observação, meu caro engenheiro – respondeu-lhe Settembrini –, deixa transparecer o seu caráter censurável. É preciso que a experiência da morte seja, em última análise, a experiência da vida; do contrário, não passa de um espantalho. – Serão empregados símbolos obscenos no “recinto da vida”, assim como se encontram em alguns sarcófagos antigos? – perguntou Hans Castorp seriamente. – Em todo caso haverá alimentos fartos para os sentidos – declarou Naphta. – Esculpido em mármore e pintado a óleo, o corpo será exibido pelo gosto clássico; esse corpo pecaminoso que subtraem à podridão. Isso não pode surpreender, uma vez que, de tanto carinho, nem sequer se permite que o castiguem... A essa altura da conversa, Wehsal interveio mencionando a tortura. Esse tema parecia exercer sobre ele uma atração particular. Que pensavam os amigos da confissão arrancada por meio de tormentos? Ele, Ferdinand, sempre gostara de aproveitar, por ocasião das suas viagens comerciais, as oportunidades para visitar, nos centros de cultura antiga, aqueles recantos quietos onde outrora se realizara esse tipo de exploração da consciência. Conhecia as câmaras de tortura de Nuremberg e de Ratisbona, que estudara de perto no interesse da sua formação intelectual. Com efeito, por amor à alma o corpo fora ali submetido a um tratamento pouco delicado, empregando-se nisso processos muito engenhosos. E nem sequer houvera gritarias. A pêra, a famosa “pêra”, que não era nenhuma guloseima, costumava ser fincada na boca aberta, e logo reinava um silêncio absoluto, apesar da mais intensa atividade... – Porcheria! – resmungou Settembrini. Ferge observou que, sem menosprezar a pêra e a atividade silenciosa, não se inventara ainda nenhuma tortura mais infame do que a apalpação da pleura. Nem naqueles tempos poderiam ter imaginado coisa pior. – Bem, fizeram isso para curá-lo – objetou Settembrini. – A alma obstinada e a justiça ofendida – argumentou Naphta – justificam igualmente uma supressão passageira da misericórdia. Além disso, era a tortura um produto do progresso nacional. O italiano duvidou de que Naphta estivesse em seu juízo perfeito. Ah, sim, não divagava. O Sr. Settembrini era apenas um beletrista e, evidentemente, não estava familiarizado com a história do processo na Idade Média. Esta era de fato progressivamente racionalista, no sentido de ser Deus, aos poucos, eliminado da jurisprudência, em prol de ponderações baseadas na razão. Foi abolido o ordálio, porque haviam notado que o mais forte vencia, ainda que a justiça não se achasse a seu lado. Pessoas da mentalidade do Sr. Settembrini, céticas e críticas, tinham feito essa observação e conseguido a substituição do antigo e ingênuo processo penal pela Inquisição, que já não se fiava na intervenção de Deus, senão que se empenhava em arrancar ao réu a confissão da verdade. Nenhuma condenação sem confissão! Que consultassem a gente do povo: esse instinto estava profundamente arraigado. Por completa que fosse a cadeia das provas – a condenação era considerada injusta enquanto faltasse a confissão. Como obtê-la? Como descobrir a verdade, além dos meros indícios, além da simples suspeita? Como saber o que escondiam o coração e o cérebro de quem dissimulava a verdade, de quem se recusava a revelá-la? Quando o espírito se mostrava recalcitrante, não existia outro recurso senão o de apelar ao corpo, que era mais acessível. A tortura, como veículo da confissão indispensável, era imposta pela razão. Mas quem reclamara e introduzira o processo baseado na confissão era o Sr. Settembrini, e por conseguint e cabia-lhe também a responsabilidade pela tortura. O humanista pediu aos demais que não acreditassem em nada disso. Tratava-se de gracejos diabólicos. Se a teoria do Sr. Naphta fosse certa, se realmente a razão tivesse inventado aquela atrocidade, isso demonstraria, quando muito, o quanto necessitava ser escorada e esclarecida, e quão poucos motivos tinham os adoradores do instinto natural para recear que um dia as coisas se passassem na terra de um modo excessivamente razoável. No entanto, não havia dúvida de que o seu interlocutor se equivocara. Aquela monstruosidade jurídica não podia ser derivada da razão, porquanto os seus alicerces jaziam na crença no inferno. Que eles lançassem um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos manifestamente haviam brotado de uma imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do castigo eterno, lá no além. Ainda se tencionara fazer, dessa forma, o bem do malfeitor. Supuserase que a sua própria alma sofredora lutava pela confissão, e que só a carne, como princípio do mal, se opunha a essa boa vontade. De maneira que se pensara prestar um serviço caridoso ao subjugar a carne por meio de tormentos. Loucura de ascetas!... Naphta quis saber se os antigos romanos tinham sofrido da mesma loucura. – Os romanos? Ma che! No entanto, também eles costumavam empregar a tortura como elemento processual. Um impasse lógico... Hans Castorp procurou encontrar uma saída, trazendo à baila o problema da pena de morte, por sua própria iniciativa, como se lhe competisse imprimir outro rumo a uma discussão dessas. A tortura estava abolida, se bem que os juizes de instrução ainda usassem uma técnica parecida para amolecer os acusados. Mas a pena de morte parecia imortal, era indispensável. Os povos mais civilizados conservavam-na. Os franceses tinham feito péssimas experiências com o seu sistema de deportações. Simplesmente não havia o que fazer, na prática, com certas criaturas antropóides, a não ser cortar-lhes a cabeça. Não se tratava aí de “criaturas antropóides” – corrigiu-o o italiano –, mas de homens como o engenheiro e como o próprio Settembrini. Apenas eram fracos de vontade, vítimas de uma sociedade mal organizada. E falou de um grande criminoso, várias vezes assassino, pertencente àquela espécie que os promotores públicos, nas suas acusações, costumam qualificar de “bestial”, ou de “feras com cara de homem”. Esse homem cobrira de versos as paredes da sua cela, e os seus versos absolutamente não eram maus, eram mesmo muito melhores do que os que os promotores fabricam de vez em quando. Isso lançava uma luz singular sobre a arte, segundo observou Naphta. Mas fora disso não havia nada de curioso nesse fato. Hans Castorp havia esperado que Naphta advogasse a conservação do suplício. Opinou que este talvez fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como revolucionário do conservantismo. – Ora – sorriu o Sr. Settembrini, muito senhor de si —, o mundo passará por cima dessa revolução do retrocesso anti-humano. O Sr. Naphta prefere difamar a arte a admitir que ela confere a dignidade de homem até ao indivíduo mais depravado. Com um fanatismo desses não se pode conquistar a juventude ávida de luz. Acaba de ser fundada uma liga internacional com o objetivo da abolição da pena de morte em todos os países civilizados. Eu tenho a honra de fazer parte dela. Ainda não foi escolhido o lugar onde se realizará o seu primeiro congresso, mas a humanidade pode ter confiança em que os oradores que ali fizerem ouvir a sua voz hão de surgir munidos de argumentos. – E o humanista enumerou esses argumentos, entre eles sobretudo o da possibilidade sempre existente do erro judiciário, do “assassínio legal”, e o outro de que nunca se devia abandonar a esperança de ver o criminoso emendar-se. Citou até a sentença: “Minha é a vingança”, e também explicou que o Estado, desde que mais se empenhasse no aperfeiçoamento do homem do que na violência, não tinha direito de retribuir o mal pelo mal. Rejeitou a idéia da “punição”, após ter combatido a da “culpa”, sobre a base de um determinismo científico. A seguir, a “juventude ávida de luz” teve que presenciar como Naphta torcia o pescoço a cada um desses argumentos. Escarneceu da relutância de derramar sangue e do respeito à vida manifestados pelo filantropo. Afirmou que tal culto da vida individual provinha das épocas mais triviais da burguesia armada de guarda-chuva. Mas bastava que estivesse em jogo uma única idéia que ultrapassasse a da “segurança”, qualquer coisa superpessoal, superindividual – o que era o único estado digno do homem e portanto o estado normal, num sentido superior – e imediatamente a vida individual não só era sacrificada, sem titubear, à idéia superior, mas também oferecida espontaneamente pelo próprio indivíduo. A filantropia do senhor seu antagonista, acrescentou Naphta, esforçava-se por privar a vida de todos os seus acentos sombrios e mortalmente sérios; empenhava-se na castração da vida, inclusive por meio do determinismo da sua chamada ciência. Mas a verdade era que a idéia da culpa não podia ser abolida pelo determinismo, e, pelo contrário, tornava-se ainda mais grave e mais formidável graças a ele. – Essa não é má! Será que o senhor exige que a desgraçada vítima da sociedade se sinta realmente culpada e se encaminhe ao cadafalso por convicção? – Sim, senhor. O criminoso acha-se compenetrado da sua culpa como de si próprio. É tal como é e não quer ser diferente, e justamente nisso reside a culpa. – O Sr. Naphta transportou então a culpa e o mérito da esfera empírica para a esfera metafísica. Verdade era que no fazer e no agir reinava a determinação; ali não havia liberdade, mas esta existia onde se tratava do ser. O homem era assim como queria ser e continuaria a querê-lo até o seu extermínio. Se assassinava, porque gostava disso “mais do que da vida”, não pagava um preço excessivo dando essa vida. Que morresse, já que gozara a mais profunda volúpia. – A mais profunda volúpia? – Sim, senhor, a mais profunda de todas. O outro crispou os lábios. Hans Castorp pigarreou de leve. Wehsal deixou cair o maxilar, enquanto o Sr. Ferge dava um suspiro. Settembrini observou com finura: – Está se vendo que há uma maneira de generalizar que dá ao assunto um matiz pessoal. O senhor teria vontade de matar? – Isso não é da sua conta. Mas se o tivesse feito, garanto-lhe que me riria na cara dos ignorantes humanitários que se dispusessem a alimentar-me de lentilhas até o meu óbito natural. Não há nenhum sentido no fato de o assassino sobreviver ao assassinado. Esses dois, sem a presença de mais ninguém, tão sozinhos como jamais o são duas criaturas a não ser numa circunstância análoga, participam, um agindo e o outro sofrendo, de um segredo que os une para sempre. Seus destinos são inseparáveis. Settembrini confessou displicentemente que carecia do órgão capaz de compreender tal misticismo da morte e do homicídio, e que não lamentava essa falta. Não tinha nada que objetar aos talentos religiosos do Sr. Naphta – indiscutivelmente superiores aos seus próprios —, mas fazia questão de declarar que não lhos invejava. Uma invencível necessidade de asseio mantinha-o distante de uma esfera onde aquela reverência diante do infortúnio, havia pouco mencionada pela juventude cúpida de experiências, reinava evidentemente não apenas no sentido físico, mas também no sentido espiritual; numa palavra: uma esfera onde a virtude, a razão e a saúde de nada valiam, ao passo que o vício e a enfermidade desfrutavam da mais alta estima. Naphta confirmou que de fato a virtude e a saúde não constituíam estados religiosos. – É de grande importância – acrescentou – deixar perfeitamente claro que a religião nada tem que ver com a razão e com a ética, uma vez que nada tem que ver com a vida. Esta se alicerça em condições e bases que pertencem em parte à teoria do conhecimento, em parte ao domínio da moral. As primeiras chamam-se tempo, espaço, causalidade; as segundas, moralidade e razão. Todas essas coisas não são apenas estranhas e indiferentes à religião, mas até mesmo lhe são hostilmente antagônicas; pois precisamente elas é que formam a vida, a pretensa saúde, isto é, a maneira de ser inteiramente filistéia e o espírito cem por cento burguês, cuja antítese absoluta e genial é justamente o mundo religioso. Aliás, não quero negar que a esfera da vida possa produzir o gênio. Existe um modo de viver burguês de inegável probidade monumental, uma majestade de filisteu, que se pode julgar digna de reverência, desde que não se esqueça que ela, assim como se planta diante de nós, na sua dignidade quadrada, com as mãos nas costas e o peito saliente, representa a irreligiosidade personificada. Hans Castorp levantou o dedo indicador como um escolar. Disse que não queria melindrar nenhum dos dois partidos. Mas uma vez que indubitavelmente estavam falando de progresso, do progresso da humanidade, e por conseguinte de política, da república da eloqüência e da civilização do Ocidente culto, gostaria de expressar a opinião de que a diferença, ou, se o Sr. Naphta insistia nesse ponto, o antagonismo entre a vida e a religião tinha a sua origem no que existia entre o tempo e a eternidade. Pois o progresso realizava-se exclusivamente no tempo e não tinha lugar na eternidade, dando-se o mesmo com a política e a eloqüência. Ali, as pessoas apoiavam, por assim dizer, a cabeça no regaço de Deus e fechavam os olhos. E esta era, numa formação confusa, a diferença entre religião e moralidade. Settembrini replicou que a sua maneira ingênua de exprimir-se era menos inquietante do que seu medo de ferir sentimentos alheios e sua tendência para fazer concessões ao Diabo. Ora, no que tocava ao Diabo, o Sr. Settembrini, e ele, Hans Castorp, já haviam discutido fazia muito tempo. “O Satana, o ribellione!” Restava saber a que diabo acabava de fazer concessões. Àquele da rebelião, da crítica e do trabalho, ou ao outro? Que impasse perigosíssimo: um diabo à direita, um diabo à esquerda. Como, em nome do Diabo, era possível escapar a ambos? – Dessa forma – objetou Naphta – não se apresentava de maneira própria a situação, tal como o Sr. Settembrini desejava vê-la. O essencial, na sua concepção do universo, era que fazia de Deus e de Satã duas pessoas ou dois princípios diversos, colocando a vida entre eles, como objeto de disputa, aliás em conformidade completa com as idéias da Idade Média. Em realidade, porém, Deus e o Diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à vida, ao modo de viver burguês, à ética, à razão, à virtude, devido ao princípio religioso que juntos representavam. – Que embrulhada asquerosa! Che guazzabuglio próprio stomachevole! – explodiu Settembrini. – O bem e o mal, a santidade e a malvadez, tudo misturado! Sem discernimento, sem vontade! Sem a capacidade de reprovar o que era reprovável! – Sabia o Sr. Naphta o que estava negando, ao confundir, em presença da juventude, Deus e Satã, e ao rejeitar o princípio ético em nome dessa execranda dualidade? Negava o valor, negava toda escala de valores – era espantoso dizê-lo! Bem, nesse caso não existiam o bem e o mal, mas apenas o universo sem ordem moral. Tampouco existia o indivíduo com a sua dignidade crítica, mas somente a coletividade absorvente e niveladora de tudo, e o ocaso místico no seu seio. O indivíduo... Que coisa deliciosa ver o Sr. Settembrini tornar a considerar-se um individualista! Mas para sê-lo. era preciso conhecer a diferença entre a moralidade e a bem-aventurança, que esse cavalheiro iluminista e monista ignorava redondamente. Numa esfera onde se concebia a vida, de um modo estúpido, como tendo a sua finalidade em si própria, e não se procurava um fim e um objetivo que a ultrapassassem, reinava uma ética social, uma ética de espécie, uma moralidade de vertebrado, mas nada de individualismo. Este prosperava exclusivamente no terreno do religioso e do místico, no pretenso “universo sem ordem moral”. Que era, afinal, e que se propunha fazer a tal moralidade do Sr. Settembrini? Achava-se ligada à vida e por isso não ia além do útil. Era, portanto, despida de heroísmo num grau deveras lamentável. Servia para se chegar a ser velho, feliz, rico, sadio e nada mais. E essa mentalidade filistéia, baseada na razão e no trabalho, era para o Sr. Settembrini uma ética! Quanto a ele, Naphta, tomava a liberdade de qualificá-la de mísero modo de viver burguês. Settembrini exigiu do seu interlocutor que se moderasse. Mas a sua própria voz vibrava de paixão quando declarou ser insuportável que o Sr. Naphta falasse sem cessar do modo de viver burguês, Deus sabia por quê, num tom de aristocracia desdenhoso, como se o contrário – e ninguém ignorava o que era o contrário de viver – fosse qualquer coisa mais distinta. Novos chavões, novas deixas! Dessa vez tinham chegado ao problema da distinção e à questão da aristocracia. Hans Castorp, rubro e exausto pelo frio e pela multiplicidade de assuntos, além disso inseguro quanto à inteligibilidade ou ao atrevimento febril da sua própria linguagem, confessou com os lábios quase inertes que sempre visionara a morte trajando uma golilha engomada à moda espanhola, ou pelo menos um uniforme um tanto menos solene que incluía um colarinho alto, ao passo que a vida usava um simples colarinho moderno... Mas ele mesmo, assustando-se diante dos devaneios ébrios e da inconveniência das suas palavras, apressou-se a afirmar que não era precisamente isso o que tencionava dizer. Queria, no entanto, saber se não existiam pessoas, certas criaturas humanas, que era impossível imaginar como mortas, justamente por serem por demais ordinárias. Isso significava que pareciam a tal ponto feitas para a vida que davam a impressão de ser incapazes de morrer e indignas de receber a consagração da morte. O Sr. Settembrini expressou a esperança de que Hans Castorp dissesse essas coisas somente para encontrar oposição. O jovem sempre o acharia disposto a socorrê-lo quando se tratasse da defesa espiritual contra tais tentações. “Feito para a vida”, dissera ele, empregando essas palavras num sentido pejorativo. “Digno da vida!” Eis o termo de que convinha servir-se em seu lugar, e os conceitos logo se encadeariam em verdadeira e perfeita ordem. “Digno de viver” essa idéia conduzia imediatamente, por meio de uma associação fácil e natural, à outra, “digno de amor”, idéia tão intimamente ligada à primeira, que se podia dizer que só era digno de verdadeiro amor o que era verdadeiramente digno de viver. O conjunto dessas duas qualidades – digno de viver e digno de amor – exprimia o que se chamava distinção. Hans Castorp achou essas deduções encantadoras e sobremodo interessantes. Disse que o Sr. Settembrini o conquistara por completo pela sua teoria plástica. Que se argumentasse como se quisesse – e havia certos argumentos, como, por exemplo, aquele que afirmava ser a doença uma forma de existência superior e ter por isso algo de solene –, mas uma coisa era certa, a saber: que a enfermidade acentuava em excesso o elemento corporal, que reduzia e restringia o homem inteiramente ao corpo e prejudicava dessa forma a sua dignidade a ponto de aniquilá-la, pelo fato de nos rebaixar ao estado de mera carne. A doença era portanto inumana. – Pelo contrário, a doença é sumamente humana – retrucou Naphta em seguida. – E ser homem é ser doente. Em realidade, o homem é essencialmente um enfermo. O fato de ele estar doente é o que o torna homem, e aqueles que desejam curá-lo e induzi-lo a fazer as pazes com a natureza, a “voltar à natureza”, embora nunca tivesse sido natural, toda essa corja de regeneradores, de paladinos da alimentação crua, de vegetarianos, naturistas e helioterapeutas que se exibem hoje em dia à guisa de profetas, enfim, todos os adeptos de Rousseau não almejam outra coisa a não ser desumanizar e embrutecer o homem... Estão falando de humanidade e de distinção. O homem é um ser nitidamente desprendido da natureza e sente-se no mais alto grau oposto a ela. O que o distingue de qualquer outra forma de vida orgânica é precisamente o espírito. Nele, isto é, na doença, baseia-se a dignidade do homem e a sua distinção. Numa palavra: ele é tanto mais homem quanto mais enfermo, e o gênio da enfermidade é mais humano do que o da saúde. É estranho ver como alguém que se finge de filantropo fecha os olhos diante destas verdades fundamentais da humanidade. O Sr. Settembrini preconiza o progresso. Como se o progresso, se é que existe uma coisa assim, não fosse devido exclusivamente à enfermidade, isto é, ao gênio, que, por sua vez, nada é senão doença! Como se os homens sadios não tivessem vivido, em todos os tempos, das conquistas feitas pelos doentes! Houve quem se abismasse consciente e voluntariamente nas regiões da doença e da loucura, a fim de adquirir para a humanidade conhecimentos suscetíveis de transformar-se em saúde, depois de serem ganhos pela insânia, e cuja posse e exploração, depois do sacrifício heróico, já não dependessem da enfermidade e da demência. Esta era a genuína morte na cruz... “Ah!”, pensou Hans Castorp. “Vem à tona o jesuíta de idéias próprias, com suas combinações e sua maneira de interpretar a morte na cruz! Já se vê por que não chegou a ser padre, joli jésuite à la petite tache humide!” E dirigindo-se, intimamente, a Settembrini, acrescentou: “Agora, leão, é a sua vez de rugir”. E este se pôs a “rugir”, declarando que tudo quanto Naphta acabava de sustentar não passava de miragens, rabularias e confusão feita para enganar o mundo. – Diga! – lançou na cara do seu antagonista. – Diga-o sob a sua responsabilidade de educador, sustente sem rodeios, na presença dessa juventude em formação, que o espírito é enfermidade! Sim, senhor, é com tais argumentos que os conduzirá ao espírito e lhes inspirará fé nele! E declare ainda que a doença e a morte são nobres, ao passo que a saúde e a vida são vis, porque este é o método mais garantido para levar o educando a servir a humanidade! Davvero, è criminoso! – E qual um cruzado saiu em defesa da distinção inerente à saúde e à vida, essa distinção que a natureza conferia, e que não precisava preocupar-se quanto ao espírito. Proclamou “a forma”, à qual Naphta, com altivez, opôs “o logos”. No entanto, aquele que nada queria saber do logos professava “a razão”, enquanto o paladino do logos defendia “a paixão”. Tudo isso era confuso. “O objeto”, dizia um, e o outro respondia: “O eu”. Por fim se puseram a falar, um de “arte” e o outro de “crítica”. Mas sempre voltavam à “natureza” e ao “espírito”, discutindo qual dos dois era mais nobre e ventilando o “problema aristocrático”. Dessa contenda, entretanto, não resultou nem clareza nem ordem, nem sequer de caráter dualista e militante. Pois as posições não somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitarem a combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios. Settembrini muitas vezes dera vivas retóricos à crítica, e sem embargo punha-se agora a reivindicar as honras do princípio nobre para o contrário dela, que, segundo ele, era a arte. Em outras ocasiões, Naphta surgira mais de uma vez como defensor do “instinto natural”, perante Settembrini, que tratara a natureza de “potência estúpida”, de mero “fato e fado”, diante dos quais a razão e o orgulho do homem não tinham direito de abdicar. A essa altura dos debates, porém, Naphta colocou-se ao lado do espírito e da “doença”, porque somente nesse campo se encontravam a distinção e a humanidade, ao passo que o italiano se arvorou em advogado da natureza e da sua nobreza sadia, sem pensar em emancipar-se dela. Não menor era a embrulhada no que dizia respeito ao objeto e ao eu. Nesse ponto, a confusão – que aliás para eles era sempre a mesma – parecia mais irremediável do que nunca, chegando a um ponto em que absolutamente não se sabia mais qual dos dois antagonistas era o homem piedoso e qual o livre-pensador. Naphta proibia a Settembrini, em termos severos, qualificar-se de “individualista”, já que negava a oposição entre Deus e a natureza, estabelecia como o problema do homem, como o seu conflito interior, unicamente a contenda entre os interesses individuais e coletivos, e portanto se aferrava a uma ética burguesa, ligada à vida considerada como, finalidade em si, uma ética desprovida de heroísmo, que visava ao útil e via a lei moral nos objetivos do Estado; ele, Naphta, por sua vez, sabia muito bem que o problema interno do homem tinha a sua raiz no antagonismo entre o real e o transcendental; por isso representava o verdadeiro individualismo, o individualismo místico, e era em realidade o campeão da liberdade e do “sujeito”. Mas, se era assim – pensou Hans Castorp –, que seria feito então do “anonimato” e da “coletividade”, para salientar, a título de exemplo, uma única incoerência? Que acontecera com aquelas opiniões precisas que Naphta exteriorizara, durante o colóquio com o Padre Unterpertinger, quanto à “catolicidade” do filósofo oficial, Hegel, ao laço íntimo que ligava os conceitos “político” e “católico”, e à categoria do “objetivo” que formavam juntos? A estadística e a educação – não tinham elas sempre formado o campo particular das atividades da ordem de Naphta? E que tipo de educação! O Sr. Settembrini, indiscutivelmente, era um pedagogo diligente, zeloso até as raias do importuno e do maçante; mas, com respeito à objetividade ascética, desprezadora do eu, os seus princípios nem de longe podiam arriscar-se a competir com os de Naphta. Mando absoluto! Disciplina de ferro! Coação! Obediência! O terror! Tudo isso talvez tivesse o seu aspecto honroso, porém levava em pouquíssima consideração a dignidade crítica do indivíduo. Era o regulamento militar do prussiano Frederico e do espanhol Loyola, pio e austero até o sangue. Restava apenas uma única pergunta, a saber, como Naphta chegara a esse sanguinário absoluto, embora confessadamente não acreditasse em nenhum conhecimento puro e em nenhuma ciência incondicional; numa palavra: embora não acreditasse na verdade, naquela verdade objetiva, científica, cuja busca representava para Lodovico Settembrini a lei suprema de toda a moral humana. Nesse ponto, a piedade e a austeridade estavam ao lado do Sr. Settembrini, ao passo que parecia relaxado e licencioso o procedimento de Naphta, que subordinava a verdade ao homem e declarava que verdade era aquilo que mais convinha a este. Não se parecia essa maneira de fazer a verdade depender dos interesses do homem, com o modo de viver burguês e com a mentalidade utilitarista dos filisteus? Nisso não se manifestava propriamente aquela objetividade de ferro. Havia nessas idéias muito mais liberdade e individualismo do que Leo Naphta estaria disposto a admitir – posto que elas tivessem um sentido “político” semelhante àquele de certa máxima de Settembrini, segundo a qual a liberdade era a lei do amor ao próximo. Saltava aos olhos que assim se ligava a liberdade ao homem, da mesma forma como Naphta o fazia com a verdade. Tal procedimento era decididamente mais ortodoxo do que liberal, mas também essa diferença ameaçava apagar-se no curso das definições. Ah, esse Sr. Settembrini! Havia boas razões para que ele fosse literato, sendo neto de um político e filho de um humanista. Magnanimamente preocupava-se com a crítica e com a beleza da emancipação e dirigia-se cantarolando às mocinhas que encontrava na rua. Enquanto isso, o pequeno e penetrante Naphta achava-se coibido por votos severos. E, não obstante, este era quase um devasso, tamanha a sua liberdade de pensamento, e aquele um puritano, sob certos aspectos. O Sr. Settembrini temia o “espírito absoluto” e queria a todo o transe identificar o espírito com o progresso democrático. Espantavase diante da libertinagem religiosa do militar Naphta, que misturava Deus e o Diabo, a santidade e a malvadez, o gênio e a doença, não reconhecendo nenhuma espécie de escala de valores, de julgamento racional e de vontade. Quem era, afinal de contas, o livre-pensador e quem o homem pio? Onde se achava a verdadeira posição, o genuíno estado do homem? Devia ele desfazer-se, de modo tão libertino quanto ascético, no seio da coletividade absorvente e niveladora de tudo, ou cumpria-lhe tomar o partido do “indivíduo crítico”, em cujo interior se debatia o conflito entre a estroinice e a austeridade virtuosa do burguês? Infelizmente, os princípios e os aspectos colidiam uma e outra vez; havia abundância de contradições íntimas, e era extremamente difícil para a responsabilidade de um civil não somente chegar a uma decisão em meio às divergências, como simplesmente manter os elementos da discussão separados numa forma clara e pura. A dificuldade era tamanha, que parecia tentadora a idéia de atirar-se de cabeça de encontro ao “universo sem ordem moral” de que falara Naphta. Era a encruzilhada geral, o emaranhamento completo, a grande confusão, e Hans Castorp acreditava perceber que os adversários se teriam mostrado menos encarniçados se durante a sua querela essa confusão não lhes houvesse pesado sobre a alma. Tinham subido juntos até o Berghof. A seguir, os três pensionistas haviam acompanhado os externos de volta, até defronte de sua casinha, e ali permaneceram ainda muito tempo de pé sobre a neve, enquanto Naphta e Settembrini se digladiavam – pedagogicamente, como Hans Castorp bem sabia, e no intuito de influenciar a formação da juventude ávida de luz. Para o Sr. Ferge, todos esses assuntos eram por demais elevados, como repetidas vezes deu a entender, e Wehsal demonstrou pouco interesse desde que haviam deixado de falar de flagelações e torturas. Hans Castorp, com a cabeça baixa, sulcava a neve com a ponta da bengala e refletia sobre a grande confusão. Finalmente separaram-se. Era impossível conservarem-se eternamente de pé, e o colóquio não tinha limites. Os três pensionistas do Berghof tomaram novamente o rumo do seu domicílio, e os dois pedagogos rivais tiveram de entrar juntos na sua casinha, um para alcançar a sua cela forrada de sedas, e o outro para subir ao seu cubículo de humanista, com a papeleira e a garrafa de água. Hans Castorp, porém, encaminhou-se ao seu compartimento da sacada, com os ouvidos cheios do tumulto e do estrépito das armas dos dois exércitos que, avançando de Jerusalém e da Babilônia, sob as dos banderas, haviam-se entrechocado no alvoroço de uma batalha confusa. Neve Cinco vezes por dia manifestava-se em torno das sete mesas o descontentamento unânime com o tempo que o inverno ia oferecendo esse ano. Julgavam que ele não se desempenhava senão insuficientemente dos deveres de um inverno alpino, que estava longe de proporcionar os recursos meteorológicos aos quais a região devia a sua fama, na medida garantida pelo prospecto e na intensidade a que os veteranos estavam acostumados, e que os novatos haviam imaginado encontrar. Registrava-se um grave déficit de sol, de radiação solar, esse importante fator do tratamento, e sem o concurso do qual a cura indubitavelmente seria retardada... Pensasse o que pensasse o Sr. Settembrini quanto à sinceridade com que os hóspedes da montanha se empenhavam em recuperar a saúde e em regressar da “pátria” à planície – em todo caso reclamavam eles os seus direitos, reivindicavam o que se lhes devia pelo seu bom dinheiro ou por aquele com que seus pais ou seus maridos pagavam a sua estadia, e não cessavam de resmungar nas suas conversas à mesa, no elevador e no vestíbulo. Também a direção geral demonstrou estar plenamente inteirada da sua obrigação de remediar a falta e de indenizar os pensionistas. Foi adquirido um novo aparelho de “sol artificial”, porque os dois que o sanatório já possuía não bastavam para corresponder às necessidades dos pensionistas desejosos de bronzear a pele pelos raios ultravioleta, o que favorecia muito as garotas e as mulheres moças e dava ao mundo masculino, apesar da sua vida horizontal, a aparência de magníficos desportistas e conquistadores. E essa aparência trazia frutos reais: as mulheres, embora estivessem perfeitamente a par da origem técnica e cosmética dessa virilidade, eram bastante tolas ou matreiras, bastante ávidas de miragens sensuais, para deixar-se embriagar por essa ilusão. – Meu Deus! – disse a Srª. Schönfeld, uma enferma ruiva, de olhos avermelhados, procedente de Berlim, quando, certa noite, encontrou no vestíbulo um cavalheiro de pernas compridas e peito encovado, que no seu cartão de visitas se apresentava como “aviateur diplomé et enseigne de la marine allemande”, fora submetido ao pneumotórax, vestia o smoking para o almoço e tirava-o para o jantar, afirmando que o regulamento da marinha o prescrevia assim. – Meu Deus! – repetiu ela, enquanto contemplava o enseigne com os olhos cúpidos. – Como ele está tostado pelos raios ultravioleta! Que maravilha! Parece um caçador de águias esse diabo! – Cuidado, ondina! – murmurou ele ao seu ouvido, no elevador, e ela arrepiou-se toda. – Você me pagará seus olhares sedutores! – E pelas sacadas, contornando as divisões de vidro, o diabo caçador de águias foi unir-se à ondina... Contudo, faltava muito para que o sol artificial fosse considerado compensação satisfatória do saldo devedor de genuína luz solar que exibia o balanço desse ano. Dois ou três dias de sol puro por mês – dias que brilhavam, na verdade, sobremodo esplêndidos, com um profundíssimo azul de veludo atrás dos cumes alvos, com uma cintilação de diamantes, e com uma deliciosa ardência na nuca e na face dos homens, dias livres do confuso cinzento das brumas e dos véus espessos – dois ou três dias assim, no curso de semanas inteiras, eram muito pouco para a alma de pessoas cujo destino justificava exigências excepcionais em matéria de consolo, e que intimamente insistiam no cumprimento de um pacto que lhes assegurava, em troca da renúncia aos prazeres e às atribuições da humanidade dos países planos, uma existência inerte, sem dúvida, mas sumamente fácil e divertida, despreocupada até a abolição do tempo e favorecida sob todos os aspectos. Pouco adiantava que o conselheiro lhes chamasse à memória que, mesmo sob essas circunstâncias, a vida no Berghof estava longe de se parecer com um calabouço ou uma mina siberiana, e elogiasse o ar da região, tão leve e tão fino, semelhante ao éter vazio do universo, pobre em acréscimos terrestres, em elementos bons ou maus, esse ar que até na ausência do sol levava enormes vantagens sobre a fumaceira e as emanações da planície. Apesar disso, generalizavam-se o mau humor e os protestos. Ameaças de partidas “em falso” tornavam-se comuns, e acontecia mesmo que se realizassem, apesar de haver exemplos como o bem recente da melancólica volta da Srª. Salomon, cujo caso a princípio não era grave, embora demorado, mas que em conseqüência da estadia não autorizada na úmida e ventosa Amsterdam transformara-se em incurável... Em lugar do sol, porém, veio a neve, enormes quantidades de neve, uma abundância tamanha como Hans Castorp nunca vira em toda a sua vida. O inverno anterior não deixara realmente nada a desejar a esse respeito; mas a sua produção fora exígua em comparação com a do ano em curso. O que este oferecia era monstruoso, desmesurado, e fazia a alma consciente da natureza excêntrica e aventureira dessa região. Nevava dia e noite, ora neve fininha, ora torvelinhos densos; caía neve sem cessar. Os poucos caminhos que estavam sendo mantidos em estado praticável pareciam desfiladeiros, com muralhas de neve mais altas do que um homem de ambos os lados. Exibiam superfícies lisas de alabastro, agradáveis à vista no seu esplendor granuloso e cristalino, e que serviam aos hóspedes da montanha para rabiscos, desenhos, e para transmissão de toda espécie de recados, brincadeiras e motejos. No entanto, mesmo entre essas muralhas caminhava-se sobre uma camada de neve bastante elevada, por profundas que fossem as escavações. Isso se notava nas partes fofas do solo e nos buracos em que o pé subitamente afundava, às vezes até o joelho. Era preciso andar com muito cuidado, para não quebrar, de repente, uma perna. Os bancos haviam desaparecido, submersos. Algum pedaço do espaldar emergia aqui ou ali da sepultura branca. Lá embaixo, na aldeia, o nível das ruas modificara-se tão estranhamente que as lojas tinham baixado do rés-do-chão ao subsolo, que se alcançava descendo da calçada, por degraus talhados na neve. E continuava nevando sobre as massas já amontoadas, todos os dias, com a neve caindo mansinha e com um frio moderado de dez a quinze graus abaixo de zero, que não chegava a congelar a medula da gente. Sentia-se pouco esse frio. Era como se não se registrassem mais dois ou cinco graus, uma vez que a calmaria e a secura do ar não permitiam que o frio cortasse. Pela manhã reinava muita obscuridade. Tomava-se o café sob o luar artificial dos lustres que pendiam do teto da sala com os arcos alegremente coloridos das abóbadas. Lá fora estendia-se o vácuo sombrio. O mundo estava embrulhado num algodão alvacento, que se comprimia de encontro às vidraças, e totalmente oculto pela neve e pela cerração. Desaparecera a cordilheira. O máximo que se divisava, de tempos em tempos, eram algumas das coníferas mais próximas; erguiam-se carregadas de neve e rapidamente se perdiam na bruma. De vez em quando um abeto, agitandose, desembaraçava-se do excesso de carga e despejava uma poeira branca no ambiente gris. Pelas dez horas, o sol surgia por cima da montanha, qual uma fumarada vagamente luzente; era como se tencionasse dar uma vida débil e fantasmagórica, um tênue reflexo de realidade, à paisagem anulada e irreconhecível. Mas tudo permanecia diluído numa espectral delicadeza e palidez, sem contornos que os olhos pudessem traçar com segurança. As linhas dos picos confundiam-se, dissolviam-se na névoa, desapareciam na bruma. Os lençóis de neve, iluminados por uma luz lívida, estendendo-se uns ao lado e acima dos outros, guiavam o olhar ao nada. Às vezes, uma nuvem irradiada, fumacenta, pairava por muito tempo diante de um paredão rochoso, sem modificar a sua forma. Por volta do meio-dia, o sol, penetrando parcialmente a neblina, costumava fazer um esforço de converter a bruma em azul. A tentativa, entretanto, ficava longe de se transformar em realidade. Mas havia momentos em que se vislumbravam traços do azul celeste, e a luz escassa bastava para fazer cintilar ao longe com reflexos diamantinos a paisagem estranhamente desfigurada pela aventura da neve. A essa hora, geralmente, cessava a nevada, como para permitir uma visão de conjunto dos resultados obtidos. Os raros e esparsos dias de sol pareciam servir à mesma finalidade. Descansavam então os torvelinhos, e o repentino calor celestial procurava derreter a superfície deliciosamente pura das massas de neve recém-caída. O aspecto do mundo era feérico, infantil e burlesco. Os espessos e macios almofadões que jaziam, como que afofados, sobre os galhos das árvores; as corcovas do solo, sob as quais se escondiam arbustos rasteiros ou rochas salientes; a aparência agachada, submersa, grotescamente mascarada, da paisagem – tudo isso originava um “ridículo” mundo de gnomos, que parecia ter saído de um livro de contos de fadas. Mas, ao passo que o cenário imediato, através do qual as pessoas se movimentavam laboriosamente, despertava idéias fantásticas e picarescas, eram de magnificência e de santidade as sensações que inspirava o fundo longínquo, com a alterosa estatuária dos Alpes envoltos em neve. De tarde, das duas às quatro, Hans Castorp achava-se estendido no seu compartimento da sacada, e muito bem agasalhado, com a cabeça apoiada no espaldar nem baixo demais nem excessivamente alto da excelente espreguiçadeira, deixava os olhos vagar, por sobre o parapeito almofadado, em direção aos bosques e às montanhas. A plantação de pinheiros, verde-negra e carregada de neve, escalava as encostas, e entre as árvores o solo estava em toda parte coberto de neve, que se apresentava fofa como um coxim. Mais para cima levantava-se a serra rochosa, de um cinza esbranquiçado, com imensas áreas de neve, interrompidas aqui e ali por proeminentes penedos de cor mais escura, e com as cristas delicadamente veladas. Nevava silenciosamente. O quadro ia-se tornando mais e mais borrado. O olhar, perdendo-se num vazio suave, passava facilmente para o cochilo. Um estremecimento acompanhava o instante da transição, mas depois não podia haver sono mais puro do que esse em meio ao frio glacial, sono sem sonhos, não afetado por qualquer reminiscência do peso da vida orgânica, uma vez que a respiração do ar rarefeito, inconsistente e inodoro, não era mais difícil para o corpo vivo do que a não-respiração para o morto. Na hora do despertar, a cordilheira sumira por completo atrás da bruma nevosa, e só por alguns momentos apontavam certos fragmentos dela, um pico aqui, uma rocha saliente ali, que logo tornavam a ocultar-se. Esse jogo silencioso de espectros era sumamente divertido. Precisava-se muita atenção para acompanhar todas as fases dessa fantasmagoria de véus. Bravio e grandioso, desprendendo-se da cerração, exibia-se um grupo de penhascos, cujos cumes e bases permaneciam invisíveis; mas o olhar que os abandonasse por um minuto apenas já não os tornaria a encontrar. De quando em quando desencadeavam-se tempestades de neve que impossibilitavam absolutamente a permanência na sacada, porque o torvelinho branco, invadindo o compartimento em grandes quantidades, cobria tudo, tanto o chão como os móveis, com uma camada espessa. Sim, havia até tempestades nesse vale alto, cercado de montanhas. Tumultuava então a atmosfera inconsistente; os flocos pululavam nela com tamanha abundância que nada se enxergava a um passo de distância. Rajadas de um vigor sufocante imprimiam à neve um movimento selvagem, flutuante, oblíquo, arrastando-a de baixo para cima e fazendo-a remoinhar numa dança louca. Isso já não era nevada, era um caos de trevas alvas, uma monstruosidade, a extravagância fenomenal de uma região distante da zona temperada, onde somente os tentilhões brancos que de repente apareciam em enormes bandos eram capazes de sentir-se em casa e de orientar-se. Não obstante, Hans Castorp amava aquela vida na neve. Achava-a, sob diversos aspectos, muito parecida com a vida à beira-mar. A monotonia primitiva da natureza era comum aos dois ambientes. A neve, aquele pó de neve, profundo, fofo, imaculado, desempenhava ali o mesmo papel que lá embaixo cabia à areia de brancura amarelada. O conluio com uma e outra era igualmente limpo. O pó seco e frio era sacudido dos sapatos e das roupas, como na planície os pulverizados detritos de conchas e pedras, oriundos do fundo do mar, sem que deixasse nenhum vestígio. Caminhar pela neve era laborioso, tal e qual um passeio pelas dunas, a não ser que as superfícies derretidas de dia pelo ardor do sol tivessem endurecido em virtude do frio da noite. Então se andava ali mais ligeiro e mais agradavelmente do que sobre um assoalho, com a mesma facilidade e o mesmo prazer que sente quem passeia sobre a areia lisa, firme, úmida e elástica à beira-mar. Esse ano, porém, trouxera consigo nevadas e quantidades de neve depositada que restringiam fortemente as possibilidades de exercícios ao ar livre, para todos, exceção feita nos esquiadores. Mourejavam os arados limpa-neves, mas só a muito custo conseguiam manter as veredas mais freqüentadas e a rua principal de Davos num estado de precária praticabilidade. Os poucos caminhos que continuavam abertos, e rapidamente acabavam em zonas intransitáveis, estavam abarrotados de pessoas sadias ou enfermas, nativas ou pertencentes à sociedade internacional dos hotéis. As pernas dos pedestres eram atropeladas pelos trenós que, gingando e jogando, precipitavam-se encosta abaixo, guiados por homens e mulheres que lançavam gritos de advertência, cujo tom patenteava o quanto essa gente, no seu veículo infantil, estava compenetrada da importância das suas atividades. Chegados embaixo, logo voltavam a subir, arrastando atrás de si, numa corda, o seu brinquedo da moda. Hans Castorp estava mais do que farto desse tipo de passeio. Tinha dois desejos, entre os quais o mais forte era ficar a sós com seus pensamentos e sonhos. Para esse fim, o seu compartimento de sacada poderia bastar-lhe, embora de um modo superficial. O outro desejo, porém, que acompanhava o primeiro, fazia-o anelar vivamente um contato mais íntimo e mais livre com as montanhas assoladas pela neve, a qual o jovem começara a querer bem. Mas esse desejo era irrealizável, enquanto o peito que o abrigava pertencesse a um pedestre desprovido de asas e de instrumentos. Pois imediatamente mergulharia até o pescoço no elemento branco, se tentasse avançar além dos caminhos habituais, abertos com a pá, e cujo fim se alcançava depressa em toda parte. Assim, aconteceu, um belo dia desse segundo inverno que Hans Castorp passava ali em cima, que o jovem decidiu comprar um par de esquis e aprender a servir-se deles, na medida que o exigiam as suas necessidades reais. Não era desportista; nunca o fora, por falta de uma mentalidade preocupada com a educação física, e tampouco fingia sê-lo, à maneira de certos pensionistas do Berghof que, para corresponder à moda e ao espírito do lugar, fantasiavam-se excentricamente. Sobretudo as mulheres faziam isso; Hermine Kleefeld, por exemplo, que, embora a respiração insuficiente lhe tingisse de um constante azul a ponta do nariz e os lábios, gostava de aparecer, à hora do lanche, trajando calças de lã, e depois da refeição costumava refestelar-se assim numa das poltronas de vime do vestíbulo, abrindo as pernas de modo bastante inconveniente. Se Hans Castorp tivesse solicitado a autorização do conselheiro para o seu extravagante intento, decerto teria recebido uma resposta negativa. Atividades desportivas estavam rigorosamente proibidas à comunidade de enfermos, tanto no Berghof como em outros lugares, nos estabelecimentos do mesmo gênero. Pois aquela mesma atmosfera que aparentemente era aspirada com muita facilidade exigia dos músculos cardíacos esforços violentos, e no que dizia respeito à pessoa de Hans Castorp, continuava em pleno vigor a sua atilada frase sobre “o hábito de não se habituar”. A tendência febril que Radamanto atribuía a uma mancha úmida persistia obstinadamente. Não fosse ela, que é que Hans Castorp ia fazer ali em cima? Seu desejo e seu projeto eram, portanto, incoerentes e ilícitos. Mas convém procurar compreendê-lo. Hans Castorp não estava aguilhoado pela ambição de igualar-se aos almofadinhas do ar livre e aos pseudodesportistas que, se a moda o mandasse assim, jogariam cartas numa sala abafada com o mesmo zelo ardoroso. Sentia-se estreitamente ligado a uma outra comunidade, menos livre do que a pequena comunidade dos turistas. Sob um ponto de vista mais amplo e mais novo, devido a certo senso de dignidade, que o distanciava dos demais, e a consciência das suas obrigações, que lhe restringia os planos, tinha a impressão de que não lhe cabia brincar nas alturas como aquela gente e rolar pela neve feito um louco. Não tencionava realizar escapadas; propunha-se proceder com moderação, e Radamanto bem poderia permitir-lhe o que desejava fazer. Mas Hans Castorp previa que o médico, em nome do regulamento do sanatório, não deixaria de vetar a realização do intento, e por isso decidiu agir à revelia dele. Numa oportunidade, comunicou o seu projeto ao Sr. Settembrini. Este quase o abraçou de tanta alegria. – Sim, senhor! Claro! Faça isso, engenheiro, por amor de Deus! Não consulte ninguém e faça-o. Foi o anjo da guarda quem lhe deu essa idéia. Faça-o imediatamente, antes de perder a vontade saudável! Irei com o senhor, vou acompanhá-lo até a loja, e juntos adquiriremos sem demora esses abençoados utensílios! Gostaria até de acompanhá-lo através das montanhas, de correr a seu lado, com os esquis alados nos pés, como Mercúrio, mas não me é permitido... Ora, permitido! Se apenas se tratasse da “permissão”, pouco me importaria, mas não posso, porque sou um homem perdido. Mas o senhor... Isso não lhe fará mal nenhum, absolutamente, desde que se mostre prudente e não abuse. Tolice, mesmo que lhe fizesse um pouquinho de mal, seria ainda o seu anjo da guarda quem... Não quero dizer mais nada. Que plano excelente! Encontra-se aqui faz dois anos e ainda é capaz de ter idéias assim! Sim, senhor, sua natureza íntima é boa. Não temos motivos para desespero. Bravos, bravos! O senhor pregará uma peça ao príncipe das trevas. Compre os esquis e mande-os para minha casa, ou para Lukacek, ou para o merceeiro que mora embaixo. Ali pode buscá-los, quando quiser exercitar-se e deslizar sobre a neve... E assim foi feito. Sob os olhos do Sr. Settembrini, que se fingia de crítico perito, embora nada entendesse de esportes, Hans Castorp adquiriu, numa loja especializada da rua principal, um par de bonitos esquis, de boa madeira de freixo, lustrados com verniz castanho-claro e providos de magníficas correias e de pontas levantadas. Também comprou os necessários bastões de pontas de ferro e munidos de pequenas rodas, e fez questão de levar tudo isso nos seus próprios ombros até o domicílio de Settembrini, onde não teve dificuldade em combinar com o merceeiro as condições do depósito dos utensílios. Pela observação freqüente de outros esquiadores inteirara-se do modo de usar os esquis, o bastante para que, longe das multidões reunidas nos campos de exercício, começasse sozinho a dar os primeiros e malsucedidos passos numa encosta quase despida de árvores e situada nas proximidades do Sanatório Berghof. De vez em quando, o Sr. Settembrini ia assistir às suas tentativas, de alguma distância, apoiando-se na bengala, com as pernas graciosamente cruzadas, e premiando com brados de elogio a progressiva habilidade do jovem. Tudo se passou sem incidentes, mesmo aquele momento em que Hans Castorp, ao descer pela curva da estrada aberta a pá, na intenção de encaminhar-se à “aldeia” e de deixar os esquis na casa do merceeiro, encontrou-se com o conselheiro. Behrens não o reconheceu, embora isso se desse em pleno meio-dia e o principiante quase se chocasse com ele; passou pelo jovem, envolvendo-se numa nuvem de fumaça de charuto. Hans Castorp verificou que depressa adquire uma técnica quem a necessita intimamente. Não tinha pretensões de perícia. O que precisava, podia aprendê-lo em poucos dias, sem se esfalfar nem perder o fôlego. Tratava de manter os pés juntos e de traçar sulcos paralelos; experimentava dirigir-se por meio dos bastões, durante as descidas; aprendia a franquear obstáculos e pequenos acidentes do terreno, num só arranco, com os braços abertos, elevando-se e mergulhando como um navio no mar agitado. Após a vigésima tentativa já não caía, quando, em plena corrida, freava com o auxílio do telemark, avançando uma das pernas e curvando o joelho da outra. Aos poucos foi ampliando os seus exercícios. Um belo dia, o Sr. Settembrini viuo desaparecer nas brumas alvacentas. Com as mãos em concha à guisa de alto-falante, enviou-lhe algumas palavras de advertência, depois do quê foi para casa, pedagogicamente satisfeito. Era linda a paisagem da montanha hibernal – linda não de um modo suave e agradável, senão assim como o é o ermo do mar do Norte nos dias de um forte vento oeste. Não havia na verdade estrondo de trovões; pelo contrário, reinava um silêncio de morte, que no entanto despertava os mesmos sentimentos de reverência. As solas compridas, elásticas, de Hans Castorp levavam-no em muitas direções, ao longo da encosta esquerda, rumo a Clavadel, ou à direita, passando por Frauenkirch e Glaris, por trás das quais os sombrios contornos do maciço de Amselfluh surgiam nas brumas, qual um fantasma. Entrou também no vale de Dischma e, subindo pelos fundos do Berghof, tomou a direção do arborizado monte Seehorn, do qual apenas o cume envolto em neve ultrapassava o limite da vegetação, e da floresta de Drusatscha, por trás da qual se enxergava a pálida silhueta da cordilheira Rética, revestida de espessa camada de neve. Por meio do teleférico, transportou-se com seus esquis até Schatzalp, onde, erguido a dois mil metros de altura, pôs-se a vaguear calmamente através da neve poeirenta, por sobre faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereciam uma vista grandiosa do campo das suas aventuras. Regozijava-se com seus novos recursos, que lhe abriam zonas antes inviáveis e aniquilavam quase todos os obstáculos. Proporcionavam-lhe o manto da desejada solidão, a mais profunda solidão que se possa imaginar, a solidão que inspirava à alma a sensação do desconhecido e do perigo dessas paragens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com enormes massas de neve, ciclópicas, gibosas e arqueadas, que formavam cavernas e cúpulas. Quando Hans Castorp parava, a fim de não ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, com o menor traço de som como que abafado por meio de algodão, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primevo, aquele que Hans Castorp ouvia ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e com a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava caindo, numa queda calma, sem ruído algum. Não, esse mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro. Admitia o visitante por sua própria conta e risco. Em realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era a de uma ameaça muda e elementar, baseada não em hostilidade, senão antes numa indiferença mortal. O rebento da civilização, que pela sua origem fica alheio e distante da natureza selvagem, é muito mais acessível à sua grandiosidade do que o seu filho rude, que depende dela desde a infância e mantém com ela relações de prosaica familiaridade. Este mal conhece o temor religioso com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, fazendo constantemente vibrar na sua alma uma espécie de emoção piedosa e de desassossego tímido. Hans Castorp, com seu suéter de lã de camelo, de mangas compridas, com suas grevas e seus esquis de luxo, no fundo sentia-se audacioso ao contemplar a paz primeva, o ermo hibernal com aquela funesta ausência de sons; e a sensação de alívio que se apresentava, quando, no caminho de volta, apontavam nas brumas as primeiras habitações humanas, tornava-o consciente do seu estado anterior e instruía-o sobre o terror secreto e sagrado que, durante horas, dominara o seu coração. Na ilha de Sylt, de calças brancas, seguro, elegante e reverente, detivera-se à beira da formidável rebentação como diante de uma jaula de leões, atrás de cujas grades as feras mostram a bocarra aberta com as terríveis presas. A seguir, banhara-se, enquanto um salva-vidas advertia, por meio de um toque de cometa, aqueles que temerariamente procuravam franquear a primeira onda, a fim de se aproximar da ressaca que se revolvia em sua direção. Ainda os derradeiros golpes daquela catarata lhe tinham ferido a nuca como uma patada. Naquela região, o jovem travara conhecimento com aquela entusiástica felicidade que propiciam os ligeiros contatos amorosos com as potências cujo abraço pleno seria fatal. Mas o que nunca chegara a conhecer era a veleidade de levar esse inebriante contato com a natureza mortífera ao ponto em que estivesse iminente o abraço pleno, e a fascinação de penetrar – débil criatura que era, apesar das armas e do equipamento sofrível que lhe fornecera a civilização – dentro do monstruoso mistério, ou, ao menos, evitar a fuga até o momento em que a aventura beirasse o perigo e seus limites se tornassem independentes da vontade humana, o momento em que já não se tratasse de espumas lançadas à praia e de leves pancadas com a pata, mas sim do vagalhão, da fauce do mar. Numa palavra: Hans Castorp tinha coragem ali em cima – se se entende por coragem frente aos elementos não a objetividade obtusa nas relações com eles, mas o abandono consciente e o triunfo sobre o medo da morte, obtido por meio da simpatia. Simpatia? Com efeito, Hans Castorp simpatizava com os elementos, no íntimo do seu frágil peito civilizado, e existia certa ligação entre essa simpatia e a nova convicção da sua dignidade, que o invadira diante do aspecto daquela turba a brincar com seus trenós, e lhe apresentara como desejável e conveniente uma solidão mais profunda e mais grandiosa, menos provida de um conforto de hotel, do que aquela que se encontrava no seu compartimento de sacada. Fora dali que ele contemplara as cristas envoltas em brumas e a dança da nevada, envergonhando-se, no fundo da sua alma, desse divertimento de ser mero espectador por cima do parapeito da comodidade. Era por isso – e não por um capricho desportivo, nem tampouco devido a um prazer inato na educação física – que aprendera a usar os esquis. Se não se sentia seguro nessas alturas, com a grandiosidade e o silêncio mortal da neve que caía – e de fato esse filho da civilização estava longe de tal estado de sossego , era também inegável que seu espírito e sua alma, desde muito, iam saboreando alimentos pouco seguros. Um colóquio com Naphta e Settembrini não era precisamente o que existia de mais seguro; também ele levava a regiões ínvias e altamente perigosas. E se cabia dizer que Hans Castorp simpatizava com o vasto ermo hibernal, é porque este, apesar do terror piedoso que lhe inspirava, afigurava-se-lhe como a arena própria para as contendas que travavam os seus pensamentos complexos, e como o lugar indicado para uma pessoa que, sem saber por quê, estava incumbida de negócios de “rei”, relativos à situação e ao estado do Homo Dei. Aqui não havia ninguém cujo toque de cometa avisasse o incauto do perigo iminente, a não ser que o Sr. Settembrini fosse esse homem, ao advertir, pelas mãos em concha, Hans Castorp, que sumia na cerração. Mas este, cheio de coragem e de simpatia, não prestava à advertência maior atenção do que dedicara àquela outra que ressoara atrás dele, na noite de carnaval, enquanto avançava em determinada direção: “Eh, ingegnere, un po’ di ragione, sa!” “Ai de ti, Satana pedagógico, com tua ragione e tua rebellione!”, pensou o jovem. “E, contudo, gosto de ti. Embora sejas um doidivanas e um tocador de realejo, tens boas intenções, melhores e mais simpáticas a mim pessoalmente do que as do pequeno e penetrante jesuíta e terrorista, esse algoz e flagelador espanhol com seus óculos relampejantes, se bem que ele tenha quase sempre razão, quando vocês estão discutindo... quando brigam, pedagogicamente, pela minha pobre alma, como Deus e o Diabo lutavam pelo homem na Idade Média...” Com as pernas salpicadas de neve, apoiando-se nos bastões, ia escalando descoradas vertentes, cujos lanços se elevavam em forma de terraço, cada vez mais alto, e não se sabia aonde conduziam. Parecia que não levavam a parte alguma. A região superior confundia-se com o céu, o qual mostrava o mesmo branco nevoento que eles, de modo que era impossível dizer onde ele começava. Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o “nada” brumoso em cuja direção Hans Castorp avançava penosamente, e, como também atrás dele o mundo, aquele vale habitado por criaturas humanas não tardasse a fechar-se e a subtrair-se à vista, e como som algum chegasse dali até ele, a sua solidão, o seu isolamento tornou-se, antes que o jovem o percebesse, o mais profundo possível, tão profundo que chegou a dar-lhe aquele susto que é a condição prévia da coragem. “Praeterit figura hujus mundi”, disse de si para si, num latim de espírito nada humanístico. Aprendera essa locução de Naphta. Estacou e olhou a seu redor. Não se via nada em parte alguma, exceção feita a esparsos e minúsculos flocos de neve, que, vindos da brancura do céu, desciam até a brancura do solo. O silêncio em volta dele era impressionantemente vazio. Enquanto o seu olhar se refrangia no vácuo alvo que o deslumbrava, Hans Castorp sentiu como o seu coração, agitado pela subida, começava a latejar – esse órgão musculado, cuja forma animalesca e cujo mecanismo ele espreitara, talvez nefandamente, por entre os crepitantes relâmpagos do gabinete de radioscopia. E uma espécie de comoção apoderou-se dele, uma singela e devota simpatia por esse seu coração, o coração palpitante do homem, que pulsava, nesse ermo glacial, tão sozinho com seus problemas e seus enigmas. Prosseguiu no seu vagaroso avanço, sempre subindo, rumo ao céu. Às vezes mergulhava na neve a extremidade superior do bastão e observava como no fundo do buraco era lançada uma luz azul, que perseguia o bastão, cada vez que este se retirava. Isso divertia Hans Castorp, que se deixava ficar muito tempo parado a fim de reproduzir uma e outra vez o pequeno fenômeno óptico. Era uma luz singular e delicada, luz das montanhas e das profundidades, entre esverdeada e azul, clara como o gelo e entretanto sombria, uma luz que o atraía misteriosamente, recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que o Sr. Settembrini, do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente de “fendas tártaras” e de “olhos de lobo de estepe”, olhos que Hans Castorp contemplara em tempos remotos e reencontrara forçosamente, os olhos de Hippe e de Clávdia Chauchat. – Com muito prazer – disse a meia voz no silêncio. – Cuidado para não quebrá-lo! Il est à visser, tu sais. – E no seu íntimo ouviu, atrás de si, eloqüentes exortações no sentido de levá-lo à razão. À sua direita, não muito distante, um bosque desenhou-se na bruma. Hans Castorp encaminhou-se até lá, para ter em mira um objetivo terrestre, em vez da alvura transcendente, e logo resvalou em brusca descida, sem ter previsto a menor depressão do solo. O deslumbramento impedia-o de reconhecer a formação do terreno. Nada se enxergava, tudo se confundia diante dos olhos. Obstáculos completamente inesperados obrigaram-no a nova subida, antes que pudesse abandonar-se ao declive, e sem que os seus olhos fossem capazes de distinguir o grau de inclinação. O bosque que o atraíra estava situado além do barranco onde Hans Castorp entrara inopinadamente. O fundo dessa garganta, coberto de neve fofa, pendia para o lado da montanha, como o jovem verificou após ter seguido alguns instantes nessa direção. O caminho descia, e as vertentes laterais tornavam-se cada vez mais altas; como um desfiladeiro, a dobra do terreno parecia conduzir ao seio da montanha. Depois, os esporões do seu veículo voltaram a apontar para cima. O terreno subia, e já havia parede lateral para escalar. Novamente, a carreira sem destino de Hans Castorp realizava-se sobre a encosta aberta da montanha, rumo ao céu. A seu lado, atrás e abaixo de si, viu o bosque de coníferas. Tomando essa direção, alcançou em rápida descida os pinheiros carregados de neve, que, dispostos em forma de cunha, representavam, nessa zona despida de vegetação, uma espécie de vanguarda da encosta arborizada, cujos contornos se perdiam nas brumas. Sob a ramagem, Hans Castorp descansou, fumando um cigarro. Sua alma não deixava de experimentar uma sensação de angústia, tensão, ansiedade, que tinha a sua origem no silêncio por demais profundo, na solidão cheia de aventuras. Ao mesmo tempo, o jovem sentia-se orgulhoso da sua conquista e soberbo na plenitude dos direitos que sua dignidade lhe conferia sobre essa região. Era por volta das três da tarde. Logo depois da refeição, Hans Castorp pusera-se a caminho, na intenção de gazear parte do repouso principal e a merenda, e estar de volta antes do escurecer. Encheu-se de alegria ao pensar que tinha ainda à sua frente algumas horas que poderia passar vagando ao ar livre, através da natureza grandiosa. Na algibeira de sua calça de golfe levava um pouco de chocolate, e no bolso do casaco um pequeno frasco de vinho do Porto. Mal se podia divisar a posição do sol, tão densa era a cerração que o escondia. Mais atrás, na outra extremidade do vale, onde a montanha formava um ângulo que não se via, as nuvens e as brumas iam escurecendo e davam a impressão de avançar. Era um sinal de neve, de mais neve, como se ainda houvesse falta dela. Parecia iminente uma nevada em regra, e realmente os pequenos e silenciosos flocos já estavam caindo mais copiosamente sobre a encosta. Hans Castorp deu um passo à frente a fim de recolher alguns sobre a manga e examinálos com os olhos peritos de um naturalista amador. Assemelhavam-se a farrapinhos informes, mas já tivera outros sob a sua magnífica lente e sabia muito bem de que jóia minúsculas, delicadas e precisas se compunham: alfaias, insígnias, broches de diamantes, como o mais hábil joalheiro não poderia fazer mais ricos e mais minuciosos. Aquele pó branco, tão leve e tão fofo, cujas massas oprimiam o bosque e cobriam as áreas abertas, aquele pó por cima do qual o carregavam seus esquis, muito diferia, em realidade, da areia do seu país, na qual fazia pensar. Era coisa sabida que não constava de grãos de pedra, mas de miríades de partículas de água, que, ao congelar-se, haviam-se associado como cristais numa harmoniosa multiplicidade; tratava-se de parcelas da mesma substância inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem. E entre as miríades de estrelinhas mágicas, no seu esplendor secreto, invisível, miúdo e não destinado aos olhos humanos, não havia duas que fossem iguais. Um infinito capricho de inventor empenhava-se na modificação e no mais refinado desenvolvimento de um mesmo esquema fundamental, que era o hexágono de lados e ângulos iguais. Mas cada qual desses artefatos frios, em si, mostrava a mais absoluta simetria e uma regularidade glacial, e justamente nisso estava o inquietante, o antiorgânico, o hostil à vida; eram eles regulares em excesso, num grau jamais alcançado pela substância organizada para a vida. A esta repugnava uma precisão tão exata, que se lhe afigurava mortal, como o mistério da própria morte. Hans Castorp julgava compreender por que os construtores de templos, na Antigüidade, costumavam introduzir propositada e clandestinamente pequenas alterações de simetria na disposição das suas colunas. Pôs-se em movimento por meio dos bastões; resvalando sobre os esquis, ao longo da beira do bosque, desceu cerração adentro, pela vertente oculta por espessa camada de neve. Subindo ou deslizando, sem objetivo nem pressa, continuou a vagar através da região morta. Com as suas extensões vazias e onduladas, com a vegetação árida de esparsos e definhados arbustos, que ressaltavam como manchas escuras, e com o horizonte limitado por elevações suaves, o ambiente parecia-se estranhamente com uma paisagem de dunas. Hans Castorp sacudia a cabeça em sinal de aprovação, enquanto se detinha para admirar essa semelhança. Suportava mesmo com simpatia o calor do rosto, o tremor dos membros, a singular e perturbadora mescla de excitação e fadiga que experimentava. Pois tudo isso lhe chamava à memória impressões familiares de efeitos parecidos que produzira o ar das praias do mar, igualmente estimulante e ao mesmo tempo saturado de substâncias soporíferas. Sentia satisfação ao perceber a sua independência alada, a liberdade das suas andanças. Não tinha à sua frente nenhum caminho que se visse obrigado a seguir; tampouco atrás dele havia um que o levasse ao ponto de partida. A princípio, Hans Castorp encontrara sinais, paus cravados no solo, sinais da neve, mas de propósito libertara-se da sua influência, que lhe recordava o homem da corneta e lhe parecia em desacordo com a relação íntima que existia entre ele e o grande ermo hibernal. Atrás de outeiros rochosos, cobertos de neve, por entre os quais o jovem se infiltrava, dirigindo-se alternadamente para a direita ou a esquerda, estendia-se um plano inclinado, seguido por outro, horizontal, e em seguida surgiram vastos montes, cujos barrancos e desfiladeiros, estofados de almofadas macias, pareciam transitáveis e atraentes. Sim, a sedução das alturas e das distâncias, das sempre novas solidões que se ofereciam, dominava fortemente a alma de Hans Castorp, e ele, arriscando-se a voltar tarde, procurou penetrar mais a fundo o silêncio selvagem, a zona do perigo, a ameaça. Nem se preocupava com o fato de que a tensão e a ansiedade reinantes no seu interior se iam transformando em autêntico medo, diante da escuridão prematura e crescente do céu, que se abaixava, qual um véu cinzento, sobre a região. Esse medo fe-lo notar que até agora se empenhara secretamente em perder o rumo e em esquecer a direção onde se achavam situados o vale e a aldeia, empresa na qual, aliás, tivera pleno êxito. Sabia, no entanto, que, se voltasse imediatamente e prosseguisse sempre descendo, alcançaria depressa o vale, mesmo que fosse num lugar distante do Berghof. Depressa demais, porque nesse caso chegaria muito cedo e não aproveitaria todo o tempo de que dispunha. Se, porém, fosse surpreendido pela tempestade de neve, talvez não conseguisse encontrar o caminho de volta. Nem por isso resolveu-se a fugir antes da hora, por mais que o acossasse o medo, o pavor sincero que lhe inspiravam os elementos. Isso não era proceder à maneira de um desportista; pois este não entraria em luta com os elementos sem ter certeza de poder dominá-los; agiria com prudência e seria bastante sensato para ceder. Mas o que se passava na alma de Hans Castorp só pode ser designado por uma única palavra: desafio. Pode ser que essa palavra encerre sentimentos censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante que lhe corresponde ande acompanhada de muito medo sincero. Bastam, contudo, algumas reflexões humanas para compreender vagamente que no âmago da alma de um jovem e de uma pessoa que durante anos viveu como o nosso herói se deposita ou, segundo diria o engenheiro Hans Castorp, “se acumula” muita coisa que um belo dia deve explodir em forma de um elementar “Ora bolas!” ou de um “Custe o que custar!”, cheio de impaciência exasperada. Numa palavra, achamo-nos à frente de um desafio, de uma atitude negativa oposta à prudência razoável. E assim Hans Castorp continuou avançando sobre os seus compridos tamancos. Deslizou por mais uma encosta e escalou outra vertente, onde, a alguma distância, se via um chalezinho – um galpão talvez ou a choupana de um pastor – com o teto carregado de pedras. Tomou a direção da montanha seguinte, com a encosta hirsuta de pinheiros, atrás dos quais altos picos assomavam como torres no meio da bruma. À sua frente, o paredão salpicado de raros grupos de árvores elevava-se muito íngreme. Mais para a direita, porém, era possível contorná-lo a meio sobre um declive moderado, e passar para trás dele, a fim de ver o que viria depois. Hans Castorp tomou a si essa tarefa de explorador, depois de ter descido, perto da plataforma do chalé, por uma garganta bastante profunda, que se inclinava da direita para a esquerda. Mal retomara a subida, quando o esperado se tornou realidade: bruscamente estalaram a nevada e a ventania. Tinha chegado a tempestade de neve que por tanto tempo o ameaçara, se é que se pode falar de “ameaça” com relação a elementos cegos e ignorantes que não pretendem de modo algum aniquilar-nos – o que seria relativamente reconfortante –, mas mostram a mais absoluta indiferença quanto a essa conseqüência eventual da sua ação. “Opa!”, pensou Hans Castorp e estacou, quando a primeira rajada, revolvendo o denso torvelinho, lhe feriu o corpo. “Esse tipo de sopro vai até a medula.” E de fato, o vento era de uma espécie bastante enjoada. O frio espantoso que reinava – uns vinte graus abaixo de zero – não se tornava sensível e parecia moderado, enquanto o ar desprovido de umidade se conservava tão calmo e tão imóvel como de costume; mas, logo que se agitava sob o efeito do vento, cortava a carne como uma navalha, e quando isso acontecia com tamanha intensidade como nesse instante (pois o primeiro pé-devento a varrer a região não passara de um precursor), nem sete casacos teriam bastado para resguardar os ossos do terror glacial da morte. Hans Castorp, por sua vez, não trajava sete casacos, senão apenas um suéter de lã, que em circunstâncias normais teria sido suficiente e até já se manifestara incômodo, quando brilhava o sol. A borrasca fustigava-o pelo lado e por parte das costas, de maneira que não era recomendável voltar-se e recebê-la em pleno rosto; como esse raciocínio se aliasse à sua teimosia e àquela atitude de “Ora bolas!” que ele adotara no seu íntimo, o audacioso jovem prosseguiu no seu avanço por entre os pinheiros isolados, na intenção de chegar ao outro lado da montanha que acabava de escalar. Nisso, porém, não havia nenhum prazer, pois nada se enxergava além da dança dos flocos, que, aparentemente sem cair, enchiam o espaço com sua abundância turbilhonante. As lufadas glaciais que os remexiam faziam arder as orelhas numa dor aguda, tolhiam os membros e entorpeciam os dedos, de modo que Hans Castorp já não sabia se ainda segurava o bastão ou se não tinha nada nas mãos. Por detrás a neve lhe entrava no colarinho e, derretendo, descia pelas costas. Também se amontoava nas suas espáduas e lhe cobria o flanco direito. Parecia-lhe que ia transformar-se num homem de neve, com o bastão na mão enrijecida. E todos esses inconvenientes eram as conseqüências de uma situação relativamente favorável. Se ele desse meia-volta a coisa pioraria, e não obstante convinha empreender sem demora aquela tarefa laboriosa que constituía o caminho de volta. Parou; furiosamente encolheu os ombros e dirigiu os esquis para o lado oposto. O vento contrário logo lhe impediu a respiração, de maneira que mais uma vez se submeteu à penosa manobra da meia-volta, a fim de retomar fôlego e de enfrentar o inimigo impassível numa disposição melhor. Com a cabeça abaixada, respirando econômica e cautelosamente, conseguiu, com efeito, pôr-se em movimento na direção desejada. Embora esperasse o pior, mostrou-se surpreendido pelas dificuldades da marcha, que tinham a sua origem antes de mais nada no ofuscamento e na falta de fôlego. A cada instante via-se obrigado a deter-se, em primeiro lugar para respirar ao abrigo da tempestade, e ainda porque, olhando para cima com a cabeça baixa, nada enxergava naquelas trevas brancas e devia andar com cautela, para evitar choques com árvores ou quedas causadas por obstáculos. Flocos em massa fustigavam-lhe o rosto e nele se derretiam, de modo que a pele gelava. Entravam-lhe na boca, onde se fundiam com sabor insípido e aquoso; voavam contra as pálpebras, que se cerravam convulsivamente; inundavam os olhos, estorvando a visão, que, por outro lado, teria sido inútil, uma vez que o campo visual estava velado por uma cortina espessa e o sentido da vista achava-se obstruído pelo deslumbramento resultante de toda essa brancura. Quando Hans Castorp fazia um esforço para ver, deparava com o nada, o remoinho branco do nada. E só de tempos em tempos assomavam fantasmagóricas sombras do mundo real, um arbusto definhado, um grupo de pinheiros, e também a pálida silhueta do galpão pelo qual passara havia pouco. Hans Castorp deixou-o para trás e procurou encontrar o caminho de volta, atravessando a vertente, a cuja beira se erguia o chalé. Ora, não existia caminho. Conservar um rumo, a direção aproximada do sanatório, era uma questão de sorte antes que de raciocínio, já que a vista, que talvez conseguisse enxergar a mão diante dos olhos, nem sequer alcançava as pontas dos esquis, e mesmo que se divisasse mais, existiam ainda numerosos óbices que se opunham ao avanço: o rosto estava coberto de neve; a tempestade lutava contra ele, impedindo, tolhendo a respiração, tornando quase impossíveis tanto o ato de aspirar como o de expelir o ar, e forçando o jovem a cada instante a virar-lhe as costas para resfolegar. Quem poderia progredir desse modo? Nem Hans Castorp, nem outro mais forte do que ele. Era preciso parar, tomar alento, apertar as pálpebras para fazer a água sair dos olhos piscos, sacudir a couraça de neve que se formara sobre a parte anterior do corpo. Não deixava de ser insensata a pretensão de avançar em tais condições. Apesar de tudo, Hans Castorp avançou, isto é: continuou marchando. Mas restava saber se se tratava de uma marcha profícua, de um avanço na direção certa, e se não seria mais indicado para ele permanecer no lugar onde se encontrava – o que, no entanto, tampouco parecia útil. A probabilidade teórica inclinava-se para o contrário, e do ponto de vista prático, Hans Castorp, dentro em breve, teve a impressão de que alguma coisa não andava bem no solo em que pisava, que não era mais aquela encosta pouco inclinada que ele realcançara a muito custo, subindo do barranco, e que urgia transpor antes de mais nada. O trecho plano fora muito curto, e logo recomeçou a subida. Evidentemente, a tempestade, que vinha do sudoeste, da região da extremidade oposta do vale, desviara-o da sua rota, pela furiosa pressão contrária. Já fazia algum tempo que o jovem se esfalfava num avanço errado. Às cegas, envolto na turbilhonante noite branca, apenas se esforçara por penetrar mais fundo no elemento indiferente, ameaçador. – Vejam só! – murmurou entre dentes, enquanto estacava. Não se serviu de uma expressão mais enfática, se bem que, por um momento, tivesse a sensação de que uma mão gélida lhe agarrava o coração, fazendo-o sobressaltar-se e bater de encontro às costelas num ritmo acelerado, como naquele dia em que Radamanto lhe descobrira o lugar úmido no peito. Hans Castorp compreendia que não lhe cabia pronunciar palavras altissonantes, pois ele mesmo lançara o desafio e era responsável por tudo quanto a situação tivesse de inquietante. – Essa é boa! – disse de si para si, e sentiu que suas feições, os músculos faciais, já não obedeciam à alma e nada sabiam reproduzir, nem medo, nem raiva, nem desdém, por estarem enregelados. – Que fazer agora? Descer obliquamente por aí, direto para a frente, sempre contra o vento. Na verdade, é mais fácil dizer do que fazer – continuou, ofegante, proferindo palavras entrecortadas, a meia voz, enquanto voltava a pôr-se em movimento. – Mas é preciso que aconteça alguma coisa. Não posso sentar-me e esperar. Nesse caso ficaria coberto por toda essa simetria hexagonal, e Settembrini, se me procurasse com a corneta na mão, haveria de me achar acocorado aqui, com os olhos vidrados e com um boné de neve de través na cabeça... – Hans Castorp percebeu que estava falando sozinho, e de um jeito um tanto esquisito. Proibiu-se, pois, de falar assim, mas fez também isso à meia voz e em palavras expressas, embora seus lábios estivessem tão atordoados que renunciou a utilizá-los e falou sem pronunciar aquelas consoantes que são formadas com o auxílio deles, o que lhe chamou à memória uma situação anterior na qual ocorrera o mesmo. – Cala-te e trata de livrar-te! – prosseguiu e acrescentou: – Parece-me que estás desvairando e já não tens o cérebro muito claro. Isso é triste, sob certos aspectos. Que isso fosse triste, do ponto de vista da sua salvação, constituía, entretanto, uma simples verificação do juízo controlador, feita, por assim dizer, por uma pessoa estranha, desinteressada, ainda que invadida de preocupações. Quanto à sua inclinação natural, Hans Castorp sentia-se muito disposto a abandonar-se àquela confusão que se queria apoderar dele com o aumento do cansaço. Todavia, deu-se conta dessa tendência e refletiu sobre ela. – É a modificação que se produz no modo de sentir de um homem que nas montanhas foi surpreendido por uma tempestade de neve e não encontra o caminho para casa – raciocinou penosamente, pronunciando, em voz trêmula, partes dos seus pensamentos, e evitando, por discrição, expressões mais claras. – Quem ouve falar disso imagina que é horroroso, mas esquece que a enfermidade – e a minha situação é de certo modo uma enfermidade – prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, narcoses providenciais, medidas da natureza para dar-nos alívio; sim, senhor!... No entanto, devemos lutar contra elas, uma vez que têm duas caras e são sumamente equívocas. A sua apreciação depende inteiramente do ponto de vista. São bem-intencionadas e benéficas para quem não está destinado a regressar; mas são prejudiciais e devem ser combatidas, enquanto ainda se pode ter esperança de regresso, como no meu caso. Eu não penso em... No meu coração, que palpita tumultuosamente, não tenho a mínima intenção de me deixar enterrar aqui por essa cristalometria estupidamente regular. De fato, já se sentia bastante esgotado e, de modo confuso e febril, ia debelando a incipiente perturbação dos seus sentidos. Não se assustou, assim, como o teria feito se tivesse estado em seu juízo, quando notou que novamente se afastara da pista plana; dessa vez, provavelmente, na direção oposta, para onde o declive era mais forte. Pois tornara a descer, tendo o vento oblíquo contra si. Embora isso fosse errado, parecia-lhe mais cômodo agir assim, pelo menos por enquanto. – Não faz mal – opinou. – Um pouco mais abaixo voltarei a tomar o rumo certo. – E foi o que fez, ou acreditou fazer, ou talvez nem sequer o acreditasse, ou – o que era ainda mais inquietante – já não ligava importância à diferença entre fazer ou não fazer. Tal era o efeito daquelas equívocas diminuições da sensibilidade, contra as quais Hans Castorp se debatia apenas debilmente. A mescla de excitação e fadiga que formava o estado familiar e constante de um pensionista cuja aclimatação consistia no hábito de não se habituar intensificara-se nos seus dois componentes de tal maneira que já não se podia falar de uma reação sensata contra os desfalecimentos do espírito. Tonto e cambaleante, estremecia de ebriedade e de emoção semelhantes àquelas que experimentava depois de um colóquio com Naphta e Settembrini, porém num grau muito mais forte. Daí lhe sucedia justificar a sua preguiça na luta contra os desfalecimentos narcóticos por meio de desordenadas reminiscências daquelas discussões. Apesar da sua desdenhosa revolta contra a idéia de se ver soterrado pela simetria hexagonal, balbuciava de si para si qualquer coisa cujo sentido ou não-sentido era o seguinte: o senso do dever que procurava induzi-lo a combater as diminuições de consciência suspeitas não era pura ética, mas sim o mísero modo de viver burguês e a mentalidade de filisteus irreligiosos. O desejo e a tentação de deitar-se e descansar insinuavam-se na sua alma e faziam com que raciocinasse que a sua situação era semelhante a uma tempestade de areia no deserto, e nesse caso os árabes costumavam estender-se com o rosto para baixo, puxando o albornoz por cima da cabeça. Unicamente o fato de não possuir albornoz e de ser impossível envolver a cabeça numa blusa de lã constituía para ele uma objeção incisiva contra tal modo de agir, se bem que já não fosse criança e estivesse inteirado, por muitas narrativas, da maneira como se processava a morte por congelamento. Depois de uma descida moderadamente rápida e de um trecho plano, reiniciou-se a subida, desta vez bastante íngreme. Isso não implicava necessariamente que ele se achasse num caminho errado, pois o que conduzia para o vale forçosamente incluía trechos que subiam, e quanto ao vento, era provável que tivesse mudado, obedecendo a um capricho, já que Hans Castorp o recebia, desde havia pouco, pelas costas, e esse fato, encarado isoladamente, parecialhe simpático. Era a tempestade que o dobrava, ou o declive macio, branco e velado pelo torvelinho crepuscular, que exercia uma atração sobre o seu corpo, fazendo-o inclinar-se para a frente? Bastaria ceder, abandonando-se a essa tendência, e a sedução era grande, tão grande como os livros a descrevem, qualificando-a como perigosa e típica. Mas essa noção não diminuía em nada a força viva e atual da atração. Reivindicava ela direitos individuais, não queria deixar-se classificar entre as coisas conhecidas, não admitia confronto, insistia em ser única e incomparável na sua urgência, sem que, no entanto, pudesse negar a sua origem numa sugestão emanada de certa pessoa, criatura vestida de preto, à espanhola, com uma alvíssima golilha pregueada, e cuja imagem ou concepção fundamental evocava toda sorte de conceitos sombrios, penetrantemente jesuíticos, hostis à humanidade, visões de escravidão torturada e flagelada, coisas de que o Sr. Settembrini tinha horror, embora na sua guerra contra elas só se tornasse ridículo, com seu realejo e sua ragione... Não obstante, Hans Castorp comportou-se valentemente e resistiu à tentação de se deixar cair. Não enxergava nada, mas continuava lutando e ganhando terreno; com ou sem proveito, cumpria o seu dever e trabalhava, desprezando os grilhões cada vez mais pesados, com os quais a tempestade glacial lhe prendia os membros. Como a subida se mostrasse extraordinariamente escarpada, enveredou para o lado, sem se dar conta disso, e seguiu algum tempo ao longo da vertente. Abrir as pálpebras convulsas e espreitar em torno de si exigia um esforço cuja inutilidade comprovada pouco o animava a repeti-lo. Mesmo assim deparava com alguma coisa, de vez em quando: uns pinheiros aglomerados, um arroio ou riacho, cuja negrura ressaltava na paisagem, entre os rebordos cobertos de neve. E quando, para variar, se encontrou novamente num trecho de descida, dessa vez contra a ventania, descobriu, a alguma distância, flutuando livremente na confusão de véus varridos, a sombra de uma habitação. Que vista simpática, reconfortante! Pela sua energia, em que pese a todos os obstáculos, Hans Castorp conseguira avançar até onde assomavam moradas humanas, indicando a proximidade do vale habitado. Talvez houvesse homens ali; talvez lhe permitissem entrar, para aguardar, sob a proteção do teto, o fim da tormenta; talvez fosse possível arranjar um companheiro ou um guia, o que se tornaria necessário no caso de a escuridão natural sobrevir nesse meio tempo. O jovem encaminhou-se para aquela coisa quimérica, que a todo instante desaparecia nas trevas borrascosas. Teve ainda que realizar uma exaustiva ascensão contra o vento, antes de alcançá-la. Uma vez chegado, verificou, com um misto de revolta, pasmo, susto e vertigem, que era aquela cabana que conhecia, o galpão com o teto carregado de pedras, que, por inúmeros rodeios e à custa dos mais intensos esforços, acabava de reconquistar. Que diabo! Violentas pragas saíram, com omissão dos sons labiais, da boca enregelada de Hans Castorp. Para orientar-se, deu volta à choça, apoiando-se nos bastões, e constatou que dessa vez chegara até ela por trás, e que, por conseguinte, durante mais de uma hora – segundo as suas avaliações – cometera tolices das mais perfeitas e das mais infrutuosas. Mas isso costumava acontecer, conforme se podia ler nos livros. A gente movimentava-se em círculo, labutava, com o coração cheio da quimera de um esforço útil, e em realidade descrevia vastas e estúpidas curvas que reconduziam ao ponto de partida, tal e qual a órbita falaz do ano. Destarte, as pessoas extraviavam-se e não encontravam o caminho de volta. Hans Castorp reconheceu o fenômeno tradicional com certa satisfação, embora também com algum terror. Deu na coxa uma palmada de raiva e espanto, ao ver que a experiência geral se reproduzira tão pontualmente no seu caso particular e presente. O galpão solitário era inacessível; a porta estava chaveada; não se podia entrar em parte alguma. Contudo, Hans Castorp resolveu permanecer, por enquanto, onde estava, porque o telhado saliente dava a ilusão de um certo abrigo. Realmente, a própria choça, no lado dirigido para a montanha, lá onde o jovem buscou refúgio, oferecia boa proteção contra a tempestade a quem se apoiasse com o ombro à parede construída de tábuas, uma vez que não era possível encostar-se, devido ao comprimento dos esquis. Aconchegando-se obliquamente à construção, deixou-se ficar ali, depois de haver cravado o bastão na neve, a seu lado; afundou as mãos nos bolsos, levantou a gola da blusa de lã e escorou-se na perna de fora. A cabeça estonteada repousava, de olhos fechados, nas tábuas do galpão. Só de quando em quando Hans Castorp lançava olhares piscos por cima do barranco, em direção à vertente oposta que às vezes assomava vagamente por entre os véus da neve. A sua situação era relativamente cômoda. “Desse jeito poderei agüentar de pé a noite toda, se for necessário”, pensou. “Basta mudar, de tempos em tempos, de pé, e virar-me, por assim dizer para o outro lado. É apenas indispensável que me mexa um pouco nos intervalos. Sinto-me transido exteriormente, mas acumulei bastante calor graças a caminhada que dei, e assim o desvio não foi completamente inútil, embora eu tenha andado perdido, dando voltas em torno da cabana... Perdido? De que expressão acabo de servir-me? Não é necessária nem cabe como referência àquilo que me aconteceu. Servi-me dela arbitrariamente, porque não tenho a cabeça muito clara. E todavia, em certo sentido, parece-me que é uma palavra apropriada... Ainda bem que tenho resistência, pois o torvelinho, a nevada, o caos, podem perfeitamente prolongarse até amanhã de manhã, e mesmo que se estendam apenas até o escurecer, já seria bem grave, porque de noite o perigo de a gente perder-se e dar voltas à toa é tão grande como no meio de uma tempestade de neve... Agora já deve ser de tardezinha, seis horas, pouco mais ou menos. Desperdicei muito tempo errando pela região. Que horas são, afinal?” Procurou o relógio, se bem que não fosse fácil tirá-lo do bolso com os dedos gelados, insensíveis. Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax... Eram quatro e meia. Puxa! não passara muito tempo desde que começara a tempestade. Podia-se acreditar que suas andanças houvessem durado apenas um quarto de hora? “O tempo me pareceu longo”, pensou. “Ao que parece, essa coisa de andar perdido é meio fastidiosa. Mas é indiscutível que às cinco ou às cinco e meia entra a noite. Terminará a tempestade bastante depressa para evitar que me perca outra vez? Que tal um gole de porto para me fortificar?” Trouxera essa bebida de diletantes pelo único motivo de haver no Berghof um estoque de garrafas chatas, que eram vendidas aos excursionistas, embora, naturalmente, não se pensasse em pessoas que ilicitamente se desgarrariam na neve e no frio glacial das montanhas e aguardariam a noite em tais condições. Se as suas faculdades mentais estivessem menos esgotadas, deveria ter dito a si próprio que, sob o ponto de vista das probabilidades de regresso, o vinho do Porto era aproximadamente a pior coisa que se podia beber. Foi o que notou após ter engolido alguns tragos que lhe produziram um efeito semelhante àquele que tivera a cerveja de Kulmbach, na noite do primeiro dia após a sua chegada, quando seu palavrório desordenado e incontido sobre molhos para peixe e outras coisas do mesmo quilate havia chocado o Sr. Lodovico Settembrini, o pedagogo cujo olhar reconduzia à razão até mesmo os loucos mais varridos. Precisamente nesse instante Hans Castorp ouvia através dos ares o harmonioso som da corneta do italiano, sinal de que o eloqüente educador se aproximava em marcha forçada, a fim de libertar dessa situação maluca e de guiar pelo caminho de volta o discípulo que tantas preocupações lhe causava, o filho enfermiço da vida... Tudo isso, naturalmente, era absurdo e tinha a sua origem na cerveja de Kulmbach, que Hans Castorp bebera por distração. Em primeiro lugar, o Sr. Settembrini não dispunha de corneta, mas apenas de um realejo com uma perna de pau, plantado no calçamento da rua, e cujas melodias animadas acompanhava de olhares humanísticos na direção das fachadas; e em segundo, nada sabia nem notara do que estava acontecendo, visto que deixara de morar no Sanatório Berghof e se achava na casa de Lukacek, costureiro de senhoras, naquele cubículo com a garrafa de água, acima da cela forrada de sedas do Sr. Naphta. Além disso, tinha tão pouco direito e oportunidade de intervir quanto tivera em certa noite de carnaval, quando Hans Castorp se encontrara numa posição igualmente maluca e arriscada, ao devolver à enferma Clávdia Chauchat son crayon, seu lápis, o lápis de Pribislav Hippe... Que posição era essa, afinal de contas? A posição adequada à sua existência devia ser horizontal e não vertical, no sentido genuíno, próprio e não apenas metafórico da palavra. Horizontal, como convinha a um membro veterano da sociedade aqui de cima. Não estava ele acostumado a ficar estendido ao ar livre, num ambiente de neve e de frio, tanto de dia como de noite? E já se ia deixando cair ao chão, quando o penetrou uma percepção, agarrando-o pela gola e mantendo-o de pé, a percepção que toda essa lengalenga íntima sobre a “posição” devia ser atribuída à cerveja de Kulmbach e provinha exclusivamente do seu desejo de deitar-se e dormir, desejo impessoal, tipicamente perigoso, que procurava seduzi-lo por meio de sofismas e de trocadilhos. “Acaba-se de cometer um erro”, reconheceu. “O vinho do Porto não era recomendável; esses poucos goles me puseram chumbo na cabeça, de modo que ela me cai sobre o peito. Os meus pensamentos não passam de coisas confusas e de gracejos insípidos. Não devo fiar-me neles, nem nos primeiros que me ocorrem, nem tampouco nas observações críticas que faço a seu respeito. Aí é que está o mal. ‘Son crayon’... Quer dizer, o crayon dela e não dele; ‘son’ se diz, somente porque ‘crayon’ é masculino. Todo o resto é apenas um jogo de palavras. Nem vale a pena perder tempo com isso. No momento acho muito mais urgente a circunstância de a minha perna esquerda, na qual me apoio, recordar-me, de modo surpreendente, a perna de pau do realejo de Settembrini, que ele empurra à frente com o joelho, sobre a calçada, cada vez que se aproxima da janela e estende o chapéu de veludo, na esperança de que a moça lá de cima lhe atire alguma moeda. E ao mesmo tempo sinto qualquer coisa assim como mãos a me atrair impessoalmente para a neve. O único remédio contra isso é o movimento. Preciso movimentarme, como castigo por ter bebido a cerveja de Kulmbach, e para desentorpecer a perna de pau.” Afastou-se da parede, tomando impulso com o ombro. Mas apenas se distanciou do galpão, dando um único passo para a frente, o vento feriu-o com verdadeiros golpes de foice e rechaçou-o até o abrigo. Indiscutivelmente era esse o lugar mais indicado para ele. Por enquanto, o jovem devia conformar-se com isso, além do quê, tinha plena liberdade de encostar o ombro esquerdo, para variar, de apoiar-se na perna direita e de sacudir a outra para revigorá-la. “Com um tempo destes”, disse de si para si, “a gente não deve sair de casa. Um pouco de variação pode ser admissível, mas não a mania de inovações nem o desafio da Dona Borrasca. Fica quietinho e deixa pender a tua cabeça, uma vez que está muito pesada. A parede é boa. As tábuas são de madeira. Parece mesmo que se desprende delas um certo calor, se é que aqui se pode falar de calor. Um discreto calor natural da madeira, ou talvez apenas um produto da imaginação, coisa subjetiva... Vejam só todas essas árvores! Ah, esse clima vivo dos homens vivos! Que perfume!...” Um parque estendia-se a seus pés, sob a sacada onde ele se encontrava; um vasto parque de luxuriante verdor, formado de árvores frondosas – olmos, plátanos, faias, bordos, bétulas – levemente matizadas quanto ao colorido da folhagem abundante, fresca, lustrosa, com as copas agitando-se num suave sussurro. Um ar delicioso, úmido, embalsamado pelas árvores, envolvia a região. Um aguaceiro quente vinha se abatendo, mas a chuva parecia iluminada. Até as alturas do céu via-se a atmosfera resplandecer de gotinhas cintilantes. Que beleza! Ah, esse sopro do torrão natal, o aroma e a plenitude da planície, depois de tão prolongada privação! O ar ressoava com vozes de aves, pios, silvos, gorjeios, chilidos e soluços, cheios de fervor, de graça e de doçura, sem que se enxergasse um único passarinho. Hans Castorp sorriu, respirando gratamente. E o quadro tornava-se ainda mais belo. Um arco-íris curvava-se sobre um lado da paisagem, um arco completo e nítido, puro na sua magnificência, com o brilho úmido de todas as suas cores, que, untuosas como óleo, inundavam o verde espesso e reluzente. Mas isso parecia música, era como o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo, espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço, transformando-se, evoluindo de modo sempre e cada vez mais belo. Lembrava aquele dia, anos atrás, quando Hans Castorp tivera ensejo de ouvir um cantor de fama mundial, um tenor italiano, de cuja garganta partiam sons de uma arte benéfica e de uma força abençoada, inundando os corações dos homens. Sustentara esse homem uma nota aguda, linda desde o começo; aos poucos, porém, de momento a momento, a harmonia apaixonada descortinara-se, ampliara-se, tomando volume, iluminara-se com um esplendor mais e mais deslumbrante. Um a um, os véus que antes ninguém percebera se haviam desfeito; caíra mais um, o último, revelando, segundo o pensamento de todos, a luz suprema, a luz mais pura, mas seguira-se outro e ainda outro – incrível! –, o derradeiro, desencadeando tamanha exuberância de fulgor e de perfeição banhada em lágrimas, que um rumor surdo de arrebatamento, soando quase como um protesto ou uma objeção, elevava-se do seio da multidão. Ele próprio, o jovem Hans Castorp, fora tomado de soluços. E o mesmo lhe acontecia agora, em face dessa paisagem que se metamorfoseava, se desdobrava em progressiva transfiguração. O azul a pairar em toda parte... Os véus luzentes da chuva iam caindo. Eis que surgiu o mar, um mar, o mar do sul, de um azul profundo e saturado, refulgindo de luzes argentinas, com uma belíssima enseada a abrir-se vaporosa, para um lado, enquanto o outro estava engastado em montanhas de azul cada vez mais pálido. No meio da baía emergiam ilhas, onde cresciam palmeiras e resplandeciam casinhas brancas por entre bosques de ciprestes. Oh, oh! Eram demais. Ele não merecia tudo isso. Que bem-aventurança de luz, de absoluta pureza do céu, de frescor de águas ensolaradas! Hans Castorp jamais vira aquilo, nem coisa semelhante. Nas suas viagens de férias mal passara pelas regiões do sul. Conhecia o mar áspero, o mar cinzento, ao qual se apegava com sentimentos vagos e pueris. Mas nunca chegara a ver o Mediterrâneo, Nápoles, a Sicília ou a Grécia. E todavia recordava-se. Sim, por estranho que pareça, o que Hans Castorp fazia nesse momento era reconhecer. “Ah, sim! É isso!”, exclamou nele uma voz, como se tivesse levado no seu coração, desde tempos imemoriais, às escondidas e sem confessá-lo a si próprio, toda essa alegria azul, irradiada pelo sol. E esses “tempos imemoriais” eram vastos, infinitamente vastos, tal e qual o mar que se abria à sua esquerda, ali onde o céu, num tom delicado de violeta, descia até as águas. O horizonte era alto; o espaço dava a idéia de elevar-se, o que se devia ao fato de Hans ver o golfo de cima, de certa altura. Em forma de promontórios abraçavam-no as montanhas coroadas de selvas; entravam no mar, retrocediam em semicírculo, do centro do quadro, até o ponto onde se encontrava o jovem e mais longe ainda. Era uma costa rochosa, em cujos degraus de pedra aquecidos pelo sol se achava acocorado. À sua frente inclinava-se a ribeira pedregosa, escadeada, coberta de musgos e brenhas, até uma praia plana, onde o cascalho, por entre os juncos, formava angras azuladas, pequenos portos e lagoas avançadas. E essa região banhada pelo sol, essas margens de fácil acesso, essas bacias risonhas no meio de rochedos, bem como o mar até as ilhas distantes entre as quais iam e vinham embarcações – tudo estava povoado. Homens, filhos do sol e do mar, mexiam-se ou repousavam em toda parte, uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial, tão agradável de se ver que o coração de Hans Castorp se dilatava todo num sentimento amplo, quase doloroso, de amor. Mancebos adestravam cavalos; corriam, com a mão no cabresto, ao lado dos animais que trotavam relinchando e sacudindo a cabeça; montavam-nos sem sela e forçavam-nos a entrar na água, batendo com os calcanhares desnudos os flancos da cavalgadura, enquanto os músculos das espáduas, sob a pele trigueira, jogavam ao sol. Os gritos que trocavam entre si ou dirigiam às montarias tinham qualquer coisa de mágico. À margem de uma enseada que penetrava profundamente na terra firme, e cujas ribanceiras se espelhavam como num lago alpino, havia moças dançando. Uma delas, cujos cabelos atados na nuca tinham um encanto singular, estava sentada, com os pés enterrados numa concavidade do solo, e tocava uma flauta pastoril. Por cima dos dedos ágeis, seu olhar vagava em direção às companheiras, que, nos seus largos e flutuantes vestidos, executavam os passos da dança, ora isoladas, sorridentes, com os braços abertos, ora aos pares, com as fontes graciosamente coladas umas nas outras. Atrás das costas da flautista, costas alvas, longas, delgadas, que a posição dos braços tornava redondas, viam-se outras irmãs, sentadas ou em pé, de mãos dadas, conversando calmamente e contemplando a cena. A maior distância, alguns jovens exercitavam-se no tiro de arco. Que aprazível e ameno quadro! Os mais velhos ensinavam a uns adolescentes de cabelos encaracolados como retesar o arco e apontá-lo ao alvo; rindo, amparavam os novatos cambaleantes sob o rechaço da corda, quando a seta se desprendia dela com um sussurro. Outros pescavam com anzol. Achavam-se de bruços nas lajes dos penedos da costa, com uma das pernas balouçando no ar, enquanto mergulhavam a linha na água. Palestrando calmamente voltavam a cabeça para o vizinho, que reclinava o corpo para lançar muito longe a isca. Ainda outros estavam ocupados em transportar ao mar, arrastando, empurrando, levantando, um barco de alto bordo, provido de mastro e vergas. Crianças brincavam e exultavam no meio da rebentação. Uma jovem mulher, estendida no solo, de costas, olhava para trás, enquanto com uma das mãos apertava contra os seios o vestido floreado, e com a outra, avidamente, procurava alcançar um fruto ornado de folhas, que um moço de ancas estreitas, de pé atrás dela, brincando lhe oferecia e retirava. Havia vultos recostados nos nichos dos rochedos. Outros hesitavam à beira d'água, experimentando-lhe o frescor com a ponta do pé e segurando os ombros com os braços cruzados. Alguns casais passeavam ao longo da praia, e perto da orelha da jovem encontrava-se a boca de quem a guiava carinhosamente. Cabras felpudas saltavam de rocha em rocha, guardadas por um jovem pastor que se quedava sobre uma elevação, com uma mão na cintura, apoiando a outra num comprido cajado; um chapeuzinho de abas dobradas para trás cobria-lhe os crespos cabelos castanhos. “Mas isso é um encanto!”, pensou Hans Castorp com toda a sinceridade. “É realmente delicioso e cativante! Como são formosos, sadios, sensatos e felizes! Sim, não somente têm beleza, mas também seriedade e graça íntima. É isso o que tanto me comove e faz com que me apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a união e a convivência!” Referia-se àquela grande amabilidade e às considerações iguais para todos, que os filhos do sol usavam nas suas relações recíprocas. Existia ali um respeito natural, escondido sob o sorriso que uns demonstravam aos outros, a cada passo, um respeito manifestado quase imperceptivelmente, e que todavia tinha a sua raiz numa formação comum a todos, numa idéia arraigada neles. Havia até um quê de dignidade e de rigor, mas todo diluído na alegria, e que se tornava sensível nos seus atos somente em forma de certa inefável influência espiritual, fundada numa seriedade nada sombria e numa piedade razoável, embora não faltasse a tudo isso o lado cerimonioso. Pois ali, numa pedra redonda coberta de musgo, estava sentada uma jovem mãe, que retirara de um dos ombros o vestido pardo e saciava a sede do filhinho. E todos os que passavam perto dela saudavam-na de um modo especial que resumia tudo quanto ficava tão expressivamente inexprimido na atitude geral dessas criaturas. Os jovens, voltando-se para a mãe, cruzavam ligeiramente os braços sobre o peito, num gesto rápido e formal, e inclinavam a cabeça com um sorriso. As moças apenas esboçavam uma genuflexão, semelhante àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor; mas, ao mesmo tempo, faziam-lhe cordiais, alegres e vivos sinais com a cabeça, e essa mistura de reverência comedida e de amizade jovial, assim como a vagarosa brandura com que a mãe, que apertava o seio com o indicador, para ajudar o pequerrucho, tirava dele os olhos e retribuía os cumprimentos com outro sorriso – tudo isso arrebatava a alma de Hans Castorp. Não se cansava de olhar e, contudo, se perguntava, angustiado, se lhe era permitido olhar, se esse ato de encarar aquela felicidade civilizada, cheia de sol, não era um crime para ele, o intruso, que se sentia lerdo com os seus sapatos, e falta de nobreza e garbo. Parecia não haver inconveniente. Um belo menino, cuja espessa cabeleira penteada para um lado avançava além da testa e caía sobre a fronte, achava-se embaixo do lugar onde Hans Castorp estava sentado. Com os braços cruzados sobre o peito, mantinha-se distante dos companheiros, sem dar mostras de tristeza ou de rancor, senão apenas de perfeita calma. E o rapaz divisou Hans Castorp; fixou nele o olhar, e seus olhos passaram entre o homem que estava à espreita e as imagens da praia, observando o espião. De repente, porém, levantou a vista, enxergando ao longe, por cima do estranho, e de um instante para outro desapareceu do lindo rosto de linhas clássicas, ainda meio pueris, o sorriso comum a toda essa gente que tinha a sua origem numa consideração cortês e fraternal. Sem que o cenho se tivesse anuviado, assomou-lhe no semblante uma gravidade como que pétrea, inexpressiva, insondável, um retraimento frio como a morte, que encheu o desassossegado Hans Castorp de pálido terror, mesclado de um vago pressentimento da significação dessa atitude. Também ele virou a cabeça... Poderosas colunas sem base, compostas de blocos cilíndricos e de cujas junturas brotava musgo, erguiam-se atrás dele; as colunas de um pórtico de templo, até o qual conduziam duas escadarias, com um vão entre si. Hans Castorp encontrava-se sentado num dos degraus. Com o coração opresso, levantou-se, desceu a escada, dirigindo-se para o lado, e entrou numa extensa galeria. Atravessou-a e seguiu um caminho lajeado que o conduziu até outros propileus. Passou também por estes e defronte de si viu o templo maciço, cinzento-esverdeado, corroído pela inclemência do tempo. Escadas íngremes levavam às fundações. O largo frontão repousava sobre os capitéis de vigorosas e quase atarracadas colunas, que se adelgaçavam pata cima, e em cuja estrutura um ou outro dos tambores canelados, que se deslocara, formava uma saliência lateral. Laboriosamente, às vezes recorrendo ao apoio das mãos, por entre suspiros que lhe arrancava a crescente angústia do coração, Hans Castorp galgou os altos degraus e alcançou a floresta das colunas do peristilo. Esta era muito profunda, e o jovem passeou por ela como por entre os troncos de um bosque de faias à beira do mar descorado. Evitou penetrar-lhe no âmago e esquivou-se do centro. Mas terminou voltando-se para ele e chegou ao lugar onde se separavam as fileiras de colunas. Ali deparou com um grupo de estátuas, duas figuras de mulheres talhadas em pedra, sobre um pedestal, mãe e filha, segundo parecia; uma, sentada, mais idosa, mais digna, muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas acima dos olhos vazios, sem pupilas, trajava uma túnica flutuante, um manto pregueado e um véu que lhe cobria os cabelos ondulados de matrona; a outra, de pé, abraçada maternalmente pela primeira, com um rosto redondo de donzela, ocultava braços e mãos juntos nas dobras do vestido. Enquanto Hans Castorp contemplava o grupo, o seu coração, por motivos obscuros, fazia-se ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Mal se animava e, contudo, se via forçado a contornar as figuras para franquear, atrás delas, a segunda colunata dupla. Aí encontrou aberta a porta brônzea do santuário, e os joelhos do pobre jovem quase cederam diante do espetáculo que se lhe oferecia aos olhos estarrecidos. Duas mulheres grisalhas, seminuas, de cabelos desgrenhados, com seios pendentes de bruxa e mamilos do comprimento de um dedo, entregavam-se lá dentro, no meio de chamejantes braseiros, a manipulações horrorosas. Por cima de uma bacia esquartejavam uma criancinha. Dilaceravam-na com as mãos, num furioso silêncio – Hans Castorp divisou os finos cabelos louros poluídos de sangue –, e devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as suas presas, e o sangue pingava dos lábios selvagens. Um pavor gélido paralisou Hans Castorp. Fez menção de tapar os olhos com as mãos e não conseguiu. Quis fugir e não pôde. E elas acabavam de descobri-lo, no meio da sua atividade abominável. Agitaram os punhos ensangüentados, ralhando sem voz, mas com extrema vulgaridade, em termos obscenos, na gíria da terra de Hans Castorp. Este se sentiu mal, pior do que nunca. Desesperadamente esforçou-se por sair do lugar – e na mesma posição em que, durante essa tentativa, caíra de lado junto a uma coluna, encontrou-se na neve, ao pé do galpão, deitado sobre um braço, com a cabeça encostada e as pernas providas de esquis estendidas à sua frente. Ainda lhe ecoavam nos ouvidos aquelas vozes surdas, proferindo invectivas medonhas, e o terror glacial que se apoderara dele continuava a possuí-lo. No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa. “Logo vi que isso era um sonho!”, devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e as monstruosas. Quase o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa dessas e concebê-la para si mesmo, tornandose a um tempo feliz e perplexo? Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao qual me guiaram os olhares do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –, tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o lápis de Pribislav Hippe à enferma Clávdia. Mas quem conhece o corpo e a vida conhece a morte. Isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo, pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a planície deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatães. Um é devasso e malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com a sua religião que é apenas um guazzabuglio de Deus e do Diabo, do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirarse de cabeça, a fim de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias divergências e oposições não passam de um guazzabuglio e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumprelhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia – clama o meu sonho –, não o amor! A morte e o amor, não, isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e ‘reinar’ bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo. Há muito que eu procurava essa idéia, no lugar onde me apareceu Hippe, no meu compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho revelou-a para mim com tanta nitidez que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor. Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta idéia do meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida... Levanta-te, levanta-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!” Era imensamente difícil a libertação dos laços que o enredavam e procuravam mantê-lo deitado. Mas o impulso que Hans Castorp soubera tomar era mais forte. Bruscamente soergueuse no cotovelo; com um esforço enérgico dobrou os joelhos; puxando, apoiando-se, fazendo ginástica, conseguiu pôr-se de pé. Calcou a neve com os esquis; bateu os braços em torno das costelas e sacudiu os ombros, enquanto lançava olhares nervosos e forçados em todas as direções e para o céu, onde um pálido azul assomava entre nuvens cinzento-azuladas, fininhas como um véu, que singravam devagar, descobrindo o delgado crescente da lua. Leve crepúsculo. Nada de tempestade nem de nevada. A parede rochosa do outro lado, com a encosta hirsuta de pinheiros, era plena e claramente visível, e jazia em paz. A sombra subia até meia altura, ao passo que a metade superior estava iluminada num delicadíssimo cor-de-rosa. Que é que havia? Que se passava com o mundo? Era manhã? E ficara ele deitado na neve durante toda a noite, sem morrer de congelamento, ao contrário do que se lia nos livros? Nenhum dos seus membros estava entanguido, nenhum deles se fragmentava com um ruído agudo, enquanto ele calcava o solo, agitando-se e batendo-se, o que fazia sem cessar. Mas ao mesmo tempo seus pensamentos esforçavam-se por examinar a fundo a situação. Sem dúvida, as orelhas, as extremidades das mãos e os dedos dos pés achavam-se entorpecidos, não, porém, num grau mais intenso do que muitas vezes lhe acontecera em noites de inverno, durante o repouso na sacada. Uma tentativa de tirar o relógio foi coroada de êxito. Ele andava. Não parara, como costumava fazer quando Hans Castorp se esquecia de lhe dar corda à noite. Estava ainda longe de marcar cinco horas. Faltavam doze ou treze minutos. Inacreditável! Seria possível que somente houvesse levado uns dez minutos ou pouco mais, estendido na neve, remoendo tantas imagens deleitantes ou medonhas, tantos pensamentos ousados, enquanto o tumulto hexagonal sumia com a mesma rapidez com que chegara? Nesse caso tivera uma sorte notável, do ponto de vista do regresso seguro. Pois duas vezes os seus sonhos e as suas fantasias haviam tomado um rumo que o fizera sobressaltarse reanimado: a primeira vez, de horror; a segunda, de alegria. Parecia que a vida tinha boas intenções com seu filho enfermiço, extraviado nas alturas... Fosse como fosse, raiasse para ele a manhã ou a tarde – indubitavelmente tratava-se ainda do crepúsculo –, em todo caso não existia nenhum obstáculo, nas circunstâncias gerais ou no estado particular de Hans Castorp, que o pudesse impedir de regressar. E foi o que fez. Com um arranco grandioso, quase em linha reta, encaminhou-se ao vale, onde, ao chegar, já encontrou as lâmpadas acesas, embora os restos da luz do dia, conservada pela neve, lhe tivessem bastado plenamente durante o caminho. Desceu pelo Bremenbühl, ao longo do bosque, e às cinco e meia alcançou a “aldeia”, onde deixou os esquis na casa do merceeiro. Foi descansar no cubículo de Settembrini, no sótão, e contou como se deixara surpreender pela tempestade de neve. O humanista mostrou-se sumamente alarmado. Ergueu a mão por cima da cabeça; censurou-o energicamente pela perigosa imprudência e não tardou em acender o crepitante fogareiro de álcool, a fim de preparar para o jovem exausto um café, cuja força, no entanto, não impediu que Hans Castorp adormecesse na cadeira. Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do Berghof circundava-o com sua aura acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava em vias de apagar-se. O que pensara já não o compreendia naquela mesma noite. Como um soldado, como um valente Hans Castorp recebia freqüentemente breves notícias de seu primo; boas e jubilosas no começo, menos favoráveis depois, e finalmente outras que mal disfarçavam fatos muito tristes. A série dos cartões-postais começara por uma mensagem humorística que comunicava a chegada de Joachim ao regimento e a cerimônia romântica, na qual, como Hans Castorp o expressou no seu cartão de resposta, o primo prestara o juramento de pobreza, castidade e obediência. E as missivas continuavam alegres, assinalando as etapas de uma carreira fácil e favorecida, aplainada pela dedicação apaixonada à profissão e pela simpatia dos superiores. Tudo isso vinha descrito em poucas palavras acompanhadas de saudações e votos de felicidade. Como Joachim cursara a universidade durante alguns semestres, haviam-no dispensado dos estudos na Escola Militar e do serviço de aspirante. No dia de Ano-Novo foi promovido a sargento e mandou uma fotografia que o mostrava numa farda guarnecida de galões. Cada um dos seus concisos relatos refletia o prazer que Joachim experimentava em face do espírito da hierarquia pundonorosa com sua disciplina férrea, que no entanto não o impedia de levar em conta as fraquezas humanas, sob a forma de um humor rude. Contou anedotas a respeito da conduta esquisita e complexa do subtenente, soldado carrancudo e fanático, que tratava o jovem e inexperiente subordinado como se já visse na sua pessoa o futuro chefe, que Joachim seria efetivamente, uma vez que já freqüentava a mesa dos oficiais. Tudo isso era turbulento e engraçado. Depois se falava da admissão ao exame para oficial. Em princípios de abril, Joachim foi promovido a tenente. Aparentemente não existia homem mais feliz do que ele. Não se podia imaginar pessoa alguma cuja natureza e cujos desejos correspondessem mais completamente a essa forma de vida. Entre deliciado e ruborizado contava Joachim como pela primeira vez passara, no seu esplêndido uniforme novo, em frente da prefeitura e dera sinal de desfazer a continência à sentinela que apresentava armas. Descrevia as pequenas contrariedades e as satisfações do serviço; elogiava a simpática e brilhante camaradagem; falava da lealdade astuta da ordenança, de incidentes cômicos que se haviam passado durante os exercícios e as horas de instrução, de revistas e de ágapes. Também mencionava, de vez em quando, assuntos sociais, visitas, banquetes e bailes. Nunca, porém, se referia à sua saúde. Isso durou até começos do verão. Foi quando comunicou que se achava acamado e tivera, infelizmente, de dar parte de doente. Uma febre catarral, coisa de poucos dias. Em princípios de junho voltou ao serviço, mas já por meados do mês sentiu-se novamente derreado. Queixava-se amargamente da sua má sorte e não escondia o receio de, talvez, não estar em condições por ocasião das grandes manobras que se realizariam em agosto, e das quais ansiava participar. Tolices! Em julho sentia-se perfeitamente bem, até o dia em que surgiu no horizonte a necessidade de um exame, em virtude daquelas malditas oscilações da sua temperatura. Desse exame dependeria tudo. Decorreu bastante tempo sem que Hans Castorp tivesse notícias quanto ao resultado, e quando as recebeu não foram de Joachim, que deixara de escrever, ou porque era incapaz de fazê-lo, ou porque se envergonhava. Quem telegrafou foi a mãe, a Srª. Ziemssen; anunciava que os médicos julgavam indispensável que o filho tirasse uma licença de algumas semanas, recomendavam a montanha e aconselhavam a partida imediata; pedia a reserva de dois quartos. Resposta paga. Assinado: Tia Luise. Foi em fins de julho que Hans Castorp recebeu esse telegrama no seu compartimento de sacada. Percorreu-o com os olhos, releu-o uma e duas vezes, sacudindo levemente não só a cabeça, mas também o tronco. Por fim disse entre dentes: – Sim, sim, sim! – à maneira do Sr. Settembrini. – Joachim volta! – observou, sentindo-se invadido de repentina alegria. Mas logo tornou a acalmar-se e pensou: “Hum, hum! São notícias graves. Também se poderia dizer: uma bela surpresa! Puxa, mas foi depressa! Já precisa regressar à ‘pátria’. E a mãe viaja com ele... (Disse ‘a mãe’ e não ‘tia Luise’, visto o seu senso de parentesco e de relações familiares ter-se desvanecido aos poucos.) Isto é uma circunstância agravante. E justamente na véspera das manobras, nas quais o bom Joachim tanto desejava tomar parte. Hum, hum! Tudo isso é mesmo infame; parece ironia e obra de um fator antiidealístico. O corpo triunfa, quer outra coisa que não a alma e se impõe, desmentindo aqueles arrogantes que nos ensinam que a alma reina sobre ele. Tenho a impressão de que não sabem o que dizem; pois, se tivessem razão, a alma ficaria bastante comprometida num caso como este. Sapienti sat. Já formei a minha opinião. Pois o problema que eu estou ventilando é precisamente saber até que ponto está errado opor a alma ao corpo e até onde ambos estão em conluio e jogam uma partida cujo resultado combinaram de antemão. Essa idéia, felizmente, não ocorre àquela gente presunçosa. Meu caro Joachim, ninguém quer censurar você por causa do seu zelo excessivo. É sincero, mas de que adianta a sinceridade – pergunto eu – se o corpo e a alma estão em conluio? Será possível que você seja incapaz de esquecer certos perfumes refrescantes, certos seios opulentos e certos risinhos não motivados que o esperam à mesa da Srª. Stöhr?... Joachim volta!”, pensou de novo, estremecendo de alegria. “Chegará em mau estado, evidentemente, mas estaremos juntos outra vez e não precisarei mais viver num isolamento completo. Está bem assim. Verdade é que haverá algumas modificações. O quarto dele está ocupado por Mrs. Macdonald, que ali não pára de tossir a sua tosse surda, sempre com a fotografia do filhinho na mão ou na mesinha a seu lado. Mas já se acha na fase final, e se o quarto ainda não estiver reservado... Por enquanto terão outro disponível. Se não me engano, o 28 está desocupado. Vou logo à ‘administração’ e sobretudo falarei com Behrens. Que novidade! De um lado é triste, e do outro é maravilhoso. Mas em todo caso é uma novidade e tanto. Quero apenas esperar o camarada Krokowski, que deve passar daqui a pouco, pois, como vejo, já são três e meia. Vou perguntar-lhe se também nesse caso se aferra à sua opinião de que o corpo deve ser considerado secundário ...” Ainda antes do chá da tarde dirigiu-se ao escritório da “administração”. O referido quarto, situado no mesmo corredor que o seu, estava à sua disposição. Para a Srª. Ziemssen tampouco faltariam aposentos. Hans Castorp apressou-se a falar com Behrens. Encontrou-o no laboratório. O médico tinha um charuto numa das mãos e uma proveta com líquido de cor duvidosa na outra. – Senhor conselheiro, já sabe da última? – começou Hans Castorp. – Sim, que as encrencas nunca acabam – respondeu o tisiólogo. – Aí está o Sr. Rosenheim, de Utrecht – prosseguiu, apontando com o charuto para o vidro. – Tem Gaffky 10. E agora veio o fabricante Schmitz, berrando e queixando-se de que o Rosenheim escarrou durante o passeio, com Gaffky 10. Quer que eu lhe faça uma reprimenda. Mas nesse caso o homem teria um chilique, porque é sumamente irritadiço, e ele e a família ocupam três quartos. Não posso ofendê-lo, pois se fosse embora a diretoria cairia em cima de mim. Está vendo os conflitos que surgem a cada instante, ainda que a gente queira seguir seu caminho com calma e imparcialidade. – É uma história estúpida – disse Hans Castorp com a compreensão de um veterano traquejado. – Conheço os dois senhores. O Schmitz é extremamente correto e diligente, e o Rosenheim bastante relaxado. Mas pode ser que existam ainda outros motivos de atritos, de caráter não higiênico. É o que me parece provável. Schmitz e Rosenheim são ambos amigos de Dona Perez, de Barcelona, aquela que come à mesa da Kleefeld. Acho que nisso reside a causa da desavença. Em seu lugar, eu recordaria aos pensionistas, de uma forma geral, a proibição existente, e quanto ao resto fecharia os olhos. – Claro que fecharei. Já ando com blefarospasmo de tanto fechar. Mas por que se apresenta o senhor aqui? E Hans Castorp comunicou a notícia triste e ao mesmo tempo maravilhosa. Não se pode dizer que o médico se tenha mostrado surpreendido. Não o estaria em caso algum, menos ainda no presente. Hans Castorp, ou respondendo às suas perguntas ou por iniciativa própria, sempre o mantivera a par do estado de Joachim e já em maio lhe dera a notícia de que o primo caíra de cama. – Hã, hã! – fez Behrens. – Pois então, não lhe disse? Que é que eu disse a ele e ao senhor, não dez vezes, mas cem? Durante nove meses, o homem teve tudo que desejava e gozou o seu paraíso. Mas não era um paraíso cem por cento desintoxicado, e nesse caso falta a bênção; é o que esse desertor nunca quis acreditar no velho Behrens. Convém sempre acreditar no velho Behrens. Do contrário, a gente apanha e cria juízo quando é tarde. Afinal, ele chegou a ser tenente; sim, senhor, não se discute. Mas que lhe adianta? Deus vê o coração e não se importa com graus e posição. Perante Ele aparecemos despidos de tudo, tanto o general como o soldado raso... – E desatou a tagarelar. Por fim esfregou os olhos com a manzorra, cujos dedos comprimiam o charuto, e pediu que Hans Castorp agora lhe desse uma folga. Um cômodo para Ziemssen seria coisa fácil de encontrar, e quando o primo chegasse, que o metesse na cama, imediatamente. Quanto a ele, Behrens, não guardava rancor a ninguém. Abriria paternalmente os braços e estava disposto a matar um bezerro por ocasião da volta do filho pródigo. Hans Castorp telegrafou. Falou a todo o mundo da volta iminente do primo, e quem conhecia Joachim ouvia a nova com pesar e contentamento. Ambos esses sentimentos eram sinceros, pois o caráter limpo e cavalheiresco do jovem oficial lhe havia conquistado a simpatia geral. A opinião íntima, não expressa, de muitos ali de cima, achava que ele fora o melhor de todos. Não nos referimos a ninguém em particular, mas cremos que mais de um experimentou uma certa satisfação ao ficar sabendo que Joachim se via forçado a trocar o serviço militar pela posição horizontal] e, com toda a sua correção, tornaria a ser “um dos nossos”. Como sabemos, a Srª. Stöhr previra tudo isso desde o princípio. Os acontecimentos acabavam de consolidar-lhe o ceticismo ordinário que ela manifestara quando da partida de Joachim para a planície. Não deixou de vangloriar-se dos seus pressentimentos. – A coisa está ruim – dizia. Logo vira que a coisa cheirava mal, e agora esperava apenas que Ziemssen, com a sua teimosia, não a tivesse feito feder. (Realmente, na sua imensa vulgaridade, empregou o verbo “feder”.) Valia mais ficar no seu posto, como fazia ela, apesar de ter interesses vitais na planície, em Cannstatt, onde viviam seu marido e seus dois filhos. Mas sabia dominar-se... Não chegou mais nenhuma resposta da parte de Joachim ou da Srª. Ziemssen. Hans Castorp permaneceu na ignorância do dia e da hora da sua chegada. Por esse motivo não houve recepção na estação. Três dias após a remessa do telegrama de Hans simplesmente apareceram, e com um risinho nervoso o tenente Joachim aproximou-se da espreguiçadeira onde o primo estava cumprindo o regulamento. Foi pouco depois do começo do repouso noturno. Trouxera-os o mesmo trem em que chegara Hans Castorp, havia anos, anos que não tinham sido nem breves nem longos, senão desprovidos de duração, anos extremamente ricos em experiências e todavia nulos e vazios. Até a estação do ano era a mesma: um dos primeiros dias de agosto. Como já dissemos, Joachim entrou alegremente. Sim, experimentou de fato uma emoção alegre, quando entrou no aposento de Hans Castorp, ou melhor, quando saiu dele, depois de ter medido o quarto a passo rápido, para ganhar a sacada. Sorrindo, saudou o primo. Em voz abafada proferiu algumas palavras entrecortadas pela respiração acelerada. Acabava de realizar a longa viagem de regresso, atravessando diversos países e o lago que parece um mar, e subindo por estreitas sendas até grandes alturas. E agora estava ali como se jamais se tivesse afastado, e seu parente, que num sobressalto se soerguera da sua posição horizontal, recebeu-o com muitos “Olᔠe “Ora essa”. Joachim tinha o rosto corado, fosse devido à vida ao ar livre que levara, fosse em virtude da excitação da viagem. Diretamente, sem procurar o seu próprio quarto, precipitara-se para o número 34, a fim de cumprimentar o companheiro de dias passados que novamente se tornavam presentes. Enquanto isso, sua mãe achava-se ocupada em arrumar-se. Tinham a intenção de jantar dentro de dez minutos, naturalmente no restaurante. Hans Castorp, sem dúvida, seria capaz de comer mais alguma coisinha na sua companhia, ou pelo menos de tomar um gole de vinho. E Joachim arrastou-o ao número 28, onde tudo se passou como naquela noite da chegada de Hans Castorp, só que com os papéis trocados; Joachim, conversando febrilmente, lavava as mãos na pia lustrosa, e Hans Castorp contemplava-o, surpreendido e mesmo desapontado por ver o primo à paisana. Disselhe que a sua carreira militar em nada se refletia no seu exterior. Sempre o visionara como oficial de uniforme, e agora se apresentava numa roupa cinzenta como qualquer outro. Joachim riu-se, achando-o muito ingênuo. Não, senhor! A farda tinha ficado em casa, como lhe convinha. Hans Castorp devia saber que o uniforme tinha caráter bem especial. Com ele não se ia a qualquer parte. – Ah, sim. Muito obrigado – respondeu Hans Castorp. Mas Joachim não parecia dar-se conta do sentido aviltante da sua explicação. Pediu informações acerca das pessoas e dos acontecimentos do Berghof, não somente sem a menor presunção, mas com toda a intensa ternura que é própria de quem volta ao lar. A seguir, a Srª. Ziemssen apareceu na porta de comunicação. Saudou o sobrinho da maneira que certas pessoas acham adequada a essa espécie de ocasião; quer dizer, fingiu uma surpresa jovial por encontrá-lo nesse lugar. Mas a sua alegria achava-se empanada pelo cansaço e por uma silenciosa mágoa que evidentemente se ligava a Joachim. E desceram ao andar térreo. Luise Ziemssen tinha os mesmos olhos formosos, negros e meigos de Joachim. Os cabelos igualmente pretos, mas já entremeados de muitos fios brancos, estavam presos por uma rede quase invisível, e isso harmonizava com o seu modo de ser, que era ponderado, simpaticamente comedido e controlado com brandura, o que lhe conferia uma dignidade agradável, apesar da singeleza do seu espírito. Era claro – e Hans Castorp não se admirou nem um pouquinho com esse fato – que ela não compreendia a animação de Joachim, o aceleramento da sua respiração e sua fala precipitada, fenômenos que provavelmente estavam em desacordo com a conduta que o filho tivera em casa e durante a viagem, e não correspondiam à sua situação. A mãe achou tal atitude um tanto chocante. Como essa chegada se lhe afigurasse triste, julgava conveniente adaptar a sua atitude ao caráter da situação. Era incapaz de participar dos sentimentos de Joachim, essas turbulentas emoções despertadas pela volta, cuja embriaguez no momento sobrepuja quaisquer pensamentos opostos, e que talvez fossem ainda estimuladas pela renovada aspiração do ar alpino, esse “nosso” ar incomparável, leve, inconsistente e excitante. Tudo isso, forçosamente, ficou ininteligível para a Srª. Ziemssen. “Meu pobre filho!”, pensou ela, e ao mesmo tempo via como o coitado se abandonava, junto com o primo, a uma hilaridade transbordante, ressuscitando mil recordações, fazendo mil perguntas e rindo-se das respostas, reclinado na cadeira. Diversas vezes disse: – Ora, ora, meus filhos! – E com a observação que finalmente formulou, pretendeu manifestar alegria, mas na realidade o que expressou foi estranheza e leve censura: – Joachim, faz tempo que não te vejo assim. Será possível que tivéssemos de vir aqui para que te sentisses novamente como no dia da tua promoção? – Bem! ao ouvir isso, acabou-se a alegria de Joachim. Seu bom humor transformou-se em depressão. Recobrou a consciência. Não tocou na sobremesa, embora se tratasse de um saborosíssimo suflê de chocolate com nata batida. (No seu lugar, Hans Castorp fez todas as honras ao prato, apesar de mal ter decorrido uma hora desde o fim do abundante jantar.) Joachim terminou por não mais levantar os olhos, certamente porque os tinha cheios de lágrimas. Sem dúvida não fora essa a intenção da Srª. Ziemssen. No fundo era antes por causa das conveniências que queria obter um pouco mais de seriedade e de moderação, sem saber que tudo que é meio-termo e medida ficava estranho nesse lugar, onde só se oferecia a escolha entre os extremos. Quando viu o filho de tal maneira abatido, esteve ela mesma a ponto de chorar e sentiu-se grata ao sobrinho pelos esforços que fazia no sentido de reanimar o primo desolado. – Sim – disse –, entre os pensionistas você encontrará muitas modificações e novidades, mas alguns outros já voltaram durante a sua ausência e estão como antes. A tia-avó, por exemplo, com a sua companhia, há tempos que está de volta. Como sempre, as senhoras comem à mesa da Stöhr, e Marusja ainda gosta muito de rir. Joachim permanecia calado. À Srª. Ziemssen, porém, essas palavras chamaram à memória um encontro e certas saudações que ela não devia esquecer de transmitir. Tratava-se de um encontro com uma senhora nada antipática, embora viajasse sozinha e tivesse sobrancelhas excessivamente regulares. Num restaurante de Munique, onde se haviam demorado um dia entre dois trajetos noturnos, essa senhora aproximara-se da mesa para cumprimentar Joachim. Era uma antiga paciente do sanatório... E pediu a Joachim que a ajudasse a lembrar o nome. – Mme. Chauchat – disse Joachim baixinho. Por enquanto, ela se achava numa estação climatérica no Allgäu e pensava passar o outono na Espanha. No inverno, provavelmente, voltaria para ali. Mandava muitas lembranças... Hans Castorp já não era nenhum menino. Sabia dominar os nervos vasculares que o poderiam ter feito empalidecer ou ruborizar. – Ah, era ela? – disse. – Vejam só; saiu então do Cáucaso. E quer ir à Espanha? Aquela senhora falara de um lugar nos Pireneus. – Mulher bonita ou pelo menos atraente. Voz agradável e gestos também agradáveis. Mas tem maneiras muito livres e negligentes – observou a Srª. Ziemssen. – Abordou-nos sem mais aquela, embora Joachim, segundo ouvi, nunca lhe houvesse sido apresentado. Que costumes estranhos! – Aquilo vem do Oriente e da doença – explicou Hans Castorp, acrescentando que não se devia aplicar a essas coisas o padrão da civilização humanística. Isso seria erro grave. E lhe dava que pensar que Mme. Chauchat tivesse a intenção de ir à Espanha. Hum! A Espanha... Esta se encontrava na direção oposta, igualmente distante do “meio” humanístico, não ao lado da moleza, mas ao lado do rigor. Ali não havia falta de forma, senão excesso. A morte considerada como forma, por assim dizer. Não a dissolução da morte, mas a sua austeridade, de preto, distinta e sangrenta, a Inquisição, a golilha engomada, Loyola, o Escorial... Seria interessante saber qual a impressão que Mme. Chauchat teria da Espanha. Sem dúvida perderia ali o costume de bater as portas, e talvez resultasse da sua permanência um certo equilíbrio dos dois elementos antihumanísticos, que a tornasse mais humana. Mas também era possível que surgisse um terrorismo maldoso, quando o Oriente fosse à Espanha... Não, Hans Castorp nem empalidecera nem se ruborizara, mas a impressão que lhe haviam causado as inopinadas notícias de Mme. Chauchat traduzia-se em palavras que não podiam esperar outra resposta a não ser um silêncio penoso. Joachim mostrou-se pouco espantado, por conhecer de outras ocasiões aquela argúcia que o primo exibia ali em cima. Nos olhos da Srª. Ziemssen, porém, refletia-se a mais vasta estupefação. Comportou-se ela exatamente como se Hans Castorp acabasse de pronunciar palavrões indecentes. Depois de uma pausa cheia de embaraço, levantou-se com algumas palavras discretas, destinadas a disfarçar o incidente. Antes de se separarem, Hans Castorp comunicou a ordem do conselheiro, segundo a qual Joachim deveria passar ao menos o dia seguinte na cama, até que o médico o tivesse examinado. O mais se veria. Depois, os três parentes dirigiram-se aos seus quartos, e dentro em breve estavam estendidos, gozando o frescor da noite de verão alpino, que entrava pelas portas abertas. Cada um se entregava aos seus pensamentos. Os de Hans Castorp giravam principalmente em torno da perspectiva de rever Mme. Chauchat daí a seis meses. E assim o pobre Joachim regressara à “pátria” para um pequeno tratamento suplementar, que julgavam oportuno. Evidentemente a expressão “pequeno tratamento suplementar” era a senha emitida na planície, e que servia também ali em cima. O próprio Dr. Behrens adotou-a, ainda que fossem logo quatro semanas de repouso na cama que pespegou a Joachim como início da cura. Estas seriam necessárias, segundo a sua opinião, para consertar os estragos mais graves, para ajudar o paciente a reaclimatar-se e para lhe regular a combustão interior. Quanto à duração do tratamento, o conselheiro soube esquivar-se a todas as tentativas de lhe marcar um prazo fixo. A Srª. Ziemssen, sisuda, compreensiva, de um temperamento nada sangüíneo, sugeriu, longe do leito de Joachim, o outono, o mês de outubro, por exemplo, como termo final. Behrens concordou com ela, pelo menos no sentido de declarar que então já se poderia ver mais claro do que agora. Causou, aliás, uma impressão excelente à mãe de Joachim. Mostrava-se muito galante; dizia “Minha prezada senhora”, fitando-a com os olhos túrgidos e estriados de sangue à maneira de vassalo leal, e usava com tanta perfeição o linguajar excêntrico dos estudantes alemães, que a Srª. Ziemssen, apesar da sua mágoa, não podia deixar de rir. – Sei que meu filho se acha em boas mãos – disse ela. Oito dias após a chegada, partiu para Hamburgo, visto não haver nenhuma necessidade séria da sua presença e o filho dispor de um parente para fazer-lhe companhia. – Pois então! Fique contente. Você sairá no outono – dizia Hans Castorp, sentado ao pé da cama do primo, no número 28. – O Velho comprometeu-se até certo ponto. Você sabe a quantas anda e tem uma data com que pode contar. Outubro – com isso temos um termo. É a época em que certa gente vai à Espanha, e você também poderá voltar para a sua bandera, a fim de se distinguir enormemente... Sua incumbência diária era consolar Joachim, principalmente por ter este de faltar, devido ao tratamento, às grandes manobras que começavam nesses dias de agosto. Era coisa com que o primo não se conformava. Joachim chegava ao ponto de desprezar-se a si próprio, por causa da maldita fraqueza que o fizera sucumbir no último instante. – Rebellio carnis – explicava Hans Castorp. – Que é que se vai fazer? O mais valente oficial nada pode contra ela, e o próprio Santo Antão tinha experiência de sobra a seu respeito. Meu Deus, há manobras todos os anos, e você já sabe como corre o tempo aqui. Ele realmente não existe. Você nem sequer se ausentou o bastante para que lhe fosse difícil pegar novamente o ritmo, e num abrir e fechar de olhos o seu pequeno tratamento suplementar estará terminado. Não obstante, o senso de tempo de Joachim havia sido reavivado pela vida na planície, e isso num grau demasiado forte para que as quatro semanas que ele tinha à sua frente não lhe inspirassem medo. Mas muita gente o ajudava a percorrê-las. A simpatia que todos sentiam por esse homem de caráter limpo manifestava-se em vista de pessoas familiares ou distantes. Veio Settembrini; mostrou-se compadecido e encantador; e como sempre houvesse tratado Joachim de tenente, passou agora a chamá-lo de capitão. Também Naphta apresentou-se, e aos poucos foram comparecendo todos os velhos conhecidos dentre os próprios pensionistas da casa, aproveitando um quarto de hora da liberdade concedida pelo regulamento, para sentar-se na beira da sua cama. Repetiam então a expressão “pequeno tratamento suplementar” e faziam-no contar o que lhe acontecera: as Sras. Stöhr, Levi, Iltis e Kleefeld, os Srs. Ferge, Wehsal e outros. Alguns até lhe levavam flores. Decorridas as quatro semanas, Joachim levantou-se, já que a febre baixara o suficiente para que pudesse caminhar. Deram-lhe o seu lugar na sala de refeições entre o primo e a Srª. Magnus, esposa do cervejeiro, o qual ficava à sua frente. Era o mesmo lugar na extremidade lateral que durante certo tempo haviam ocupado o tio James e, mais tarde, a Srª. Ziemssen. Dessa forma, os jovens viviam de novo lado a lado, como outrora. Para que a situação anterior ressuscitasse de modo mais completo ainda, Joachim voltou a receber o seu quarto antigo, o quarto pegado ao de Hans Castorp, logo depois de Mrs. Macdonald, com o retrato do filhinho na mão, ter exalado o último suspiro, e naturalmente após uma cuidadosa desinfecção com H2CO. No fundo, e do ponto de vista sentimental, as coisas haviam mudado no sentido de que desta vez era Joachim quem vivia ao lado de Hans Castorp, e não vice-versa. Hans Castorp era agora o veterano, de cujo estilo de vida o outro participava passageiramente, como visitante. Pois Joachim aferrava-se com toda a sua energia ao termo final em outubro, ainda que no seu sistema nervoso central existissem certos pontos que se recusavam a conduzir-se em conformidade com as normas humanísticas e estorvavam a radiação compensatória da sua pele. Os dois recomeçaram também as suas visitas a Settembrini e Naphta, bem como os passeios em companhia desses homens unidos pelo seu antagonismo. Quando A. K. Ferge e Wehsal igualmente tomavam parte, o que não raro acontecia, eram seis, e aqueles adversários no espírito tinham então um público numeroso, perante o qual travavam os seus intermináveis duelos, que não poderíamos descrever de uma forma completa sem nos perdermos num labirinto desolador, como todos os dias acontecia a eles próprios. Apesar do número crescente de ouvintes, Hans Castorp tendia a considerar a sua pobre alma o objetivo principal daquela contenda dialética. Soube por Naphta que Settembrini era maçom, o que lhe causou impressão não menos viva do que as revelações do italiano relativas ao fato de pertencer Naphta à ordem dos jesuítas e ser mantido por ela. De novo experimentou surpresa ao inteirar-se de que coisas tão fantásticas ainda existiam na realidade, e com insistência interrogava o terrorista quanto à origem e à natureza dessa curiosa instituição, que em breve celebraria o seu bicentenário. Ao passo que Settembrini, à revelia de Naphta, costumava falar da natureza intelectual do seu vizinho num tom de enfática advertência contra uma coisa diabólica, Naphta zombava francamente, na ausência do outro, da esfera que o humanista representava; dava a entender que aí predominava um espírito muito estreito e atrasado, o esclarecimento burguês e o liberalismo de antanho, que nada mais eram senão uma mísera fantasmagoria, se bem que fomentassem a ridícula ilusão de estar ainda animados de vida revolucionária. – Que quer o senhor? Seu avô já era carbonaro, quer dizer, carvoeiro – expunha Naphta. – É dele que herdou essa fé dos carvoeiros na razão, na liberdade, no progresso da humanidade e em todo esse baú cheio das virtuosas velharias da ideologia classista-burguesa... Veja, o que perturba o mundo é a desproporção entre a rapidez do espírito e a imensa lerdice, morosidade e inércia da matéria. É preciso admitir que essa desproporção basta para desculpar qualquer espírito que se desinteresse da realidade. Pois, via de regra, os fermentos que produzem as revoluções reais de há muito lhe repugnam. Com efeito, o espírito morto causa maior repulsa ao espírito vivo do que quaisquer basaltos, que, pelo menos, não pretendem ser espírito e vida. Tais basaltos, restos de realidades antigas, que o espírito deixou atrás de si tão longe que se recusa ligar a elas o conceito do real, conservam-se pela inércia, e devido a sua persistência bruta, inanimada, impedem infelizmente o insípido de se dar conta da sua insipidez. Expresso-me de um modo geral, mas o senhor pode tirar dessas generalidades conclusões a respeito daquele liberalismo humanitário que ainda crê encontrar-se numa posição heróica em face do mando e da autoridade. Ah, sim! E ainda aquelas catástrofes por meio das quais ele quer comprovar que ainda está vivo, e aqueles triunfos atrasados e espetaculares que prepara e espera realizar um dia! Só de pensar nisso, o espírito vivo seria capaz de morrer de tédio, se não soubesse que em realidade quem surgirá dessas catástrofes como vencedor e quem as aproveitará será ele mesmo, que funde no seu seio os elementos do vetusto com os do mais longínquo porvir, para fazer uma revolução de verdade... Como vai seu primo, Hans Castorp? O senhor sabe que sinto grande simpatia por ele. – Obrigado, Sr. Naphta. Acho que todo mundo tem por Joachim uma simpatia sincera, porque é de fato excelente rapaz. Também o Sr. Settembrini gosta dele especialmente, embora desaprove certo terrorismo fanático que é peculiar ao ofício de Joachim. E agora o senhor me diz que ele é maçom. Imaginem! Não nego que isso me dê que pensar. Sua pessoa me aparece sob uma luz diferente, e muitas coisas tornam-se mais claras para mim. Será que ele coloca às vezes os pés em ângulo reto e aperta a mão da gente de um modo especial? Nunca notei nada de tudo isso... – Creio – opinou Naphta – que o nosso simpático Irmão Tripingado já passou da idade de tais criancices. Suponho que o cerimonial das lojas tenha sido adaptado, embora de um modo bastante incompleto, ao prosaico espírito cívico dos nossos tempos. Provavelmente sentiriam vergonha do ritual de outrora como de charlatanices indignas de gente civilizada e com razão, pois seria deveras absurdo disfarçar de mistério o republicanismo ateu. Não sei por que série de atrocidades foi posta à prova a constância do Sr. Settembrini; pode ser que o hajam levado com os olhos vendados através de uma porção de galerias ou feito esperar em calabouços escuros, antes de lhe abrirem a sala do conclave, deslumbrante de luzes refletidas por espelhos. Talvez o tenham catequizado solenemente. Quem sabe se não lhe ameaçaram com espadas o peito desnudo, em frente de uma caveira e de três velas acesas! Isso o senhor deve perguntar a ele mesmo, mas receio que o encontre pouco loquaz; pois ainda que tudo tenha decorrido de modo muito mais civil, em todo caso o mandaram fazer juramento de silêncio. – Juramento de silêncio? Então é verdade?... – Claro. Silêncio e obediência. – Obediência também? Escute, professor, nesse caso me parece que ele absolutamente não tem motivos de se escandalizar da exaltação e do terrorismo inerentes à profissão do meu primo. Silêncio e obediência! Eu nunca teria imaginado que um homem tão liberal como Settembrini pudesse sujeitar-se a condições e votos tão tipicamente espanhóis. Realmente, farejo na maçonaria um elemento militar ou jesuítico... – E seu faro não engana – respondeu Naphta. – Sua varinha mágica estremece e inclinase. A idéia da associação é inseparável e tem raiz comum com a do incondicional. Por conseguinte é terrorística, isto é, antiliberal. Exonera a consciência individual e santifica, em nome da finalidade absoluta, todos os meios, também os sangrentos, inclusive o crime. Existem indícios de que antigamente a união dos irmãos costumava ser selada com sangue também nas lojas maçônicas. Uma união nunca é contemplativa, mas sempre é essencialmente organizadora, sob a direção de um espírito absoluto. Ignora o senhor que o fundador da Sociedade dos Iluminados, que durante algum tempo esteve a ponto de fundir-se com a maçonaria, era antigo membro da Companhia de Jesus? – De fato, eu não sabia nada disso. – Adão Weishaupt organizou a sua ordem secreta e humanitária na mais completa conformidade com o sistema dos jesuítas. Ele mesmo era maçom, e os mais conceituados membros das lojas daquela época faziam parte dos iluminados. Refiro-me à segunda metade do século XVIII, que Settembrini não hesitaria em qualificar de fase de decadência da sua irmandade. Na realidade, porém, foi o período de maior florescimento, como foi para todas as sociedades secretas, o tempo em que a maçonaria de fato se alçava a uma vida superior, vida que foi extinta mais tarde por homens da laia do nosso filantropo, que, se tivesse vivido naquela época, indubitavelmente teria pertencido aos que a tachavam de jesuítica e obscurantista. – E havia motivos para isso? – Sim, se assim quiser. O liberalismo trivial tinha suas razões para pensar dessa forma. Era o tempo em que os nossos padres procuravam encher a associação de vida hierárquicocatólica; então florescia em Clermont, na França, uma loja de jesuítas maçons. Era, além disso, a época em que as lojas foram penetradas pelo espírito da Rosacruz, essa confraria bem singular, a cujo respeito o senhor pode gravar na memória que ela aliava objetivos de aperfeiçoar e afortunar o mundo, objetivos puramente racionalistas e político-sociais, a estranhas relações com as ciências secretas do Oriente, com a sabedoria índica e árabe, e com o conhecimento mágico da natureza. Foi naquele período que se realizaram a reforma e a emenda do sistema de muitas lojas maçônicas, no sentido da estrita observância, sentido expressamente irracional e misterioso, mágico e alquimista, ao qual os graus elevados do rito escocês da maçonaria devem a sua origem. Aí se trata de graus de ordens de cavaleiros, que foram acrescentados à velha hierarquia militar de aprendiz, oficial e mestre, graus de grão-mestres, que embocavam na esfera hierática e estavam compenetrados da sabedoria secreta da Rosacruz. Deparamos nesse ponto com uma volta para certas ordens de cavaleiros a serviço da religião, principalmente os templários, que, como o senhor sabe, prestavam diante do patriarca de Jerusalém o juramento de pobreza, de castidade e de obediência. Ainda hoje existe um grau elevado da maçonaria que se intitula “Príncipe de Jerusalém”. – Tudo isso é novo para mim, Sr. Naphta, totalmente novo. Mas assim consigo entender os truques do nosso amigo Settembrini... “Príncipe de Jerusalém!” Nada mau. O senhor deveria chamá-lo assim, numa boa ocasião, por brincadeira. Ele o tratou, outro dia, de “Doctor Angelicus”, e isto exige vingança. – Ora, há ainda uma porção de títulos igualmente altissonantes para os graus elevados, de origem templária, que a maçonaria criou. Encontramos um Mestre Perfeito, um Cavaleiro do Oriente, um Grão-Sacerdote, e o grau 31 até se intitula “Augusto Príncipe do Mistério Real”. O senhor pode notar que todas essas denominações’ revelam relações com a mística oriental. A própria ressurreição dos templários significa nada mais nada menos que o reatamento de tais relações, e representa a irrupção de fermentos irracionais num mundo de idéias empenhado em melhorar a sociedade por meios razoáveis e utilitaristas. Desse modo, a maçonaria ganhou novos atrativos e um brilho inédito, que explicam o sucesso que teve naquela época. Aliciava todos os elementos que estavam fartos do racionalismo do século, com seu esclarecimento e comedimento humano, e sentiam sede de filtros mais potentes. O êxito da ordem foi tal que os filisteus se lamentavam de ela alhear os maridos da felicidade doméstica e da dignidade feminina. – Bem, professor, nesse caso é compreensível que o Sr. Settembrini não goste de se recordar dessa fase de florescimento da sua ordem. – Pois é. Não gosta mesmo de recordar-se de épocas em que a sua associação atraía sobre si todas aquelas antipatias que o liberalismo, o ateísmo e a razão enciclopédica devotam normalmente ao complexo Igreja, catolicismo, monge, Idade Média. Já lhe disse que os maçons foram censurados por seu obscurantismo... – Por quê? Eu desejaria que o senhor me explicasse isso. – Já lhe digo. A estrita observância equivalia a um aprofundamento e a uma ampliação das tradições da ordem. Fazia remontar as suas origens históricas ao mundo dos mistérios, às chamadas trevas da Idade Média. O grau de grão-mestre pertencia nas lojas a pessoas iniciadas na physica mystica, a portadores do conhecimento mágico da natureza, e na maior parte a grandes alquimistas... – Agora tenho que fazer um esforço brutal para lembrar-me mais ou menos bem das finalidades da alquimia. Acho que alquimia significa fazer ouro, a pedra filosofal, aurum potabile... – Sim, senhor, em termos populares. Numa linguagem mais erudita, porém, trata-se de purificação, transformação e refinamento da matéria, de transubstanciação, e isso para uma forma mais elevada, mais sublime. O lapis philosophorum, o produto hermafrodita de enxofre e mercúrio, a res bina, a prima materia bissexual, nada mais era senão o princípio da sublimação, do impulso para o alto, dado por meio de agentes exteriores. É pedagogia mágica, se assim quiser. Hans Castorp permaneceu calado. – Sobretudo a sepultura –- prosseguiu Naphta – era símbolo da transmutação alquimística. – O túmulo? – Sim, o local da putrefação. A tumba é o protótipo de tudo quanto é hermético. Não é outra coisa a não ser o receptáculo, o alambique de cristal, cuidadosamente conservado, onde a matéria é comprimida até se conseguir a sua derradeira metamorfose e depuração. – “Hermético”, muito bem, Sr. Naphta. Sempre gostei do adjetivo “hermético”. É uma verdadeira palavra mágica, com associações de idéias vagas e distantes. O senhor me desculpe, mas eu não posso deixar de pensar nos vidros Weck que a nossa governanta, Schalleen – assim se chama, sem senhora nem senhorita, simplesmente Schalleen –, esses vidros que ela guarda enfileirados nas prateleiras da despensa da nossa casa em Hamburgo. São uns vidros hermeticamente fechados, que contêm frutas, carne e outras coisas mais. Ficam ali durante muitos anos, e quando se abre um, segundo as necessidades, o conteúdo está fresco e perfeito. O tempo não consegue prejudicá-lo. Qualquer deles é comestível. Verdade é que aí não se trata de alquimia e de purificação. É apenas conservação, como indica o nome “conservas”. Mas o que há de mágico nessa história é que o conteúdo dos vidros Weck se acha subtraído à influência do tempo. Fica separado dele de um modo hermético. O tempo passa a seu lado. Para esses vidros não existe tempo; encontram-se fora dele nas suas prateleiras. Bem, basta de vidros Weck! Não é lá grande coisa o que eu disse. Perdão, Sr. Naphta, creio que o senhor queria prosseguir nas suas deduções. – Desde que o senhor o deseje. Para adaptar-me ao estilo do nosso assunto: o aprendiz deve ser ávido de saber e livre de temor. A tumba, o túmulo, sempre tem sido o símbolo principal da iniciação na ordem. O aprendiz, o calouro que pretende ser admitido à sabedoria, precisa passar pelos calafrios da sepultura, para comprovar a sua impavidez. A tradição da ordem requer que, a título de experiência, ele seja levado ao sepulcro e tenha de permanecer nele, até sair guiado pela mão fraternal de um desconhecido. Aí temos a origem dos labirintos e dos calabouços escuros que o noviço tem de atravessar, do pano negro de que estava revestido o próprio conclave da estrita observância, o culto do ataúde, que desempenhava um papel muito importante nas cerimônias de iniciação e nas reuniões. O caminho dos mistérios e da purificação achava-se flanqueado de perigos; passava através do terror da morte, através do reino da decomposição, e o aprendiz, o neófito, é a juventude desejosa de conhecer os milagres da vida, impaciente por ser dotada da capacidade de suportar experiências demoníacas, a juventude guiada por homens mascarados que são apenas sombras do mistério. – Muito obrigado, Professor Naphta. Magnífico! Então é isso o que se chama pedagogia hermética. Não me pode fazer mal ter ouvido essas coisas. – Tanto mais que se trata de uma senda que leva à esfera extrema, ao reconhecimento irrestrito do transcendente, e com isso ao nosso destino final. Ainda nos decênios posteriores, a observância alquimística das lojas conduziu rumo a esse objetivo muitos espíritos nobres e investigadores. Não preciso pronunciar o nome desse objetivo, uma vez que não pode ter escapado ao senhor que a seqüência de graus do rito escocês é apenas um sucedâneo da hierarquia; que a sabedoria alquimística do mestre-pedreiro culmina no mistério da metamorfose, e que a orientação secreta que a loja dá aos seus discípulos se encontra nos recursos da graça, tão nitidamente como os joguinhos simbólicos do cerimonial maçônico reaparecem na simbólica litúrgica e construtiva da nossa Santa Igreja Católica. – Ah, sim! – Com licença! Isto não é tudo. Já tomei a liberdade de observar que é apenas uma superficialidade histórica derivar a maçonaria da honrada corporação dos pedreiros. A estrita observância, pelo menos, proporcionou-lhe alicerces muito mais profundos, no sentido humano. Os segredos das lojas têm em comum com os mistérios da nossa Igreja as relações evidentes com as solenidades ocultas e os excessos sagrados da humanidade mais remota... Quanto à Igreja, refiro-me à ceia, ao ágape, ao consumo sacramental da carne e do sangue, e no que diz respeito às lojas... – Um instante, por favor! Deixe-me fazer uma observação à margem! Também naquela comunidade exclusiva a que pertence meu primo existem ágapes. Diversas vezes, ele me escreveu sobre eles. Abstração feita de alguns que se embriagam um pouco, o resto se passa de modo bem correto, muito mais do que nos festins de grêmios estudantis... –... e no que diz respeito às lojas, refiro-me ao culto da tumba e do ataúde, sobre o qual há pouco chamei a sua atenção. Em ambos os casos trata-se do simbolismo das coisas derradeiras e extremas, de elementos de uma religiosidade primitiva, orgíaca, de desenfreados sacrifícios noturnos em honra dos processos de morrer e de nascer, da morte, da metamorfose e da ressurreição... O senhor se lembra talvez de que os mistérios de Isis bem como os de Elêusis costumavam ser celebrados à noite e em tenebrosas cavernas. Bem, na maçonaria existiram e ainda existem muitas reminiscências egípcias, e entre as sociedades secretas houve algumas que se denominaram alianças eleusinas. Efetuavam-se solenidades de lojas, sob o nome de festas dos mistérios eleusinos e dos segredos afrodisíacos, e nessas ocasiões até as mulheres desempenhavam importante papel. E as festas das rosas, às quais aludem as três rosas azuis do avental de maçom, e que, segundo parece, terminavam em bacanais... – Ora veja, Professor Naphta, que está me dizendo? E tudo isso faz parte da maçonaria? E a essas coisas devo associar, no meu espírito, o nosso amigo Settembrini, esse homem esclarecido... – Nesse caso, seria muito injusto para com ele. Não, senhor! De todos esses costumes antigos Settembrini não sabe absolutamente nada. Eu já lhe disse que os homens da sua laia tornaram a expurgar as lojas de quaisquer elementos de vida superior. Meu Deus, a maçonaria humanizou-se e modernizou-se. Tem-se livrado de aberrações dessa espécie e reencontrou o caminho do proveito, da razão e do progresso, da luta contra príncipes e padres, numa palavra: o caminho do aperfeiçoamento social. As lojas voltaram a ocupar-se da natureza, da virtude, da moderação e da pátria, e como suponho, também dos negócios. Em suma: é a mísera mentalidade da burguesia, sob a forma de um clube... – Que lástima! Quanto às festas das rosas, é mesmo uma pena. Vou perguntar a Settembrini se realmente ignora essas coisas. – O honrado cavaleiro do esquadro! – exclamou Naphta sarcasticamente. – Não esqueça que ele teve de trabalhar muito para ser admitido a participar das obras do Templo da Humanidade. Settembrini é pobre como um rato de igreja, e naquela roda não somente se exige cultura, isto é, cultura humanística, mas também se faz questão de que os membros pertençam às classes abastadas, para que sejam capazes de pagar as jóias e mensalidades nada modestas. Cultura e bens – nisso se resume o burguês! Aí temos os alicerces da república universal e liberal... – Com efeito! – confirmou rindo Hans Castorp. – Aí temos tudo isso em plena evidência. – Mesmo assim – acrescentou Naphta, depois de um pequeno silêncio – dou-lhe o conselho de não fazer pouco-caso desse homem e da sua causa. Uma vez que estamos falando desse assunto, gostaria até de recomendar-lhe que se ponha em guarda. O absurdo nem por isso é inocente. A estreiteza não é necessariamente inofensiva. Aquela gente deitou muita água no seu vinho, que em outros tempos foi capitoso. Mas a própria idéia da ordem permanece bastante forte para suportar uma boa dose de diluição; conserva restos de um mistério fecundo; é indubitável que as lojas influem sobre o jogo do mundo, e tampouco se pode duvidar de que esse simpático Sr. Settembrini representa mais do que apenas a sua própria pessoa, e que atrás dele agem forcas formidáveis das quais ele é parente e emissário... – Emissário? – Sim, um fazedor de prosélitos, um pescador de almas. “E que tipo de emissário é você?”, pensou Hans Castorp, mas em voz alta disse: – Muito obrigado, Professor Naphta. Fico-lhe sinceramente grato pelos seus conselhos e pela sua advertência. Quer saber uma coisa? Vou subir ao andar superior, se é que aquilo pode ser qualificado de andar, e sondarei um pouquinho aquele maçom disfarçado. Um aprendiz deve ser ávido de saber e livre de temor... Claro que a prudência também é indicada. Quem trata com emissários necessita dela... Hans Castorp não precisava ter receios de solicitar informações mais pormenorizadas ao Sr. Settembrini, visto que este não tinha nenhum motivo para censurar a Naphta alguma falta de discrição. Além disso, o humanista jamais se esforçara por manter em segredo o fato de pertencer àquela sociedade harmoniosa. A Rivista della Massoneria Italiana achava-se aberta sobre a sua mesa; Hans Castorp, porém, até esse momento nunca dera por ela. E quando, avisado por Naphta, encaminhou a conversa na direção da “arte real”, como se as relações de Settembrini com a maçonaria fosse coisa indiscutível, encontrou muito pouca reserva. Verdade é que havia pontos a respeito dos quais o literato não se expressava, mas preferia cerrar os lábios ostensivamente, decerto forçado por aqueles votos terroristas que Naphta mencionara. Mostrava-se misterioso quanto aos costumes exteriores e à sua própria posição dentro dessa organização notável. Quanto ao mais, porém, armou sua roda e esboçou para o seu interlocutor curioso um vasto quadro da extensão da sua liga, que estava difundida pelo mundo inteiro, com mais de vinte mil lojas e cento e cinqüenta grã-lojas, e tinha representação até em países como o Haiti e a república negra da Libéria. Citou também uma porção de nomes de grandes homens que haviam sido, ou na atualidade eram, maçons: Voltaire, Lafayette e Napoleão, Franklin e Washington, Mazzini e Garibaldi, e, entre os vivos, o próprio rei da Inglaterra, bem como numerosas personalidades em cujas mãos se achavam os destinos dos Estados europeus, membros de governos e de parlamentos. Hans Castorp manifestou respeito, mas nenhuma surpresa. Segundo a sua opinião, o mesmo se dava com os grêmios estudantis. Estes também se mantinham unidos durante toda a vida e sabiam colocar a sua gente, de maneira que dificilmente alguém conseguia abrir caminho na hierarquia administrativa sem pertencer a um desses corps. Por isso, talvez não fosse coerente da parte do Sr. Settembrini enumerar tantos nomes célebres de irmãos de loja, na intenção de apresentar um fato lisonjeiro para a Maçonaria. Pelo contrário, devia-se argumentar que a ocupação de tantos cargos importantes por membros de lojas demonstrava precisamente o poder da associação, que exercia decerto sobre o jogo do mundo maior influência do que o Sr. Settembrini queria admitir. Settembrini sorriu. Chegou a se abanar com o exemplar da Massoneria que tinha na mão. – Será que o senhor me quer armar uma cilada? – perguntou. – Ou tem, porventura, a intenção de me induzir a dizer coisas imprudentes acerca da natureza política e do espírito essencialmente político das lojas? Quanta astúcia desnecessária, engenheiro! Professamos a política, sem rodeios, abertamente. Desprezamos o cunho odioso que certos idiotas, sobretudo na sua terra, engenheiro, e quase em nenhum outro país, gostam de imprimir a essa palavra e a essa atividade. Um filantropo absolutamente não pode reconhecer a diferença entre política e não-política. Não existe a não-política. Tudo é política. – Sumariamente? – Eu sei muito bem que há pessoas que julgam necessário chamar a atenção sobre a natureza primitivamente apolítica da idéia da maçonaria. Mas essa gente joga com as palavras e traça fronteiras que de há muito devem ser consideradas fictícias e absurdas. Em primeiro lugar, as lojas espanholas, ao menos, tiveram desde o início caráter político... – É o que eu pensava. – O senhor pensa pouco, engenheiro. Não imagine ser capaz de pensar muita coisa sozinho, mas procure ser receptivo e assimilar. Rogo-lhe isso no seu próprio interesse tanto como no interesse do seu país e da Europa. Assimile o que estou a ponto de lhe ensinar, em segundo lugar: a idéia maçônica jamais tem sido apolítica, em época alguma; não podia sê-lo, e se acaso acreditasse sê-lo, andaria equivocada com respeito à sua natureza. Que é que somos? Pedreiros e ajudantes que trabalham numa obra de construção. Todos perseguem um mesmo objetivo; o bem da totalidade é a lei básica da fraternização. Qual é esse bem, essa construção? O edifício social artisticamente construído, a perfeição da humanidade, a nova Jerusalém. Que tem que ver com isso, afinal de contas, a distinção entre política e não-política? A questão social, a própria questão da co-existência são política, cem por cento política, nada mais que política! Quem se consagra a elas – e quem deixasse de fazê-lo não mereceria o nome de homem – pertence à política, à exterior tanto quanto à interna, e compreende que a arte do maçom é a arte de reger... – De reger? – ... que a maçonaria dos iluminados conhecia o grau de Regente... – Muito bem, Sr. Settembrini. A arte de reger, o grau de Regente. Isto me agrada. Mas agora me diga uma coisa: os senhores são cristãos, lá na sua loja? – Perchè? – Perdão, quero formular a pergunta de outra forma, mais geral e mais simples: os senhores acreditam em Deus? – Vou lhe responder. Mas por que pergunta assim? – Não é minha intenção provocá-lo, mas há uma história na Bíblia, na qual alguém tenta o Salvador com uma moeda romana e recebe a resposta de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. A mim me parece que essa maneira de distinguir nos leva à diferença entre política e não-política. Se Deus existe, existe também essa diferença. Acreditam os maçons em Deus? – Eu me comprometi a responder-lhe. O senhor fala de uma unidade que se procura criar, mas que por enquanto ainda não se tornou realidade, para o maior pesar dos bemintencionados. Não há liga universal dos maçons. Se ela se realizar um dia – e repito que se trabalha silenciosa e assiduamente nessa grande obra – terá indubitavelmente uma confissão religiosa uniforme, nos seguintes termos: Écrasez l’infame! – De modo obrigatório? Isto não seria tolerante. – Acho, meu caro engenheiro, que o senhor não é capaz de discutir o problema da tolerância. Mas, pelo menos, grave na sua memória que a tolerância se torna crime quando se devota ao mal. – E Deus seria o mal? – A metafísica é o mal. Não serve para nada a não ser para adormecer a energia que deveríamos consagrar à construção do Templo da Sociedade. Por isso é que o Grande Oriente da França, já faz vinte e cinco anos, abriu caminho, riscando o nome de Deus de todos os seus documentos. Nós, os italianos, seguimos esse exemplo... – Como isso é católico! – Que disse o senhor? – Que eu acho sumamente católica a idéia de riscar Deus. – Aonde é que o senhor quer chegar? – A nada especialmente interessante, Sr. Settembrini. Não preste demasiada atenção às minhas palavras! Só que durante um momento eu tive a impressão de que o ateísmo era coisa enormemente católica, e que riscavam Deus apenas para que pudessem ser melhores católicos. A isso, o Sr. Settembrini intercalou uma pausa; mas era evidente que só o fazia devido a ponderações pedagógicas. Após um silêncio comedido, respondeu: – Meu caro engenheiro, longe de mim a intenção de fazê-lo vacilar no seu protestantismo ou de melindrar-lhe os sentimentos de protestante. Estávamos falando de tolerância... É supérfluo salientar que eu sinto pelo protestantismo mais do que mera indulgência; encaro-o com profunda admiração, como o oponente histórico do estrangulamento da consciência. A invenção da imprensa e a Reforma são e permanecerão os dois méritos supremos que a Europa central teve na causa da humanidade. Isso não se discute. Mas, depois das palavras que o senhor acaba de proferir, não duvido de que me compreenderá, quando lhe indicar que este é apenas um dos aspectos do assunto, e que existe ainda um outro aspecto. O protestantismo encerra em si elementos que... A própria pessoa do seu reformador encerrava em si certos elementos... Eu me refiro aos elementos do quietismo e do ensimesmamento hipnótico, que não são europeus, que são estranhos e hostis à lei vital deste continente altivo. Olhe-o bem, esse Lutero! Contemple os retratos dele, os da sua juventude e os posteriores! Que tipo de crânio é esse? Que significam essas maçãs? Que significa a singularidade dos olhos? É a Ásia, meu amigo! Eu ficaria admirado, sumamente admirado, se não houvesse nele uma mistura de sangue vênedo, eslavo ou sármata, e se o fenômeno inegavelmente grandioso que representa esse homem significasse que um dos pratos da balança, que no seu país se acham equilibrados de forma muito precária, recebe uma sobrecarga fatal. Nesse caso, um peso formidável teria caído no prato oriental, fazendo com que o outro, o ocidental, ainda hoje esteja subindo até o céu... Settembrini abandonara a papeleira de humanista, junto à janelinha, e aproximara-se da mesa redonda com a garrafa de água. Acercou-se então de seu discípulo, que estava sentado no divã, sem se recostar, apoiando o cotovelo no joelho e o queixo na mão. – Caro – disse.o Sr. Settembrini. – Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de escolher, terá de declarar-se definitiva e conscientemente por uma ou outra das duas esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor participará dessa decisão. Sua vocação é contribuir para ela. Bendigamos, pois, o destino, embora o tenha arrastado até estas paragens medonhas. Mas ao mesmo tempo me proporcionou uma oportunidade para exercer influência sobre a sua juventude maleável, por meio das minhas palavras, que não são inteiramente desprovidas de experiência e de vigor, uma oportunidade para fazê-lo sentir a responsabilidade que pesa sobre essa juventude, sobre a sua pátria, perante a civilização... Hans Castorp continuava sentado, com o queixo apoiado na mão cerrada. Olhava para fora, através da janelinha do sótão, e nos singelos olhos azuis podia-se perceber uma certa recalcitrância. Permaneceu calado. – O senhor não responde? – perguntou o Sr. Settembrini, comovido. – O senhor e o seu país guardam um silêncio cheio de reserva, um silêncio cuja falta de transparência não permite avaliar-lhe a profundidade. Não gostam da palavra, ou não sabem servir-se dela, ou ainda a tratam, de modo pouco amistoso, como coisa sagrada; em todo caso, o mundo articulado ignora e não está sendo informado a quantas anda. Isso é perigoso, meu amigo. A língua é a própria civilização... Toda palavra, até a mais antagônica, estabelece contato... Mas o mutismo isola. Os outros chegam a suspeitar que vocês procurarão romper esse isolamento por meio de atos. Vocês farão avançar o primo Giacomo (Settembrini, para maior comodidade, tinha o costume de chamar Joachim de “Giacomo”)... farão o primo Giacomo marchar à frente do seu silêncio, “e com golpes poderosos, mata dois; os outros fogem”... Como Hans Castorp se pusesse a rir, também o Sr. Settembrini esboçou um sorriso, satisfeito, pelo menos momentaneamente, com o efeito das suas palavras plásticas. – Muito bem, riamo-nos! – disse. – O senhor sempre me encontrará disposto para a alegria. “O riso é o reflexo resplandecente da alma”, diz um escritor antigo. Além disso, perdemos o fio da conversa e nos desviamos para assuntos que, não o nego, estão em conexão com as dificuldades que se opõem aos nossos trabalhos preparatórios em prol da fundação da liga universal maçônica, dificuldades que têm sua origem sobretudo na Europa protestante... – E o Sr. Settembrini prosseguiu falando com ardor acerca da idéia dessa liga, que nascera na Hungria, e cuja esperada realização estava destinada a outorgar à maçonaria um poder decisivo nas questões mundiais. A essa altura apontou para cartas relativas ao assunto, que recebera de próceres estrangeiros da associação; mostrou um bilhete do próprio punho do Grão-Mestre da Suíça, o irmão Quartier la Tente, do grau 33, e comentou o projeto de fazer do esperanto o idioma oficial da organização. Elevado por seu zelo até a esfera da alta política, dirigiu os olhos para todas as direções imagináveis e avaliou as probabilidades de triunfo que a idéia republicanorevolucionária tinha no seu próprio país, bem como na Espanha e em Portugal. Afirmou corresponder-se também com os dirigentes da grã-loja desse último reino, onde indubitavelmente as coisas se encaminhavam para uma decisão. Que Hans Castorp se lembrasse das suas palavras, quando, dentro em breve, os acontecimentos ali começassem a precipitar-se. O jovem prometeu fazê-lo. Convém observar que essas palestras maçônicas, mantidas entre o discípulo e cada um dos mentores em separado, se haviam efetuado numa época anterior à da volta de Joachim. A discussão que relataremos agora teve lugar depois dessa data na sua presença, umas nove semanas após o regresso, em princípios de outubro. Se Hans Castorp conservou na memória a referida reunião sob o sol outonal, em frente da estância de “Platz”, com bebidas refrescantes na mesa, é porque naquele dia se preocupava secretamente com Joachim. Essa preocupação era causada por indícios e fenômenos que normalmente não costumam inspirar cuidados, a saber, dores de garganta e rouquidão. Tratava-se, pois, de moléstias inofensivas, mas que se apresentavam ao jovem Hans Castorp sob uma luz especial, que era precisamente aquela que ele pensava descobrir no fundo dos olhos do primo, esses olhos que sempre haviam sido grandes e meigos, mas precisamente nesse dia, e não antes, lhe apareciam maiores e mais profundos. Era como se tivessem assumido expressão meditativa e – deve-se acrescentar a estranha palavra – ominosa, além daquela já mencionada iluminação que lhes vinha de dentro. Seria absolutamente errado afirmar que Hans Castorp não gostava dessa expressão; pelo contrário, ela até lhe agradava muito, deixando-o, entretanto, preocupado. Numa palavra, não se pode falar dessas impressões de outra forma a não ser daquela maneira confusa que correspondia ao seu próprio caráter. A palestra, ou melhor, a controvérsia – travada, naturalmente, entre Naphta e Settembrini – girava em torno de um assunto diferente e tinha um nexo apenas frouxo com a maçonaria. Além dos primos, Ferge e Wehsal também se achavam presentes, e o interesse de todos era grande, embora alguns não estivessem à altura da discussão. O Sr. Ferge, por exemplo, observou isso expressamente. Contudo, uma luta disputada, como se a própria vida estivesse em jogo, mas cujo espírito e esmero faziam supor que não se tratava da vida, senão de um torneio elegante – como acontecia em todas as contendas de Naphta e Settembrini –, tal luta é obviamente e de per si interessante, mesmo para quem pouco entende do assunto e apenas vagamente lhe enxerga o alcance. Até pessoas estranhas, nas mesas vizinhas, escutavam a troca de palavras, admiradas e atraídas pela paixão e pela graça do diálogo. Como já dissemos, isso se deu defronte à estância, depois do chá da tarde. Ali os quatro pensionistas do Berghof haviam-se encontrado com Settembrini e, por casualidade, Naphta se reunira a eles. Estavam todos agrupados em volta de uma mesinha de metal, na qual se achavam diversas bebidas diluídas com água de soda, bem como cálices com anis e vermute. Naphta, que nesse local costumava tomar a merenda, pedira vinho e doces, que evidentemente constituíam uma reminiscência do seu noviciado. Joachim umedecia, com muita freqüência, a garganta enferma com limonada, que tomava muito concentrada e bem azeda, porque assim ela lhe contraía os tecidos e lhe dava algum alívio. Settembrini bebia simples água açucarada, mas serviase de um canudo com tanto prazer como se saboreasse o mais fino de todos os refrescos. – Que é que ouvi, engenheiro? – disse ele, caçoando. – Que rumor acaba de chegar aos meus ouvidos? Voltará a sua Beatriz? A sua guia através das nove esferas giratórias do Paraíso? Bem, espero que, apesar disso, o senhor não rejeite por completo a mão amiga e orientadora de seu Virgílio. Aqui o nosso eclesiástico lhe pode confirmar que o mundo do medio evo não é completo enquanto falta à mística franciscana o pólo oposto do conhecimento tomista. Todos riram de tanta erudição bem-humorada. Olharam Hans Castorp, que também se riu e levantou o cálice de vermute à saúde do “seu Virgílio”. Parece incrível que um interminável conflito de idéias enchesse a hora seguinte em resultado dessas palavras inofensivas, se bem que rebuscadas, de Settembrini. Naphta, que em certo sentido se julgava provocado, passou imediatamente ao ataque e investiu contra o poeta latino, notoriamente idolatrado pelo humanista, que o colocava acima de Homero. Naphta, por sua vez, já demonstrara em diversas ocasiões o maior desdém por ele como por todos os demais poetas latinos, e com presteza e malícia aproveitou-se também dessa oportunidade para fazê-lo. Observou que da parte do grande Dante era uma atitude parcial, muito bondosa e arraigada na época, essa de cercar de tanta solenidade um versejador medíocre e de outorgar-lhe no seu poema um papel tão importante, ainda que o Sr. Lodovico atribuísse a esse papel caráter demasiado maçônico. Que valor tinha, afinal, esse cortesão laureado, bajulador da Casa Júlia, com sua retórica pomposa, mas desprovida da menor centelha de espírito criador, esse literato de cidade grande, cuja alma, se é que possuía uma, era indiscutivelmente de segunda mão e que de maneira alguma era poeta, mas apenas um francês de peruca empoada em plena era de Augusto? O Sr. Settembrini não duvidou de que o seu interlocutor soubesse encontrar meios e caminhos para conciliar o menosprezo que sentia pela fase da mais alta civilização romana com as suas funções de professor de latim. No entanto, pareceu-lhe necessário indicar a Naphta outra contradição mais grave, em que o enredavam as suas opiniões; punham-no em desacordo com os seus séculos prediletos, que não somente de forma alguma haviam desprezado Virgílio, senão feito justiça, ingenuamente, à sua grandeza, convertendo-o num mago poderoso e sábio. Era em vão, retrucou Naphta, que o Sr. Settembrini chamava em seu auxílio a ingenuidade daquela época matutina, triunfante, que conservara a sua força inventiva até no endemoniamento daquilo que vencera. Por outra parte, os doutores da jovem Igreja não se haviam cansado de advertir os seus alunos contra as mentiras dos filósofos e poetas antigos, e especialmente contra o perigo de serem maculados pela exuberante eloqüência de Virgílio. E nos nossos dias, quando novamente uma era se aproximava do túmulo, e mais uma vez raiava a aurora proletária, cumpria ter compreensão dessa sua atitude! E para liquidar a questão, acrescentou que o Sr. Lodovico podia ficar persuadido de que ele, Naphta, exercia com toda a necessária reservatio mentalis aquela profissãozinha burguesa a que o outro tivera a bondade de aludir. Não era sem ironia que se enquadrava num sistema de ensino clássico-retórico, ao qual nem os maiores otimistas podiam prometer mais que alguns decênios de duração. – Vocês, o senhor e seus amigos – exclamou Settembrini –, os têm estudado, com o suor do seu rosto, a esses poetas e filósofos antigos. Vocês procuraram apoderar-se da sua preciosa herança, assim como exploraram o material dos edifícios antigos para a construção das suas igrejas. Ora, vocês sentiram claramente que não seriam capazes de produzir uma nova forma de arte apenas com as próprias forças da sua alma proletária. Vocês esperaram derrotar a Antigüidade com as armas dela. Isso se repetirá, sempre e sempre! O espírito matutino de vocês, em toda a sua bronquice, terá de freqüentar a escola daqueles que vocês querem desprezar e fazer os outros desprezarem. Pois, sem cultura, vocês não poderiam existir ante os olhos da humanidade, e não há senão uma única cultura, aquela que vocês qualificam de burguesa, e que em realidade é humana! – O fim da educação humanística, uma questão de decênios? Somente a polidez impedia o Sr. Settembrini de dar uma gargalhada tão despreocupada quanto zombeteira. Uma Europa que sabia guardar os seus bens eternos passaria, com toda a calma, à ordem do dia da razão clássica, sem se importar com os apocalipses proletários com que sonhavam certas pessoas. Mas era precisamente a ordem do dia, replicou Naphta sarcasticamente, o que o Sr. Settembrini parecia ignorar. Nela se achava como problema o que o seu interlocutor preferia tratar como fato consumado, a questão de saber se a tradição mediterrâneo-clássico-humanista era uma causa da humanidade e por conseguinte humana e eterna, ou se não passava de uma forma espiritual e de um acessório de uma determinada época, a época burguesa e liberalista, morrendo com esta. À história caberia decidir essa questão, e o Sr. Settembrini faria muito bem não se fiando muito seguramente numa sentença favorável ao seu conservantismo latino. Chamar Settembrini, o servidor declarado do progresso, de conservador era uma insolência particular do pequeno Naphta. Todos perceberam isso, e o humanista assim melindrado o fez com particular amargura. Cofiando nervosamente o sinuoso bigode, preparava o golpe de vingança. Dessa forma deixou ao adversário o tempo suficiente para novas investidas contra o ideal de formação clássica, contra o espírito retórico-literário do ensino e da pedagogia europeus, e contra o seu spleen gramático-formal que nada mais era senão um acessório conservado no interesse da supremacia da classe burguesa, mas que desde havia muito parecia ridículo ao povo. Sim, poucos se davam conta de quanto o povo se divertia com aqueles títulos de doutor, com todo o mandarinato de formação e com a escola primária pública, esse instrumento da ditadura da classe burguesa, que o manejava na ilusão de que cultura popular era forma diluída da cultura erudita. O povo sabia muito bem onde encontrar aquela cultura e aquela educação de que precisava na luta contra a burguesia caduca, e não a procurava nessas casas de correção do ensino oficial. Já não era segredo para ninguém que o próprio tipo das nossas escolas, tal como se desenvolveu das escolas dos conventos medievais, representava um anacronismo, uma grotesca velharia; que ninguém, em todo o vasto mundo, devia à escola a sua verdadeira formação, e que um ensino livre, acessível a todos, por meio de conferências públicas, de exposições, do cinema, etc, era muitíssimo superior a qualquer ensino escolar. O Sr. Settembrini respondeu que nessa mistura de revolução e de obscurantismo, que Naphta acabava de oferecer aos seus ouvintes, a parte obscurantista predominava de forma pouco apetitosa. A satisfação que se sentia ao vê-lo tão preocupado com a iluminação do povo era diminuída pelo receio de que, na realidade, agisse nele a instintiva tendência de envolver o povo e o mundo nas trevas do analfabetismo. Naphta sorriu. O analfabetismo! Com isso pensava o seu interlocutor, sem dúvida, ter pronunciado uma palavra verdadeiramente horripilante, persuadido de que todo mundo empalideceria devidamente em face dessa cabeça de Górgona. Ele, Naphta, lamentava ter de desapontar o seu oponente ao dizer-lhe que o pavor que os humanistas experimentavam diante do conceito do analfabetismo simplesmente o fazia rir. Era preciso ser um literato renascentista, um precioso, um homem do Secento, um marinista, um palhaço do estilo culto, para atribuir às artes de ler e de escrever toda essa primazia pedagógica, a ponto de se imaginar que as trevas do espírito reinavam onde faltasse conhecimento dessas disciplinas. Recordava-se o Sr. Settembrini de que o maior poeta da Idade Média, Wolfram von Eschenbach, tinha sido analfabeto? Naquela época haviam julgado vergonhoso na Alemanha enviar à escola um menino que não quisesse ser sacerdote, e esse menosprezo aristocrático e popular pelas artes literárias fora em todos os tempos um sinal de nobreza fundamental da alma, ao passo que o literato, esse filho genuíno do humanismo e da burguesia, sabia, na verdade, ler e escrever, o que o fidalgo, o guerreiro e o povo ignoravam ou sabiam apenas mal. Mas era só isso que ele sabia e entendia de todas as coisas do mundo. Continuava sendo um doidivanas latinista que dominava a língua e abandonava a vida às pessoas honradas. Por isso transformava a política num saco cheio de vento, isto é, cheio de retórica e de belas-letras, o que no linguajar dos partidos se chamava radicalismo ou democracia, etcétera, etcétera... Ao ouvir isso, o Sr. Settembrini não se conteve mais. Exclamou que era excessiva a temeridade com que o outro exibia o seu gosto pela piedosa barbárie de certas épocas, escarnecendo do amor à forma literária, sem a qual de fato se tornaria impossível e inimaginável a humanidade. Sim, senhores, impossível e inimaginável! Tinha sido pronunciada a palavra “nobreza”. Unicamente quem odiasse o gênero humano era capaz de dar esse nome à ausência do Verbo, ao materialismo brutal e mudo. Deveras nobre era apenas um certo luxo distinto, a generosità, que se manifestava na atitude de conceder à forma um valor humano próprio, independente do conteúdo, o culto da oratória como arte pela arte, essa herança da civilização greco-romana, que os humanistas, os uomini letterati, haviam devolvido pelo menos aos países neolatinos, e que era a fonte de todo o idealismo ulterior, relacionado com o conteúdo também do idealismo político. – Sim, senhor! – continuou Settembrini. – O que o senhor deseja envilecer, qualificando-o como divórcio entre a língua e a vida, não é outra coisa que uma unidade superior no diadema da beleza, e eu prevejo sem temor qual dentre os dois partidos a juventude valorosa tomará numa luta cujas alternativas se chamam literatura ou barbárie. Hans Castorp acompanhara a conversa com atenção não muito grande, visto se preocupar com a pessoa do guerreiro e representante de uma essencialidade distintíssima, que se achava perto dele. No fundo, o que mais lhe dava que pensar era a expressão nova que se via nos olhos do primo. Por isso sobressaltou-se um pouquinho ao sentir-se chamado e interpelado pelas últimas palavras do Sr. Settembrini. A seguir fez uma cara igual àquela que fizera na ocasião em que o italiano o quisera obrigar solenemente a escolher entre o “Oriente” e o “Ocidente”, quer dizer, uma cara cheia de reserva e de recalcitrância. Permaneceu calado. Esses dois levavam tudo ao extremo, como talvez fosse necessário, quando se queria discutir. Disputavam encarniçadamente em torno de alternativas irreconciliáveis, ao passo que a ele próprio parecia patente que em alguma parte entre essas posições incompatíveis, entre o humanismo retórico e a barbárie analfabeta, devia encontrar-se aquilo que ele, pela sua pessoa, podia reputar de humano. Não se manifestou, porém, para não exasperar os dois antagonistas. Envolto em reticências, observou como continuavam borboleteando de assunto em assunto, como um estendia a mão ao outro, na intenção hostil de guiá-lo por sempre novos desvios, desde o momento em que Settembrini desencadeara a controvérsia com sua gracinha sobre o latino Virgílio. O humanista ainda não largara a palavra, brandia-a, fazia com que ela triunfasse. Arvorouse em guardião do gênio literário; glorificou a história das letras a partir do instante em que, pela primeira vez, um ser humano gravara na pedra sinais simbólicos, a fim de conferir a durabilidade de um monumento ao seu saber e sentir. Falou de Tot, deus egípcio, com o qual o grande Hermes do helenismo se identificava, e que tinha sido venerado como o inventor da escrita, como padroeiro das bibliotecas e como animador de todos os esforços intelectuais. Ajoelhou-se, metaforicamente, diante desse Trismegisto, o Hermes humanista, ao qual a humanidade devia os presentes sublimes da palavra literária e da retórica agonística. Com isso levou Hans Castorp a ponderar que esse egípcio nato, evidentemente, fora um estadista e desempenhara, em maior escala, o papel do Sr. Brunetto Latini, o primeiro que esmerilou a cultura dos florentinos e ensinou-lhes a oratória, bem como a arte de dirigir a sua república conforme as regras da política. Ao que Naphta redargüiu que o Sr. Settembrini desfigurava levemente as coisas e que Tot- Trismegisto saíra muito “favorecido” no seu retrato. Em realidade, tratava-se de uma divindade dos macacos, da lua e das almas, representada pela figura de um babuíno coroado de um crescente. Sob o nome de Hermes fora antes de tudo um deus da morte e dos mortos, dominador e guia das almas; já na fase derradeira da Antigüidade havia sido transformado em arquifeiticeiro, ao passo que a Idade Média cabalística o considerara o pai da alquimia hermética. Que era isso? Na oficina dos pensamentos e das representações de Hans Castorp reinava plena desordem. Havia ali a morte no seu manto azul, e essa morte era um setor humanista; mas quando se olhava mais de perto esse deus da literatura, pedagogo e amigo dos homens, achava-se acocorada em seu lugar a imagem grotesca de um mono que levava sobre a fronte o símbolo da noite e da magia... Procurou afastar a visão com a mão. A seguir cobriu os olhos. Mas pelas trevas onde se refugiara na sua confusão ressoava a voz de Settembrini, que prosseguia encomiando a literatura. Não somente a grandeza contemplativa, senão também a grandeza ativa, assim bradou o italiano, andara em todos os tempos ligada a ela. E citou os nomes de Alexandre, César, Napoleão; mencionou Frederico da Prússia e outros heróis, inclusive Lassalle e Moltke. Não se intimidou quando Naphta lhe opôs a China, onde reinava a mais ridícula idolatria do abecedário que se conhecia, e onde uma pessoa chegava a ser generalíssimo quando sabia traçar com tinta nanquim todos os quarenta mil ideogramas, o que devia agradar muito ao coração de um humanista. Ora, Naphta sabia perfeitamente que aqui não se tratava do uso de tinta nanquim, mas da literatura como impulso humano, do seu espírito; sim, pobre zombeirão, do seu espírito que era o espírito em si, o milagre da fusão de análise e forma. Era ele que despertava a compreensão de tudo quanto é humano, que se empenhava em debilitar e em aniquilar os preconceitos tolos e as convicções estúpidas, e que purificava, enobrecia e melhorava o gênero humano. Ao criar o mais intenso refinamento moral e a mais sutil sensibilidade, conduzia os homens, longe de fanatizá-los, ao ceticismo, à justiça, à tolerância. O efeito purificante e santificador da literatura, a destruição das paixões pelo conhecimento e pela palavra, a literatura como caminho à compreensão, à indulgência e ao amor, o espírito literário como o fenômeno mais nobre do espírito humano em geral, o poder salvador da língua, o literato como homem perfeito, como santo – era nessa tonalidade exaltada que decorria o panegírico apologético do Sr. Settembrini. Ai dele, o seu adversário tampouco se deixou amedrontar. Soube interromper o aleluia angélico com argumentos maliciosos e brilhantes, optando pelo partido da conservação e da vida, contra o espírito dissolvente que se escondia atrás dessa falácia seráfica. Aquela fusão milagrosa que o Sr. Settembrini decantara em voz trêmula não passava, segundo se ouviu agora, de um embuste e de uma trapaça. Pois a forma que o espírito literário se vangloriava de saber conciliar com o princípio do exame e da divisão era apenas uma forma fictícia e mentirosa; não, porém, uma forma genuína, natural, cheia de vida. Sim, o pretenso aperfeiçoador do homem apregoava a pureza e a santificação, mas em realidade visava à castração e à sarjadura da vida. O espírito, o zelo da teoria profanavam a vida, e quem se esforçava por destruir as paixões desejava o nada, o puro nada, sendo “puro” o único adjetivo adequado para qualificar o nada. E precisamente nesse ponto o literato Settembrini patenteava o que era; revelava-se partidário do progresso, do liberalismo e da revolução burguesa. Pois o progresso era mero niilismo. O burguês liberalista era propriamente o homem do nada e do Diabo, e chegava a negar Deus, o absoluto conservador e positivo, professando o absoluto contrário, demoníaco, e arvorando-se em modelo de piedade, por causa do seu pacifismo letal. No entanto, o que menos havia nele era piedade; pelo contrário, atentava de um modo sumamente criminoso contra a vida, a cuja inquisição merecia ser entregue; e assim por diante... Com semelhantes alfinetadas argumentava Naphta, dando ao panegírico aspectos satânicos e apresentando-se a si próprio como a encarnação do amor austero e conservador, de maneira que mais uma vez se tornava completamente impossível distinguir onde se achava Deus e onde o Diabo, onde a morte e onde a vida. Ninguém duvidará quando afirmarmos que o seu antagonista se mostrou à altura e não ficou devendo resposta, que foi notável e provocou uma réplica não menos boa, depois da qual a discussão prosseguiu por algum tempo, antes de a conversa embocar naquela confusão já mencionada. Hans Castorp, entretanto, já deixara de prestar atenção, porque Joachim, nesse ínterim, lhe comunicara que tinha certeza de se ter resfriado e de estar com febre, e que não sabia o que fazer, uma vez que os resfriados não eram reçus ali em cima. Os duelistas haviam passado por cima dessa novidade, mas Hans Castorp, que, como já dissemos, velava diligentemente pelo primo, retirou-se em sua companhia, no meio de uma tréplica, sem se importar com a questão de saber se o público restante, composto de Ferge e Wehsal, seria ou não capaz de produzir o estímulo pedagógico necessário para a continuação da contenda. Durante o caminho combinou com Joachim que em matéria de resfriado e dores de garganta trilhariam a via hierárquica; quer dizer, encarregariam o massagista de avisar a Superiora, depois do que provavelmente seriam tomadas algumas medidas em benefício do enfermo. Assim fizeram bem. À mesma noite, logo depois do jantar, quando Hans Castorp casualmente se encontrava no quarto de Joachim, Dona Adriática bateu à porta e informou-se, em voz esganiçada, sobre os desejos e as moléstias do jovem oficial. – Dores de garganta? Rouquidão? – repetiu a enfermeira. – Que lhe deu na veneta, rapaz? – E fez uma tentativa de fitar o doente com olhar penetrante. Não era culpa de Joachim que os olhares não se encontrassem, pois era o da Superiora que se esquivava obstinadamente. Coisa estranha que ela insistisse nessa manobra, apesar de a experiência lhe demonstrar que era incapaz de realizá-la! Mediante uma espécie de calçadeira de metal, que tirou da bolsa presa à cintura, examinou a goela do paciente, enquanto Hans Castorp a alumiava com a lâmpada de cabeceira. Mantendo-se nas pontas dos pés, a Superiora espiava a úvula de Joachim. – Agora me diga, prezadíssimo rapaz – continuou –, já se engasgou alguma vez? Que responder? No momento, isto é, durante o exame, era impossível dar explicações, mas também depois de ela soltar o enfermo era difícil acertar a resposta. Claro que já lhe acontecera engasgar-se uma ou outra vez, enquanto comia ou bebia, mas isso ocorria a toda gente e certamente não era o que ela queria saber. Assim, Joachim perguntou: – Por quê? – e acrescentou que não se lembrava quando aquilo se dera pela última vez, – Está bem – disse ela. – Foi apenas uma idéia que me veio. Então o senhor se resfriou – concluiu para a maior surpresa dos primos, visto a palavra “resfriado” normalmente não ser tolerada no sanatório. Para um exame mais minucioso, se preciso fosse, seria indispensável o laringoscópio do conselheiro. Ao sair, a Superiora deixou comprimidos de formaminto, bem como uma atadura e um pedaço de gutapercha, para que Joachim pudesse fazer compressas durante a noite. Joachim serviu-se de ambas as coisas e teve a nítida impressão de que lhe traziam alívio. Por isso continuou com o tratamento, já que a rouquidão não fazia menção de ceder; pelo contrário, até se intensificou nos dias seguintes, embora as dores de garganta desaparecessem às vezes quase por completo. O tal resfriado febril não passava, aliás, de pura imaginação. O resultado objetivo do exame era o de sempre, justamente aquele que, em combinação com os diagnósticos anteriores do conselheiro, requeria do ambicioso Joachim um “pequeno tratamento suplementar”, antes que ele pudesse voltar às fileiras do exército. O prazo de outubro, que acabava de expirar, era tratado com a maior discrição possível. Ninguém o mencionou, nem o conselheiro, nem os primos entre si. Silenciosos, com os olhos baixos, passaram uma esponja nessa data. Depois do que Behrens ditara ao assistente-psicanalista, por ocasião da última consulta mental, e do que a chapa radiográfica mostrava, era mais do que evidente que uma partida “em falso” seria arriscadíssima. E dessa vez tratava-se de perseverar ali em cima, com disciplina de aço, no trabalho da cura, até que se obtivesse a definitiva imunidade, necessária para suportar as exigências do outro trabalho, lá na planície, e para cumprir o juramento. Tal era a divisa a respeito da qual haviam chegado a um tácito acordo. Na realidade, porém, um não tinha certeza se o outro, no âmago da sua alma, acreditava nessa divisa. Se baixavam os olhos, era devido a essa dúvida, e isso não se dava sem que antes os seus olhares se tivessem encontrado. Tais encontros ocorriam freqüentemente, desde o referido colóquio sobre literatura, quando Hans Castorp notara, pela primeira vez, aquela luz nova no fundo dos olhos de Joachim, bem como a sua expressão “ominosa”. Ocorriam antes de tudo à mesa, quando o primo, rouco de repente, se engasgava de modo sumamente violento, a ponto de mal recobrar o fôlego. Certa vez, enquanto Joachim ofegava atrás do guardanapo, e sua vizinha, a Srª. Magnus, lhe dava palmadas nas costas, segundo um velho costume, os olhos dos primos encontraram-se de um modo que espantou Hans Castorp, mais do que o próprio engasgamento, que afinal podia acontecer a qualquer um. A seguir, Joachim cerrou os olhos e, com o rosto oculto pelo guardanapo, abandonou a mesa e a sala, a fim de esperar lá fora o fim do acesso de tosse. Sorrindo, embora ainda um pouco pálido, voltou uns dez minutos depois. Desculpou-se pelo susto que dera aos comensais e participou, como antes, da abundante refeição. Mais tarde, os primos até se esqueceram totalmente de comentar o incidente banal. Mas alguns dias após, não durante o jantar, senão por ocasião do fartíssimo segundo café da manhã, produziu-se o mesmo fenômeno. Dessa vez não se encontraram os olhares, ao menos não os dos primos. Hans Castorp, inclinado para o prato, continuou comendo com aparente indiferença. Terminada a refeição, parecia contudo conveniente dizer algumas palavras sobre o ocorrido. Joachim deblaterou contra a Mylendonk, cuja pergunta feita à queima-roupa o fizera ficar com a pulga atrás da orelha. Essa mulher lhe sugerira alguma coisa; embruxara-o. – Que o diabo a carregue! – Hans Castorp respondeu que evidentemente se tratava do efeito de uma sugestão e achou o fato divertido, apesar do seu caráter desagradável. E Joachim, depois de ter achado uma denominação para a coisa, daí por diante defendeu-se com êxito contra ela. Precavia-se, enquanto comia, e não se engasgava com maior freqüência do que qualquer outra pessoa não embruxada. Somente uns nove ou dez dias mais tarde repetiu-se o incidente, o que, afinal de contas, não era anormal. Não obstante foi chamado por Radamanto, embora ainda não fosse a sua vez. A Superiora avisara o médico e sem dúvida fizera bem. Uma vez que a casa dispunha de um laringoscópio, existiam motivos suficientes para tirar do armário o instrumento engenhosamente construído: aquela rouquidão obstinada, que às vezes degenerava em afonia total, e também a dor de garganta que voltava a manifestar-se, cada vez que Joachim omitia lubrificar a goela com remédios salivantes, sem contar que, se agora se engasgava menos amiúde, era só devido à imensa cautela que usava durante as refeições, o que sempre o atrasava em relação aos vizinhos. E o conselheiro, servindo-se de espelhos e reflexos, perscrutou profunda e demoradamente a garganta de Joachim. A seguir, o paciente, em obediência aos rogos de Hans Castorp, encaminhou-se logo à sacada do primo, para relatar-lhe pormenores do exame. A coisa lhe havia causado muitas cócegas e fora bastante desagradável, segundo contou cochichando, porque estavam na hora do repouso principal, com silêncio obrigatório. Behrens fizera um grande palavrório sobre um estado de irritação e dissera que convinha pincelar todos os dias. Logo no dia seguinte começaria a causticar. Era apenas preciso preparar o remédio. Pois então, estado de irritação e causticações... Hans Castorp tinha a cabeça cheia de associações de idéias, que iam muito longe e se referiam a pessoas quase estranhas, como, por exemplo, o porteiro coxo e aquela senhora que passara uma semana inteira comprimindo a orelha e todavia não tivera motivos para preocupar-se. Estava a ponto de fazer mais algumas perguntas, porém não conseguiu pronunciá-las. Resolveu então pedir informações ao próprio conselheiro, quando estivessem a sós. Por enquanto limitou-se a expressar a Joachim a satisfação que experimentava ao ver que aquela moléstia se achava agora sob controle e que o Dr. Behrens se encarregara do assunto. Era “bamba” nessas coisas e saberia, sem dúvida, remediar. Joachim fez um sinal de aprovação, sem encarar o primo; deu meia-volta e passou para o seu compartimento. Que é que havia com o honrado Joachim? Nesses últimos dias, seus olhos tinham-se tornado inseguros e esquivos. Fazia pouco tempo que a Superiora, Srta. von Mylendonk, malograra no seu esforço de lhe penetrar o olhar meigo e tristonho; mas, se agora repetisse a tentativa, ninguém poderia dizer com certeza o que sucederia. Em todo caso, Joachim evitava esse tipo de encontros, e quando se produziam apesar disso – pois Hans Castorp olhava-o com muita freqüência – não contribuíam para diminuir o desassossego. Angustiado, Hans Castorp permanecia estendido na sua sacada, e no íntimo crescia-lhe a tentação de ir ter com o conselheiro imediatamente. Isso, entretanto, não era possível, já que não se poderia levantar sem que Joachim o notasse. Dessa forma, era necessário esperar e ver se lograva falar com Behrens no decorrer da tarde. Mas não teve êxito. Coisa estranha! Absolutamente não conseguiu encontrar o conselheiro, nem nessa tarde, nem durante os dois dias seguintes. Claro que Joachim o estorvava um pouco, uma vez que não devia perceber nada; mas isso não bastava para explicar por que Hans Castorp não chegava a obter essa entrevista e tinha tamanhas dificuldades em apanhar Radamanto. Procurava-o e perguntava por ele em toda a casa. Mandavam-no de cá para lá, a lugares onde era certo que encontraria o médico. No entanto, nunca o achava ali. Behrens assistiu a uma das refeições, mas estava sentado muito longe, à mesa dos “russos ordinários”, e sumiu antes da sobremesa. Algumas vezes, Hans Castorp tinha a impressão de que o poderia agarrar pela manga do casaco; via-o na escada ou num corredor, a conversar com Krokowski, com a Superiora ou com um enfermo, e punha-se à espreita. Mas logo que desviava o olhar, Behrens desaparecia. Não foi senão no quarto dia que realizou o seu propósito. Da sua sacada descobriu o médico no jardim, ocupado em dar ordens ao jardineiro. Rapidamente, Hans Castorp desembaraçou-se dos cobertores e correu ao seu encontro. O conselheiro, com a nuca saliente e com as mãos remando, já se afastava em direção ao seu apartamento. Hans Castorp pôs-se a correr e até tomou a liberdade de chamá-lo, mas não foi ouvido. Finalmente, ofegando, conseguiu detê-lo. – Que é que o senhor perdeu aqui? – interpelou-o o conselheiro desabridamente, com seus olhos lacrimosos. – Será preciso que lhe mande entregar um exemplar especial do regulamento da casa? Ao que saiba é hora de repouso. Sua curva de temperatura e sua radiografia absolutamente não o autorizam a bancar o cavalheiro independente. Deveríamos colocar aqui um espantalho engenhoso para ameaçar pessoas que folgam no jardim entre as duas e as quatro. Afinal de contas, que é que o senhor quer? – Senhor conselheiro, é indispensável que lhe fale um momento. – Já sabia que o senhor meteu essa idéia na cabeça, há algum tempo. Corre atrás de mim, como se eu fosse uma donzela e lhe prometesse não sei que prazeres. Que deseja de mim? – Perdão, doutor, trata-se do meu primo. Agora lhe pincelam a garganta... Estou convencido de que com esse tratamento se endireitará aquela coisa. Ela é inofensiva; não é? Era só isso que lhe desejava perguntar... – O senhor sempre quer que tudo seja inofensivo, Castorp. É essa a sua índole. Às vezes não se mostra avesso ao contato com coisas nada inofensivas, mas então as trata como se fossem perfeitamente inocentes, e com isso pensa agraciar a Deus e aos homens. O senhor é uma espécie de covarde e de hipócrita, meu caro, e quando seu primo o chama de civil, usa termo bastante eufêmico. – Pode ser que tudo isso seja assim, doutor. Ora, ninguém discute as fraquezas do meu caráter. Mas o caso é precisamente que no momento elas não estão em discussão, e o que lhe queria pedir, faz três dias, é apenas... – ...que eu lhe ministre uma poção agradavelmente açucarada e diluída! O senhor quer me importunar e maçar, para que eu o confirme na sua maldita hipocrisia e para que o senhor possa dormir o sono dos justos, enquanto outras pessoas velam e se expõem à tempestade. – Olhe, doutor, o senhor é muito severo comigo. Eu queria, pelo contrário... – Sim, senhor, a severidade não é propriamente o seu forte. Seu primo é um tipo bem diferente, é feito de outro estofo. Ele está a par de tudo. Está a par e fecha-se, compreende? Não se agarra ao avental da gente, pedindo que o iluda com miragens e histórias inofensivas. Sabia o que estava fazendo e o que arriscava. É um homem que se mantém firme e sabe calar o bico, o que é uma arte viril, na qual infelizmente não são peritos os simpáticos bípedes da sua espécie. Mas uma coisa lhe digo, Castorp; se o senhor começar a fazer uma cena aqui, a lamentar-se e a entregar-se ao seu sentimentalismo civil, mandarei que o ponham no olho da rua. O que precisamos aqui são homens, compreende? Hans Castorp permaneceu silencioso. Também a sua tez assumia agora aquela cor terrosa, ao empalidecer. Sua pele estava por demais bronzeada para tornar-se totalmente lívida. Finalmente disse, com os lábios trêmulos: – Muito obrigado, senhor conselheiro. Eu também estou a par, agora. Acho que o senhor não falaria comigo com... (não sei como expressar-me)... com tanta solenidade, se o caso de Joachim não fosse grave. Também detesto cenas e gritarias; nesse ponto o senhor não me julga bem. E quanto à discrição, não faltarei a ela. Disso pode estar certo. – O senhor quer bem a seu primo, Hans Castorp? – perguntou o médico, agarrando de repente a mão do jovem e fixando nele os olhos azuis, lacrimosos e injetados, por entre as pestanas brancas. – Não sei que lhe responder, senhor conselheiro. É um parente próximo, um bom amigo e meu camarada aqui em cima. – Hans Castorp deixou escapar um breve soluço, fazendo um dos pés girar sobre a ponta. O médico apressou-se a soltar-lhe a mão. – Pois então trate-o com gentileza durante estas seis ou oito semanas – disse. – Proceda com a sua costumeira ingenuidade. Sem dúvida é isso o que ele preferirá. Eu também estarei presente e providenciarei para que as coisas decorram, na medida do possível, de modo elegante e confortável. – É a laringe, não é? – perguntou Hans Castorp, sacudindo a cabeça. – Laryngea – confirmou o conselheiro. – A destruição progride rapidamente. E a mucosa da traquéia também já se acha em mau estado. Pode ser que as vozes de comando, lá no serviço, hajam criado um locus minoris resistentiae. Sempre devemos estar preparados para tais deslocamentos da doença. Há pouca esperança, meu filho. No fundo, não há nenhuma. Claro que lançaremos mão de todos os recursos... – A mãe... – disse Hans Castorp. – Mais tarde, mais tarde. Por enquanto não há pressa. Empregue o seu tato e sua delicadeza para informá-la gradativamente. E agora volte ao seu posto. Ele está notando o que se passa, e com certeza lhe será desagradável saber que a gente fala dele pelas costas. Todos os dias Joachim se deixava pincelar. O outono era lindo. Correto e marcial, nas calças de flanela branca e na jaqueta azul, o jovem chegava freqüentemente atrasado às refeições. Cumprimentava os comensais com amabilidade, de um modo discreto e másculo, e pedia desculpas pela sua pouca pontualidade. Sentava-se então para tomar a comida especial que lhe preparavam agora, uma vez que não podia engolir os alimentos normais, devido ao perigo de se engasgar. Serviam-lhe sopas, mingaus e picadinhos. Os companheiros de mesa compreenderam rapidamente a situação. Retribuíam-lhe a saudação com enfática cortesia e extraordinário calor. Tratavam Joachim de “tenente”. Na sua ausência interrogavam Hans Castorp, e também das outras mesas acorriam pessoas para se informar. A Srª. Stöhr acudiu, torcendo as mãos e choramingando no seu jeito vulgar. Mas Hans Castorp limitava as suas respostas a monossílabos. Admitia a gravidade do caso, mas ao mesmo tempo negava-a até certo ponto. Agia assim por causa das aparências, sentindo no seu íntimo que não devia abandonar Joachim antes do tempo. Passeavam juntos; cobriam três vezes por dia a distância regulamentar, a que o conselheiro acabava de restringir Joachim rigorosamente, para evitar qualquer desgaste desnecessário de forças. Hans Castorp ia à esquerda do primo. Antes haviam caminhado assim ou também de outra maneira, conforme a ocasião. Mas agora, Hans Castorp mantinha de preferência a esquerda. Falavam pouco; proferiam as palavras que o dia normal do Berghof lhes punha na boca, e nada mais. Sobre o assunto que se erguia entre eles nada era preciso dizer, sobretudo entre pessoas de mentalidade reservada, que só em casos extremos se tratam pelo nome de batismo. Mesmo assim havia instantes em que o sentimento borbulhava e efervescia no peito civil de Hans Castorp a ponto de extravasar. Mas isso era impossível. O que se agitara dolorosa e violentamente acalmava-se, e ele permanecia calado. Joachim caminhava a seu lado, com a cabeça baixa. Tinha os olhos fixos no solo, como se contemplasse a terra. Era muito esquisito: ali andava ele, correto e asseado, saudando os transeuntes na sua maneira cavalheiresca, cuidava do seu exterior e da sua bienséancei como sempre – e, contudo, pertencia à terra. Bem, nós todos pertenceremos a ela, mais cedo ou mais tarde. Mas, quando se é tão jovem e tão cheio da boa e ardorosa vontade de servir sob a bandeira da pátria, é muito amargo pertencer a ela dentro de pouquíssimo tempo. E é ainda mais amargo e mais incompreensível para quem, como Hans Castorp, caminha a seu lado, sabendo de tudo aquilo, do que para o próprio homem destinado à terra, cuja sabedoria reticente e discreta tem, no fundo, natureza muito acadêmica, carece para ele de caráter realístico e interessa mais aos outros do que a ele mesmo. Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios. Quer a conheçamos, quer não, conserva pleno valor para a alma aquela sentença de um sábio espirituoso que reza: enquanto existimos, não existe a morte, e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte, nenhuma relação real, e ela é uma coisa que para nós absolutamente não tem interesse e que, quando muito, afeta ao mundo e à natureza; motivo por que todas as criaturas a contemplam com grande calma, com indiferença, com certa ingenuidade egoística, e sem assumir responsabilidades. Durante as semanas a que nos referimos, Hans Castorp encontrava na atitude de Joachim muito de ingênuo e de irresponsável, e compreendia que o primo, embora sabendo de tudo, não tivesse dificuldade em guardar um silêncio correto a respeito desse seu saber, porque as relações íntimas que o ligavam a ele eram apenas frouxas e teóricas, ou, na medida em que requeriam consideração prática, estavam sendo reguladas e determinadas por um sadio senso das conveniências, que não admitia a discussão dessa sabedoria, tanto como a de muitas outras independências funcionais, das quais a vida tem consciência, e que a condicionam, mas que não a impedem de guardar as aparências. Assim, passeavam e guardavam silêncio sobre os assuntos indecorosos da natureza. Também aquelas lamentações furiosas e exaltadas que Joachim no começo proferira, por ter de faltar às manobras e ao serviço militar em geral, haviam cedido ao mutismo. Mas, por que as substituía com tanta freqüência, e apesar de toda a referida ingenuidade, aquela expressão turva de pavor nos olhos meigos de Joachim, aquela insegurança que provavelmente decidiria a vitória da Superiora, se esta fizesse nova investida? Era porque sabia que tinha as órbitas cavas e as faces encovadas? Pois era esse o aspecto que seu rosto assumia quase a olhos vistos, no curso dessas semanas, e que piorara muito em comparação com aquele que tivera quando da sua volta da planície. Dia a dia, sua tez trigueira ia adquirindo uma aparência mais parecida com couro amarelo. Era como se tivesse razões de envergonhar-se e de desprezar-se a si próprio num ambiente que, em conformidade com a atitude do Sr. Albin, não tinha outras preocupações a não ser as de desfrutar as imensas vantagens oferecidas pela ignomínia. Diante de que e de quem se abaixava e fugia, então, o seu olhar outrora tão franco? Que coisa singular, esse pudor que a criatura sente em face da vida, e que a faz refugiar-se num esconderijo para morrer, convencida de que não pode esperar da natureza exterior nenhum respeito e nenhuma piedade para com o seu sofrimento e a sua agonia; e com razão, uma vez que até um bando de pássaros orgulhosos das suas asas não somente não costuma honrar o companheiro enfermo, mas até o maltrata com bicadas violentas e desdenhosas. Mas esse exemplo é tirado da natureza ordinária. O peito de Hans Castorp, porém, enchia-se de uma compaixão carinhosa e sumamente humana, quando notava nos olhos do pobre Joachim esse obscuro e instintivo pudor. Caminhava à esquerda do primo, fazia-o cada vez mais propositadamente, e como Joachim começasse a andar um tanto trôpego, apoiava-o desde que se tratasse de galgar uma pequena encosta coberta de capim. Então o cingia com o braço, e certa vez até lhe aconteceu esquecer de retirar a mão do ombro do primo, que sacudiu com alguma irritação, dizendo: – Escute, deixe disso! Parecemos uns bêbados quando andamos assim. Mas veio um momento em que a perturbação do olhar de Joachim se apresentou ao jovem Hans Castorp sob um outro aspecto ainda. Em princípios de novembro, quando a neve estava muito alta, Joachim recebeu ordem de meter-se na cama. Naquela época já se lhe tornara excessivamente difícil ingerir os picadinhos e os mingaus, porque se engasgava a cada instante. Parecia indicada uma alimentação exclusivamente líquida, e ao mesmo tempo Behrens prescreveu repouso ininterrupto na cama, para poupar as forças do doente. Foi, portanto, na véspera de Joachim acamar-se definitivamente, a última noite que passou de pé, que Hans Castorp o surpreendeu... o surpreendeu conversando com Marusja, aquela moça injustificadamente risonha, com o lencinho perfumado de flor de laranjeira e com os seios exteriormente formosos. Deu-se isso depois do jantar, durante a reunião noturna, no vestíbulo. Hans Castorp, que se demorara no salão de música, saiu para procurar Joachim e encontrou-o em frente à lareira revestida de azulejos, ao lado da cadeira de Marusja. Era uma cadeira de balanço, e com a mão esquerda sobre o espaldar, Joachim inclinava-a para trás, de maneira que Marusja se achava numa posição semideitada, erguendo os olhos redondos e castanhos para o rosto do jovem, que este aproximava do seu. Enquanto isso, falava ele em voz baixa e entrecortada, ao passo que ela às vezes dava de ombros, com um sorriso entre desdenhoso e emocionado. Hans Castorp afastou-se apressadamente, não sem ter notado que outros pensionistas observavam a cena divertidos, como era de esperar; Joachim, entretanto, não os percebia ou, pelo menos, não lhes prestava atenção. Esse espetáculo do primo abandonando-se sem a menor reserva a uma conversa com a Marusja dos seios opulentos, a cuja mesa estivera sentado tanto tempo sem nunca trocar com ela uma única palavra; diante de cuja pessoa e existência sempre baixara razoável e honestamente os olhos com expressão austera, embora empalidecesse e sua tez se tornasse terrosa, quando se falava dela – esse espetáculo comoveu Hans Castorp muito mais do que qualquer outro sinal de debilidade que nessas últimas semanas notara em seu primo. “Sim, ele está perdido!”, pensou, e sentou-se em silêncio numa das cadeiras do salão de música, a fim de deixar a Joachim o tempo necessário para o que ele se concedia, lá no vestíbulo, na derradeira noite de que dispunha. A partir de então Joachim tomou a posição horizontal, e Hans Castorp avisou Luise Ziemssen desse fato. Escreveu-lhe, na sua excelente espreguiçadeira, que havia uma coisa a acrescentar às notícias dadas anteriormente, a saber, que Joachim se achava acamado, e que o desejo de ver a mãe perto de si podia ler-se nos olhos dele, embora nada dissesse a esse respeito. O Dr. Behrens apoiava expressamente esse tácito desejo, segundo Hans Castorp comunicava de uma forma delicada, mas clara. Não era, portanto, de admirar que a Srª. Ziemssen recorresse aos meios mais rápidos de transporte para se unir ao filho. Três dias após a remessa da carta alarmante apesar dos termos carinhosos, já estava em Davos. Em meio a uma tempestade de neve, Hans Castorp foi de trenó à estação da “aldeia”, a fim de esperá-la. Na plataforma, enquanto o trenzinho entrava na estação, compôs o semblante, para que a mãe não se assustasse em excesso, mas também para que o seu primeiro olhar não descobrisse nele qualquer alegria falaz. Quantas vezes encontros desse caráter se haviam realizado nesse lugar, quantas vezes os que desciam do trem tinham examinado insistente e angustiadamente as feições de quem os recebia, enquanto um se lançava nos braços do outro! A Srª. Ziemssen dava a impressão de ter corrido a pé de Hamburgo a Davos. Com o rosto ardente, apertou contra o peito a mão de Hans Castorp. Olhou em torno como que amedrontada e cochichou apressadas perguntas, como se se tratasse de um segredo. Hans Castorp esquivou-se às respostas, agradecendo-lhe por ter vindo tão depressa. Ótimo! Como não estaria contente o Joachim! Bem, o primo, infelizmente, achavase acamado. Era porque só tomava alimentos líquidos, o que, naturalmente, não deixava de exercer influência sobre o estado de suas forças. Mas, para tais casos existiam certos recursos, como, por exemplo, a alimentação artificial. Ora, ela perceberia por si mesma... Percebeu, e a seu lado Hans Castorp percebeu também. Até esse instante não se dera conta, com tamanha clareza, das mudanças que se haviam produzido em Joachim. Gente moça não costuma observar essas coisas. Agora, porém, perto da mãe vinda de longe, contemplou-o, por assim dizer, com os olhos dela, como se não o visse desde muito tempo, e reconheceu com absoluta segurança o que ela, sem dúvida, reconhecia também, e que Joachim, decerto, sabia melhor do que ninguém, isto é, que o primo era um moribundo. O jovem oficial comprimia a mão da Srª. Ziemssen na sua, essa mão tão definhada e amarela como o seu rosto, no qual, justamente devido ao emagrecimento, as orelhas, aquela ligeira contrariedade dos seus anos felizes, haviam-se despegado mais intensamente do que outrora, desfigurando-o de modo lamentável. Mas, à parte esse defeito, e apesar dele, o semblante de Joachim parecia antes embelezado e mais viril pelo cunho do sofrimento e pela expressão grave, austera e mesmo orgulhosa, se bem que os lábios, encimados pelo bigodinho negro, fossem um tanto grossos em confronto com as sombras das faces encovadas. Dois sulcos se haviam aberto na pele amarelada da testa, entre os olhos. Estes, embora profundamente sumidos nas órbitas ossudas, eram maiores e mais belos do que nunca, e deliciavam Hans Castorp. Desde que Joachim se acamara, desaparecera deles o menor traço de perturbação, tristeza e insegurança. Unicamente aquela luz continuava perceptível no seu fundo calmo e escuro, e também aquele quê “ominoso”. Joachim não sorriu, ao estreitar a mão da mãe e ao dar-lhe, em voz baixa, as boas-vindas. Não sorria tampouco por ocasião da sua entrada, e essa impassibilidade, esse ar imutável da sua fisionomia revelavam tudo... Luise Ziemssen era uma mulher corajosa. Não se desfez em pranto à vista de seu valente filho. A rede quase invisível que lhe prendia os cabelos era um símbolo da sua atitude controlada e comedida. Com aquela fleuma e energia peculiares às pessoas da sua terra, tomou a si cuidar de Joachim, cujo aspecto precisamente lhe estimulava a combatividade materna e a enchia com uma fé em que, se ainda havia alguma possibilidade de salvação, esta só poderia proceder da sua força e vigilância. Decerto não foi para a sua própria comodidade, senão apenas por causa das aparências, que consentiu alguns dias após em contratar uma enfermeira para o filho gravemente enfermo. Foi a Irmã Berta, em realidade Alfreda Schildknecht, que surgiu, com sua maleta negra, à cabeceira do leito de Joachim. Mas, nem de dia nem de noite, a zelosa atividade da Srª. Ziemssen lhe deixava muito que fazer, de modo que Irmã Berta tinha tempo de sobra para deterse no corredor e para lançar olhares curiosos em todas as direções, com o cordão do pince-nez atrás da orelha. A diaconisa protestante era uma alma prosaica. A sós no quarto com Hans Castorp e com o doente, que absolutamente não dormia, mas jazia de costas, com os olhos abertos, foi capaz de dizer: – Eu nunca teria imaginado que um dia me chamariam para velar junto ao leito de morte de um dos senhores. Hans Castorp, horrorizado, ameaçou-a furiosamente com o punho cerrado. Mas ela mal compreendia por quê. Estava longe, e com razão, de pensar que talvez fosse conveniente poupar Joachim, e tinha um espírito por demais realista para supor que alguém, e muito menos o mais interessado, pudesse nutrir ilusões sobre o caráter e as perspectivas desse caso. – Tome – dizia ela, deitando água-de-colônia num lenço e aproximando-o do nariz de Joachim. – Goze mais um pouco da vida, tenente! – E de fato, a essa altura dos acontecimentos teria sido pouco razoável procurar enganar o bom Joachim, a não ser que fosse na intenção de exercer sobre ele uma influência tonificante; o que visava a Srª. Ziemssen, quando lhe falava da cura, em voz enfática e comovida. Pois duas coisas eram evidentes, e ninguém se podia equivocar a seu respeito: a primeira, que Joachim ia ao encontro da morte com plena consciência, e a segunda, que o fazia em paz e satisfeito consigo próprio. Somente na última semana, em fins de novembro, quando se manifestou o enfraquecimento do coração, abandonava-se, durante horas, ao esquecimento, deixando-se embalar por doces e vagas esperanças quanto ao seu estado. Falava então da iminência da sua volta ao regimento e da sua participação nas grandes manobras, que pensava ainda não terem terminado. Foi na mesma época que o Dr. Behrens desistiu de alentar as esperanças dos parentes e declarou que o passamento era questão de horas. É um fenômeno tão patético quanto formal essa auto-ilusão esquecidiça e crédula a que se entregam mesmo os espíritos viris numa fase em que, na realidade, o processo destruidor se aproxima do seu fim; é normal, impessoal e superior a toda e qualquer consciência, na mesma medida que a tentação de adormecer, que seduz os que estão a ponto de morrer congelados, ou a marcha circular de quem perdeu o caminho. Hans Castorp, a quem a mágoa e a dor do coração não impediam de encarar esse fenômeno de modo objetivo, associou a ele algumas observações mal formuladas, mas sutis, numa palestra com Naphta e Settembrini, na qual os informara sobre o estado de seu parente. E o humanista censurou-o por ter julgado errôneo o conceito comum, segundo o qual a fé filosófica e a confiança num exitus favorável eram expressão de boa saúde, ao passo que o pessimismo e a condenação do mundo constituíam sinais de morbidez; se fosse assim, não seria possível que a fase final, desesperadora, produzisse um otimismo de um cor-derosa tão sinistro, comparado com o qual a depressão precedente parecia revelar uma vitalidade sadia. Graças a Deus que ele podia comunicar aos amigos compassivos que Radamanto, no meio de toda essa desolação, não excluía a esperança, profetizando um exitus suave e, apesar da juventude de Joachim, livre de sofrimentos. – É o coração, uma história idílica, minha excelentíssima senhora – disse enquanto segurava a mão de Luise Ziemssen entre as suas manzorras do tamanho de uma pá, e fitou-a com os olhos azuis, saltados, lacrimosos e estriados de sangue. – Estou satisfeito, estou satisfeitíssimo de que o caso vá tomando um curso cordial, fazendo o rapaz escapar ao edema da glote e a outras infâmias. Dessa forma, poupam-se-lhe muitos tormentos. O coração decai rapidamente. É melhor assim para ele e para nós. Podemos cumprir o nosso dever e aplicar-lhe injeções de cânfora, sem o perigo de expô-lo a prolongadas complicações. Quando o fim se aproximar, ele dormirá muito e terá sonhos amenos. Acho que lhe posso prometer isso, e mesmo se não dormir nos últimos instantes, o trespasse será breve e imperceptível. Então tudo se tornará indiferente para ele. Disso a senhora pode ter certeza. Aliás, é sempre assim. Eu conheço a morte, sou um dos seus velhos empregados. Creia-me, em geral a gente a receia demais. Posso afirmar-lhe que é quase insignificante. Pois aquela trabalheira que às vezes a precede não pode ser considerada como parte dela; é o que há de mais vivo, e pode conduzir à vida e à saúde. Mas ninguém que voltasse da morte seria capaz de lhe contar coisas interessantes a seu respeito, uma vez que ela não se percebe. Saímos das trevas e entramos nas trevas. Entre elas há experiências, mas o começo e o fim, o nascimento e a morte não são coisas que notamos, não têm caráter subjetivo; como processos pertencem inteiramente à esfera do objetivo. Assim é a coisa... Era dessa maneira que o conselheiro consolava. Esperemos que tenha feito algum bem à sisuda Srª. Ziemssen. As profecias do médico realizaram-se quase por completo. Joachim, debilitado, dormia horas a fio durante esses últimos dias; era provável que também sonhasse com o que gostava de sonhar, isto é, assuntos da planície e da vida militar; quando acordava e lhe perguntavam como se achava, respondia sempre, embora indistintamente, que se sentia muito bem e feliz, apesar de ter o pulso quase imperceptível e não mais notar as picadas das agulhas de injeções. Seu corpo tornara-se insensível; poderiam beliscá-lo ou queimá-lo, sem que isso interessasse o honrado Joachim. Entretanto, passara por grandes mudanças, desde a chegada da mãe. Como lhe era muito incômodo barbear-se, não o fazia desde oito ou dez dias. Tinha a barba cerrada, e seu rosto amarelo como cera, com os olhos meigos, estava agora emoldurado por uma barba negra, espessa, de guerreiro, como aquelas que os soldados deixam crescer nas campanhas, e que, segundo a opinião de todos, tornava-o mais belo e mais viril. Sim, subitamente Joachim se transformara de um jovem num homem maduro, devido a essa barba, e não só devido a ela. Como um relógio cujo balancim está estragado, sua vida precipitava-se para a frente; a galope percorria as idades que não lhe fora dado alcançar no tempo real, e no curso das últimas vinte e quatro horas Joachim converteu-se em ancião. A debilidade do coração produziu-lhe no rosto certa turgidez, que lhe deu uma fisionomia cansada e causou a Hans Castorp a impressão de que a morte devia ser, pelo menos, um grande trabalho, posto que Joachim, graças aos desfalecimentos e às diminuições da sensibilidade, não parecesse notá-lo. Essa inchação afetava mais intensamente a parte dos lábios, e certa secura ou enervação do interior da boca tinha relação evidente com ela. O resultado era que Joachim balbuciava como um velho, e essa fraqueza irritava-o seriamente. Se ao menos se pudesse libertar dela – dizia tartamudeando –, tudo estaria bem; mas assim, era uma contrariedade terrível. O que queria dizer com esse “tudo estaria bem” não era muito claro. Cada vez mais nitidamente evidenciava-se a típica tendência para a ambigüidade que fazia com que várias vezes dissesse coisas equívocas. Parecia saber e não saber. Em certa ocasião manifestamente foi abalado pela sensação do iminente ocaso, de maneira que declarou, meneando a cabeça, com alguma contrição: – Nunca na vida me senti tão mal como hoje. Em seguida, tornou-se reservado, austero, retraído e mesmo descortês. Já não admitia ficções e paliativos. Deixava de corresponder a tentativas nesse sentido; olhava para a frente com ar abstrato. Rezou, assistido por um jovem pastor que Luise Ziemssen mandara chamar, e que, para grande pesar de Hans Castorp, não usava golilha engomada, senão apenas um simples colarinho. Foi sobretudo depois dessa visita que Joachim começou a assumir uma atitude oficial, de militar, expressando os seus desejos em forma de comandos lacônicos. Pelas seis da tarde entregou-se a uma atividade esquisita: com a mão direita, cujo pulso estava guarnecido de uma corrente de ouro, esfregou várias vezes a colcha, à altura dos quadris; a seguir, ao retirá-la, ergueu-a e fez um gesto de quem ajunta ou recolhe alguma coisa com um ancinho. Às sete horas morreu... Alfreda Schildknecht encontrava-se no corredor; somente a mãe e o primo estavam presentes. Joachim resvalara do travesseiro e ordenara brevemente que o apoiassem. Enquanto a Srª. Ziemssen lhe enlaçava os ombros com um dos braços, para executar essa ordem, o enfermo mencionou com certa pressa que devia imediatamente redigir e despachar um requerimento, solicitando a prorrogação da sua licença. No meio dessas palavras realizou-se o “trespasse imperceptível”, observado com reverência por Hans Castorp, à luz que se coava pelo quebra-luz vermelho da lâmpada de cabeceira. Vidraram-se os olhos de Joachim; desapareceu a inconsciente tensão do rosto; sumiu a olhos vistos a turgidez esforçada dos lábios, e a beleza viril da primeira mocidade tornou a estender-se por sobre o semblante mudo. Estava tudo acabado... Como Luise Ziemssen virasse a cabeça, soluçando, foi Hans Castorp quem, com a ponta do dedo anular, cerrou as pálpebras do corpo imóvel e inanimado. Também lhe juntou suavemente as mãos sobre a colcha. Em seguida se ergueu e chorou, deixando correr sobre as faces lágrimas como aquelas que tanto haviam ardido no rosto do oficial da marinha inglesa; esse líquido claro, que jorra neste mundo a toda hora e em toda parte, com tanta abundância e com tanta amargura que os poetas deram o seu nome ao “vale” terreno; esse produto alcalino e salgado das glândulas que o abalo dos nervos, causado por uma dor penetrante, arranca ao nosso corpo, e que, como Hans Castorp sabia, continha além disso traços de mucina e de albumina. Chegou o conselheiro, avisado pela Irmã Berta. Meia hora antes ainda estivera no quarto, para dar no moribundo uma injeção de cânfora. Apenas lhe escapara o instante do “trespasse imperceptível”. – Pois é, para este já terminou tudo – disse simplesmente, enquanto se levantava, afastando o estetoscópio do peito silenciado de Joachim. E com um aceno de cabeça, apertou as mãos dos dois parentes. Depois deteve-se ainda alguns momentos com eles à frente da cama, contemplando o rosto petrificado de Joachim, com a barba de guerreiro. – Que sujeito incrível, este rapaz! – prosseguiu falando por cima do ombro, apontando com a cabeça para aquele que ali descansava. – Quis forçar a natureza; sabem? Claro, aquele serviço lá embaixo só constava de coação e de violência. Apesar da febre, ele cumpriu o seu dever, a todo transe. É o campo de honra, compreendem? Fugiu para o campo de honra, esse desertor! Mas, no seu caso, a honra significava a morte, e a morte... Bem, pode-se inverter a frase, à vontade. Seja como for, ele nos disse: “Tenho a honra de me despedir”. Incrível, esse rapaz! – E foi-se, alto, encurvado, com a nuca saliente. Era coisa decidida que o corpo de Joachim seria transportado para o seu torrão natal, e o Sanatório Berghof encarregava-se de tudo o que era necessário, e que a dignidade da situação exigia. A mãe e o primo não precisavam mover uma palha. No dia seguinte, Joachim, deitado com uma camisa de seda, sob a colcha adornada de flores, rodeado de uma luminosidade baça e nívea, parecia ainda mais belo do que logo após o trespasse. O menor vestígio de cansaço sumira do seu rosto. Ao esfriar, este adquirira uma forma silenciosa e pura. Mechas crespas de cabelo escuro caíam-lhe sobre a testa imóvel, macilenta, e que parecia plasmada de matéria nobre, mas delicada, misto de mármore e cera. Na barba igualmente encrespada ressaltavam os lábios cheios e altivos. Um capacete antigo assentaria bem a essa cabeça, segundo achavam alguns dentre os visitantes presentes na hora da despedida. A Srª. Stöhr chorava entusiasticamente ao ver a forma que assumira aquele que fora Joachim. – Um herói! Um herói! – exclamava repetidas vezes, e fazia questão que no enterro se tocasse a “Erótica” de Beethoven. – Cale-se, finalmente! – sibilou Settembrini a seu lado. Entrara no quarto ao mesmo tempo que ela, acompanhado de Naphta. Estava sinceramente comovido. Com ambas as mãos designava Joachim aos presentes, exortando-os a partilharem a sua tristeza. – Un giovanotto tanto simpatico, tanto stimabile! – clamava uma e outra vez. Embora conservando a sua atitude recolhida, e sem olhar o italiano, Naphta não se pôde abster de observar mordazmente, em voz baixa: – Folgo em ver que o senhor não só se preocupa com a liberdade e o progresso, mas também tem o senso das coisas sérias... Settembrini engoliu a pílula. Talvez se apercebesse de que as circunstâncias davam temporariamente a Naphta uma posição superior à sua; talvez fosse essa supremacia provisória do adversário o que ele procurava contrabalançar pela intensidade do seu luto, e o que agora o fazia guardar silêncio mesmo quando Naphta, abusando das vantagens transitórias que lhe oferecia a situação, acrescentou em tom cortante e sentencioso: – O erro dos literatos consiste na crença de que somente o espírito torna as pessoas decentes. O que se dá em realidade é antes o contrário. Somente onde falta o espírito existe decência. “Hum!”, pensou Hans Castorp. “Aí temos mais um desses oráculos píticos. Basta pronunciá-lo e cerrar os lábios em seguida, para intimidar os outros por algum tempo...” Pela tarde chegou o ataúde de metal. Ao mesmo tempo veio um homem que deu a entender que cabia exclusivamente a ele transferir Joachim para esse suntuoso receptáculo enfeitado de alças e de cabeças de leões. Era funcionário da empresa funerária e trajava uma espécie de sobrecasaca preta e curta. Na sua mão plebéia exibia uma aliança encravada na carne exuberante do dedo, que cobria quase por completo. Tinha-se a impressão de que dos seus trajes se desprendia um cheiro cadavérico, o que não passava de uma opinião preconcebida. Mas esse homem manifestava aquela pretensão peculiar aos especialistas, os quais pensam que todo o seu trabalho se deve realizar atrás de cortinas e que não convém expor aos olhares dos sobreviventes senão os resultados piedosos e edificantes do seu esforço. Justamente essa sugestão despertou, entretanto, a desconfiança de Hans Castorp, que não concordava com ela. Consentiu em que a Srª. Ziemssen se retirasse, mas não admitiu que ele mesmo fosse mandado embora. Permaneceu no quarto e colaborou ativamente. Pegou o corpo pelas espáduas e ajudou a carregá-lo da cama até o caixão. Depositaram então os restos mortais de Joachim sobre a mortalha e uma almofada guarnecida de borlas, onde repousaram altos e solenes, entre os castiçais emprestados pelo Sanatório Berghof. No dia seguinte, porém, patenteou-se um fenômeno que determinou Hans Castorp a se distanciar e libertar intimamente dessa forma morta e a abandonar em definitivo o campo ao profissional, esse guardião antipático da piedade. Joachim, cuja expressão antes fora grave e pudica, acabava de esboçar um sorriso no meio da barba de guerreiro, e Hans Castorp não se iludia quanto ao fato de que esse sorriso encerrava o germe da degeneração. Essa percepção fez com que o seu coração sentisse a urgência do caso. Ainda bem que estava iminente a hora em que iriam buscar o féretro, que logo seria fechado e parafusado. Vencendo os seus inatos hábitos reservados, Hans Castorp roçou delicadamente com os lábios a testa gelada daquele que outrora tinha sido Joachim, e não obstante a sua desconfiança contra o homem sinistro, saiu obedientemente do quarto, em companhia de Luise Ziemssen. Deixemos cair o pano, pela penúltima vez. Mas enquanto ele desce ruidosamente, mantenhamo-nos em espírito ao lado de Hans Castorp, que continua na sua montanha; olhemos com ele ao longe e agucemos os ouvidos; depararemos então com um campo-santo úmido, lá na planície, onde resplandece e se abaixa uma espada, ressoam vozes de comando e estrondeiam três salvas de fuzil, saudações fanáticas, ecoando sobre o túmulo do soldado Joachim Ziemssen, túmulo que as raízes das plantas acabam de invadir... CAPITULO VII Passeio pela praia Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola. Uma história que rezasse: “O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu curso” e assim por diante – nenhum homem de espírito são poderia considerá-la história. Seria como se alguém tivesse a idéia maluca de manter durante uma hora um mesmo tom ou acorde e afirmasse ser isso música. Pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo; “enchem-no de uma forma decente”, “assinalam-no” e fazem com que ele “tenha algum valor próprio” e que “nele aconteça alguma coisa”, para citarmos, com a melancólica piedade que se costuma devotar aos ditos dos defuntos, algumas. observações ocasionais do saudoso Joachim, palavras essas que há muito se perderam no espaço; nem sabemos se o leitor é capaz de dizer claramente quanto tempo se passou desde que foram pronunciadas. O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. Nesse ponto, como já mencionamos, assemelha-se à narrativa e difere da obra de arte plástica que surge diante de nós de uma vez, em todo o seu esplendor, e não se acha relacionada com o tempo senão à maneira de todos os corpos. A narrativa, porém, não se pode apresentar senão sob a forma de uma seqüência de fatos, como algo que se desenvolve, e necessita intimamente do tempo, mesmo que deseje estar toda presente a cada instante que transcorre. Isso é evidente. Mas é igualmente óbvio que há uma diferença entre a narrativa e a música. Nesta, o elemento do tempo é um só: um setor do tempo humano e terrestre que ela inunda para exaltá-lo e enobrecê-lo de modo indizível. A narrativa, porém, tem dois tipos de tempo: em primeiro lugar, o seu tempo próprio, o tempo efetivo, igual ao da música, o tempo que lhe determina o curso e a existência; e em segundo, o tempo do seu conteúdo, que é apresentado sob uma determinada perspectiva, e isso de forma tão variável que o tempo imaginário da narração tanto pode coincidir quase por completo, e mesmo inteiramente, com seu tempo musical, quanto dele diferir infinitamente. Uma peça de música, denominada Valsa dos cinco minutos, dura cinco minutos; nisso, e em nada mais, consiste a sua relação com o tempo. Uma história, entretanto, cujo conteúdo abrangesse um lapso de cinco minutos poderia ter duração mil vezes maior, devido à extrema meticulosidade empregada na descrição desses cinco minutos e todavia parecer bem curta, embora fosse bastante longa em proporção a seu tempo imaginário. Por outro lado é possível que o tempo do conteúdo da história ultrapasse enormemente a duração da narrativa, em virtude de um processo de “redução”. Servimo-nos desse termo para assinalar um elemento ilusório, ou, para falar com maior clareza, um elemento mórbido que se manifesta nesse caso. A narrativa usa então um feitiço hermético, uma perspectiva exagerada, quanto ao tempo, e isso nos chama à memória certos fatos anormais da experiência real, que evidentemente entram no campo transcendental. Existem diários de fumadores de ópio, relatando que a pessoa entorpecida passou, durante o breve período da embriaguez, por sonhos cuja extensão no tempo abrangia dez, trinta e até sessenta anos e mesmo transpunha os limites traçados à experiência humana, no que se refere à exploração do tempo. Trata-se, pois, de sonhos cuja duração imaginária excede consideravelmente a real, e nos quais se efetua uma redução incrível da experiência do tempo, que faz com que as imagens se precipitem com tamanha velocidade que se poderia crer, segundo a expressão de um consumidor de haxixe, que do cérebro do ébrio “houvesse sido tirada uma peça parecida com o balancim de um relógio”. É de modo congênere ao desses sonhos oriundos do vício que a narrativa pode proceder para com o tempo; é dessa forma que ele pode ser tratado numa história. Mas, uma vez que é possível “tratá-lo”, é lógico que o tempo, além de ser o elemento da narrativa, também pode tornar-se o seu assunto. Embora seja exagero afirmar que se pode “narrar o tempo”, não constitui certamente empresa tão absurda, como nos parecia de início, a de querer narrar coisas do tempo. Destarte poderíamos atribuir uma singular ambigüidade de sonho ao conceito de um “romance do tempo”. Com efeito, ventilamos os problemas de saber se é possível ou não narrar o tempo exclusivamente para confessar que, na presente história, temos coisa semelhante em mente. E se ainda, de passagem, pusemos em dúvida que os leitores agrupados em torno de nós fossem capazes de dizer claramente quanto tempo decorreu desde o momento em que o honrado e já falecido Joachim intercalou na palestra aquela observação acerca da música e do tempo – observação que demonstra certa sublimação alquimística da sua natureza, que normalmente não se inclinava para esse tipo de pensamentos –, não nos mostraríamos nem um pouco contrariados ao inteirar-nos de que, de fato, reina confusão a esse respeito; ao invés de contrariados, estaríamos até satisfeitos, pela simples razão de termos um interesse natural em que todos participem das experiências do nosso herói, Hans Castorp, o qual, de há muito, deixou de estar seguro sobre a questão em apreço. Isso faz parte do seu romance, que é um romance do tempo, tanto num como noutro sentido. Afinal, quanto tempo passara Joachim ali em cima, ao lado de Hans Castorp, até a sua partida “em falso”, e quanto ao todo? Em que época do calendário se realizara aquela primeira partida arbitrária? Por quanto tempo estivera ausente? Quando voltara? E havia quanto tempo se achava o próprio Hans Castorp em Davos, na data do regresso do primo, e naquela outra, posterior, em que este se despediu do tempo? Por quanto tempo, para deixarmos Joachim de lado, ausentara-se Mme. Chauchat? E desde quando, ou pelo menos desde que ano, estava ela de volta (pois que estava mesmo de volta), e quanto tempo decorrera entre o dia do seu regresso e aquele da chegada de Hans Castorp ao Berghof? Se alguém fizesse todas essas perguntas a Hans Castorp – o que em realidade ninguém fazia, nem sequer ele próprio, provavelmente por ter receio de tais indagações –, o jovem teria tamborilado com os dedos na fronte, sem saber dar uma resposta precisa; fenômeno não menos inquietante do que aquela passageira incapacidade de dizer a sua idade ao Sr. Settembrini, logo na primeira noite da sua estadia ali. E desde então essa falta de memória até se havia agravado, uma vez que Hans Castorp já ignorava séria e constantemente quantos anos tinha. Isso talvez pareça fantástico, mas está longe de ser surpreendente ou inverossímil porque, sob determinadas condições, pode acontecer a cada um de nós a qualquer instante; supostas tais condições, nada nos resguardaria de mergulharmos na mais profunda ignorância quanto ao curso do tempo, e de perdermos, por conseguinte, a noção da nossa idade. Esse fenômeno é possível, já que não temos no nosso interior um órgão para perceber o tempo, o que nos torna incapazes de avaliá-lo, em termos absolutos, pelas nossas próprias forças e sem nos basear em indícios exteriores. Alguns mineiros soterrados e impossibilitados de observar a sucessão de dias e noites calcularam, quando salvos, fosse de três dias o tempo que haviam passado nas trevas, entre a esperança e o desespero. Na realidade se haviam escoado dez dias. Seria natural se, nessa situação angustiosa, o tempo se lhes houvesse afigurado longo. No entanto, se reduzira para eles a menos de um-terço da sua duração objetiva. Parece, portanto, que sob condições desconcertantes a impotência humana tende antes a subestimar do que a exagerar o tempo por que acaba de passar. Certo, ninguém põe em dúvida que Hans Castorp, querendo, teria podido sem grandes dificuldades escapar dessa incerteza e ganhar clareza por meio de um cômputo; da mesma forma como o leitor o poderia fazer sem nenhum trabalho, se, porventura, a confusão e o vazio repugnassem ao seu espírito sadio. No que toca a Hans Castorp, talvez não se sentisse muito à vontade na sua ignorância, mas tampouco se animava a fazer um esforço para livrar-se daquele vazio e daquela confusão, e para conhecer a idade que alcançara ali em cima. O que o impedia era um receio arraigado na sua consciência, apesar de ser a mais crassa falta de consciência o não se preocupar com o tempo. Não sabemos se convém alegar a seu favor que as circunstâncias fomentavam bastante a sua falta de boa vontade, para não o acusar de aberta má vontade. Quando voltou Mme. Chauchat – de modo bem diferente do que imaginara Hans Castorp, mas disso trataremos noutra parte –, estava-se novamente na época do Advento, e o dia mais curto do ano, o princípio do inverno, astronomicamente falando, achava-se iminente. Em realidade, porém, não se levando em conta tais subdivisões teóricas e considerando-se o frio e a neve reinantes, era inverno sabe Deus desde quando, e este inverno não fora interrompido senão passageiramente por abrasadores dias de verão, com um azul celeste de uma intensidade tão exagerada que tocava as raias do preto, dias estivais, portanto, como também costumavam ocorrer no inverno, abstração feita da neve, que por sua vez caía em todos os meses de verão. Quantas vezes não conversara Hans Castorp com o malogrado Joachim sobre essa grande confusão, que misturava e embrulhava as estações, que privava o ano das suas cisões naturais e destarte o fazia decorrer rápida mas tediosamente, ou também devagar, mas de modo divertido, de maneira que no fundo nem se podia falar de tempo, conforme observara Joachim com desgosto numa ocasião muito remota. O que realmente se misturava e se baralhava em virtude dessa grande confusão eram certos conceitos emocionais ou estados de consciência, como os do “ainda” e do “de novo”. Achamo-nos diante de uma experiência das mais perturbadoras, complexas e mágicas que se podem imaginar, experiência para cujo gozo Hans Castorp, logo no primeiro dia da sua estadia ali em cima, mostrara inclinação imoral. Fora em face das cinco refeições fartas em excesso, na sala alegremente colorida, que pela primeira vez, sentira vertigem desse gênero, inofensiva em comparação com as posteriores. Desde então, essa ilusão dos sentidos e do espírito assumira proporções muito mais vastas. O tempo, por mais enfraquecida ou aniquilada que esteja a sensação subjetiva que se tem a seu respeito, possui uma realidade objetiva, enquanto age, enquanto “traz consigo”. É um problema que compete a pensadores profissionais, embora Hans Castorp, em certa ocasião, o tivesse atacado, impelido por uma presunção juvenil, o problema de saber se a conserva hermeticamente fechada e posta na prateleira se acha ou não fora do tempo. Mas sabemos que o tempo age até mesmo sobre os hibernantes. Um médico relata o caso de uma menina de doze anos que um belo dia adormeceu e prosseguiu dormindo treze anos; mas ao despertar já não era criança, senão mulher feita. Nem poderia ser de outra forma. O morto está morto; entrou no eterno descanso; tem muito tempo, quer dizer, o tempo não existe, quanto à sua pessoa. Isso todavia não impede que suas unhas e seus cabelos continuem a crescer, e que em suma... Mas não queremos recordar a locução um tanto rude que Joachim usou certa vez, falando desse assunto, e com a qual Hans Castorp então se escandalizou à maneira dos habitantes da planície. Também a ele, Hans Castorp, lhe cresciam as unhas e os cabelos; cresciam depressa, como parecia, pois seguidamente se encontrava envolto num pano branco, na cadeira da barbearia na rua principal da “aldeia”, para que lhe cortassem o cabelo, que mais uma vez acabava de formar franjas ao redor das orelhas. Na verdade, sempre se achava ali, ou melhor, quando estava sentado ali e conversava com o barbeiro hábil e obsequioso, que se desincumbia da sua tarefa, depois de o tempo se ter desincumbido da sua, ou também quando se quedava junto à porta da sacada, a fim de encurtar as unhas mediante a tesourinha e a lima, tiradas de um belo estojo forrado de veludo – nessas ocasiões experimentava uma espécie de susto mesclado com curioso prazer, e de súbito sentia-se tomado daquela vertigem que já mencionamos; essa vertigem que o tornava inseguro física e psiquicamente, causando um remoinho no meio do qual Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” isento de tempo. Temos afirmado freqüentemente que não tencionamos apresentar o nosso herói nem melhor nem pior do que era, e por isso não queremos deixar de contar que muitas vezes se empenhava em compensar a complacência censurável em face dessas tentações místicas, provocadas por ele consciente e propositadamente, com esforços em sentido contrário. Era capaz de ficar sentado com o relógio na mão – o relógio de algibeira, chato, liso e de ouro fino, cuja tampa com o monograma gravado estava aberta. Contemplava então o mostrador redondo, de porcelana, rodeado por uma dupla fileira de cifras árabes, pretas e vermelhas, e em cima do qual os dois ponteiros de ouro, enfeitados de suntuosos arabescos, apontavam em diferentes direções, enquanto o delgado ponteiro dos segundos, tiquetaqueando, dava pressurosas voltas à sua areazinha especial. Hans Castorp fixava-o, como para deter e esticar alguns minutos, na intenção de agarrar o tempo pela cauda. A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com as cifras que alcançava, percorria, ultrapassava, deixava longe atrás, voltava a demandar e alcançava de novo. Era insensível a objetivos, divisões e marcos. Deveria demorar-se por um instante no 60 ou pelo menos dar um pequeno sinal de que alguma coisa terminava ali. Mas, pelo jeito como passava por cima desse ponto assim como por qualquer outra risca não marcada, reconhecia-se que toda essa marcação e subdivisão do seu caminho era apenas acessória, e que o ponteiro se limitava a caminhar, a caminhar para a frente... Diante dessa percepção, Hans Castorp tornava a abrigar o relógio no bolsinho do colete e abandonava o tempo à sua própria sorte. Como tornar plausíveis aos honrados cidadãos dos países planos as transformações que se efetuavam na economia íntima do nosso jovem aventuroso? A escala dessas identidades perturbadoras ia crescendo. Desde que, para uma pessoa não muito concentrada, era difícil distinguir o “agora” de hoje do de ontem, de anteontem, de três dias atrás, o presente já se mostrava inclinado e capaz de se confundir com aquele presente que existira havia um mês ou um ano, e de unir-se com ele para formar o “sempre”. Mas, ainda que se mantivesse a distinção entre os casos de consciência moral, que se chamam “ainda”, “de novo”, “no futuro”, poderíamos sentir-nos tentados a ampliar o alcance das denominações relativas, com que o “hoje” se isola do passado e do porvir, as denominações de “ontem” e de “amanhã”, e a aplicálas a períodos mais longos. Seria fácil imaginar seres – os habitantes de um planeta menor que o nosso, por exemplo – que lidassem com um tempo em miniatura, e para cuja vida “curta” os saltinhos velozes do nosso ponteiro dos segundos representassem o mesmo que para nós a progressão lenta e tenaz do ponteiro das horas. Mas também seria possível idear criaturas a cujo espaço correspondesse um tempo que avançasse tão majestosamente que os conceitos de “há um instante”, de “em breve”, de “ontem” e de “amanhã”, adquirissem, para a sua experiência, um significado muito mais amplo. Segundo a nossa opinião, isso não somente seria admissível, senão até legítimo, sadio e respeitável, quando o julgássemos sob o ponto de vista de um relativismo indulgente e em conformidade com o provérbio: “Cada terra com seu uso”. Que, porém, pensar de um filho desta nossa terra – e ainda de um para cuja idade um dia, uma semana, um mês, um semestre deveriam ter suma importância, uma vez que acarretam muitas modificações e grandes progressos para a sua vida –, que pensar, pois, se esse moço um dia adquirisse o hábito vicioso, ou pelo menos cedesse às vezes ao prazer de dizer “ontem” ou “amanhã”, em lugar de “faz um ano” ou “no ano que vem”? Não há dúvida de que nos acharíamos diante de um caso de anomalia e de perturbação, que justificaria o mais vivo desassossego. Há neste mundo uma situação, há certos fatores cênicos – se é que se pode falar de “cenário” no caso que temos em vista – que fazem com que a confusão e a mistura das distâncias do tempo e do espaço, que vão a ponto de criar uma uniformidade vertiginosa, se produzam de forma natural e lógica, de maneira que, pelo menos para um período de férias, parece tolerável o abandono ao seu enleio mágico. Pensamos em passeios à beira-mar – ocupação da qual Hans Castorp nunca deixava de lembrar-se com a maior simpatia – e já sabemos que a vida na neve lhe recordava de modo ameno e grato as dunas do seu torrão natal. Esperamos que a experiência e a memória dos nossos leitores também não falhem, quando nos referimos a esse isolamento maravilhoso. As pessoas caminham, caminham... e de uma excursão dessas nunca voltarão a tempo, já que se desgarraram do tempo e este se desgarrou delas. Ó mar, nós que contamos esta história achamo-nos longe de ti, mas te devotamos os nossos pensamentos e a nossa afeição. Expressamente e em voz alta te dirigimos a nossa invocação, para que estejas presente no nosso livro como sempre tens estado e como continuarás eternamente... Ó deserto marulhante, sob a cúpula de um pálido céu cinza, ó ermo impregnado de acre umidade cujo sabor perdura em nossos lábios! Caminhamos, caminhamos sobre o solo levemente elástico, salpicado de sargaço e de pequenas conchas. O vento nos envolve os ouvidos, esse vento imenso, vasto, brando, que livremente, sem freio nem maldade, atravessa o espaço e produz no nosso cérebro um ligeiro atordoamento. Marchamos, marchamos, e vemos os nossos pés lambidos pelas línguas espumantes do mar, que é impelido para a frente e, fervilhando, torna a recuar. Agita-se a rebentação. Vaga após vaga, com um murmúrio agudo e surdo, choca-se com a terra, antes de deslizar, sedosa, pela praia rasa. Aqui se dá o mesmo que ali e que nos bancos de areia, lá fora, e esse rumor confuso, generalizado, do suave marulho, sobrepuja, em nossos ouvidos, todas as demais vozes do mundo. Bastamo-nos a nós mesmos e de propósito olvidamos o resto... Ah, cerremos os olhos, abrigados na eternidade! Não! Olha ali! Naquela vastidão glauca, espumante, que, com enormes escorços, se perde no horizonte, surge uma vela. Ali? Que significa esse “ali”? Quão longe? Quão perto? Não sabes dizer. De modo vertiginoso, isso se subtrai à tua avaliação. Para computar a distância que separa esse navio da praia, deverias saber qual o seu tamanho. Pequeno e próximo? Grande e longínquo? Tua vista turva-se em dúvida, pois nenhum dos órgãos e dos sentidos que possuis te informa sobre o espaço... Caminhamos, caminhamos... Desde quando? Até onde? Tudo incerto. Nada se modifica, por mais que avancemos. O “ali” é igual ao “aqui”, o passado é idêntico ao presente e ao futuro. Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece, já não existe o tempo. Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade? Seja como for, repetimos que aqui se falou de liberdades tais como a gente se permite nas férias, de fantasias inspiradas pelo ócio da vida, e das quais o espírito decente se farta tão depressa como um homem forte, do repouso na areia cálida. Criticar os meios e as formas do conhecimento humano, pôr em dúvida a sua validade objetiva, seria absurdo, desprezível e hostil, se tal atitude se baseasse numa outra intenção além da de designar à nossa razão limites que ela não pode transpor sem incorrer em negligência para com suas próprias funções. Devemos a nossa gratidão a um homem como o Sr. Settembrini, por ter tachado a metafísica de o “mal”, ao instruir com a intransigência de um pedagogo o jovem cujo destino nos preocupa, e que ele mesmo, em certa ocasião, qualificara acertadamente de “filho enfermiço da vida”. E a melhor maneira de honrarmos a memória de determinada pessoa a quem queremos muito é declarar que o sentido, o objetivo, o fim do princípio crítico não devem nem podem ser outros senão a idéia do dever e a lei da vida. Sim, a sabedoria do legislador, traçando criticamente os limites da razão, içou, nesses mesmos limites, a bandeira da vida e proclamou como um dever militar do homem servir sob essa bandeira. Será que devemos levar a crédito de Hans Castorp e considerar como circunstância atenuante ter ele sido confirmado na sua viciosa administração do tempo e no seu perigoso namoro com a eternidade, por ver que aquilo que certo palrador melancólico chamara de “excesso de entusiasmo” apenas conduzira o seu primo guerreiro ao exitus letalis? Mynheer Peeperkorn Mynheer Peeperkorn, um holandês de certa idade, esteve durante algum tempo hospedado no Sanatório Berghof, que com muita razão usava no seu prospecto o epíteto “internacional”. Pieter Peeperkorn – era este o seu nome, e assim falava de si próprio dizendo, por exemplo: “E agora Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha” – era um holandês colonial, nascido em Java, um plantador de café. Sua nacionalidade um tanto desbotada mal bastaria por si só para nos decidir a introduzi-lo à última hora na nossa história. Pois, meu Deus, quanta variedade de cores e matizes não existia na sociedade do renomado instituto que o Conselheiro Dr. Behrens, com sua facúncia poliglota, dirigia como médico! Recentemente chegara até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao conselheiro aquele notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma esfinge; era uma personagem sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e, exceção feita às refeições principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava paletó e calças bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus favores mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia rumena, que se chamava simplesmente Landauer; isso embora o Promotor Paravant tivesse abandonado as matemáticas, para dedicar-se a Sua Alteza, e se conduzisse feito um idiota de tanto amor. Mas, como se a presença da princesa não fosse suficiente, achava-se no seu séquito um eunuco negro, homem doente e débil, que, não obstante seu defeito básico, do qual Karoline Stöhr gostava de zombar, parecia amar a vida mais do que ninguém e se mostrava inconsolável em face da imagem que a radiografia exibia do seu interior, depois de ter lançado luz sobre a sua negrura... Comparado com tais figuras, Mynheer Peeperkorn poderia aparecer como que desprovido de cores. E posto que essa parte da nossa narração pudesse, tal e qual outra, anterior, ser intitulada “Mais alguém”, não há motivos para recear que entre em cena uma nova fonte de perturbações espirituais e pedagógicas. Não, Mynheer Peeperkorn absolutamente não era talhado para criar no mundo confusões lógicas. Como veremos, era homem muito diferente. Que, apesar disso, a sua pessoa tenha perturbado gravemente o nosso herói, explica-se pelo que se segue. Mynheer Peeperkorn chegou à estação da “aldeia” no mesmo trem noturno que trouxe Mme. Chauchat, e dirigiu-se no mesmo trenó que ela ao Sanatório Berghof, em cujo restaurante jantaram juntos. Tratava-se, em suma, não somente de uma chegada simultânea, mas também de uma chegada em comum, e esse caráter comum, que continuava manifestando-se, por exemplo, no fato de Mynheer receber um lugar à mesa dos “russos distintos”, ao lado da recém-vinda, em frente ao lugar do médico, ali onde outrora o Professor Popov se conduzira daquele modo desenfreado e equívoco – esse caráter comum deixava perplexo o bom Hans Castorp, que não previra pudessem os acontecimentos tomar esse rumo. O conselheiro anunciara-lhe à sua maneira o dia e a hora do regresso de Clávdia: – Pois então, Castorp, meu velho, a fidelidade na espera será recompensada. Depois de amanhã, à noite, a gatinha estará de volta. Recebi um telegrama. – Mas nas suas palavras nada transparecera de que Mme. Chauchat não chegaria sozinha, talvez porque o próprio Behrens ignorasse que ela e Peeperkorn viriam juntos e formavam um par. Pelo menos fingiu-se surpreendido, quando Hans Castorp, no dia seguinte à chegada em comum, pediu-lhe, por assim dizer, satisfações. – Eu também não sei dizer onde ela arranjou este – declarou. – Devem ter-se conhecido na viagem, lá nos Pireneus, suponho eu. Pois é, meu pobre e desiludido Celadon, por enquanto o senhor terá de se conformar com ele. Não há remédio. São amicíssimos; compreende? Parece que até existe comunhão de bens. O homem é imensamente rico, segundo ouvi dizer. Um rei do café, aposentado, sabe? Tem criado malaio. Estilo de vida opulento. Não veio, aliás, para se divertir. Além de um forte catarro com base alcoólica, sofre evidentemente de uma febre maligna que contraiu nos trópicos. Uma febre intermitente, compreende? Doença mal tratada e pertinaz. É necessário que o senhor se arme de paciência. – Pois não – disse Hans Castorp, condescendentemente. “E tu?”, acrescentou de si para si. “Como te sentes? Afinal de contas não estás completamente desinteressado. Se não me engano muito, houve lá qualquer coisa no passado, com um viúvo de faces azuladas, que sabia pintar convincentemente a óleo. Acho que tuas palavras revelam certa alegria maliciosa, e contudo somos, em certo sentido, companheiros de infortúnio no que se refere a Peeperkorn.” – Um tipo curioso e decididamente uma personalidade original – prosseguiu em voz alta, com um gesto displicente. – É robusto e delicado, eis a impressão que se tem dele, ou pelo menos a que eu tive hoje, quando tomamos o café da manhã. Robusto e ao mesmo tempo delicado. São esses os adjetivos que o caracterizam, segundo a minha opinião, se bem que normalmente sejam considerados contraditórios. Ele é alto e espadaúdo, isso sim, e gosta de ficar de pé, com as pernas abertas e as mãos enterradas nos bolsos da calça, que são verticais... Achei necessário mencionar que nas calças dele os bolsos afundam verticalmente e não se encontram aos lados, como nas minhas, nas do senhor e nas da maioria das pessoas pertencentes às classes superiores da sociedade... E quando ele se mantém nessa posição e fala guturalmente, à maneira dos holandeses, não há como negar que tem aspecto robusto. Mas seu cavanhaque é ralo; embora comprido, é tão ralo que bem se poderia contar-lhe os fios. Também os olhos são pequenos, apagados e quase sem cor. Que se pode fazer? Não lhe adianta arregalá-los constantemente; com isso só cria rugas pronunciadas na testa, que lhe sobem pelas têmporas e atravessam em sentido horizontal a fronte, essa fronte alta e vermelha, emoldurada por cabelos brancos, que são igualmente compridos e ralos. Mesmo que os arregale assim, os olhos continuam pequenos e apagados. E o colete de peito alto lhe imprime um cunho de clérigo, apesar da sobrecasaca xadrez. Bem, é essa a impressão que tive hoje de manha. – Estou vendo que o senhor o examinou atentamente – respondeu Behrens. – Estudou o homem em todas as suas particularidades, o que me parece muito acertado, uma vez que o senhor terá de habituar-se à sua existência. – Pois é, devemos habituar-nos – disse Hans Castorp. Deixamos a seu cargo a descrição aproximada da figura do novo e inesperado hóspede, e ele não se desincumbiu mal da sua tarefa. Nós mesmos, provavelmente, não teríamos obtido melhor resultado. Verdade é que seu posto de observação era sumamente favorável. Como sabemos, Hans Castorp avizinhara-se, durante a ausência de Clávdia, da mesa dos “russos distintos”; visto a sua ficar paralela à outra, que apenas avançava um pouco mais em direção à porta do avarandado, e visto Hans Castorp tanto como Peeperkorn ocuparem as pontas dirigidas para o interior da sala, achavam-se, por assim dizer, colocados lado a lado, o nosso herói um pouco atrás do holandês, o que facilitava uma inspeção discreta, enquanto enxergava obliquamente diante de si o rosto de Mme. Chauchat a três quartos. Para completar o talentoso esboço de Hans Castorp, poderíamos acrescentar que Peeperkorn tinha o bigode raspado, o nariz grande e carnudo, e a boca igualmente grande, com os lábios irregulares, como que gretados. Apesar de as mãos serem bastante largas, as unhas eram compridas e pontudas. Quando Peeperkorn falava – o que fazia quase sem cessar, embora Hans Castorp não conseguisse entender claramente o conteúdo das suas palavras –, servia-se dessas mãos para gestos elegantes, que mantinham os ouvintes em suspenso, esses gestos delicadamente matizados, esmerados, precisos e nítidos que revelam a cultura de um diretor de orquestra; curvava então o dedo indicador, para que formasse um círculo com o polegar, ou estendia a mão espalmada – larga, mas de unhas pontudas – num movimento protetor, tranqüilizante, que exigia atenção. Contudo, a atenção sorridente que ele conquistava era logo transformada em decepção pela vagueza das exposições tão intensamente preparadas. Ou melhor: não era transformada em decepção, mas em uma alegre surpresa, pois o vigor, a fineza, a ênfase dos preparativos não somente substituíam com perfeição, e ainda posteriormente, aquilo que faltava, mas eram em si satisfatórios, interessantes e mesmo preciosos. Às vezes nem sequer chegava a pronunciar palavras. Acontecialhe pôr suavemente a mão sobre o antebraço de seu vizinho da esquerda, um jovem sábio búlgaro, ou de Mme. Chauchat, à sua direita; depois erguia a mesma mão obliquamente, reclamando silêncio e curiosidade para o que desejava dizer; franzia então as sobrancelhas a tal ponto que as rugas que desciam em ângulo reto da testa para as comissuras exteriores dos olhos se aprofundavam como numa máscara, e baixava o olhar sobre a toalha, ao lado da pessoa assim agarrada, enquanto os lábios grandes e gretados pareciam dispostos a formular qualquer coisa altamente importante. Alguns instantes após, porém, afrouxava a respiração e renunciava a falar, dando, por assim dizer, o comando “Descansar armas!” Sem ter proferido palavra alguma, tornava a ocupar-se com o seu café, que mandava fazer especialmente forte, e que lhe serviam na sua própria cafeteira. Depois de ter bebido, procedia da seguinte maneira: com um gesto de mão coibia a conversa, obtendo silêncio, assim como um regente faz calar a confusão dos instrumentos que estão sendo afinados e procura, por meio de um mando imperioso, concentrar a orquestra, a fim de começar uma peça. Sua cabeça grande, rodeada de labaredas de cabelos brancos, com os olhos sem cor definida, as poderosas rugas da fronte, o comprido cavanhaque e a boca desnuda e dolorida, eram indiscutivelmente impressionantes, de modo que todos costumavam obedecer-lhe ao gesto. Os comensais emudeciam, olhavam-no sorrindo, esperando, e aqui ou ali havia quem lhe desse um sinal alentador. E Peeperkorn dizia numa voz bastante abafada: – Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre declarar não é aquilo, mas principal e exclusivamente o seguinte: temos o dever... É de uma forma inelutável... Repito e faço questão de usar essa expressão: é de uma forma inelutável que se reivindica de nós... Não, senhoras e senhores, não! Esse não é o sentido... Não me interpretem como se eu... Que erro grave não seria pensar que... Basta, senhoras e senhores! Basta amplamente! Sei que estamos de acordo sobre todas essas questões, e por isso entremos no assunto! Não dissera nada, mas a majestade da sua cabeça parecia tão indiscutível, o jogo de fisionomia e a gesticulação eram de tal modo enérgicos, imponentes, expressivos, que todos, inclusive Hans Castorp, empenhado em escutar, criam ter ouvido algo de grande peso, ou, se é que se davam conta de que o discurso carecia por completo de conteúdo e de coerência, não se ressentiam dessa falta. Seria interessante saber qual teria sido a reação de um surdo. Talvez ele se afligisse, porque a apresentação o faria tirar conclusões erradas quanto à alocução apresentada, e porque imaginaria perder, devido à surdez, uma informação valiosa. Tal gente é propensa à desconfiança e à amargura. Mas havia à outra extremidade da mesa um jovem chinês, que ainda não chegara a adquirir bons conhecimentos de alemão. Em certa ocasião, esse moço acabava de ver e de ouvir um desses discursos, sem compreendê-lo, e manifestou alegre satisfação exclamando “Very well!” e batendo palmas. E Mynheer Peeperkorn “entrou no assunto”. Empertigou-se, dilatou o largo peito, abotoou a sobrecasaca xadrez por cima do colete de gola alta. Sua cabeça branca, nesse momento, lembrava um rei. Com um aceno chamou uma criada – era a an㠖 e esta, embora atarefadíssima, atendeu imediatamente ao sinal peremptório. Com o jarro de leite e o bule de café nas mãos, colocou-se ao lado da sua cadeira. Também ela não pôde deixar de fazer um gesto alentador, enquanto no rosto grande de velhota lhe aflorava um sorriso. Parecia toda atenção, como que imobilizada pelo olhar apagado que Peeperkorn lhe lançava de sob as poderosas rugas da testa, e por sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar, para formar um círculo, ao passo que os três outros dedos se esticavam para o alto, dominados pelas pontas de lança das unhas. – Minha filha! – disse ele. – Bem. Por enquanto tudo vai bem. Você é pequena. Não há de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e dou graças a Deus por você ser assim como é, e devido à sua baixa altura que é tão característica... Pois então! O que desejo da sua parte também é pequeno, pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama? Ela atrapalhou-se, sempre sorrindo, e disse por fim que seu nome era Emerentia. – Ótimo! – exclamou Peeperkorn, recostando-se à cadeira e estendendo o braço em direção à anã. Dera à exclamação um tom de quem pretende dizer: “Por que se preocupa? Tudo vai às mil maravilhas”. – Minha filha – prosseguiu então, seriamente e quase com severidade. – Isso ultrapassa todas as minhas expectativas. Emerentia... Você pronunciou este nome com modéstia, mas ele, unido à sua pessoa... Numa palavra, isso abre as mais belas perspectivas. Vale a pena deter-se e concentrar tudo quanto o peito contém de sentimento, para que... Acho que você me entende, minha filha... Na forma familiar e abreviada pode-se dizer Rentia, mas também Emezinha soa simpático. No momento não hesito em escolher Emezinha. Muito bem, Emezinha, minha filha, preste atenção: quero um pouco de pão, minha querida. Pare! Não se afaste! Que não se insinue na nossa conversa nenhum mal-entendido! Percebo na sua cara relativamente grande que esse perigo... Pão, Rentinha, mas não pão assado. Este se acha aqui em abundância, e dos mais diversos tipos. Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão transparente, minha pequena forma carinhosa, a fim de me regalar com ele. Não tenho certeza se o sentido dessa palavra lhe... Estou disposto a substituí-la por “tônico do coração”, não surgisse com isso o novo perigo de me ver interpretado com a leviandade habitual... Basta, Rentia, Basta! Liquidado! Prefiro, consciente dos nossos deveres e das nossas obrigações sagradas... Inclusive, por exemplo, o dever moral de me regozijar cordialmente da sua característica estatura... Uma genebrinha, querida! Regozijar-me, era isso que eu queria dizer. Genebra de Schiedam, Emerentinha! Apresse-se e me traga uma. – Uma genebra genuína – repetiu a anã e deu meia-volta, na intenção de se desembaraçar do bule e do jarro. Finalmente depositou-os na mesa de Hans Castorp, ao lado do seu talher, evidentemente para não incomodar o Sr. Peeperkorn. Foi-se correndo, e sem demora o hóspede recebeu a bebida desejada. O cálice estava tão cheio que o “pão” se derramava por todos os lados e molhava o prato. O holandês pegou-o entre o polegar e o dedo médio e ergueu-o contra a luz. – Feito isso – declarou –, Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha. – E engoliu o trigo destilado, depois de o mastigar rapidamente. – E agora – acrescentou – contemplo todo o mundo com os olhos reconfortados. – Em seguida pegou da mão de Mme. Chauchat, que estava na mesa, levou-a aos lábios e recolocou-a sobre a toalha, mantendo-a ainda durante alguns instantes na sua. Um homem singular, uma personalidade vigorosa, se bem que pouco clara. A sociedade do Berghof interessava-se vivamente por ele. Diziam que acabava de retirar-se dos negócios coloniais, depois de ter enriquecido bastante. Falavam da sua esplêndida casa em Haia e da sua vila em Scheveningue. A Srª. Stöhr qualificou-o de “magnete de dinheiro” – a infeliz queria dizer “magnata” – e aludiu a um colar de pérolas que Mme. Chauchat, desde a sua volta, usava com o vestido de gala, e que, segundo a opinião de Dona Karoline, dificilmente podia ser considerado como sinal da galanteria de um marido caucasiano, senão que devia ter a sua origem na “comunhão de bens”. Ao dizer isso, piscou um olho e fez um gesto na direção do seu vizinho Hans Castorp, baixando os cantos da boca, numa paródia de pesar. Nem a enfermidade nem o sofrimento haviam contribuído para refinar a Srª. Stöhr, de modo que ela se aproveitou da situação incômoda do nosso herói para seus escárnios brutais. Hans Castorp não perdeu a linha. Corrigiu-lhe até com certa graça o lapso a que a induzira a ignorância. Ela acabava de confundir duas palavras – explicou –, queria dizer “magnata de dinheiro”. Mas o termo “magnete” também não estava mal escolhido, uma vez que Peeperkorn, evidentemente, possuía grande força de atração. Também respondeu com bem fingida indiferença à professora, Srta. Engelhart, quando esta, com um sorriso amarelo e sem o encarar, perguntou-lhe que tal ele achava o novo hóspede. Mynheer Peeperkorn, replicou, era uma personalidade esfumada. Personalidade, sem dúvida, mas esfumada. E essa classificação precisa documentava a sua objetividade tanto como a calma do seu espírito e desconcertava por completo a professora. E quanto a Ferdinand Wehsal e à sua indireta relativa às circunstâncias inesperadas em que voltara Mme. Chauchat, Hans Castorp demonstroulhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente articuladas. “Miserável!”, dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim; dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a. cabeça e exibindo os dentes cariados. Mas, a partir desse incidente, desistiu de carregar o sobretudo de Hans Castorp nos passeios que faziam em companhia de Naphta, Settembrini e Ferge. “Vá lá que seja!”, pensou Hans Castorp. “Posso carregá-lo sozinho. Até prefiro fazê-lo, e era pura amabilidade minha entregá-lo de vez em quando a esse coitado.” Mas ninguém de nós pode enganar-se quanto ao fato de Hans Castorp sentir-se ferido por aquelas circunstâncias totalmente imprevistas, que aniquilavam todos os preparativos íntimos que fizera para a ocasião do reencontro com o objeto das suas aventuras carnavalescas. Ou melhor: que os tornavam supérfluos, e era isso o que mais o humilhava. Seus propósitos haviam sido os mais delicados e sensatos. Longe dele pensar num procedimento precipitado ou importuno. Nunca tivera a intenção de ir esperar Clávdia na estação. Ainda bem que jamais tivesse ventilado tal idéia! Em todo caso ficara na dúvida se essa mulher, à qual a doença outorgava tamanha liberdade, julgaria verdadeiros os fantásticos acontecimentos de uma remota noite de carnaval, cheia de sonhos, de máscaras e de conversas em língua estrangeira, ou, ainda, se ela desejaria que isso fosse recordado de um modo direto. Não, nada de petulâncias, nada de reivindicações impertinentes. E mesmo admitindo que as suas relações com a enferma dos olhos oblíquos houvessem ultrapassado, pela sua natureza, os limites traçados pela razão e pelas convenções ocidentais, cumpria observar, quanto às formas, a mais perfeita civilidade e, por enquanto, até a ficção do esquecimento. Um cumprimento cortês de uma mesa para a outra, e nada mais, no momento!. Mais tarde aproveitaria uma oportunidade para se aproximar com toda a discrição e para perguntar, incidentalmente, como a viajante tinha passado desde aquele dia... O verdadeiro reencontro poderia produzir-se numa ocasião oportuna e trazer consigo a recompensa dessa coibição cavalheiresca. Mas, como já dissemos, toda essa delicadeza parecia vã nesse instante, já que deixara de ser o resultado de uma escolha livre e por isso não tinha méritos. A presença de Mynheer Peeperkorn excluía de uma forma mais que completa a possibilidade de uma tática que não consistisse em extrema reserva. Na noite da chegada, Hans Castorp tinha observado, da sacada, como o trenó subira em marcha lenta pela curva da rampa. Na boléia achava-se o criado malaio, um homenzinho amarelado com um chapéu-coco e com uma gola de peles no sobretudo. No assento de trás, ao lado de Clávdia, instalara-se o homem estranho, com o chapéu puxado sobre os olhos. Naquela noite, Hans Castorp dormira muito pouco. No outro dia, não tivera grande dificuldade em saber o nome desse desconcertante companheiro de viagem, e como brinde lhe haviam dado a notícia de que ambos acabavam de ocupar uns aposentos luxuosos e vizinhos no primeiro andar. Viera então o café da manhã. Hans Castorp encaminhara-se bem cedo ao seu lugar e, muito pálido, esperara pelo momento em que a porta envidraçada se fechasse com estrondo. Mas isso não se realizara. A entrada de Clávdia decorrera sem ruído nenhum, pois atrás dela Mynheer Peeperkorn tinha fechado a porta. Alto, espadaúdo, com a fronte ampla e com as labaredas brancas em torno do crânio imponente, ia seguindo os passos da companheira de viagem, que, no seu costumeiro andar felino, avançando a cabeça, se aproximava da sua mesa. Sim, era ela; não mudara em nada! Contra os seus propósitos, esquecido de tudo, Hans Castorp devorava-a com os olhos tresnoitados. Reencontrava o cabelo ruivo, penteado sem muita arte e enrolado, numa trança simples, em volta da cabeça; revia os “olhos de lobo de estepe”, a curva da nuca, os lábios que pareciam mais cheios do que eram em realidade, devido àquelas maçãs acentuadas que produziam uma graciosa concavidade das próprias faces... “Clávdia!”, pensou Hans Castorp estremecendo, e fitou o desconhecido, com a cabeça atirada para trás, num gesto de desafio e de mofa em face da grandiosidade teatral do seu aspecto; fê-lo exortando o próprio coração a que não levasse a sério o poderio de uma posse cuja segurança era posta em dúvida por certos fatos do passado; e tratava-se de fatos reais, não de coisas vagas, obscuras, acontecidas no terreno da pintura diletante, como aquelas que outrora haviam sido capazes de inquietá-lo... Mme. Chauchat também conservara aquele hábito de exibir-se sorrindo a toda a sala, antes de se sentar, como para apresentar-se à sociedade, e Peeperkorn secundava-a, deixando que Clávdia celebrasse a pequena cerimônia, enquanto ele se mantinha de pé atrás dela, antes de se instalar, a seu lado, à extremidade da mesa. Não houvera oportunidade para um cumprimento cortês de uma mesa para a outra. Quando da “cerimônia de apresentação”, os olhos de Clávdia tinham vagueado para além da pessoa de Hans Castorp e da parte da sala onde ele se achava, em busca de regiões mais distantes. O encontro seguinte no refeitório dera-se da mesma forma, e quanto mais refeições se realizavam, sem que os seus olhares se cruzassem de outro modo a não ser num resvalo cego e indiferente da parte de Mme. Chauchat, tanto menos indicado parecia aquele cumprimento cortês. Durante a breve reunião noturna, os companheiros de viagem mantinham-se na saleta. Juntos ocupavam o sofá, rodeados pelos comensais. Peeperkorn, cujo rosto majestoso, intensamente avermelhado, se destacava do alto dos cabelos e do cavanhaque, esvaziava a garrafa de vinho tinto que lhe fora servida no jantar. Pois em cada refeição principal emborcava uma garrafa, às vezes até uma e meia ou duas, sem falar do “pão” que já vinha acompanhando o café da manhã. Evidentemente, o homem majestoso tinha extraordinária necessidade de se regalar. Para o mesmo fim usava várias vezes por dia um café extremamente forte, que tomava numa xícara grande, não somente de manhã, mas também por ocasião do almoço, e não depois da refeição, senão durante a mesma e ao mesmo tempo que o vinho. Ambas essas coisas – conforme Hans Castorp ouviu o holandês explicar – eram boas contra a febre, além do seu efeito regalador; um remédio muito bom para a febre intermitente que contraíra nos trópicos, e que já no segundo dia da sua estadia o reteve na cama durante algumas horas. O conselheiro qualificavaa de quarta, visto acometer o holandês de quatro em quatro dias; no começo o fazia bater os dentes, depois lhe causava um violento ardor e por fim abundante transpiração. Ao que dizia o médico, a enfermidade originara também uma congestão do baço. “Vingt et un” Assim transcorreu algum tempo, umas três ou quatro semanas, segundo julgamos, uma vez que absolutamente não nos podemos fiar nas avaliações e no senso de tempo de Hans Castorp. Escoaram-se sem acarretar novas mudanças. Na alma do nosso herói produziram certo rancor contra as circunstâncias imprevistas que o obrigavam a uma discrição pouco meritória; rancor que se ia tornando habitual e se dirigia particularmente contra aquela circunstância que se chamava a si própria Pieter Peeperkorn, cada vez que tomava uma cachacinha, contra a presença importuna desse homem majestoso, imponente e pouco claro, que realmente o constrangia de um modo muito mais brutal do que fizera o Sr. Settembrini quando “era demais ali”. Rugas de descontentamento e de irritação sulcavam verticalmente a testa de Hans Castorp, entre as sobrancelhas, e de sob essas rugas contemplava cinco vezes ao dia a mulher que regressara. Mesmo assim se sentia feliz por poder contemplá-la e cheio de desdém pela poderosa presença de alguém que ignorava até que ponto a sua segurança era posta em jogo pelo passado. Certa noite, porém, a reunião noturna no vestíbulo e nos salões foi mais animada do que em geral, o que acontecia de vez em quando sem nenhum motivo especial. Houvera música; algumas canções ciganas briosamente executadas ao violino por um estudante húngaro. A seguir, o Conselheiro Behrens, que estivera presente por um quarto de hora, em companhia do Dr. Krokowski, obrigara um pensionista a tocar nos baixos do piano a melodia do “Coro dos peregrinos”, enquanto ele, de pé a seu lado, maltratava o instrumento com uma escova que fazia saltitar pelos agudos, para parodiar um acompanhamento de rabeca. Isso fez rir. Sob vivos aplausos, meneando a cabeça como se a sua própria brincadeira o surpreendesse agradavelmente, o conselheiro abandonou os salões. Mas a reunião se prolongou; continuaram a fazer música, sem que se exigisse dos ouvintes nenhuma atenção concentrada; formaram-se partidas de dominó e de bridge, com bebidas nas mesas; outros se divertiam com os brinquedos ópticos; aqui e ali se viam pensionistas conversando. Também a roda da mesa dos “russos distintos” se havia misturado com os grupos do vestíbulo e do salão de música. Mynheer Peeperkorn aparecia em diferentes lugares; era impossível não o perceber, já que sua cabeça majestosa dominava os que o cercavam, triunfando devido a sua importância e sua força principesca. Aqueles que o rodeavam, embora a princípio houvessem sido atraídos pela mera fama da sua riqueza, logo começavam a sentir o encanto da sua personalidade; deixavam-se ficar, sorriam, faziam-lhe com a cabeça acenos alentadores, esqueciam-se de si próprios, fascinados pelos olhos sem cor sob as poderosas rugas da testa; com a atenção presa aos gestos elegantes e insistentes das mãos de unhas compridas, não experimentavam a menor decepção em face das palavras abruptas, incoerentes, ininteligíveis, confusas e realmente gratuitas que seguiam essa gesticulação. Quem procurasse Hans Castorp nesse ambiente, encontrá-lo-ia no salão de leitura, naquele mesmo recinto onde ele outrora – esse “outrora” é vago; o autor, o herói e o leitor já não percebem claramente a distância – recebera importantes informações sobre a organização do progresso humano. Nesse lugar estava-se mais tranqüilo. Somente umas poucas pessoas o partilhavam com Hans Castorp. A uma das escrivaninhas duplas, iluminadas por uma lâmpada suspensa, alguém redigia uma carta. Uma senhora, com dois pincenês sobre o nariz, achava-se sentada junto à biblioteca e folheava um volume ilustrado. Nas proximidades da passagem aberta que dava para a sala do piano, Hans Castorp ocupava uma cadeira que casualmente se encontrava ali; era uma cadeira em estilo Renascença, forrada de veludo, com espaldar alto e reto, e sem braços. O jovem voltava as costas ao reposteiro e tinha nas mãos um jornal, na posição de quem lê; mas, em vez de ler, escutava, com a cabeça inclinada obliquamente, os sons de música entrecortados e mesclados de vozes. No entanto, o seu cenho sombrio indicava que ele tampouco prestava muita atenção a esses sons, e que seus pensamentos trilhavam veredas pouco musicais; as veredas espinhosas da desilusão causada pelos acontecimentos que zombavam de um moço que se sujeitara a um longo período de espera, e quando chegara o fim desse período, se vira ignominiosamente logrado; as veredas ásperas do desafio, pelas quais avançara a um ponto em que pouco faltava para a decisão de depositar o jornal nessa cadeira incômoda, que o acaso lhe oferecera, sair pela porta do vestíbulo e substituir essa vida social sem graça pela solidão glacial do compartimento de sacada, onde Maria Mancini lhe faria companhia. – E seu primo, monsieur? – perguntou de trás dele, por cima da sua cabeça, uma voz. Era uma voz feiticeira para os seus ouvidos fadados a achar extremamente agradável o agridoce daquele timbre velado, levando dessa forma ao extremo o conceito do agradável. Era a voz que dissera uma vez: “Com muito prazer. Mas cuidado para não quebrá-lo!” Uma voz dominadora, a voz do destino, e que, se ele não se enganava, perguntara por Joachim. Lentamente, Hans Castorp desceu o jornal e levantou um pouquinho o rosto, de modo que apenas o topo da cabeça se encostava ao espaldar reto da cadeira. Até fechou os olhos durante um momento, mas logo os reabriu, para dirigi-los ao alto, na direção que a posição da cabeça impunha ao seu olhar, e pôs-se a fitar o vazio. Dir-se-ia que a expressão do bom rapaz tinha algo de um visionário ou de um sonâmbulo. Bem desejava ele que a pergunta fosse repetida, mas isso não se deu. Dessa forma nem sequer tinha certeza de que ela ainda se encontrava atrás dele, quando respondeu, depois de algum tempo, com bastante atraso, e a meia voz: – Está morto. Foi servir na planície e morreu. O próprio Hans Castorp notou que “morto” era a primeira palavra com expressão a ser pronunciada entre eles. Notou ao mesmo tempo que ela, por falta de familiaridade com a língua alemã, escolhia termos excessivamente fracos para expressar os seus sentimentos, quando disse de trás dele e por cima da sua cabeça: – Coitado! Que pena! Completamente morto e enterrado? Desde quando? – Faz algum tempo. Foi levado para baixo pela mãe. Tinha-lhe crescido uma barba de guerreiro. Deram três salvas fúnebres por cima do túmulo. – Ele as mereceu. Foi um homem muito bom. Muito melhor do que outros, do que certos outros. – Sim, era bom. Radamanto sempre falava de seu excesso de entusiasmo. Mas seu corpo não estava de acordo. Rebellio carnis, como dizem os jesuítas. Sempre ligara grande importância ao corpo, de um modo honroso. Mas seu corpo permitiu que substâncias desonrosas o penetrassem e pregou-lhe uma peça ao excessivo entusiasmo. É, aliás, mais moral perder-se e perecer do que preservar-se. – Vejo que certa pessoa continua sendo um valdevinos filosófico. Quem é esse Radamanto? – Behrens. Settembrini o chama assim. – Ah, já sei, Settembrini. Aquele italiano... Eu não simpatizava com ele. Sua mentalidade não era humana. (A voz arrastava a palavra “humana” de modo lânguido e ao mesmo tempo enfático.) Era altivo. Não está mais aqui? Ora, sou ignorante. Não sei o que quer dizer Radamanto. – Qualquer coisa humanística. Settembrini mudou-se. Temos filosofado bastante nestes últimos tempos, ele, Naphta e eu. – Quem é Naphta? – O adversário dele. – Se é o adversário dele, gostaria de conhecê-lo... Mas eu não lhe disse que seu primo morreria se descesse à planície para ser soldado? – Sim, tu o sabias. – O que o senhor está pensando? Silêncio prolongado. Ele não se retardou. Comprimindo o alto da cabeça contra o espaldar reto, com o olhar visionário cravado no ar, ficou esperando que a voz tornasse a soar. Novamente não sabia com certeza se ela ainda se achava atrás dele. Receava que os sons entrecortados de música, que entravam da sala vizinha, pudessem ter abafado o ruído de passos que se afastassem. Até que enfim a voz voltou: – E monsieur nem sequer foi assistir ao enterro de seu primo? – Não – respondeu ele –, disse-lhe adeus aqui mesmo, antes de fecharem o caixão, quando ele começou a sorrir. Tu não imaginas como estava fria a sua testa. – Outra vez? É assim que se fala com uma senhora que mal se conhece? – Será que devo falar humanisticamente e não humanamente? – Sem querer, também ele arrastou a palavra de uma forma sonolenta, como quem se espreguiça e boceja. – Quelle blague!... E o senhor esteve aqui todo esse tempo? – Sim, tenho esperado. – Por quem? – Por ti. Uma risada soou por cima dele, lançada simultaneamente com a palavra “Louco!” – Por mim? Provavelmente não o deixaram sair. – Ao contrário. Em certa ocasião, Behrens me teria deixado sair, num acesso de raiva. Mas isso seria apenas uma partida em falso. Pois, além das cicatrizes que tenho de há muito, desde os meus tempos de colégio, sabes?, existe ainda o ponto recente que Behrens descobriu e que me está causando a febre. – Febre ainda? – Sim, tenho sempre um pouquinho. Quase sempre. Com intermitências, mas não é uma febre intermitente. – Des allusions? Ele permaneceu calado, franzindo o cenho, por cima do olhar visionário. Depois de algum tempo perguntou: – E tu, onde tens andado? Uma mão deu uma pancada no espaldar da cadeira. – Mais c’est un sauvage!... Por onde tenho andado? Por toda parte. Em Moscou (a voz pronunciava “Muoscou”, arrastando o nome do mesmo modo lânguido como fizera com a palavra “humana”), em Baku, em estações balneárias da Alemanha, na Espanha. – Ah, na Espanha? Que tal a Espanha? – Assim, assim. Viaja-se mal ali. O povo de lá é meio mouro. Castela é muito seca e rígida. O Kremlin é mais belo do que aquele palácio ou convento ao pé da montanha... – O Escorial? – Sim, o castelo de Filipe. Um castelo inumano. O que me agradou muito mais foi uma dança popular na Catalunha, a sardana, acompanhada por gaita de foles. Eu mesma entrei nela. Todos se dão as mãos e dançam à roda. A praça inteira fica cheia de gente. C’est charmant. É humano. Comprei um pequeno barrete azul como ali usam todos os homens e meninos do povo; é quase um fez, a barretina. Ponho-a durante o repouso e em outras ocasiões. Monsieur poderá julgar se ela me assenta bem. – Que monsieur? – O que está sentado nesta cadeira. – Eu pensava que se tratasse de Mynheer Peeperkorn. – Ele já julgou. Diz que fico encantadora com ela. – Ele disse isso? Até o fim? Terminando a frase de maneira a se poder compreendê-la? – Ah, parece que alguém está mal-humorado. Procura ser malicioso e mordaz. Procura zombar de personalidades que são muito maiores, melhores e mais humanas do que certa pessoa, junto com seu... avec son ami bavard de la Méditerranée, son maitre grand parleur... Mas não tolerarei que meus amigos sejam... – Tens ainda meu retrato interior? – interrompeu ele, melancolicamente. Ela riu. – Vou ver se o guardei. – Eu trago o teu aqui comigo. Além disso tenho um cavaletezinho em cima da minha cômoda, e de noite... Não chegou a acabar a frase. À sua frente achava-se Peeperkorn. Andara à procura da sua companheira de viagem. Entrara vindo de trás do reposteiro e surgira diante da cadeira do interlocutor a cujas costas ela se encontrava. Quedava-se ali qual uma torre, tão perto dos pés de Hans Castorp que este só com dificuldade conseguiu levantar-se entre os dois outros, quando verificou, apesar do seu estado sonâmbulo, que o momento exigia dele tal gesto de cortesia. Teve de resvalar lateralmente da cadeira, que ficou no meio das três pessoas dispostas num triângulo. Mme. Chauchat obedeceu às regras do Ocidente civilizado apresentando-os um ao outro. Com referência a Hans Castorp disse que se tratava de um conhecido de tempos passados, da sua última estadia no Berghof. A existência do Sr. Peeperkorn dispensava comentários. Pronunciou o nome do holandês, e este fixou no jovem os olhos apagados, sob os arabescos das rugas da testa e das fontes, que estavam mais profundas devido à atenção, e davam a seu rosto o aspecto de um ídolo. Estendeu a Hans Castorp a mão, cujas costas eram largas e sardentas; uma mão de capitão, pensou Hans Castorp, abstração feita das unhas pontudas. Pela primeira vez entrava em contato com a poderosa personalidade de Peeperkorn. “Personalidade” – constantemente lhe ocorria essa palavra à vista do holandês; quem o via sabia de repente o que era uma personalidade, e mais ainda: estava convencido de que uma personalidade não podia ser diferente dele. Os anos vacilantes do jovem Hans Castorp sentiam-se esmagados pelo peso dos sessenta desse homem espadaúdo com o rosto vermelho emoldurado de labaredas brancas, com a boca gretada e dolorida, e com o cavanhaque que pendia, comprido e ralo, sobre o colete clerical. Doutro lado, esse Peeperkorn era a amabilidade em pessoa. – Meu caro senhor – disse. – Inteiramente... Não, permita-me... Inteiramente! Acabo de travar conhecimento com o senhor... conhecimento com um moço que inspira confiança... Façoo conscientemente, meu caro senhor, estou compenetrado disso. O senhor me agrada. Não há de quê. Basta! O senhor me é simpático. Não adiantava fazer objeções. Seus gestos eram peremptórios. Hans Castorp lhe era simpático. E desse fato Peeperkorn tirou conseqüências que expressou em forma um tanto vaga, mas que por intermédio da sua companheira de viagem se tornaram coerentes e compreensíveis. – Minha filha – disse ele. – Muito bem. Que tal?... Por favor, não me interprete mal... A vida é breve, e a nossa capacidade de satisfazer as suas exigências é, infelizmente... Isso são realidades, minha filha, são leis. Inexoráveis! Numa palavra, minha filha, sem perda de tempo... – E fez perdurar um gesto expressivo de sugestão declinando toda a responsabilidade para o caso de se cometer, apesar do seu conselho, um erro decisivo. Ao que parecia, Mme. Chauchat tinha prática na interpretação de tais desejos apenas esboçados. – Por que não? – disse ela. – Nós poderíamos permanecer juntos por algum tempo. Quem sabe se jogamos um pouco e tomamos uma garrafa de vinho? Ora, que espera o senhor? – continuou, voltando-se para Hans Castorp. – Mexa-se! Não vamos ficar aqui só nós três. Precisamos ter companhia. Quem mais está no salão? Mande vir a quem encontrar! Vá buscar alguns dos nossos amigos que já estão nas sacadas! Convidaremos também o Dr. Ting-Fu, nosso companheiro de mesa. Peeperkorn esfregava as mãos. – Ótimo! – disse. – Perfeito! Excelente! Vá depressa, meu jovem amigo! Obedeça! Formaremos uma roda. Vamos jogar, comer e beber. Vamos sentir que... Absolutamente, meu caro rapaz! Hans Castorp serviu-se do elevador e subiu ao segundo piso. Bateu à porta de A. K. Ferge, que por sua vez tirou Ferdinand Wehsal e o Sr. Albin das suas espreguiçadeiras no alpendre do andar térreo. O Promotor Paravant e o casal Magnus haviam sido encontrados no vestíbulo, a Srª. Stöhr e a Kleefeld, no salão. Foi ali, embaixo do lustre central, que abriram uma espaçosa mesa de jogo. Cercaram-na de cadeiras e de mesinhas auxiliares. Cada convidado que se reunia ao grupo era cumprimentado por Mynheer, com o olhar apagado, mas cortês, e com os arabescos da fronte içados em sinal de atenção. Sentaram-se doze à mesa. Hans Castorp recebeu o lugar entre o majestoso anfitrião e Clávdia Chauchat. Foram distribuídas cartas e fichas. Segundo haviam combinado, seriam jogadas algumas partidas de vinte-e-um. Peeperkorn, com aquele seu jeito imponente, mandou chamar a anã e pediu vinho, um Chablis de 1906, três garrafas por enquanto, acompanhadas de doces, tudo o que ela pudesse encontrar de passas de frutas e de confeitos. O modo como esfregava as mãos para saudar os quitutes que lhe serviam patenteava a sua satisfação; foi também por meio de palavras, que de um modo impressionante terminavam no meio das frases, que o holandês procurou comunicar o que sentia; conseguiu isso perfeitamente, pelo menos no sentido de impor a sua personalidade. Pondo as mãos nos antebraços dos vizinhos, reclamou, com pleno êxito, a mais intensa atenção de todos para a maravilhosa cor de ouro do vinho, para o açúcar exsudado pelas passas de Málaga, e para certo tipo de rosquinhas salgadas e polvilhadas com sementes de papoula. Qualificou-as de divinas, sufocando de vez, com um gesto imperioso, o menor germe de oposição que porventura se levantasse contra o emprego de uma palavra tão exaltada. Foi o primeiro a encarregar-se da banca, mas prontamente a cedeu ao Sr. Albin; conforme disse, se é que o entendemos bem, a função de banqueiro impedia-o de gozar livremente a festa. Era visível que o jogo de azar representava para ele um assunto secundário. Jogava-se por nada, segundo a sua opinião. Por proposta dele haviam fixado a aposta mínima em cinqüenta centavos, mas isso representava muito dinheiro para a maioria dos parceiros. O Promotor Paravant tanto como a Srª. Stöhr empalideciam e coravam alternadamente. Esta sobretudo remexia-se na cadeira, presa de terríveis lutas interiores, quando, tendo dezoito pontos, se lhe deparava o problema de comprar ou não comprar. Dava gritos lancinantes, quando o Sr. Albin, com um gesto frio e rotineiro, lhe atirava uma carta muito alta que lhe aniquilava por completo os projetos. Peeperkorn ria-se jovialmente. – Grite, madame, grite! – dizia. – É um som agudo, cheio de vida, que vem do fundo de... Beba e regale o seu coração, para que novamente... – E enchia-lhe a taça. Encomendou mais três garrafas. Bebeu à saúde de Wehsal e da obtusa Srª. Magnus, porque um e outra lhe pareciam ter suma necessidade de animação. O vinho, que era realmente ótimo, coloriu em pouco tempo os rostos, exceção feita ao Dr. Ting-Fu, que permanecia invariavelmente amarelo, com os olhos rasgados, pretos como azeviche, soltando discretos risinhos cacarejantes, enquanto fazia elevadas apostas com uma sorte escandalosa. Os outros não queriam ficar atrás. O Promotor Paravant, com o olhar turvo, desafiou o destino, arriscando dez francos numa entrada que despertava apenas moderadas esperanças; empalideceu ao ver que havia comprado demais, e todavia ganhou, uma vez que o Sr. Albin, confiando num ás traiçoeiro, fizera dobrar todas as apostas. Eram emoções que não se limitavam à pessoa de quem as causava a si próprio. Toda a roda tomava parte nelas; nem o Sr. Albin, embora rivalizasse, em matéria de fria circunspecção, com os croupiers do Cassino de Monte Carlo, que afirmava ter freqüentado muito, conseguia dominar a sua excitação senão insuficientemente. Também Hans Castorp jogava alto, bem como a Kleefeld e Mme. Chauchat. Do vinte-eum passaram, sucessivamente, ao tours, ao chemin de fer, ao campista e à perigosa différence. Revezavam-se arrebatamentos de exultação e de desespero, explosões de cólera e gargalhadas histéricas, tudo isso provocado pelo estímulo que a sorte falaz exercia sobre os nervos; e essas manifestações eram sérias e sinceras – não teriam sido diferentes se se tratasse de vicissitudes da vida real. Mas não eram somente – e nem sequer em primeiro lugar – o jogo e o vinho os fatores que produziam a tensão psíquica dessa roda, as faces quentes, a dilatação das pupilas nos olhos brilhantes, ou que davam origem àquilo que poderia ser definido como a dedicação esforçada do pequeno grupo, a respiração embargada, a concentração quase dolorida no que trazia o momento. Em realidade, isso se devia à influência de uma individualidade soberana que se encontrava entre os presentes, à “personalidade” que os dominava, a Mynheer Peeperkorn, que mantinha as rédeas na sua mão gesticulante e fazia sentir a todos o feitiço dessa hora, pelo espetáculo da sua grandiosa fisionomia, pelo olhar apagado sob o drapejamento monumental da fronte, pela sua fala e pela mímica impressionante. Que dizia ele? Coisas pouquíssimo claras, e que se tornavam tanto menos distintas quanto mais bebia. Mas o grupo estava suspenso de seus lábios, fitava, sorrindo, o círculo que seu indicador formava com o polegar, é a cujo lado se eriçavam, pontudos como lanças, os outros dedos, enquanto o rosto majestoso efetuava uma ação altamente expressiva. Sem resistência, todos se submetiam a uma servidão sentimental que deixava longe os limites de paixão abnegada que essa gente se impunha em tempos normais, e ultrapassava as forças de alguns. A Srª. Magnus, ao menos, começou a sentir-se mal. Esteve a ponto de desmaiar, mas recusou obstinadamente subir ao quarto e contentou-se com a chaise longue, onde lhe puseram um guardanapo molhado sobre a testa. Mas, depois de ter descansado um pouco, voltou a fazer parte da roda. Peeperkorn teve a idéia de atribuir o seu desfalecimento a uma alimentação insuficiente. Com o indicador erguido proferia palavras significativamente abruptas nesse sentido. Era preciso comer, comer copiosamente – assim deu a entender – para ser capaz de satisfazer as exigências da vida. E logo encomendou mantimentos para a roda, uma refeição composta de carne, fiambre, língua, peito de ganso, assados, salames e presunto. Chegaram travessas cheias de suculentos quitutes, guarnecidos de bolinhas de manteiga, de rabanetes e de salsa, a ponto de se assemelhar a exuberantes canteiros de flores. Apesar de que se fizesse muita honra aos pratos, não obstante o jantar precedente cuja abundância é escusado mencionar, Mynheer Peeperkorn declarou, depois de ter provado alguns bocados, que essas coisas não passavam de “frioleiras”, e isso com uma cólera que documentava o caráter pavorosamente imprevisível da sua natureza de soberano. Chegou até a enfurecer-se quando alguém se atreveu a defender a refeição. A cabeça imponente quase explodia de raiva, enquanto Peeperkorn, com o punho cerrado, dava um murro na mesa. Gritou que tudo isso era uma “grande droga”, com o resultado de os comensais emudecerem constrangidos, uma vez que ele, como anfitrião, devia ter o direito de julgar aquilo que oferecia e pagava. Mas essa ira, por inexplicável que possa parecer, condizia perfeitamente com a fisionomia do holandês, como Hans Castorp, mais do que ninguém, teve de reconhecer. Não o desfigurava nem diminuía de modo algum. Na sua incompreensibilidade, que pessoa alguma ousava nem intimamente relacionar com as quantidades de vinho que ele acabara de ingerir, não deixava de revelar grandeza e majestade, de maneira que todos se inclinaram diante dele e evitaram servir-se mais uma vez dos frios. Foi Mme. Chauchat quem tranqüilizou o companheiro de viagem. Acariciou-lhe a larga mão de capitão, que depois do murro repousava na mesa, e sugeriu em voz meiga que talvez se pedisse outra coisa, um prato quente, se assim lhe agradasse, e se fosse possível obtê-lo do chefe de cozinha a essa hora.– Minha filha – disse Peeperkorn – muito bem. – E sem nenhum esforço, cheio de dignidade, passou da fúria desenfreada para um estado de moderação. Beijou a mão de Clávdia. Encomendou omeletes para si próprio e para os seus convidados, uma boa omelette aux fines herbes, para que se pudessem satisfazer as exigências da vida. E junto com o pedido mandou à cozinha uma nota de cem francos, a fim de determinar o pessoal a fazer serão. Seu bom humor ressuscitou inteiramente, quando apareceram diversas travessas com a fumegante iguaria, amarela qual um canário e salpicada de verde, impregnando o recinto com o cheiro suave e morno de ovos e manteiga. Os comensais serviram-se, ao mesmo tempo que Peeperkorn, e sob a sua vigilância jovial. Em frases confusas e com gestos irresistíveis obrigou todos a saborear com atenção e até com fervor essa dádiva de Deus. Fê-la acompanhar de genebra holandesa, uma rodada de cálices cheios, e insistiu em que ninguém deixasse de sorver com intensa devoção o líquido claro, do qual se desprendia um olor sadio de trigo com um leve toque de zimbro. Hans Castorp fumava. Também Mme. Chauchat servia-se de cigarros de ponta de papelão, guardados numa caixa russa, de verniz, ornada de uma tróica em plena corrida, e que para a sua maior comodidade pusera na mesa diante de si. Peeperkorn, embora não censurasse os seus vizinhos por se entregarem a esse prazer, não fumava nunca. Pelo que se podia deduzir das suas explanações, o consumo do tabaco já fazia parte de gozos por demais refinados, cujo cultivo representava um agravo à majestade das dádivas simples da vida, dessas dádivas e funções que a nossa sensibilidade mal e mal conseguia apreciar devidamente. – Meu caro jovem! – disse a Hans Castorp, fascinando-o com o olhar apagado e o gesto imperioso. – Meu caro jovem, o que é simples, o que é sagrado... Bem, o senhor me compreende. Uma garrafa de vinho, um prato fumegante de ovos, um cálice de trigo puro... Dediquemo-nos a isso em primeiro lugar e desfrutemo-lo, esgotemos o que nos oferece e façamos-lhe a honra a que tem direito, antes de... Absolutamente, meu prezado senhor! Basta! Encontrei pessoas, homens e mulheres, cocainômanos, fumadores de haxixe, morfinômanos... Bem, meu amigo. Pois não! Se assim quiserem... Não devemos julgar. Mas àquelas coisas que merecem a primazia, as coisas singelas, grandes, que têm sua origem em Deus, essa gente lhes ficava... Chega, meu amigo. Condenados! Reprovados! Ficava devendo tudo! Meu caro jovem, não importa como se chama... Sim, eu já sabia o seu nome, mas esqueci-me dele... A perversidade não consiste nem na Cocaína nem no ópio, nem no vício em si. O pecado imperdoável reside... Estacou. Alto e espadaúdo, voltando-se para o vizinho, persistiu num silêncio poderoso e expressivo, que reclamava compreensão. Tinha o indicador levantado; a boca entreabria-se, irregular e gretada, sob o lábio superior desnudo, rubro e um tanto arranhado pela navalha; o drapejamento linear da vasta fronte emoldurada de labaredas brancas estava franzido com esforço; os olhinhos sem cor definível achavam-se dilatados, e Hans Castorp divisou neles um quê de horror que Peeperkorn experimentava em face do crime, do grave pecado, do irremissível fiasco a que acabava de aludir, e cuja extensão monstruosa todos deviam perceber, obedecendo à ordem silenciosa que lhes dava com toda a força fascinante da sua personalidade soberana, ainda que indistinta... “É um horror objetivo”, pensou Hans Castorp, “porém mesclado de um elemento particular, de um pavor que se apossou desse homem dominador.” Tratava-se mesmo de medo, não de um medo insignificante e pequeno, senão de um pavor pânico que ali parecia bruxulear por alguns instantes. Hans Castorp era, por índole, demasiado reverencioso – não obstante todos os motivos que poderiam originar uma atitude hostil da sua parte contra o majestoso companheiro de viagem de Mme. Chauchat – para que essa observação deixasse de comovê-lo. Baixou os olhos e fez que sim, para dar ao seu augusto vizinho a satisfação de sentir-se compreendido. – Acho que isso é certo – disse. – Pode ser um pecado, e um sinal de insuficiência, abandonar-se a prazeres refinados, sem fazer justiça às dádivas simples e naturais da vida, que são grandes e sagradas. Tal é a opinião do senhor, Mynheer Peeperkorn, se o compreendi bem. Embora essa idéia nunca me tenha ocorrido, aprovo-a sinceramente, desde o momento em que o senhor chamou a minha atenção sobre ela. Pode ser que sejam muito raras as ocasiões em que essas dádivas saudáveis e singelas da vida recebam a plenitude das honras que lhes são devidas. Certamente a maioria das pessoas é por demais negligente, distraída, irresponsável e gasta para lhes prestar essas honras, penso eu... O potentado pareceu muito contente. – Meu caro jovem! – exclamou. – Ótimo. Queira permitir... Não falemos mais nisso. Peço-lhe que beba comigo, que esvazie a sua taça na minha companhia, com os braços enlaçados. Isso não quer dizer que já lhe ofereço o “tu” fraternal... Estive a ponto de fazê-lo; verifiquei, porém, que esse ato seria um pouco precipitado. Vou provavelmente, dentro de um tempo não muito longo... Conte com isso. Mas se o senhor o desejar e insistir em que nós dois imediatamente... Hans Castorp concordou com o adiamento sugerido por Peeperkorn. – Muito bem, meu filho. Muito bem, camarada. Insuficiência? Ótimo! Ótimo e também horrível. Irresponsável? Excelente! Dádivas? Não estou de acordo. Exigências! Exigências sagradas, femininas, que a vida faz à honra e ao vigor masculino. Hans Castorp não pôde esquivar-se à súbita percepção de que Peeperkorn estava totalmente embriagado. Mas também o seu inebriamento não era nem vil nem vergonhoso, não se manifestava como um estado de humilhação, senão que se associava à majestade da sua natureza, formando um fenômeno grandioso que impunha respeito. “O próprio Baco”, pensou Hans Castorp, “apoiava-se nos seus companheiros, quando estava bêbado, sem detrimento da sua divindade. É sumamente importante saber quem está embriagado, se é uma personalidade ou um pobre-diabo.” E o jovem evitou, no seu íntimo, diminuir o respeito que lhe inspirava a esmagadora figura do companheiro de viagem, cujos gestos esmerados se haviam tornado vagos e cuja língua balbuciava. – Irmão! – disse Peeperkorn, presa de uma embriaguez livre e altiva. Atirou para trás o corpo potente, e estendendo o braço por sobre a mesa, golpeou-a com o punho frouxamente cerrado. – Está projetado... Projetado para breve, embora a ponderação, por enquanto... Bem, basta! A vida, meu caro jovem, é uma mulher, uma mulher estatelada, com os seios exuberantes e apertados, com o ventre amplo e macio entre os quadris salientes, com braços delgados, coxas opulentas e olhos semicerrados, uma mulher que nos desafia magnífica e zombeteiramente e reivindica todas as energias da nossa virilidade, que se deve confirmar ou perecer perante ela... Perecer, jovem! O senhor percebe o que isso significaria? A derrota do sentimento em face da vida, eis o que é a insuficiência para a qual não há nem perdão, nem compaixão, nem dignidade, mas que é inexorável e sardonicamente reprovada, liquidada – compreende, jovem? – e vomitada... Ignomínia e desonra são palavras brandas em comparação com essa ruína e bancarrota, com essa pavorosa vergonha. Ela é o ponto final, o desespero do inferno, o fim do mundo... Enquanto falava, o holandês lançara mais e mais para trás o poderoso corpo. Ao mesmo tempo, a majestosa cabeça inclinava-se para o peito, como se ele estivesse a ponto de adormecer. Ao pronunciar a última palavra, porém, deixou o punho frouxo recair sobre a mesa num murro vigoroso, de maneira que o frágil Hans Castorp, nervoso devido ao jogo, ao vinho e à peculiaridade das demais circunstâncias, sobressaltou-se e fixou no potentado um olhar respeitoso e espantado, “Fim do mundo”, como essas palavras se harmonizavam com o rosto de Peeperkorn! Hans Castorp não se recordava de as ter ouvido, fora, talvez, das aulas da religião, e isso não era por acaso, segundo pensava, pois, a quem dentre todas as pessoas que conhecia cabia pronunciar tal palavra fulminante? Quem, para formular a pergunta com mais acerto, tinha a necessária envergadura? Seria possível que o pequeno Naphta se servisse dela de vez em quando; mas isso não passaria de uma usurpação e de uma bravata agressiva, ao passo que na boca de Peeperkorn a locução atroadora adquiria a plenitude do seu poder esmagador, vibrava com o clangor de trombetas e alcançava a grandiosidade bíblica. “Cruzes, uma personalidade!”, sentiu o jovem pela centésima vez. “Travei conhecimento com uma personalidade e ela é o companheiro de viagem de Clávdia.” Meio tonto, também ele próprio, fazia girar a taça em cima da mesa. Tinha a outra mão no bolso da calça e fechava um olho para que não entrasse a fumaça do cigarro que lhe pendia no canto da boca. Não seria melhor permanecer calado, depois dessas palavras terem sido proferidas por uma pessoa que tinha vocação para atroá-las? Para que fazer ouvir a sua voz débil? Mas ele estava acostumado a discussões por seus dois educadores democratas – ambos democratas por natureza, se bem que um não gostasse de sê-lo. Assim, se deixou arrastar e acrescentar um daqueles seus comentários ingênuos, e disse: – Suas observações, Mynheer Peeperkorn – (Que expressão era essa? Porventura se faziam “observações” sobre o fim do mundo?) –, suas observações reconduziram os meus pensamentos até isso que o senhor acaba de dizer a respeito do vício, isto é, que constitui um insulto às dádivas simples e, segundo disse o senhor, sagradas, ou como eu prefiro dizer, às dádivas clássicas da vida, as dádivas de vulto, em certo sentido, antepor-lhes as dádivas posteriores, requintadas, os refinamentos aos quais as pessoas “se abandonam”, para repetir uma expressão usada por um de nós dois, ao passo que “se consagram” ou “fazem honra” àquelas grandes dádivas. Mas nesse ponto, precisamente, me parece residir a desculpa – o senhor me perdoe, mas a minha natureza é propensa a desculpas, se bem que elas careçam de envergadura, como sinto nitidamente –, a desculpa do vício, porque este, conforme verificamos, se baseia na insuficiência. O senhor pronunciou sobre os horrores da insuficiência palavras de tamanho peso que me deixou sinceramente emocionado. No entanto, acho eu que a pessoa viciada absolutamente não se mostra insensível a esses horrores, mas sim os reconhece plenamente, uma vez que o fracasso do seu sentimento em face das dádivas clássicas da vida a impele em direção ao vício. De modo que nisso não há, ou não precisa haver, nenhuma ofensa à vida, desde que essa atitude pode, com a mesma razão, ser considerada como uma homenagem à vida, tendo-se em conta que os refinamentos são meios de embriagar-se e de exaltar-se, stimulantia, como se costuma dizer, usados para o apoio e a elevação da sensibilidade, de maneira que, apesar de tudo, a vida é a sua finalidade e o seu objetivo, o amor ao sentimento, o desejo de sentimento que experimenta a insuficiência... Parece-me... Que é que estava dizendo? Não bastava aquela insolência democrática de empregar as palavras “um de nós dois” ao referir-se de um lado a uma personalidade e do outro a si próprio? Vinha-lhe a coragem necessária para tal ousadia de um passado que punha em dúvida certos direitos de posse? Que lhe dera na veneta quando se metia nessa análise igualmente petulante do “vício”? A única coisa que agora lhe restava fazer era sair do apuro, pois tornou-se evidente que acabava de desencadear uma tempestade terrível. Enquanto o seu convidado falava, Mynheer Peeperkorn tinha permanecido na sua posição anterior, com o corpo atirado para trás e a cabeça curvada sobre o peito, de modo que não se podia saber se as palavras de Hans Castorp lhe penetravam na consciência. A essa altura, porém, pouco a pouco, quanto mais se confundia o jovem, mais se empertigava o holandês, afastando-se do espaldar e aparecendo em toda a sua grandeza; ao mesmo tempo, a majestosa cabeça tornava-se rubra e congestionada; subiam, entesando-se, os arabescos da fronte; os olhinhos dilatavam-se numa ameaça indistinta. Que estava se preparando? Um acesso de raiva parecia a ponto de se desencadear, comparado com o qual o anterior não passava de um ligeiro agastamento. O lábio inferior de Mynheer comprimia-se contra o superior numa expressão de ira violenta, fazendo descer os cantos da boca e avançar o queixo. Lentamente, o braço direito ia se distanciando da mesa; levantou-se até a altura da cabeça, com o punho cerrado, tomando um magnífico impulso para o golpe que aniquilaria o palrador democrático. Tomado de susto, mas também cheio de um fantástico prazer devido a essa imagem expressiva da indignação de um rei, este apenas era capaz de ocultar o medo e a vontade de fugir que sentia. – Sem dúvida me expressei mal – apressou-se a dizer conciliadoramente. – Tudo isso depende da envergadura e de nada mais. Não se pode qualificar de vício o que tem grandeza. O vício não a tem nunca, nem tampouco os prazeres refinados. Mas em todos os tempos, o homem ávido de sentimentos tem disposto de um recurso, de um meio de se exaltar e embriagar, que faz parte das dádivas clássicas da vida, e cujo caráter é simples, sagrado, e por conseguinte oposto ao vício. É um recurso de grande envergadura, por assim dizer. Falo do vinho, um presente divino feito aos homens, segundo já afirmavam os povos humanísticos da Antigüidade, a invenção filantrópica de um deus, relacionada com a própria civilização. Não se diz que graças à arte de plantar a vinha e de se espremer a uva os homens abandonaram o estado de selvageria e se civilizaram? Ainda hoje, os povos em cujos países há parreiras são considerados mais civilizados, ou pelo menos julga-se assim, do que aqueles que não têm vinho, os cimérios; e isso me parece realmente notável, porque significa que a civilização, em vez de ser um assunto do intelecto e da sobriedade ponderada, depende do entusiasmo, da ebriedade e da sensação de deleite. Não é essa também a sua opinião, se posso tomar a liberdade de lhe fazer a pergunta? Um sabido, esse Hans Castorp! Ou, como o Sr. Settembrini o formulara com certo requinte literário, um “maganão”. Imprudente e até atrevido no contato com “personalidades”, e ao mesmo tempo hábil, quando se tratava de se livrar da “encrenca”. Agora, numa situação complicadíssima, acabava de improvisar, com muita graça, um discurso em homenagem ao alcoolismo; além disso mencionara, de passagem, a “civilização”, da qual, na verdade, pouco se notava na primitividade formidável da atitude de Mynheer Peeperkorn; e finalmente conseguira abrandar e tornar inoportuna essa atitude aterradora, ao fazer uma pergunta à qual era impossível responder com o punho erguido. E de fato, o holandês suavizou o seu gesto de rancor antediluviano. Descendo lentamente, o braço se aproximava da mesa; a cabeça se descongestionava. “Tiveste sorte”, lia-se na sua fisionomia, que mostrava apenas restos da ameaça anterior. Dissipara-se a tempestade, e para liquidar o caso, interveio Mme. Chauchat, chamando a atenção do seu companheiro de viagem sobre o declínio da animação que se verificava entre os comensais. – Meu amigo, você se esquece dos seus convidados – disse em francês. – Está se dedicando com demasiada exclusividade a esse senhor, por mais importantes que sejam os assuntos a tratar. Mas nesse meio tempo o jogo parou quase completamente, e receio que os outros se aborreçam. Quer que encerremos a sessão? Imediatamente Peeperkorn voltou-se para a roda dos convidados. Com efeito, a desmoralização, a letargia, o marasmo, haviam-se alastrado entre eles, que se encontravam entregues às mais diferentes ocupações, como uma classe de colegiais quando falta a autoridade do professor. Alguns estavam a ponto de adormecer. Peeperkorn não tardou a retomar as rédeas que lhe tinham escapado da mão. – Senhoras e senhores! – gritou com o indicador levantado, e esse dedo pontudo qual uma lança parecia uma espada que desse um sinal, ou uma bandeira. Seu apelo, por sua vez, recordava o “Siga-me quem não for covarde!” de um caudilho que fizesse parar um princípio de debandada. A intervenção da sua personalidade teve o efeito imediato de unir e de reanimar o grupo. Os comensais reagiram. Compuseram as fisionomias que antes estavam frouxas. Entre sorrisos e acenos, fitaram os olhos do anfitrião, esses olhos apagados sob as rugas lineares da fronte, que davam a seu rosto a aparência de um ídolo. E o holandês fascinou-os a todos, obrigando-os a se dedicar novamente ao serviço, apenas abaixando a ponta do indicador em direção ao polegar e elevando os demais dedos com as unhas compridas. Com um gesto que ao mesmo tempo protegia e moderava, espalmou as mãos de capitão, enquanto dos lábios doloridos e gretados se desprendiam palavras cuja indistinção e falta de nexo exerciam, graças ao apoio da sua personalidade, uma poderosa influência sobre os espíritos. – Senhoras e senhores! Muito bem. A carne, senhoras e senhores, é infelizmente... Basta! Não, permitam-me que... “Fraca”, reza a Escritura. “Fraca”, isto é, propensa a esquivar-se às exigências que... Mas eu apelo à sua... Numa palavra, senhoras e senhores, eu a-pe-lo. Talvez me digam que o sono... Muito bem, senhoras e senhores, ótimo, excelente. Eu amo o sono e honroo. O sono faz parte das... Como o formulou o senhor, meu caro jovem?... das dádivas clássicas da vida, e entre elas ocupa o primeiro, o primeiríssimo... Perdão, senhoras e senhores... O supremo. Queiram, porém, observar e lembrar-se... Getsêmani! “E, tendo tomado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu... Disse-lhes então: Ficai aqui e velai comigo”. Os senhores se lembram? “Depois foi ter com seus discípulos, e encontrou-os dormindo, e disse a Pedro: Visto isso, não pudestes velar uma hora comigo?” E intenso, senhoras e senhores! Pungente, emocionante! “E foi novamente, e encontrou-os dormindo; porque seus olhos estavam pesados por causa do sono... E disse-lhes: Dormi agora e descansai; eis que está próxima a hora...” Senhoras e senhores, é lancinante, dilacera o coração... De fato, todos estavam comovidos e envergonhados até o fundo da alma. O holandês tinha as mãos juntas sobre o peito, por cima do cavanhaque ralo, e inclinava obliquamente a cabeça. Seu olhar apagado turvara-se em face da tristeza solitária e mortal que lhe brotara dos lábios gretados. A Srª. Stöhr soluçava. A Srª. Magnus soltou um profundo suspiro. O Promotor Paravant, na qualidade de representante dos convidados, como uma espécie de delegado, viu-se induzido a dirigir, em voz abafada, algumas palavras ao venerado anfitrião, para garantir-lhe a lealdade de todos os seus vassalos. Devia haver um equívoco. Ninguém estava cansado; todos se sentiam alegres, dispostos, animados, cheios de bom humor e plenamente atentos. Era uma noite tão linda, tão festiva, uma noite simplesmente extraordinária; todos compreendiam isso e tinham a mesma sensação. Ninguém pensava por enquanto em lançar mão daquela dádiva da vida que era o sono. Mynheer Peeperkorn podia contar com os seus convidados em conjunto e com cada um em particular. – Perfeitamente! Magnífico! – exclamou Peeperkorn, empertigando-se. Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial. Até mesmo uma covinha de sibarita assomou-lhe subitamente na face. “Eis que está próxima a hora...” E pediu o cardápio. Colocou no nariz um pincenê com aros de chifre, e cuja ponte se erguia na altura da testa. Encomendou champanha, três garrafas de Mumm & Cia., Cordon rouge, très sec, acompanhadas de petits fours, pequenas guloseimas, deliciosas e coniformes, com uma saborosa massa cor de barro, revestida de um glacê de açúcar, recheadas de cremes de chocolate e de pistache, e oferecidas sobre papeizinhos com beiras rendadas. A Srª. Stöhr lambia os dedos ao prová-las. O Sr. Albin, com uma calma displicente, libertou a primeira rolha da sua gaiola de arame e deixou o cogumelo de cortiça desprender-se do gargalo adornado, com o estalo de uma pistola de criança, e saltar até o teto. Em seguida, conforme a tradição elegante, embrulhou a garrafa num guardanapo, antes de despejar o vinho. A nobre espuma molhou o linho das toalhas que cobriam as mesinhas auxiliares. Fizeram tinir as taças, e esvaziaram-nas de um só trago. O estômago sentia-se eletrizado pelas cócegas do líquido gelado e aromático. Os olhos começaram a brilhar. O jogo ficara interrompido, sem que se dessem o trabalho de recolher as cartas e o dinheiro espalhado na mesa. A roda abandonou-se a um deleitoso far niente, mesclado com uma conversação sem nexo, cujos elementos cada um extraía da sua sensibilidade aguçada; elementos sumamente promissores na sua fase primitiva, mas que no caminho à expressão se haviam transformado numa algaravia fragmentária, entaramelada, entre indiscreta e incompreensível, capaz de envergonhar ou enfurecer qualquer pessoa sóbria que a ouvisse. A essa altura, porém, os comensais suportavamna sem nenhuma objeção, visto se acharem todos no mesmo estado. Até a Srª. Magnus tinha as orelhas rubras e alegava sentir como a vida pulsava nas suas veias; afirmação de que o marido parecia gostar pouco. Hermine Kleefeld, recostando-se ao ombro do Sr. Albin, estendia-lhe a taça para que a enchesse de vinho. Peeperkorn dirigia a bacanal com esmerados gestos dos dedos de unhas pontudas. Também providenciou o abastecimento e os reforços. Depois do champanha, mandou trazer café, moca fortíssimo, que vinha novamente acompanhado de “pão” e, para as senhoras, de licores doces, mas picantes, como são apricots brandy, chartreuse, creme de vanille e maraschino. Mais tarde apareceram ainda filés de peixe avinagrado e cerveja, e finalmente chá, de duas espécies, chá chinês e chá de macela, para quem não preferisse conservar-se fiel ao champanha ou aos licores, ou ainda voltar a beber um vinho genuíno. Assim fazia Mynheer, cujo processo de purificação íntima progredira, depois da meia-noite, em direção a um tinto suíço de um bouquet ingênuo, que tomava em companhia de Mme. Chauchat e de Hans Castorp, e do qual emborcava taça após taça, como para saciar uma sede real. À uma hora, a sessão festiva ainda se arrastava, prolongada ora pela paralisia plúmbea da embriaguez, ora pelo prazer singular de desperdiçar a noite, ora enfim pela influência da personalidade de Peeperkorn e pelo exemplo infausto de São Pedro e dos seus, cuja fraqueza ninguém queria imitar. De modo geral, o belo sexo parecia menos exposto a tal perigo; pois, ao passo que os homens, corados ou pálidos, bufando, com as pernas esticadas, bebiam apenas mecânica e esporadicamente, sem revelar o verdadeiro entusiasmo no cumprimento do dever, as mulheres mostravam-se mais ativas. Hermine Kleefeld, com os cotovelos desnudos apoiados na mesa e com o rosto fincado entre as mãos, exibiu rindo a brancura dos seus dentes ao cacarejante Ting-Fu, enquanto a Srª. Stöhr, achegando o queixo ao ombro avançado, lançava ao Promotor Paravant olhares faceiros que lhe deviam fomentar a vontade de viver. A Srª. Magnus chegara ao ponto de instalar-se sobre os joelhos do Sr. Albin e de puxá-lo pelas orelhas, o que o Sr. Magnus observava com manifesto alívio. Anton Karlovitch Ferge foi solicitado a contar a história do choque pleural, mas a língua embargada impediu-o de realizar o intento; assim ele confessou francamente o seu fracasso, que os outros unanimemente consideraram motivo para beber mais. Durante alguns instantes, Wehsal verteu lágrimas amargas, que brotavam de certos abismos da miséria, cuja profundeza a sua língua já não estava em condições de desvendar à humanidade; mas, por meio de café e de conhaque, conseguiram endireitá-lo espiritualmente. Os gemidos que se arrancavam de seu peito e o queixo rugoso, trêmulo, inundado de lágrimas despertaram, por outro lado, o mais vivo interesse de Peeperkorn, que, erguendo o polegar e alçando os arabescos da fronte, chamou a atenção de todos sobre o estado de Wehsal. – Isto é... – disse. – Realmente, isto é... Não, permita-me: sagrado! Seque-lhe o queixo, minha filha! Tome o meu guardanapo! Não! Melhor deixá-lo em paz! Ele mesmo não quer. Senhoras e senhores! Sagrado! Sagrado sob todos os aspectos, no sentido cristão como no pagão! Um fenômeno primevo! Um fenômeno de primeira... de suprema... Não, não, isto é mesmo... Essas palavras “Isto é...” e “Isto é mesmo...” formavam o Leitmotiv das explicações e dos comentários que acompanhavam os seus gestos precisos, ainda que estes, com o tempo, tivessem assumido caráter levemente grotesco. Tinha ele um jeito de manter à altura da orelha o anel que o polegar formava com o indicador, e de afastar dele a cabeça inclinada, com uma expressão humorística que despertava sensações iguais àquelas que originaria um sacerdote idoso de um culto estranho, que dançasse diante do altar de sacrifícios, arregaçando a vestimenta com uma graça refinada. Em outra ocasião, refestelando-se em toda a sua grandeza, com os braços a cingir os espaldares das cadeiras vizinhas, obrigou os comensais, para grande perplexidade de todos, a evocar, junto com ele, a visão viva e intensa da manhã, uma gélida e sombria manhã de inverno, com a luz amarela da lâmpada de cabeceira espelhando-se na vidraça, sobre um fundo de ramaria calva, que lá fora se ouriçava na madrugada brumosa, glacial, áspera como o grito das gralhas... Pela descrição sugestiva, soube dar tanta força a esse quadro singelo e cotidiano, que os convidados ficaram todos arrepiados, principalmente quando lhes recordou a água gelada espremida de uma grande esponja sobre a nuca, e que qualificou de sagrada. Tudo isso era apenas uma digressão, um exemplo destinado a ensinar-lhes a atenção em face das coisas da vida, um improviso fantástico, que ele logo abandonou, para novamente devotar a sua fervorosa ênfase e a presença dos seus sentimentos a essa hora noturna, festivamente desenfreada. Mostrou-se apaixonado por tudo quanto era mulher que se achava a seu alcance, sem preferências nem discriminação. Fez à anã declarações tais que o rosto envelhecido, excessivamente grande, da desgraçada criatura se enrugou todo num vasto sorriso. Disse à Srª. Stöhr galanteios de tal calibre que essa mulher, já naturalmente vulgar, avançando ainda mais o ombro, levou a sua costumeira afetação às raias da perfeita loucura. Pediu à Kleefeld lhe desse um beijo na boca ampla e gretada, e perseguiu até a insípida Srª. Magnus – tudo isso sem detrimento da terna dedicação que demonstrava à sua companheira de viagem, cuja mão freqüentemente levava aos lábios, com um ardor cavalheiresco. – O vinho... – disse. – As mulheres... Isto é... Isto é mesmo... Permitam-me... Fim do mundo... Getsêmani... Por volta das duas horas espalhou-se o boato de que o “Velho”, quer dizer, o Dr. Behrens, se aproximava a passo acelerado das salas de reunião. No mesmo instante produziu-se grande pânico entre os pensionistas enervados. Cadeiras e baldes de gelo foram derrubados. Os convidados fugiram pela porta da biblioteca. Peeperkorn, tomado de raiva majestosa, ao ver o brusco encerramento da festa, deu com o punho na mesa e gritou: “Escravos medrosos!” por trás do pessoal que se sumia. Mas Hans Castorp e Mme. Chauchat conseguiram que ele se conformasse, até certo ponto, com a idéia de que esse festim, depois de quase seis horas de duração, tinha de terminar, afinal. Também aquiesceu quando lhe relembraram o sagrado regalo do sono, e permitiu que o levassem para a cama. – Ampare-me, minha filha! Ampare-me do outro lado, jovem – disse a Mme. Chauchat e a Hans Castorp. E eles ajudaram-no a levantar da cadeira o corpo pesado. Ofereceram-lhe o braço, e escorado por ambos começou a trilhar o caminho que o levaria ao repouso. Caminhava com as pernas abertas, inclinando a enorme cabeça para um dos ombros levantados, e empurrava ora um ora outro dos seus guias devido a seu andar cambaleante. Na realidade era um luxo real que se permitia ao exigir que o pilotassem e apoiassem dessa forma. Se o achasse necessário, provavelmente teria sido capaz de caminhar sozinho. Mas Peeperkorn desdenhou tal esforço, que, em todo caso, só poderia ter o sentido mesquinho e inferior de dissimular pudicamente a sua ebriedade, ao passo que ele, evidentemente, não tinha a mínima vergonha dela, exibindo-a de modo magnífico e exuberante. Dava-lhe um prazer régio, quando aqueles cambaleios dirigiam os seus servidores ora para a direita ora para a esquerda. Ele mesmo disse, enquanto avançavam assim: – Meus filhos... Bobagem... Não estamos nem um pouquinho... Se nesse momento... Vocês veriam... Ridículo... – Ridículo! – confirmou Hans Castorp. – Não existe a menor dúvida! Tributa-se à dádiva clássica da vida o que se lhe deve, quando se cambaleia dessa forma sem dissimulação, em sua homenagem. Seriamente... Eu também bebi bastante, mas apesar da minha pretensa embriaguez sinto com absoluta clareza a honra especial que me coube por poder conduzir à cama uma autêntica personalidade. Tão fraco é o efeito que a embriaguez exerce sobre mim, cuja envergadura nem sequer pode ser comparada com... – Ora, ora, pequeno tagarela – disse Peeperkorn, enquanto, a passo vacilante, o comprimia contra o corrimão da escada, arrastando consigo Mme. Chauchat. O rumor de que o conselheiro se aproximava não passava, como se manifestou, de um rebate falso. Talvez tivesse sido posto em circulação pela anã fatigada, na intenção de dar cabo da reunião. Nessas circunstâncias, Peeperkorn estacou e fez menção de voltar para continuar com a bebedeira. Mas de ambos os lados recebeu sugestões em contrário, e assim consentiu em que o pusessem novamente em movimento. O criado malaio, aquele homenzinho com gravata branca e sapatos de seda preta, esperava o patrão no corredor, diante da porta do apartamento. Acolheu-o com uma mesura, levando uma das mãos ao peito. – Beijem-se! – ordenou Peeperkorn. – Meu caro jovem, dê um beijo de despedida na fronte dessa encantadora mulher! – acrescentou, dirigindo-se a Hans Castorp. – Ela não fará objeções e lhe retribuirá. Façam isso à minha saúde e com a minha licença! – terminou; mas Hans Castorp se negou a executar a ordem. – Não, Majestade – disse. – Desculpe, mas não é possível. Peeperkorn, encostado ao malaio, alçou os arabescos da fronte e quis saber por que isso não era possível. – Porque não posso trocar com a sua companheira de viagem beijos na fronte – explicou Hans Castorp. – Desejo-lhe uma boa noite. Não, isso seria sob todos os aspectos uma grande tolice. E como também Mme. Chauchat se encaminhasse à porta do seu quarto, Peeperkorn consentiu em que se afastasse o jovem obstinado. Verdade é que o acompanhou ainda algum tempo com os olhos, tendo a testa franzida. Tamanha surpresa lhe causava essa insubordinação que sua natureza de soberano não estava acostumada a encontrar. Mynheer Peeperkorn (Continuação) Mynheer Peeperkorn residiu no Sanatório Berghof durante todo esse inverno – quer dizer, durante os meses que ainda restavam dele – e ainda uma parte da primavera, de modo que antes do fim se pôde realizar uma notável excursão coletiva – também Naphta e Settembrini tomaram parte nela – ao vale de Fluela e à cascata que ali existe... Antes do fim? Quer dizer que não ficou mais tempo? Não, não ficou mais tempo. Partiu, então? Sim e não. Sim e não? Nada de mistérios, por favor! É preciso resignar-se. Também o Tenente Ziemssen faleceu, sem falar de muitas outras pessoas menos honradas que entraram na dança da morte. De maneira que o confuso Peeperkorn morreu daquela febre maligna? Não, assim não se deu. Mas por que tanta impaciência? Deve-se respeitar a condição da vida e da narrativa, segundo a qual as coisas não podem acontecer todas ao mesmo tempo. Cumpre não rebelar-se contra as formas do conhecimento humano que Deus nos conferiu. Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou – se essa expressão, porventura, soa por demais barulhenta – vai deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem se demorar, significa sabe Deus o quê. Já faz anos – isto é indiscutível – que nos achamos aqui em cima. Sentimo-nos tomados de vertigem. Sonhamos um sonho vicioso, sem ópio nem haxixe, e o censor que vela pelos bons costumes não deixará de condenar-nos. E todavia nos empenhamos, propositadamente, em opor à névoa perniciosa a mais intensa clareza de raciocínio e o máximo de agudeza lógica. Não é por acaso – convém reconhecer esse fato – que nos rodeamos de inteligências como as dos senhores Naphta e Settembrini, ao invés de nos cercarmos exclusivamente de esfumados Peeperkorns. Verdade é que isso nos leva a uma comparação que, sob certos pontos de vista, principalmente no que se refere à envergadura, resultaria vantajosa para a personagem posteriormente apresentada. Também Hans Castorp chegava a essa conclusão, quando se achava estendido no seu compartimento de sacada e refletia sobre os dois educadores excessivamente articulados, que lhe disputavam a pobre alma. Verificava então que eles pareciam anões em confronto com Pieter Peeperkorn, a ponto de sentir-se inclinado a qualificá-los de “pequenos tagarelas”, da mesma forma como o holandês, na sua regia ebriedade, fizera humoristicamente com ele mesmo. Julgava feliz e proveitoso o contato com uma autêntica personalidade, que a pedagogia hermética lhe proporcionava, além do mais. Que essa personalidade fosse o companheiro de viagem de Clávdia e como tal constituísse imenso obstáculo, era problema à parte, que no entanto não perturbava a objetividade de Hans Castorp. A simpatia sinceramente respeitosa, embora às vezes um tanto atrevida, que lhe inspirava esse homem de grande envergadura não era perturbada – repetimo-lo – pela simples circunstância de ele viver em comunhão de bens com uma mulher que emprestara um lápis a Hans Castorp numa noite de carnaval. Nosso jovem não era de índole a deixar-se influenciar por essas coisas. Não duvidamos de que certos leitores ou leitoras se escandalizarão com tamanha “falta de temperamento” e prefeririam que ele odiasse e evitasse Peeperkorn, que o tratasse, no seu íntimo, de velho burro e de beberrão tartamudo, em vez de visitá-lo por ocasião dos seus ataques de febre intermitente, de sentar-se à beira da sua cama, de conversar com ele (esse verbo naturalmente só se refere às contribuições que o colóquio recebia da parte de Hans Castorp, e não às do grandioso Peeperkorn) e de sujeitar-se ao influxo dessa personalidade, com o espírito curioso de quem viaja para se instruir. Mas era precisamente o que ele fazia, e relatamos o fato indiferentes ao perigo de que diante disso alguém se possa recordar de Ferdinand Wehsal, que costumava carregar o sobretudo de Hans Castorp. Essa reminiscência não demonstra coisa alguma. O nosso herói não era nenhum Wehsal. Nada tinha que ver com os abismos da miséria. Apenas não era “herói”, quer dizer, a mulher não lhe determinava as relações para com tudo quanto é homem. Fiéis ao nosso princípio de não o apresentar nem melhor nem pior do que era, constatamos que ele se recusava simplesmente – não de forma intencional e expressa, mas de modo todo ingênuo – a consentir que influências romanescas o impedissem de ser justo no julgamento do seu próprio sexo e o privassem da capacidade de apreciar experiências realizadas nessa esfera, e que pudessem ser proveitosas para a sua formação. Pode ser que essa atitude não agrade às mulheres, e, se não nos enganamos, Mme. Chauchat, sem querer, a achava chocante; certas indiretas que lhe haviam escapado, e que assinalaremos no que se segue, indicam isso. Mas talvez fosse justamente devido a essa qualidade que Hans Castorp era objeto bastante próprio para disputas pedagógicas. Peeperkorn achava-se freqüentemente acamado. Não causará espécie que estivesse doente também no dia seguinte àquela noite de jogo e de champanha. Quase todos os que haviam participado da sessão prolongada e exaustiva sentiam-se mal, inclusive Hans Castorp, que sofria de forte dor de cabeça. Mas nem por isso deixou de visitar o anfitrião da véspera no seu quarto de enfermo. Fez-se anunciar pelo malaio, que encontrou no corredor do primeiro andar, e foi introduzido. Entrou no dormitório do holandês, onde havia duas camas. Antes atravessara um salão que o separava do quarto de Mme. Chauchat. Pôde verificar que esses aposentos diferiam das peças normais que o Berghof alugava aos pensionistas, tanto pelas dimensões como pela elegância da mobília. Existiam ali poltronas forradas de seda e mesas de pernas arqueadas. Um tapete fofo cobria o chão, e também as camas não pertenciam ao tipo vulgar de higiênicos leitos de morte. Eram até suntuosas, feitas de cerejeira polida, com guarnições de latão, e tinham um pequeno dossel comum, sem cortinas pendentes; apenas um baldaquinozinho protetor que as unia. Peeperkorn estava estendido sobre um dos dois leitos. Na colcha de seda vermelha viamse livros, cartas e jornais. Com o pincenê de aros de chifre colocado muito alto na testa, lia o Telegraaf. Sobre uma cadeira ao lado da cama havia um serviço de café e uma garrafa de vinho tinto meio vazia; era o mesmo da noite anterior, com o bouquet ingênuo. Na mesinha-de-cabeceira achavam-se vidros de remédios. Para discreta surpresa de Hans Castorp, a camisola que o holandês usava não era branca, mas de lã, com mangas compridas, abotoadas nos punhos, e tinha, em vez de gola, um decote redondo; ajustava-se estreitamente aos largos ombros e ao peito imponente do velho. A grandiosidade humana da cabeça que jazia sobre o travesseiro ressaltava em virtude desse traje, que a distanciava da esfera burguesa e imprimia à figura de Peeperkorn um cunho que fazia pensar num homem do povo, num proletário, como nos traços imortalizados de um busto. – Perfeitamente, meu caro jovem – disse, enquanto pegava no arco do pincenê para tirálo. – Faça-me o favor... Absolutamente. Pelo contrário. – E Hans Castorp sentou-se junto dele, escondendo o seu assombro compassivo – a não ser que fosse admiração real aquilo que lhe impunha o seu senso de justiça. Para dissimular esse sentimento, recorreu a lugares-comuns amistosos e animados, que Peeperkorn secundava com frases impressionantemente abruptas e com uma gesticulação enfática. O holandês não tinha bom aspecto. Seu rosto estava amarelo e mostrava traços de sofrimento e fadiga. Pela manhã, tivera violento acesso de febre, e o subseqüente cansaço aliava-se à ressaca provocada pela embriaguez da véspera. – Ontem fomos um tanto longe – disse. – Não, permita-me... Foi exagerado e prejudicial... O senhor ainda está... Bem, no seu caso não faz mal. Mas na minha idade e para a minha abalada... Minha filha – prosseguiu, dirigindo-se com terna mas decidida severidade a Mme. Chauchat, que acabava de entrar pela porta do salão –, está tudo muito bem, mas eu lhe repito que teria sido melhor vigiar-me e impedir-me de... – Enquanto proferia essas palavras, vibravam-lhe nas feições e na voz os prenúncios de um ataque de raiva soberana. Mas bastava imaginar a tempestade que teria irrompido se alguém houvesse feito uma tentativa de estorvar-lhe seriamente a bebedeira, para avaliar a totalidade da injustiça e da insensatez dessa censura. Essas coisas talvez sejam inerentes à grandeza. Com efeito, a sua companheira de viagem passou por cima do assunto e cumprimentou Hans Castorp, que se levantara. Não lhe deu a mão, mas limitou-se a sorrir e a pedir “que não se incomodasse, por favor” e que “de maneira alguma” interrompesse o seu tête-à-tête com Mynheer Peeperkorn. Logo se entregou a uma série de atividades. Mandou o criado retirar o serviço de café. Desapareceu por alguns instantes e voltou com aquele seu andar felino. Sem sentar-se, procurou tomar parte na conversa, ou – se queremos aderir à opinião vaga de Hans Castorp – empenhou-se em controlá-la um pouquinho. Claro! Tinha plena liberdade de regressar ao Sanatório Berghof em companhia de uma personalidade de grande envergadura; mas, quando o homem que tanto esperara por ela prestava a essa personalidade as devidas honras, de homem para homem, ela se mostrava inquieta e mesmo sarcástica, com todos esses “por favor” e “de maneira alguma”. Hans Castorp sorriu disso, baixando bem a cabeça, a fim de ocultar o sorriso. Ao mesmo tempo sentiu-se abrasado de alegria interior. Peeperkorn serviu-lhe uma taça de vinho, da garrafa que se encontrava na mesinha-decabeceira. Nas atuais circunstâncias – opinava o holandês –, o melhor que se podia fazer era continuar no ponto onde haviam parado à noite anterior, e esse vinho leve tinha o mesmo efeito que água de soda. Bebeu à saúde de Hans Castorp, e este, enquanto bebia, observou como a sardenta mão de capitão, com as unhas pontudas e com o punho abotoado da camisola de lã a estreitar-lhe o pulso, erguia o copo, como os lábios amplos e gretados pousavam-lhe na borda, e como o vinho deslizava pela garganta proletária ou escultural, que alternadamente se levantava e descia. Depois vieram a falar do remédio que se via no criado-mudo, um líquido pardo do qual Peeperkorn engoliu uma colherada, a conselho e com o auxílio de Mme. Chauchat. Tratava-se de um antipirético à base de quinina. Peeperkorn fez com que o visitante o provasse para conhecer o gosto característico, amargo e contudo aromático do preparado. A seguir manifestou seu elogio ao quinina, que não somente era uma bênção por destruir os germes e por exercer um efeito salutar sobre o centro regulador da temperatura, mas também merecia ser apreciado como tônico: reduzia o metabolismo da albumina, favorecia a assimilação dos alimentos; numa palavra, constituía uma poção feita para regalar a gente, um remédio magnífico, que fortalecia, estimulava e reavivava. Também era inebriante, e seria fácil uma pessoa embriagar-se de quinina – acrescentou, pilheriando e esboçando gestos sugestivos com a cabeça e a mão, que novamente o assemelhavam a um sacerdote pagão a dançar. Que substância maravilhosa, essa casca febrífuga! Não fazia, aliás, nem três séculos que a farmacologia européia sabia da sua existência, e não haviam decorrido cem anos desde que a química descobrira o alcalóide ao qual essa casca devia as suas virtudes, isto é, o próprio quinina. Descobrira-o e analisara-o até certo ponto, mas não podia pretender ter elucidado completamente a sua composição e não conseguira produzi-lo artificialmente. Falando de modo geral, a nossa farmacologia faria bem em não se gabar blasfemamente da sua sabedoria, pois em face de muitas outras matérias acontecia-lhe o mesmo. Tinha ela certos conhecimentos a respeito do dinamismo, dos efeitos das substâncias, mas o problema de encontrar a causa exata desses efeitos freqüentemente lhe criava sérios embaraços. Se o jovem se ocupasse um pouquinho com a toxicologia, verificaria que ninguém era capaz de informá-lo acerca das qualidades elementares que determinavam os efeitos dos chamados venenos. Havia, por exemplo, os venenos das serpentes, dos quais se sabia apenas que essas secreções animais pertenciam ao grupo dos compostos de albumina, constavam de diversos tipos de albuminóides e produziam os seus efeitos fulminantes somente numa combinação determinada, que no entanto permanecia totalmente indeterminada. Quando introduzidas na circulação do sangue, originavam conseqüências pasmosas, uma vez que ninguém estava acostumado a ver a albumina agir como peçonha. Mas, quanto ao mundo das substâncias químicas – dizia Peeperkorn, que se soerguera no travesseiro e elevava o anel da precisão e os dedos lanciformes ao lado da cabeça com os olhos apagados e com os arabescos da fronte –, quanto às substâncias químicas, a verdade era esta: todas elas eram ao mesmo tempo medicamentos e venenos; a farmacologia e a toxicologia eram a mesma coisa; os doentes se curavam por meio de tóxicos, e o que era considerado como portador da vida podia, sob certas circunstâncias, produzir um espasmo que matava no lapso de um segundo. O holandês falava, com muita insistência e de modo mais coerente do que em geral, sobre remédios e peçonhas. Hans Castorp escutava-o, sacudindo a cabeça obliquamente inclinada. O que lhe interessava era menos o conteúdo das palavras de Peeperkorn, que parecia intimamente preocupado com o seu assunto, do que o estudo silencioso dos fatores que originavam aquela influência da sua personalidade, que no fundo era tão inexplicável quanto os venenos das cobras. O dinamismo – expunha Peeperkorn – era o que importava no mundo das substâncias; todo o resto era condicionado a ele. Também o quinina era um veneno medicativo, de natureza sumamente poderosa. Quatro gramas dele bastavam para causar surdez e vertigens, para cortar a respiração, para turvar a vista à maneira da tropina, e para embriagar o paciente tal e qual o álcool. Os operários que trabalhavam nas fábricas de quinina tinham os olhos inflamados e os lábios inchados, além de sofrer erupções da pele. Pôs-se a tratar da cinchona, da árvore da quina, das florestas virgens das cordilheiras, onde, a três mil metros de altura, estava o seu habitat, e donde a sua casca, sob a denominação de “pó dos jesuítas”, chegara à Espanha numa época muito tardia, ao passo que os indígenas da América do Sul conheciam-lhe havia muito a força. Descreveu as enormes plantações de cinchona que o governo holandês explorava em Java, de onde anualmente eram embarcados para Amsterdam e Londres muitos milhões de quilos dessas cascas tubulares, avermelhadas e parecidas com a canela... De forma generalizada podia-se dizer que as cascas, o tecido que envolvia as árvores, desde a epiderme até o cerne, eram muito interessantes; quase sempre possuíam extraordinárias qualidades dinâmicas, tanto para o bem como para o mal. Os conhecimentos que os povos de cor haviam desenvolvido com respeito às drogas eram muito superiores aos nossos. Em algumas ilhas a leste da Nova Guiné, os jovens preparavam um filtro de amor, pulverizando a casca de determinada árvore provavelmente venenosa, como a antiaris toxicaria de Java, que tal e qual a mancenilheira empestava o ar a seu redor pelas suas exalações e aturdia mortalmente homens e animais. Aqueles jovens pulverizavam, pois, a casca dessa árvore, misturavam o pó com pedacinhos de coco, enrolavam a mistura numa folha e fritavam-na. Enquanto a adorada esquiva dormia, esguichavam-lhe no rosto o caldo assim obtido, e ela acordava apaixonada pelo homem que a borrifara. Às vezes era a casca da raiz que tinha poderes singulares, como, por exemplo, a de um cipó do arquipélago malaio, o strychnos tieuté, ao qual os indígenas adicionavam veneno de cobras, para preparar o upas-radcha, uma droga que, introduzida na circulação do sangue, por meio de uma flechada, tinha por resultado a morte instantânea, sem que ninguém soubesse explicar de que modo isso se dava. Apenas se esclarecera que o upas, no que se refere ao seu dinamismo, era parente da estricnina... E Peeperkorn, que acabava de sentar-se na cama e de vez em quando apanhava a taça de vinho com a mão de capitão ligeiramente trêmula, a fim de levá-la aos lábios gretados e de sorver grandes e ávidos tragos, falou da árvore “dos olhos de gralha”, strychnus nux-vomica, da costa do Coromandel, de cujas bagas alaranjadas, as nozes-vômicas, se extraía o mais poderoso dentre os alcalóides, a estricnina. Abafando a voz a ponto de torná-la um simples murmúrio, e içando as rugas da fronte, descreveu a ramaria cinzenta, a folhagem estranhamente lustrosa e as flores amarelo-esverdeadas dessa árvore, fazendo com que o jovem Hans Castorp tivesse dela uma imagem mesclada de melancolia e de cores histericamente exageradas, que lhe causou leves arrepios. A essa altura, Mme. Chauchat interveio na conversação, fazendo notar que falar muito não fazia bem a Peeperkorn, que a palestra o cansava e talvez lhe acarretasse um novo acesso de febre. Por maior que fosse o desgosto que sentia ao interromper a entrevista, via-se obrigada a pedir que Hans Castorp a desse por terminada esse dia. Este obedeceu, naturalmente, mas no curso dos meses seguintes eram freqüentes as ocasiões em que se achava sentado à beira da cama do homem majestoso, nos dias seguintes aos acessos de quarta, enquanto Mme. Chauchat, controlando discretamente o colóquio ou também intercalando umas poucas palavras, andava de cá para lá pelo apartamento. Também nos dias em que o holandês estava sem febre, o jovem passava muitas horas com ele e com sua companheira de viagem, adornada de pérolas. Quando o holandês não se encontrava acamado, raras vezes deixava depois do jantar de reunir em torno de si uma pequena seleção dos pensionistas do Berghof, cuja composição mudava de uma vez para outra. Iam então jogar, beber e regalar-se com boas coisas, ora no salão, como da primeira vez, ora no restaurante, e Hans Castorp ocupava o seu lugar habitual entre a mulher displicente e o homem magnífico. Até se uniam para o exercício tradicional ao ar livre; davam passeios dos quais participavam os senhores Ferge e Wehsal, e mais tarde também Settembrini e Naphta, os antagonistas no espírito, que forçosamente encontraram um dia, e que Hans Castorp se sentiu feliz de poder apresentar a Peeperkorn e – até que enfim! – a Clávdia Chauchat. Era-lhe totalmente indiferente que essa apresentação e essas novas relações fossem ou não agradáveis aos dois adversários, pois tinha a secreta convicção de que ambos necessitavam de um objeto pedagógico e prefeririam conformar-se com um séquito indesejável a renunciar às disputas travadas em sua presença. Com efeito, não se enganou na esperança de que os membros do seu variegado círculo de amigos terminariam por habituar-se ao fato de não se poderem habituar uns aos outros. Era inevitável que entre eles houvesse atritos e divergências sem conta, e até uma tácita hostilidade; e nós mesmos ficamos admirados ao ver como o nosso insignificante herói conseguia agrupá-los à sua volta. Explica-se esse êxito por certa lhaneza hábil, peculiar ao seu caráter, que lhe afigurava tudo quanto se dizia como “digno de nota” e não somente ligava a si pessoas e personalidades das mais diversas, mas também produzia uma certa ligação entre elas. Como era curioso o enredo dos fios produzidos por essas relações! Sentimo-nos tentados a mostrar por um instante essa trama complexa, assim como o próprio Hans Castorp a contemplava com olhares astutos e benevolentes, durante os referidos passeios. Havia ali o mísero Wehsal, que desejava Mme. Chauchat com ardorosa cobiça e devotava uma veneração humilde a Peeperkorn e a Hans Castorp; ao primeiro por causa do presente dominador, e ao segundo por causa do passado. Havia Clávdia Chauchat, a enferma viajante, com seu andar graciosamente felino, escrava de Peeperkorn, por sua espontânea vontade, e que, apesar de tudo, parecia um tanto desassossegada e agressiva, cada vez que observava as boas relações que existiam entre o seu senhor e o cavalheiro de uma remota noite de carnaval. Não fazia essa irritação pensar naquela outra que se manifestava na sua atitude para com o Sr. Settembrini? Esse eloqüente falador e humanista, com o qual antipatizava, e que tachava de presumido e desumano? O amigo pedagógico do jovem Hans Castorp, que Mme. Chauchat gostaria imensamente de interrogar sobre o significado de certas palavras da sua língua mediterrânea, que ela ignorava tão completamente quanto ele a dela, embora com menos desdém: as palavras que o italiano gritara atrás do atraente moço alemão, quando esse burguesinho bonito, de boa família e com a sua mancha úmida, fazia menção de se aproximar dela? Hans Castorp, que andava, como se costuma dizer, “perdido de amor”, não no sentido pejorativo que às vezes se dá a essa expressão, mas assim como amam os que são acometidos de uma paixão proibida e insensata, que não poderia ser decantada nas inocentes cantigazinhas da planície – Hans Castorp, embora malferido por esse amor, que o tornara dependente, servo, sofredor e submisso, era todavia capaz, em plena escravidão, de guardar uma boa dose de malícia, o suficiente para saber quanto valor a sua dedicação tinha e continuaria tendo para com a lânguida enferma de encantadores olhos tártaros e rasgados. E não obstante toda a sua submissão sofredora, o jovem sabia que era possível demonstrar esse valor a Mme. Chauchat. Bastaria para isso que ela observasse a atitude do Sr. Settembrini com relação à sua pessoa, atitude que logo lhe confirmaria claramente quaisquer suspeitas, por ser tão hostil como o permitia a polidez humanística. Mas o pior – ou, sob o ponto de vista de Hans Castorp, o mais vantajoso – era que ela tampouco se viu compensada pelas suas relações com Naphta, das quais esperara muito mais. Verdade é que ali não encontrava a animosidade que por princípio o Sr. Lodovico opunha à sua maneira de ser, e as condições para uma conversa eram mais favoráveis. Com efeito, de vez em quando, Clávdia e o baixinho sutil mantinham palestras em separado, sobre livros ou sobre problemas da filosofia política, que ambos encaravam da mesma forma radical. Hans Castorp, à sua maneira singela, costumava tomar parte nesses colóquios. No entanto não podia Mme. Chauchat deixar de perceber certa reserva aristocrática nas atenções que lhe prestava aquele adventício, prudente como todos do seu tipo. O terrorismo espanhol de Naphta tinha, na verdade, pouco em comum com sua mentalidade “humana”, propensa a vagar pelo mundo e a bater as portas. A isso acrescia um derradeiro fator de natureza sumamente delicada: uma ligeira malquerença, dificilmente definível, cuja aura Mme. Chauchat, com sua sensibilidade feminina, forçosamente sentia, cada vez que lidava com um dos dois adversários, seja Naphta, seja Settembrini (assim como também a notava o seu galã de carnaval), e cuja origem se encontrava nas relações que ambos mantinham com Hans Castorp. Tratava-se da antipatia do educador contra a mulher como elemento que perturba e distrai, e esse antagonismo tácito e primitivo unia-os, já que a sua discórdia pedagógica era neutralizada por ele. Não havia traços dessa mesma aversão na conduta que os dois dialéticos adotavam ante Pieter Peeperkorn? Hans Castorp cria observá-la, talvez porque previra maliciosamente que tal aconteceria. Desejara bastante reunir o majestoso tartamudo com os seus dois “ministros”, como às vezes os chamava chistosamente no íntimo. Achara interessante ver o que resultaria desse encontro. Ao ar livre, Mynheer era menos grandioso do que num recinto fechado. O chapéu de feltro macio que ele costumava repuxar sobre os olhos, e que encobria as labaredas brancas dos cabelos e os imponentes arabescos da fronte, reduzia-lhe as feições, fazendo com que se encolhessem em certo sentido, e rebaixava a própria majestade do nariz vermelho. Além disso, Peeperkorn impressionava menos quando caminhava do que quando permanecia imóvel. Dava passos muito curtos, e a cada um deles inclinava obliquamente todo o seu corpo pesado e mesmo a cabeça, lançando a carga inteira sobre o pé que avançava no respectivo momento, o que fazia pensar antes num velho bonachão do que num rei. Em vez de empertigar-se ao andar, como costumava fazer quando se detinha, assumia postura um tanto encurvada. Mesmo assim, ultrapassava por mais de um palmo o Sr. Lodovico, sem falar do pequeno Naphta, e esse não era o único motivo por que a sua presença pesava muito, e da mesma forma como o pressentira Hans Castorp, sobre a existência dos dois políticos. Do confronto resultava uma pressão, uma diminuição, um prejuízo, e tudo isso era perceptível não somente para um observador sagaz, mas também para as próprias personagens comparadas, os baixotes eloqüentes tanto como o magnífico tartamudo. Peeperkorn tratava Naphta e Settembrini com extraordinária cortesia e com extrema atenção; devotava-lhes um respeito que Hans Castorp qualificaria de irônico, não o impedisse a plena compreensão da incompatibilidade desse adjetivo com o conceito da grande envergadura. Os reis não conhecem a ironia, nem sequer como meio correto, clássico, de retórica, e ainda menos num sentido mais complexo. Aquilo que, escondido sob uma camada de seriedade um tanto exagerada, ou também de forma patente, caracterizava a atitude do holandês em face dos amigos de Hans Castorp era antes uma zombaria delicada e grandiosa ao mesmo tempo. – Pois é! Pois é! – dizia então, enquanto os ameaçava com o dedo e inclinava a cabeça com os lábios gretados abertos num sorriso jovial. – Isto é... Isto são... Senhoras e senhores, eu chamo a sua atenção... Cerebrum, cerebral! Compreendem? Não, não, ótimo! Esquisito! Isto é... Já se vê... – E eles vingavam-se trocando olhares que, depois de se terem encontrado, se elevavam ao céu, numa expressão de desespero. A seguir procuravam os olhos de Hans Castorp, mas este se esquivava. Acontecia, então, o Sr. Settembrini pedir diretamente explicações do seu discípulo, manifestando assim a sua inquietação pedagógica. – Mas, por amor de Deus, engenheiro! Esse homem é um velho estúpido! Que é que o senhor acha nele? De que forma lhe pode ser útil? Simplesmente não posso entender. Tudo seria claro, embora não digno de elogios, se o senhor se resignasse com a existência dele e procurasse na sua companhia apenas a da sua atual amante. Mas é impossível não perceber que o senhor quase dedica mais atenção a ele do que a ela. Ajude-me a compreender, peço-lhe! – Perfeitamente – respondeu Hans Castorp, rindo. – Ótimo! Isto é... Permita-me... Muito bem. – E fez uma tentativa de arremedar os gestos esmerados de Peeperkorn. – Sim, senhor – continuou, ainda rindo. – Isso lhe parece estúpido, Sr. Settembrini, e indiscutivelmente não é claro, coisa que, a seus olhos, deve ser pior do que estúpido. Ora, a estupidez... Há tantos tipos de estupidez, e a argúcia não é o melhor dentre eles... Upa! Tenho a impressão de que acabo de formular um bon mot. Que acha disso? – Excelente. Aguardo ansiosamente a publicação do seu primeiro livro de aforismos. Talvez ainda não seja tarde para rogar-lhe que, ao escrevê-lo, leve em consideração certas idéias que ventilamos certa vez, com referência ao perigo que o paradoxo encerra para o homem. – Não deixarei de seguir o seu conselho, Sr. Settembrini. É o que farei, sem falta. Quando me ocorreu aquele mot, eu absolutamente não andava caçando paradoxos. Desejava apenas assinalar as enormes dificuldades que cria – sim, trata-se mesmo de criar – a definição de estupidez e de argúcia. É tão difícil distingui-las, porque uma se confunde com a outra... Sei perfeitamente que o senhor detesta o guazzabuglio místico e opina pelo valor, pelo juízo, pela apreciação dos valores. Quanto a isso, concordo inteiramente. Mas, quanto à “estupidez” e à “argúcia”, isto constitui às vezes um completo mistério, e deve ser lícito a gente se ocupar de mistérios, contanto que haja o sincero esforço de desvendá-los, se possível. Quero perguntar-lhe uma coisa. Pergunto: pode o senhor negar que ele nos mete a todos no chinelo? Sirvo-me de uma locução meio vulgar; mas, como vejo, o senhor não pode negá-lo. Ele nos mete no chinelo, e por esta ou aquela razão tem o direito de nos ridicularizar. De onde? Por quê? Em que sentido? Claro que esse direito não lhe veio em virtude da sua argúcia. Admito que no caso dele mal se pode falar de argúcia. Pelo contrário, o seu forte é o inarticulado e o sentimento. O sentimento é mesmo o seu cavalo de batalha; perdoe-me essa expressão da linguagem popular. Eu repito: não é devido à argúcia que nos mete no chinelo, quer dizer, não o faz pelas suas qualidades intelectuais. O senhor protestaria, se eu afirmasse o contrário, e de fato isso não entra em questão. Não é tampouco por causa das suas qualidades físicas. Por causa das suas espáduas de capitão, por respeito à força brutal dos seus braços, e porque ele seria capaz de derrubar qualquer um de nós com um só murro. Mas nem pensa em fazer isso, e se alguma vez pensasse, bastariam algumas palavras civilizadas para acalmá-lo... Não é, portanto, por causa das suas qualidades físicas. E, todavia, não há dúvida de que fatores físicos desempenham um certo papel no seu caso; não no sentido da força dos braços, senão num outro, místico. Cada vez que o corpo desempenha um papel, entra-se no terreno do místico. O elemento corporal confunde-se então com o espiritual, e vice-versa, de maneira que é impossível distingui-los. Mas nota-se o efeito, o dinamismo, e já nos achamos metidos no chinelo. Para explicar esse fato, dispomos de uma única palavra: personalidade. Empregamo-la também num sentido mais racional, para dizer que se tem personalidade jurídica ou moral ou não sei que personalidades mais. No entanto, não é a isso que me refiro, mas a um mistério que ultrapassa os limites da estupidez e da argúcia. Acho que as pessoas devem ter o direito de se ocupar com esse mistério, ora para desvendá-lo, se possível, ora, se isso for impossível, para edificar-se com ele. E – uma vez que o senhor é a favor dos valores – a personalidade não deixa de ser, afinal de contas, um valor positivo, segundo me parece. Mais positivo do que a estupidez e a argúcia. Positivo no mais alto grau, absolutamente positivo, tal qual a vida. Numa palavra, um valor vital, feito para ocupar-nos intensamente com ele. Foi isso o que achei indicado ponderar, como resposta àquilo que o senhor disse acerca da estupidez. Nos últimos tempos, Hans Castorp já não se atrapalhava nem perdia, o fio ao fazer explanações desse gênero. Deixara de estacar no meio do discurso. Chegava até o fim da sua réplica, baixava a voz, punha um ponto final e seguia o seu caminho como um homem, se bem que ainda se ruborizasse ao falar e tivesse, no fundo do coração, um pouco de medo do silêncio crítico que se seguiria quando emudecesse, a fim de lhe dar o tempo necessário para se envergonhar. Com efeito, Settembrini interpôs esse silêncio, antes de dizer: – O senhor nega que anda à caça de paradoxos. Sabe muito bem, no entanto, que eu também não gosto de vê-lo caçando mistérios. Ao fazer da personalidade um enigma, corre perigo de entregar-se à idolatria. O senhor venera uma máscara. Está vendo mística onde se trata de mistificação, de um daqueles enganosos receptáculos vazios, por meio dos quais o demônio do elemento corporal-fisionômico gosta de iludir-nos. O senhor nunca freqüentou o ambiente de atores? Não conhece esses rostos de histriões, onde se combinam os traços de Júlio César, de Goethe e de Beethoven, e cujos portadores felizes se revelam como os mais lamentáveis cretinos, desde que abrem a boca? – Ora, um jogo da natureza – disse Hans Castorp. – Mas não é apenas isso, não se limita a uma ilusão. Visto esses homens serem atores, devem ter talento, e o próprio talento vai além da estupidez e da argúcia; constitui, ele mesmo, um valor vital. Também Mynheer Peeperkorn tem talento, por mais que o senhor proteste, e com ele nos mete no chinelo. Coloque o Sr. Naphta num canto da sala e deixe-o fazer uma conferência sobre Gregório Magno e a Cidade de Deus, que seja muito digna de nota; mas no outro canto encontra-se Peeperkorn com sua boca estranha, alçando as rugas da testa e dizendo apenas: “Perfeitamente! Permita-me... Basta!” O senhor vai ver que as pessoas se reunirão em torno de Peeperkorn, todas elas, e que Naphta ficará sozinho com sua argúcia e sua Cidade de Deus, ainda que se expresse com tanta clareza que nos penetre até a medula, para empregar uma locução de Behrens. – Não tem vergonha de adorar o êxito? – indagou o Sr. Settembrini. – Mundus vult decipi. Não faço questão que as pessoas se aglomerem ao redor do Sr. Naphta. Ele é um desgraçado espírito de contradição. Mas sinto-me tentado a tomar o partido dele, à vista da cena imaginária que o senhor acaba de descrever com uma aprovação absolutamente censurável. Desdenhe, se quiser, a forma distinta, precisa, lógica, a palavra humana e coerente! Desdenhe-as e prefira qualquer embrulhada de alusões e de charlatanice sentimental, e logo se achará nas mãos do Diabo. – Mas lhe asseguro que ele pode falar de modo bem coerente, quando se anima – disse Hans Castorp. – Certa vez me falou do dinamismo das drogas e de árvores venenosas da Ásia; contou fatos tão interessantes que quase me causou uma impressão sinistra. O interessante sempre é um pouco sinistro. E tudo aquilo era menos interessante em si, do que em relação com o efeito produzido pela sua personalidade, que tornava as palavras ao mesmo tempo sinistras e interessantes... – Naturalmente. Já é conhecido o seu fraco pelas coisas asiáticas. É verdade que eu não lhe posso oferecer esse tipo de maravilhas – retrucou o Sr. Settembrini com tanta amargura que Hans Castorp se apressou a declarar que as vantagens da sua palestra e dos seus ensinamentos eram de ordem totalmente diferente, e que ninguém tinha a idéia de fazer comparações injustas para ambas as partes. Mas o italiano rejeitou e fez como se não ouvisse esses cumprimentos. – Em todo caso – continuou –, deve o senhor permitir que eu admire a sua objetividade e a calma do seu espírito. Elas tocam as raias do grotesco, como o senhor deve admitir. Afinal de contas, esse bravateiro lhe surrupiou a sua Beatriz. Chamo as coisas pelos nomes. E o senhor? Isso não tem precedentes... – Há diferenças de temperamento, Sr. Settembrini. Diferenças quanto ao calor do sangue e ao cavalheirismo da raça. O senhor, como filho do sul, naturalmente recorreria ao veneno ou ao punhal, ou talvez desse ao caso um aspecto passional e convencional. Numa palavra, tudo acabaria numa rinha de galos. Isso seria, sem dúvida, muito viril, viril no sentido convencional, e muito galante. Mas comigo a coisa é diferente. Eu absolutamente não sou viril a ponto de ver num outro homem apenas o macho rival. Pode ser que eu não seja viril sob nenhum aspecto, mas tenho certeza de não o ser daquele modo que eu, sem querer, chamei de “convencional”, não sei por quê. No meu coração pachorrento pergunto-me a mim mesmo se existe alguma coisa de que eu possa censurar Peeperkorn. Será que ele me fez algum mal intencionalmente? Ofensas devem ser feitas de propósito, do contrário não são ofensas. E no que toca ao “fazer mal”, seria preciso que eu me ativesse a ela, e a isso não tenho direito. Não tenho direito em geral, e em especial não o tenho com relação a Peeperkorn. Pois, em primeiro lugar, é uma personalidade, o que de per si já é uma coisa que atrai as mulheres; e em segundo não é civil, como eu, e sim uma espécie de militar, como o pobre do meu primo; quer dizer, ele tem um point d’honneur, uma mania, que se refere ao sentimento, à vida... Estou dizendo tolices, mas prefiro desvairar um pouquinho e exprimir, mais ou menos claramente, uma idéia complicada, do que limitar-me a proferir lugarescomuns perfeitamente formulados. Quem sabe se isso não é uma espécie de traço militar do meu caráter, se assim se pode dizer... – Diga-o – tornou Settembrini, sacudindo a cabeça em sinal de aprovação. – Isso é, inegavelmente, um traço digno de louvor. A coragem do conhecimento e da expressão, eis o que é a literatura, o espírito humano... Nessas ocasiões, eles costumavam separar-se em bons termos. O Sr. Settembrini dava um fim conciliador a conversas desse gênero, e tinha excelentes razões para proceder assim. A sua própria posição absolutamente não era tão inatacável que houvesse sido prudente levar muito longe o rigorismo. Uma palestra que tivesse por assunto o ciúme constituía para ele terreno um tanto escorregadio. Num determinado ponto, o humanista deveria ter respondido que, em virtude da sua veia pedagógica, sua relação com o sexo masculino também não era inteiramente convencional e semelhante àquela dos galos, e que, por isso, o imponente Peeperkorn o atrapalhava da mesma forma como Naphta e Mme. Chauchat. E finalmente não podia escapar ali o seu discípulo da influência e da superioridade natural de uma personalidade, à qual nem ele mesmo nem o seu parceiro em assuntos cerebrais eram capazes de se subtrair. A sua situação costumava melhorar quando se respirava uma atmosfera intelectual, quando havia discussões, quando era possível prender a atenção das pessoas que tomavam parte nos passeios a um daqueles seus debates elegantes e ao mesmo tempo apaixonados, acadêmicos e todavia conduzidos num tom que faria supor tratar-se de questões tremendamente atuais e vitais. Essas contendas eram travadas quase exclusivamente pelos dois adversários, e enquanto duravam ficava neutralizada até certo ponto a presença da “grande envergadura”, que não as podia acompanhar senão alçando as rugas da testa em sinal de pasmo, e intercalando exclamações zombeteiras, porém abruptas. E mesmo sob essas circunstâncias exercia ela a sua peculiar pressão. Lançava uma sombra sobre a palestra, que assim se via diminuída no seu brilho. Privavaa da sua essência. De uma forma perceptível a todos, embora Peeperkorn não se desse conta de tudo isso, ou só o fizesse num grau dificilmente apreciável, a sua presença opunha à discussão algo que não favorecia nenhuma das duas causas, ofuscava a querela, que assim parecia desprovida de importância decisiva, e imprimia-lhe – mal nos atrevemos a dizê-lo – o cunho da futilidade. Ou, para formulá-lo de outra maneira: essa engenhosa luta de vida e morte relacionava-se secretamente, de um modo subterrâneo e indefinível, com a “grande envergadura” que caminhava lado a lado com ela, e cujo magnetismo lhe absorvia a força. É impossível precisar mais claramente esse processo misterioso, bem desagradável para os dois antagonistas. Só se pode dizer que, não existisse Pieter Peeperkorn, teria sido muito mais difícil esquivar-se à necessidade de tomar partido, quando, por exemplo, Leo Naphta defendia a natureza total e basicamente revolucionária da Igreja contra a doutrina do Sr. Settembrini, o qual via nessa potência histórica unicamente a protetora da mais sinistra estagnação e do mais obscuro conservantismo, pretendia mostrar que todas as forças vivas e futurosas, dirigidas para a revolução e a reforma, se baseavam nos princípios opostos do esclarecimento, da ciência e do progresso, princípios oriundos de uma época gloriosa de renascimento da cultura antiga, e sustentava essa opinião por meio de gestos primorosos e palavras brilhantes. A isso respondeu Naphta fria e incisivamente. Afirmou ser capaz de demonstrar – e de fato o demonstrou com evidência quase deslumbrante – que a Igreja, como encarnação da idéia religioso-ascética, estava intimamente muito longe de ser partidária e amparo daquilo que queria persistir, isto é, da formação secular e das leis do Estado; que, pelo contrário, arvorava a bandeira da revolução mais radical, da revolução completa; que, de um modo geral, tudo o que se considerava digno de ser mantido e o que os tíbios, os covardes, os conservadores, os burgueses procuravam manter – o Estado, a família, a arte e a ciência seculares –, sempre estivera em oposição consciente ou inconsciente à idéia religiosa, à Igreja, cuja tendência inata e cujo objetivo inalterável eram a dissolução de tudo quanto existia de ordem secular e a reorganização da sociedade, segundo o modelo do Estado ideal e comunista de Deus. Em seguida, Settembrini tomou a palavra, e soube aproveitá-la – e como soube! Tal confusão da idéia revolucionária, luciferiana, com a revolta geral de todos os maus instintos – disse ele – era deplorável. O espírito inovador da Igreja consistira durante séculos inteiros em perseguir, por meio da Inquisição, o pensamento fecundo, em estrangulá-lo, em sufocá-lo na fumaceira dos holocaustos. Recentemente, porém, mandava os seus emissários declarar que simpatizava com a revolução, e afirmava ser seu objetivo substituir a liberdade, a cultura, a democracia, pela ditadura do populacho e pela barbárie. Sim, aquilo representava realmente um caso pavoroso de conseqüência contraditória ou de conseqüente contradição... Naphta objetou que entre os argumentos do seu oponente não faltavam exemplos semelhantes de contradição e de incoerência. Embora o Sr. Settembrini se julgasse um democrata, revelava pouca simpatia pelo povo e pela igualdade; pelo contrário, manifestava a altivez censurável de um aristocrata, ao qualificar de populacho o proletariado universal, chamado a exercer a ditadura temporária. Mas era como autêntico democrata que evidentemente se comportava em face da Igreja, a qual, na verdade – era preciso admiti-lo com orgulho –, representava a potência mais nobre da história humana; nobre no sentido supremo e mais lato, no sentido espiritual. Pois o espírito ascético – se lhe permitiam empregar esse pleonasmo –, o espírito da negação e do aniquilamento do mundo era a nobreza por excelência, o princípio aristocrático na sua forma mais pura. Esse espírito não poderia nunca ser popular, e, com efeito, também a Igreja sempre tinha sido impopular. Bastaria que o Sr. Settembrini se ocupasse um pouquinho com a cultura da Idade Média para que deparasse com esse fato, com a antipatia rude que o povo, na acepção mais ampla da palavra, sentia pelas coisas eclesiásticas. Existiam, por exemplo, entre as invenções da imaginação dos poetas populares, certas figuras de monges que, de modo bem luterano, opunham à idéia ascética o vinho, a mulher e o canto. Todos os instintos do heroísmo mundano, todo o espírito guerreiro, bem como a poesia cortesã, tinham sido adversários mais ou menos abertos da idéia religiosa e, por conseguinte, da hierarquia. Pois tudo isso fora o “mundo” e a mentalidade do populacho, em comparação com a nobreza do espírito, representada pela Igreja. O Sr. Settembrini agradeceu ao seu antagonista por lhe ter refrescado a memória. A figura do monge Ilsan, no Jardim das rosas, tinha muitos traços simpáticos, em confronto com esse aristocratismo de tumba que acabava de ser apregoado. Embora ele, Settembrini, não fosse um partidário do reformador alemão ao qual se aludira, estava disposto a defender com o máximo ardor todo o individualismo democrático que formava a base da sua doutrina, contra quaisquer ambições eclesiástico-feudais de domínio sobre a personalidade. – Vejam só! – exclamou Naphta. Porventura se queria acusar a Igreja de falta de espírito democrático e de compreensão do valor da personalidade humana? E que diziam da tão humana ausência de preconceitos no direito canônico? Ao passo que no direito romano a capacidade jurídica dependia da posse dos direitos civis, e no germânico, da nacionalidade e da liberdade pessoal, o direito canônico exigia apenas que o indivíduo pertencesse à Igreja e tivesse a verdadeira fé, libertando-se de todas as considerações políticas e sociais e declarando capazes de testar e de herdar os próprios escravos, prisioneiros de guerra e servos. Settembrini observou causticamente que essa declaração talvez não houvesse sido feita, se não se tivesse secretamente em mira a porção “canônica” cobrada sobre cada herança. A seguir pôs-se a falar da “demagogia dos padrecos”. Chamou de “afabilidade”, peculiar à irrestrita ambição, a maneira como a Igreja punha em movimento o submundo, visto que os deuses, por motivos compreensíveis, nada queriam saber dele. Opinou que, evidentemente, ela ligava maior importância à quantidade das almas do que à sua qualidade, o que implicava uma grande falta de distinção espiritual. A Igreja desprovida de distinção de espírito? Mas como? Que o Sr. Settembrini dirigisse a sua atenção para o aristocratismo inexorável em que se baseava a idéia da hereditariedade da tara, a transmissão de uma culpa grave para os descendentes que – democraticamente falando – eram inocentes, como acontecia no caso dos filhos naturais, sobre os quais pesavam o opróbrio vitalício e a privação de quaisquer direitos. Mas o italiano rogou que não se insistisse nesse ponto, uma vez que o seu sentimento humano se revoltava contra tal procedimento. Além disso estava farto de rodeios e reconhecia claramente nos truques da apologética do adversário o infame e diabólico culto do nada que pretendia ser considerado como espírito e fazia aparecer como algo de legítimo e de sagrado a confessada falta de popularidade do princípio ascético. A essa altura, Naphta pediu licença para dar uma estrondosa gargalhada. Falava-se de um niilismo da Igreja! Do niilismo do sistema de governo mais realista de toda a história universal! O Sr. Settembrini, acaso, nunca sentira o sopro da ironia humana mediante a qual a Igreja constantemente fazia concessões ao mundo e à carne, ocultando, com prudente transigência, as derradeiras conseqüências do princípio, e deixando reinar o espírito como influência reguladora, sem tratar a natureza com excessivo rigor? Não ouvira tampouco falar desse elegante conceito eclesiástico que era a indulgência, a qual incluía até mesmo um sacramento, o do matrimônio, que, ao contrário dos demais sacramentos, não era um bem positivo, senão apenas uma proteção contra o pecado, outorgada unicamente para restringir os desejos sensuais e a intemperança, de maneira que se conservava o princípio ascético, o ideal da castidade, sem que se opusesse à carne uma severidade pouco política? Diante disso, o Sr. Settembrini não podia deixar de protestar contra essa concepção abominável da “política” e contra o gesto presunçoso de condescendência e sisudez que se arrogava o espírito, ou melhor, aquilo que nesse caso se julgava por tal, e que era usado com relação ao seu contrário. Pretendia-se que esse contrário era pejado de culpa e tinha de ser tratado “politicamente”; mas em realidade não precisava daquela indulgência peçonhenta. A seguir, o humanista investiu contra o maldito dualismo de uma interpretação do mundo, que diabolizava o universo, a vida tanto como o seu imaginário oposto, a saber, o espírito. Pois, desde que aquela era ruim, necessariamente o era também este, por ser a mera negação. E ele quebrou lanças em defesa da inocência da volúpia – o que fez Hans Castorp pensar naquele cubículo de humanista, no sótão, com a papeleira, as cadeiras de palha e a garrafa de água. Naphta, por sua vez, afirmou que a volúpia jamais podia ser livre de culpa, e exigiu da natureza que em face do espírito ela sentisse um peso na consciência. Definiu a política eclesiástica e a indulgência do espírito como sendo “o amor”, a fim de refutar o niilismo do princípio ascético (e Hans Castorp teve a impressão de que a palavra “amor” formava um estranho contraste com a cara daquele homem magrinho e sutil que era o pequeno Naphta...). A discussão prosseguia nesse tom. Conhecemos o jogo, e também Hans Castorp o conhecia. E nós, como ele, escutamos por alguns instantes, para observar as formas que assumia tal luta peripatética à sombra da personalidade que passeava ao lado dos digladiantes, e de que maneira mal perceptível essa presença emasculava os debates. Era como se uma secreta coação os obrigasse a relacionar-se com ela e apagasse assim a faísca que saltava de um a outro interlocutor; impunha-se a reminiscência daquela sensação de desanimadora falta de vida que experimentamos, quando está interrompida a corrente elétrica. Era mesmo assim. As contradições já não produziam nem crepitação, nem chispas, nem contato; a presença neutralizava o espírito, ao invés de ser neutralizada por ele; Hans Castorp verificou esse fato com surpresa e curiosidade. Revolução e conservação! E os olhares fixavam-se em Peeperkorn; via-se como ele avançava a passo lerdo. Não era bom marchador, com o seu andar oscilante para os lados, e com o chapéu desabado na testa. Moviam-se os lábios amplos, irregulares e gretados, e ouvia-se como ele, apontando humoristicamente com a cabeça em direção aos adversários, dizia: “Pois é, pois é... Cerebrum, cerebral; compreendem? Isso é... Nisso se manifesta...” E vejam só: não havia corrente na chave de luz. Os antagonistas faziam nova tentativa; lançavam mão de exorcismos mais fortes; começavam a falar do “problema aristocrático”, da popularidade e da distinção. Não saltava nenhuma faísca. Como por influência magnética, a conversa tomava um caráter pessoal. Vinha então a Hans Castorp a imagem do companheiro de viagem de Clávdia, estendido sobre a cama, debaixo da colcha vermelha, na sua camisola de malha, desprovida de gola, metade operário velho, metade busto de um rei – e numa convulsão débil extinguia-se a vida da discussão. Outras tensões mais fortes! De um lado a negativa, o culto do nada, e do outro o eterno “sim”, a inclinação afetuosa do espírito para a vida! Mas onde ficavam a vida, a chispa, a corrente, quando se encarava Peeperkorn, o que sucedia inevitavelmente, mercê de uma secreta atração? Numa palavra, elas permaneciam ausentes, e isto era, para empregar o termo de Hans, nada mais nada menos que um mistério. Para o seu livro de aforismos podia ele anotar que se deve expressar um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo. Quem fizesse uma vaga tentativa de formulá-lo poderia afirmar exclusiva, mas decididamente, que Pieter Peeperkorn, com sua máscara enrugada de soberano e sua boca dolorosamente gretada, era sempre ambas as coisas, que ambas as coisas se aplicavam à sua pessoa e nela pareciam anuladas a todos os que o viam; era isto e aquilo, um e outro. Pois sim, esse velho estúpido, esse zero majestoso! Ele é que paralisava a energia dos argumentos, não, porém, por meio de confusões e chicanas como Naphta. Peeperkorn não era ambíguo à maneira do jesuíta; era-o de modo totalmente oposto, positivo – ele, esse mistério cambaleante, patentemente ultrapassara os limites não só da estupidez e da argúcia, mas também os de muitos outros binômios, aos quais recorriam Settembrini e Naphta, a fim de produzir a alta tensão necessária para os seus fins pedagógicos. A personalidade – tinha-se essa impressão – carecia de caráter educador, e contudo, quantas oportunidades não oferecia a quem viajava em busca de formação! Que coisa estranha observar essa ambigüidade na figura de um rei, na ocasião em que os digladiantes começavam a falar do casamento e do pecado, do sacramento da indulgência, da culpabilidade e da inocência da volúpia! Peeperkorn inclinava a cabeça para o ombro e o peito; descerravam-se-lhe os lábios doloridos; numa expressão de langoroso lamento fendia-se-lhe a boca, enquanto as narinas se distendiam e alargavam como sob o efeito de alguma dor; as rugas da fronte subiam e os olhos assim dilatados lançavam olhares incertos, cheios de sofrimento; era a imagem perfeita da amargura. Mas, eis que num instante o semblante de mártir se abria, se tornava sensual! A inclinação oblíqua da cabeça modificava o seu sentido, começava a significar malícia; os lábios, ainda entreabertos, esboçavam um sorriso pouco pudico; a covinha de sibarita, que conhecemos em outras ocasiões, ressurgia numa das bochechas; e já estava ali o sacerdote pagão a dançar. Enquanto a cabeça apontava humoristicamente para o lado daqueles homens cerebrais, ouvia-se como ele dizia: “Ah, sim! Pois é, pois é. Perfeitamente. Isto é... Isto são... Nesse caso manifestase... O sacramento da volúpia; compreendem?...” Mas, como já mencionamos, os amigos e mentores de Hans Castorp, embora prejudicados, achavam-se numa situação relativamente favorável, sempre que podiam discutir. Nessas ocasiões estavam no seu elemento, ao passo que o contrário se dava com a “grande envergadura”, e quanto ao papel que Peeperkorn então representava, podia, afinal de contas, haver opiniões diferentes. Era, entretanto, indiscutível que a posição dos dois adversários se tornava menos favorável, quando já não se tratava de engenho, de palavras, de spiritus, senão de objetos reais, de assuntos terrenos, práticos, numa palavra, de questões e de coisas diante das quais uma natureza de soberano costuma ser posta à prova. Quando isso sucedia, estavam liquidados, sumiam-se na sombra, pareciam insignificantes, e Peeperkorn apossava-se do cetro, determinava, resolvia, dava ordens, encomendava, delegava... Não é de admirar que se empenhasse em obter esse estado de coisas e em sair da logomaquia para chegar a ele. Sofria enquanto ele perdurava, ou, pelo menos, quando se prolongava. Mas o que o fazia sofrer não era vaidade; disso Hans Castorp tinha certeza. A vaidade não possui grande envergadura, e a grandeza não é vaidosa. Não, o desejo de realidade que experimentava o holandês brotava de fontes muito diversas: do “medo”, para dizê-lo de forma grosseira e exagerada; daquele senso do dever e daquela mania do pundonor, que Hans Castorp procurara explicar ao Sr. Settembrini e considerara uma espécie de traço militar. – Meus senhores – dizia o holandês, erguendo a mão de capitão com as unhas pontudas, num gesto imperioso e insistente. – Muito bem, senhores, perfeitamente, ótimo! A ascese, a indulgência, o prazer dos sentidos. Quanto a isso, eu queria... Absolutamente. Muitíssimo importante! Bem discutível! Mas permitam... Receio que estejamos a ponto de cometer... Esquivamo-nos, senhores, esquivamo-nos de um modo imperdoável ao mais sagrado... – E respirando profundamente acrescentou: – Esse ar, senhores, o ar característico deste dia de Föhn, com sua dose de aroma primaveril, cheio de pressentimentos e de recordações, que delicadamente nos entibia... Não deveríamos aspirá-lo, só para soltá-lo em forma de... Insisto, senhores, não deveríamos fazer isso. É um insulto. É unicamente a ele que se deveria dedicar toda a nossa... a suprema e a mais intensa... Basta, senhores! E o nosso peito que o respira deveria louvar irrestritamente... Detenho-me, senhores, detenho-me em homenagem a esse... – Detinhase; inclinava-se para trás, com o chapéu dando sombra aos olhos, e todos lhe imitavam o exemplo. – Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto negro, no meio desse delicado azul que puxa para o preto... É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina. É, se não me engano muito... Meus senhores, e você, minha filha, é uma águia. É sobre ela que chamo decididamente... Olhem! Isto não é nem gavião nem abutre... Se os senhores fossem tão presbitas como eu, na minha avançada... Pois sim, minha filha, na minha avançada... Meus cabelos são brancos; como não? Bem, os senhores veriam tão nitidamente como eu, pela curva obtusa das asas... Uma águia, senhores. Uma águia real. Diretamente acima de nós descreve os seus círculos. Sem bater as asas adeja em alturas grandiosas por cima das nossas... Decerto nos espia com seus olhos poderosos, que enxergam ao longe, sob os ossos salientes das órbitas... A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um bico de ferro, curvo na ponta, e tem garras de uma força incrível, dobradas para dentro, de maneira que as traseiras, muito compridas, passam por cima das dianteiras como um gancho férreo. Olhem, é assim! – E a mão de capitão com as unhas compridas esforçava-se por representar as garras da águia. – Compadre, por que andas girando e espiando? – continuava, voltando-se para a ave. – Desce! Crava o bico de aço na cabeça e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela criatura que Deus te... Perfeitamente! Basta! Tuas garras devem enredar-se nas entranhas, e o sangue, gotejar do teu bico... Falava com entusiasmo. Sumira o interesse dos companheiros pelas antinomias de Naphta e Settembrini. Além disso, a visão da águia continuou influenciando silenciosamente as decisões e as iniciativas que se seguiram, sob a direção de Mynheer. Entraram num restaurante, comeram e beberam, completamente fora de hora, mas com um apetite inflamado pela tácita recordação da águia. Houve um banquete e uma bebedeira daquele tipo que Mynheer freqüentemente organizava, também fora do Berghof, onde quer que se encontrassem, em Platz ou na “aldeia”, ou numa estalagem de Glaris ou de Kloters aonde haviam ido num trenzinho de excursão. Sob as suas ordens de soberano, consumiam então dádivas clássicas, como café com creme, acompanhado de pães rústicos, de suculentos queijos e da aromática manteiga dos Alpes, que conservava o mesmo sabor excelente quando servida com castanhas assadas. Tudo isso era regado a vinho tinto de Valtelina, que se tomava à vontade. Peeperkorn temperava os manjares improvisados com grandiosos e abruptos discursos, ou convidava Anton Karlovitch Ferge a falar, esse sofredor bonachão, alheio a quaisquer assuntos sublimes, mas que sabia contar coisas realísticas sobre a fabricação de galochas na Rússia: a massa de borracha era mesclada de enxofre e de outras substâncias, e os sapatos acabados, cobertos de uma camada de verniz, eram “vulcanizados” a uma temperatura de cem graus. Também tratava do círculo polar, onde estivera diversas vezes no decorrer das suas viagens de negócios. O sol da meia-noite e o inverno constante da região do cabo Norte eram descritos em palavras que brotavam da garganta nodosa, de sob o bigode hirsuto. Ali – narrava Ferge – o vapor aparecia minúsculo em confronto com os imensos rochedos e a vastidão do mar azul-ferrete. Zonas amareladas de luz estendiam-se por sobre o céu; a luz da aurora boreal. E tudo isso causara a ele, Anton Karlovitch, uma impressão fantasmagórica, tanto a paisagem como a sua própria presença no meio dela. Assim falava o Sr. Ferge, a única personagem do nosso pequeno grupo que se achava fora da rede de relações que ligavam os outros entre si. Quanto a estas relações, porém, convém relatar dois breves diálogos, duas conversas estranhas que, a essa altura dos acontecimentos, o nosso herói pouco heróico manteve com Clávdia Chauchat e com o seu companheiro de viagem, cada qual em separado; uma no vestíbulo, à noite, enquanto o “obstáculo” se achava acamado com febre, no seu quarto, e a outra, de tarde, à cabeceira do leito de Mynheer... Àquela noite, o vestíbulo achava-se envolto em penumbra. A costumeira reunião tinha sido breve e pouco animada. Já muito cedo os pensionistas se haviam recolhido aos compartimentos de sacada, para o repouso noturno, exceção feita daqueles que trilhavam caminhos proibidos pelo regulamento, em direção ao “mundo”, onde se dançasse ou jogasse. Uma lâmpada solitária continuava acesa em qualquer parte do teto do recinto abandonado, e também as saletas contíguas estavam quase completamente escuras. Hans Castorp sabia, porém, que Mme. Chauchat, depois de ter jantado sem a companhia do seu senhor, ainda não regressara ao primeiro andar, mas se demorava na sala de leitura. Por esse motivo também ele hesitara em subir. Encontrava-se na parte dos fundos do vestíbulo, um degrau mais alta do que o resto, e separada do recinto principal por alguns arcos brancos, que repousavam sobre pilares forrados de madeira. Estava sentado junto à lareira revestida de azulejos, numa cadeira de balanço igual àquela na qual se embalara Marusja, enquanto Joachim conversava com ela a primeira e única vez. Fumava um cigarro, o que a essa hora era a rigor permitido. Ela vinha chegando. Hans Castorp ouviu-lhe os passos, ouviu atrás de si o farfalhar do vestido. Abanando-se com uma carta que segurava num canto, Mme. Chauchat pôs-se ao lado do jovem e disse naquela sua voz de Pribislav: – O concierge já se foi. Dê-me um timbre-poste. Trajava, àquela noite, um vestido leve, de seda escura, com um decote redondo e com mangas amplas, cujos punhos abotoados se estreitavam em torno dos pulsos. Era um vestido de que Hans Castorp gostava especialmente. Clávdia se adornara com o colar de pérolas que esplendia palidamente no crepúsculo. Ele ergueu os olhos, e fitando o rosto de quirguiz, disse: – Timbre? Não tenho. – Mas como? Não tem? Tant pis pour vous. Não está preparado para ser útil a uma senhora? – Fez uma careta de desdém e deu de ombros. – Isso me decepciona. Vocês, pelo menos, deveriam ser pessoas eficientes a quem se pudesse sempre recorrer. Eu imaginava que o senhor tivesse, numa repartição da sua carteira, uns blocos bem dobrados de todos os tipos de selos, classificados segundo os valores. – Não. Para quê? – respondeu ele. – Nunca escrevo cartas. A quem as dirigiria? Às vezes, mas só raramente, mando um cartão-postal que já se compra selado. A quem poderia eu remeter uma carta? Não tenho mais nenhuma relação com a planície. Perdi o contato. No nosso cancioneiro popular temos uma canção que diz: “Estou perdido para o mundo”. É o meu caso. – Bem, então dê-me um cigarro, seu homem perdido – disse ela. Sentou-se à sua frente, ao pé da lareira, num banquinho coberto com uma almofada. Cruzou as pernas e estendeu uma das mãos. – Parece que o senhor tem. – E displicentemente, sem dizer “obrigada”, tirou da caixinha de prata o cigarro que Hans Castorp lhe oferecia, e do mesmo modo serviu-se do isqueiro dele, cuja chama se levantava próxima do seu rosto inclinado para a frente. Na indolência desse “dê-me” e nesse jeito de aceitar sem agradecer revelaram-se a incúria da mulher mimada e, ao mesmo tempo, o senso da camaradagem humana e da propriedade comum, a naturalidade enérgica e todavia meiga dos atos de dar e de receber. Hans Castorp criticou essa atitude na sua alma amorosa. Depois disse em voz alta: – Sim, cigarros tenho sempre. Realmente, nunca deixo de andar munido deles. É coisa que se precisa ter. Como seria possível passar sem fumar? Isso se chama uma paixão, não é? Francamente, não sou um homem passional, mas tenho algumas paixões, paixões fleumáticas. – Tranqüiliza-me extraordinariamente – disse ela, soltando, ao falar, uma baforada – saber que o senhor não é homem passional. Aliás, como poderia ser? Do contrário, o senhor seria diferente dos outros da sua espécie. Paixão é viver por amor à vida. Mas é coisa sabida que vocês vivem por amor à experiência. Paixão significa esquecer-se de si próprio. Mas tudo o que vocês desejam é enriquecer. C’est ça. E o senhor absolutamente não se dá conta de que isso constitui um egoísmo abominável que um dia fará de vocês os inimigos da humanidade? – Ora, ora! Logo os inimigos da humanidade? Que é que dizes aí, Clávdia, de uma forma tão generalizada? Em que coisas concretas e pessoais estás pensando, ao afirmar que nós não nos empenhamos em viver, mas só em enriquecer? Vocês, mulheres, não costumam pregar moral assim a esmo. Ah, essa história da moral! Isto é antes um tema de discussão para Naphta e Settembrini. Isso nos leva ao terreno da grande confusão. Nem a própria pessoa sabe se vive por amor a si própria ou por amor à vida, e ninguém pode dizê-lo com precisão e com certeza. Eu acho que os limites são móveis. Existe uma abnegação egoística e um egoísmo abnegado... Creio que é mais ou menos a mesma coisa como no caso do amor. Indiscutivelmente é contrário à moral que eu seja incapaz de prestar atenção ao que me dizes a respeito dela, mas me sinto antes de mais nada feliz por estarmos reunidos, assim como nos achamos uma única vez, e como nunca nos encontramos desde o teu regresso. E que eu te possa dizer que esses punhos justos te assentam às mil maravilhas, e essa seda transparente que flutua ampla ao redor dos teus braços... desses braços que eu conheço... – Já me vou. – Não vás, por favor! Terei em consideração as circunstâncias e as personalidades. – É o menos que se pode esperar de um homem sem paixão. – Estás vendo? Fazes troça de mim e ralhas comigo, se eu... E queres ir embora, quando eu... – Rogo-lhe o favor de falar de forma menos incoerente, se quiser ser compreendido. – Então não poderei tirar nenhum proveito da habilidade que tens em adivinhar incoerências? É injusto, diria eu, se não compreendesse que aqui não se trata de justiça... – Não, senhor. A justiça é uma paixão fleumática. Ao contrário do ciúme, que torna inevitavelmente ridículas as pessoas fleumáticas. – Estás vendo? Ridículas. Então tolera a minha fleuma. Repito: como poderia eu passar sem ela? Sem ela, como poderia ter suportado essa espera? – Como disse?! – Essa espera por ti. – Voyons, mon ami. Não quero perder tempo criticando a forma de tratamento de que o senhor, com uma obstinação absurda, se serve para comigo. Acho que há de se cansar disso, e eu, afinal de contas, não me ofendo facilmente, não sou nenhuma burguesa indignada... – Não, porque estás enferma. A doença te confere a liberdade. Torna-te... Espera, agora me ocorre uma palavra que nunca ainda empreguei: torna-te genial! – Deixemos a genialidade para outra ocasião! Não era isso o que eu queria dizer. Exijo uma única coisa. Não pretenda que eu, de uma forma ou outra, seja culpada da sua espera, se é que realmente esperou; que haja sido encorajado por mim para tal atitude, ou apenas que eu o tenha autorizado a agir assim. O senhor deve admitir, sem rodeios, que se deu precisamente o contrário... – Com muito prazer, Clávdia. Como não! Não me mandaste esperar. Esperei por livre e espontânea vontade. Compreendo perfeitamente que ligues importância a isso... – Até as suas concessões têm qualquer coisa de impertinente. Geralmente falando, o senhor é homem impertinente, sabe Deus por quê. Não só nas suas relações comigo, mas também noutras circunstâncias. Mesmo na sua admiração e na sua humildade há algo de impertinente. Não pense que não percebo! Nem me convém falar com o senhor, de uma vez por todas, por causa da sua impertinência e também porque se atreve a me falar da sua espera. É imperdoável que ainda se encontre aqui. Há muito tempo que deveria ter voltado para o seu trabalho, sur le chantier, ou onde quer que fosse... – Agora estás falando sem genialidade e de modo totalmente convencional, Clávdia. Isso não passa de um lugar-comum. Tu não podes ter a mesma opinião que Settembrini, e que outro sentido poderiam ter as tuas palavras? Tu as disseste sem pensar; não as posso levar a sério. Eu não partirei “em falso” como o coitado do meu primo, que morreu, assim como previste, quando tentava cumprir o seu dever na planície. Talvez soubesse que morreria, mas preferiu a morte ao regime do tratamento. Muito bem, para isso era soldado. Mas eu não sou; sou civil. No meu caso seria deserção se me comportasse como ele e fizesse questão, apesar dá proibição de Radamanto, de me dedicar lá embaixo ao progresso e a outras coisas úteis. Isso seria a mais profunda das ingratidões e a maior infidelidade para com a doença e o gênio, e também para com o meu amor a ti, do qual tenho cicatrizes antigas e feridas recentes, e para com os teus braços que conheço, se bem que deva admitir que foi apenas num sonho, num sonho genial, que travei conhecimento com eles, de maneira que daí não resulta, naturalmente, para ti nenhuma conseqüência, nenhum compromisso, nenhuma restrição da liberdade... Ela riu, com o cigarro na boca, a ponto de se contraírem os olhos tártaros. Reclinou-se ao forro de madeira, apoiando as mãos no banquinho; com as pernas cruzadas, balouçava o pé calçado com um sapato preto de verniz. – Quelle générositê! Oh là, là, vraiment, meu pobre pequeno, é exatamente assim que eu sempre imaginei un homme. de génie! – Deixa disso, Clávdia. Claro que por natureza não sou nenhum homme. de génie, como não sou tampouco um homem de grande envergadura. Não, meu Deus! Mas o acaso – dize que foi o acaso – levou-me muito alto, até essas regiões geniais... Numa palavra, talvez não saibas que existe uma coisa que se chama pedagogia alquimístico-hermética, a transubstanciação, rumo ao mais sublime, e por conseguinte uma ascensão, se bem me compreendes. Mas é óbvio que a matéria suscetível de ser impelida e empurrada, por influências exteriores, em direção a uma esfera mais elevada, necessita para isso ter certas qualidades próprias. E quanto às qualidades que eu possuía, sei muito bem que eram as seguintes: desde muito tempo estava familiarizado com a doença e com a morte, e já nos meus tempos de menino cometi o disparate de te pedir emprestado um lápis, tal como se deu aqui naquela noite de carnaval. Mas o amor disparatado é genial, pois a morte – sabes? – é o princípio genial, a res bina, o lapis philosophorum, e é também o princípio pedagógico, uma vez que o amor a ela conduz ao amor à vida e ao homem. É realmente assim; descobri-o no meu compartimento de sacada, e me sinto feliz por ter uma ocasião de te dizer isso. Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e este é o caminho genial. – És um filósofo abstruso – disse ela. – Não pretendo compreender todos esses teus pensamentos confusos e alemães; mas eles soam humanos, e certamente és um bom rapaz. Doutro lado te comportaste en philosophe, Não há como negá-lo. – Excessivamente en philosophe, para o teu gosto; não é, Clávdia? – Deixa de impertinências! Isso começa a ficar maçante. Essa coisa de esperar foi estúpida e ilícita. Mas não me queres mal porque esperaste em vão? – Hum, foi um pouco duro, Clávdia, mesmo para um homem de paixões fleumáticas. Duro para mim e duro da tua parte, por teres chegado na companhia dele; pois sabias naturalmente por intermédio de Behrens que eu estava aqui à tua espera. Mas eu já te disse que só a considero uma noite de sonho, essa nossa noite, e que te concedo a tua liberdade. Afinal de contas não esperei em vão, já que estás novamente aqui; estamos sentados um perto do outro, como aquela outra vez; ouço a maravilhosa aspereza da tua voz, que há tanto tempo é familiar ao meu ouvido, e sob essa seda flutuante estão os teus braços que conheço – embora lá em cima se ache num ataque de febre o teu companheiro de viagem, o grande Peeperkorn que te deu essas pérolas... – E com o qual manténs boas relações para o teu próprio proveito. – Não leves isso a mal, Clávdia! Também Settembrini censurou-me pelo mesmo motivo, mas essa mentalidade não passa de um preconceito convencional. Aquele homem é uma aquisição valiosa. É uma personalidade, ora essa. Que sua idade já seja avançada, vá lá. Mesmo assim acho bem compreensível que tu, como mulher, o ames loucamente. Tens muito amor a ele? – Rendo homenagem ao teu espírito de filósofo, meu pequeno Hans alemão – disse ela, acariciando-lhe o cabelo –, mas nem por isso acho humano falar-te do amor que tenho por ele. – Ora, Clávdia, por que não? Creio que o humano começa onde os homens sem gênio pensam que ele termina. Falemos tranqüilamente dele! Tu o amas com paixão? Ela inclinou-se para a frente, a fim de jogar na lareira o cigarro acabado. Deixou-se então ficar com os braços entrelaçados. – Ele me ama – respondeu – e seu amor faz com que eu me sinta orgulhosa, grata e dedicada a ele. Tu deves compreender isso, ou não serias digno da amizade que te concede... Seu sentimento obrigou-me a segui-lo e a servi-lo. Como poderia ser diferente? Julga tu mesmo! Achas humanamente possível desprezar os sentimentos dele? – É impossível – confirmou Hans Castorp. – Não, é lógico que isso não entrava na questão. Que mulher seria capaz de desprezar os sentimentos dele, o temor por esses sentimentos, e de abandoná-lo, por assim dizer, no Getsêmani? – Não és nada bobo – disse ela, e seus olhos oblíquos imobilizaram-se numa expressão pensativa. – És inteligente. O temor pelos sentimentos... – Não se precisa muita inteligência para compreender que tinhas de segui-lo, ainda que – ou melhor, porque – no seu amor deve haver muita coisa angustiante. – C’est exact... Angustiante... A gente tem muitas preocupações por causa dele, sabes? e muitas dificuldades... – Ela pegara a mão do jovem e brincava inconscientemente com as articulações. Mas de repente ergueu o olhar e, com o cenho carregado, perguntou: – Um momento! Não achas infame falarmos sobre ele desta maneira? – De modo algum, Clávdia. Não, longe disso! É apenas humano. Tu gostas dessa palavra, que arrastas com uma ênfase fanática. Sempre me interessa ouvi-la pronunciada pela tua boca. Meu primo Joachim detestava-a por motivos militares. Dizia que ela significava indolência e negligência geral, e quando a considero sob esse aspecto, como um irrestrito guazzabuglio de tolerância, também eu não posso deixar de fazer algumas objeções; isso admito francamente. Mas quando ela expressa liberdade, genialidade, bondade, é uma grande coisa, e, segundo me parece, não faz mal que a empreguemos a favor da nossa conversa sobre Peeperkorn e sobre as preocupações e as dificuldades que ele te causa. Claro que elas são a conseqüência da sua mania de pundonor, do medo de que o sentimento possa fracassar, esse medo que o faz amar tanto as dádivas clássicas e os meios de se regalar. Podemos falar disso com toda a reverência, pois nele tudo tem grande envergadura, a envergadura grandiosa de um rei, e nós não aviltamos nem a ele nem a nós próprios fazendo reflexões humanas sobre esse assunto. – Não se trata de nós – disse ela, voltando a cruzar os braços. – Não seria ser mulher, se, pelo amor de um homem, não se quisesse aceitar também aviltamentos, pelo amor de um homem de grande envergadura, como dizes, e para o qual se é um objeto de sentimentos e do temor pelos sentimentos... – Perfeitamente, Clávdia. Formulaste isto muito bem. Também o aviltamento tem grande envergadura nesse caso, e a mulher, das alturas do seu aviltamento, pode dirigir-se para os que não têm a envergadura de um rei, e falar-lhes com tanto desdém como tu acabas de fazer, quando te referiste aos timbres-poste, e naquele tom em que me disseste: “Vocês, pelo menos, deveriam ser pessoas eficientes a quem se pudesse sempre recorrer!” -– És melindroso? Deixa disso! Mandemos às favas todos os melindres! Não estás de acordo? Também eu me melindrei às vezes; quero reconhecê-lo hoje, que nos achamos assim um perto do outro. Irritei-me por causa da tua fleuma e porque te entendias tão bem com ele, só para satisfazeres a tua experiência egoística. E contudo via com prazer e com gratidão que o tratavas com reverência... Havia na tua conduta muita lealdade, e ainda que nela se mesclasse um pouquinho de impertinência, não podia deixar de apreciar essa tua atitude. – Foi muita bondade da tua parte. Ela fitou-o. – Tenho a impressão de que és incorrigível. Vou te dizer uma coisa: és um rapaz malicioso. Não sei se tens espírito, mas indiscutivelmente és cheio de malícia. Aliás, não faz mal nenhum; isso se pode suportar. Pode-se até manter amizade com uma pessoa assim. Queres que mantenhamos amizade? Que façamos uma aliança a favor dele, assim como normalmente se faz contra alguém? Queres dar-me a tua mão para selar isso? Muitas vezes me sinto angustiada... Acontece que eu sinto medo de estar a sós com ele, medo da solidão interior, tu sais... É angustiante mesmo... Às vezes receio que ele acabe mal... Às vezes fico horrorizada... Eu gostaria de ter a meu lado um homem bom... Enfin, se te interessa saber, talvez seja por causa disso que voltei para cá com ele... Seus joelhos se tocavam, enquanto estavam sentados assim, ele na cadeira inclinada para a frente, e ela no banquinho. Ao proferir essas últimas palavras bem perto do rosto dele, ela lhe apertara a mão. – Por mim? – exclamou ele. – Mas isso é maravilhoso! É realmente extraordinário! Ó Clávdia, então voltaste para cá, com ele, porque eu estava aqui? E queres ainda pretender que a minha espera foi estúpida, ilícita e totalmente vã? Seria muito mesquinho da minha parte, se eu não soubesse apreciar o oferecimento da tua amizade, da amizade contigo e por ele... Foi então que ela o beijou na boca. Era um daqueles beijos russos, do tipo dos que se trocam nesse vasto país cheio de alma, nas mais importantes festas cristãs, como uma consagração do amor. No nosso caso, porém, esse beijo foi trocado entre um jovem notoriamente “malicioso” e uma mulher também jovem, de andar sedutoramente felino; e enquanto descrevemos essa cena, não podemos deixar de pensar, sem querer, e de um modo vago, na maneira engenhosa, embora um tanto suspeita, pela qual o Dr. Krokowski costumava falar do amor num sentido ligeiramente ambíguo, de modo que ninguém sabia com certeza se se referia a um assunto piedoso ou a algo físico, passional. E nós não fazemos o mesmo, ou talvez o fizessem Hans Castorp e Clávdia Chauchat, quando trocavam esse beijo russo? Ora, que diria o leitor, se nos recusássemos redondamente a resolver esse problema? A nosso ver, seria um procedimento analítico, mas – para repetir a expressão de Hans Castorp – “muito mesquinho” e francamente hostil à vida, fazer, em matéria de amor, uma distinção “limpa” entre elementos piedosos e elementos passionais. Que significaria “limpo” nesse caso? E o que “sentido ambíguo” e “caráter equívoco”? Ridicularizamos abertamente esses conceitos. Não será bom e grande o fato de a língua não possuir senão uma única palavra para tudo quanto aquilo pode abranger, desde o sentimento mais piedoso até o desejo mais carnal? O equívoco torna-se, pois, plenamente unívoco, uma vez que o amor não pode ser separado do corpo, nem sequer no auge da piedade, como não é ímpio nem nos momentos de carnalidade extrema. O amor continua sempre sendo ele mesmo, tanto sob a forma de conduta amistosa em face da vida, como sob a forma da mais sublime paixão; é a simpatia pela espera orgânica, o abraço comoventemente voluptuoso daquilo cujo destino é apodrecer. Decerto há caritas até na paixão mais furiosa e na paixão mais reverente. Sentido ambíguo? Pois que seja ambíguo o sentido do amor! Nessa indistinção se manifestam a vida e a humanidade. Revelaríamos uma desoladora falta de “malícia” se nos inquietássemos diante dessa ambigüidade. Enquanto os lábios de Hans Castorp e de Mme. Chauchat se encontram juntos no beijo russo, apagamos as luzes do nosso pequeno teatro, para mudança de cena. Pois agora trataremos do segundo dos dois diálogos que prometemos relatar. Restabelecida a iluminação, a iluminação crepuscular de uma tardezinha de primavera, na época do degelo, deparamos com o nosso herói numa situação que já nos é familiar, à beira da cama do grande Peeperkorn, palestrando com ele submissa e amigavelmente. Ao chá das quatro horas, servido no refeitório, Mme. Chauchat comparecera sozinha, como já se dera nas três refeições anteriores, e logo depois se encaminhara a Davos-Platz para efetuar algumas compras. Diante disso Hans Castorp fizera anunciar ao holandês uma das suas costumeiras visitas, em parte para mostrar-se atencioso e para distrai-lo um pouco, em parte para edificar-se com a irradiação dessa personalidade; numa palavra: por motivos tão ambíguos como a vida. Peeperkorn pôs o Telegraaf de lado, pegou pelo arco o pincenê de aros de chifre e atirou-o em cima do jornal. A seguir estendeu ao visitante a mão de capitão, enquanto os lábios largos e gretados se moviam vagamente, com uma expressão dolorosa. Como sempre, tinha a seu alcance vinho tinto e café. O serviço de café achava-se numa cadeira junto à cama, e o fundo pardo da xícara deixava perceber que fora usada havia pouco. Mynheer acabava de tomar o trago de todas as tardes, forte e quente, com açúcar e creme que o fazia transpirar. O rosto de rei, emoldurado de labaredas brancas, estava corado, com pequenas bagas de suor assomando na testa e no lábio superior. – Estou suado – disse. – Seja bem-vindo, jovem. Pelo contrário! Sente-se! É um sinal de fraqueza, quando a gente, logo depois de ter ingerido uma bebida quente, começa a... Tenha a bondade de... Sim, senhor. O lenço. Muito obrigado. – A cor vermelha do rosto ia desaparecendo rapidamente, dando lugar àquele palor amarelado que depois de um ataque de febre maligna costumava cobrir o rosto desse homem soberbo. A quarta fora muito violenta durante a manhã, com as suas três fases, a fria, a abrasadora e a úmida. Os olhinhos apagados de Peeperkorn pareciam cansados, sob o enrugamento da fronte, que lhe dava o aspecto de um ídolo. – Meu caro jovem – continuou ele –, é sumamente... Eu queria expressar a minha... Absolutamente. É muito gentil da sua parte dar a um velhote enfermo o prazer da sua... – Da minha visita? – perguntou Hans Castorp. – De maneira alguma, Mynheer Peeperkorn. Quem deve agradecer sou eu, por ter uma oportunidade de me sentar aqui. Pois eu tiro muito mais proveito dessa visita do que o senhor. Venho por razões puramente egoísticas. Mas como pode o senhor qualificar-se de “velhote enfermo”? Ninguém seria capaz de adivinhar que isso se refere à sua pessoa. Está traçando de si uma imagem completamente falsa. – Está bem – respondeu Peeperkorn, e fechou os olhos por alguns instantes, recostando no travesseiro a majestosa cabeça com o queixo erguido. Os dedos com as unhas compridas jaziam entrelaçados sobre o amplo peito de rei, que se delineava sob a camisola de malha. – Está bem, jovem. Ou melhor: suas intenções são boas; disso não duvido. Estava agradável ontem de tarde – pois sim, foi recém-ontem – naquele lugar hospitaleiro... me esqueci do nome ... lá onde comemos o delicioso salame com ovos mexidos e com esse vinho saudável da terra... – Foi uma maravilha! – confirmou Hans Castorp. – Nós todos saboreamos esse prato de um modo vergonhoso. O mestre de cozinha do Berghof ficaria ofendido e com razão, se nos tivesse visto. Todos, sem exceção, entramos de rijo a comer! Era um salame de lei. O Sr. Settembrini estava até comovido e comia-o por assim dizer, com os olhos cheios de lágrimas. É um patriota, como o senhor deve saber, um patriota democrático. Consagrou a sua lança de cidadão sobre o altar da humanidade, para que de futuro os direitos alfandegários do salame sejam pagos na fronteira do Brenner. – Isto não tem importância – declarou Peeperkorn. – É um homem distinto, que sabe conversar de forma alegre; um perfeito cavalheiro, ainda que não lhe seja dado mudar de roupa com muita freqüência. – Não lhe é dado de modo algum – disse Hans Castorp. – De modo algum! Já o conheço faz muito tempo e me dou bem com ele; quero dizer que ele se interessa por mim de uma maneira pela qual lhe devo a minha maior gratidão, só porque achava que eu era um “filho enfermiço da vida”; é uma dessas locuções que empregamos entre nós, e que terceiros não podem compreender sem explicação. Settembrini dá-se o trabalho de exercer sobre mim uma influência corretiva. Mas nunca, nem no verão nem no inverno, o vi em outros trajes que não aquelas calças de tecido xadrez e o jaquetão puído. Ele usa, aliás, essas roupas velhas com uma correção notável, de modo muitíssimo distinto. Nesse ponto concordo inteiramente com o senhor. A maneira como se veste é um triunfo sobre a pobreza, e quanto a mim, prefiro essa pobreza à própria elegância do pequeno Naphta, em face da qual nunca me sinto muito à vontade, porque ela é o Diabo, em certo sentido, e os recursos necessários para ela lhe vêm de uma fonte escusa; estou mais ou menos bem informado a respeito da sua situação. – É um homem distinto e alegre – repetiu Peeperkorn, passando por cima da observação que Hans Castorp fizera com referência a Naphta – ainda que – permita-me esta restrição – ainda que não esteja livre de preconceitos. Madame, a minha companheira de viagem, não o aprecia muito, como o senhor talvez tenha notado. Fala dele sem simpatia, indubitavelmente porque esses preconceitos se manifestam na atitude que ele toma para com ela. Nenhuma palavra, jovem! Quanto ao Sr. Settembrini e aos sentimentos amistosos que o senhor tem por ele, estou longe de... Basta! Nem penso em afirmar que, em relação àquela cortesia que um cavalheiro deve a uma dama, ele possa jamais... Perfeito, meu caro amigo, irrepreensível! Mas existem ali um limite, uma reserva, uma certa es-qui-van-ça que tornam a animosidade de madame contra ele, humanamente falando, muito... – Compreensível. Que a tornam natural. Que a justificam plenamente. Desculpe, Mynheer Peeperkorn, que eu tenha tomado a liberdade de terminar a sua frase. Pude arriscar-me a isso na certeza de estar inteiramente de acordo com o senhor. Sobretudo quem considera o quanto as mulheres – o senhor talvez se ria porque eu, com a minha pouca idade, falo das mulheres de modo generalizado –, quem considera o quanto as mulheres, na sua conduta, perante o homem, dependem do modo como o homem se conduz para com elas, não se pode admirar. As mulheres – é assim que eu gostaria de formular a idéia – são criaturas reativas, sem iniciativa própria, criaturas indolentes, no sentido de passivas... Permita-me, por favor, que eu desenvolva, embora sem habilidade, esse meu ponto de vista. A mulher, pelo que pude observar, considerase, nos assuntos amorosos, em primeira linha como simples objeto; espera que os acontecimentos cheguem até ela; não escolhe livremente; só chega a escolher à base da escolha prévia do homem e mesmo então – deixe que eu acrescente ainda isto – a liberdade da sua escolha é restrita e influenciada pelo fato de ela ter sido escolhida, a não ser que se trate de um espécime excessivamente mísero de homem; e nem essa condição vigora em todos os casos... Deus meu, acho que as coisas que digo são banalidades, mas quando somos jovens tudo nos parece novo, novo e surpreendente. Pergunte a uma mulher: “Você o ama?” e ela lhe responderá, com os olhos erguidos ou mesmo baixos: “Ele me ama tanto!” Agora imagine uma resposta dessas na boca de um de nós. (Perdoe-me por me ter posto no mesmo plano com o senhor!) Talvez haja homens que devem responder dessa forma, mas se tornariam perfeitamente ridículos, seriam vassalos do amor feminino, para me expressar de uma forma epigramática. Eu desejaria saber que importância se atribui uma mulher que dá aquela resposta. Será que julga dever uma dedicação sem limites ao homem que concede a uma criatura tão humilde o favor da sua escolha amorosa, ou vê ela no amor que o homem tem à sua pessoa um sinal infalível da perfeição dele? Ventilei esse problema muitas vezes nas minhas horas solitárias. – São os primórdios das coisas, são fatos clássicos, meu caro jovem! Suas palavras singelas e fluentes tocam em fundamentos sagrados – replicou Peeperkorn. – O homem é embriagado pelo seu próprio desejo; a mulher exige e espera ser embriagada pelo desejo dele. Disso nos provém a obrigação de sentir. Daí resulta a pavorosa ignomínia da insensibilidade, da impotência de tornar a mulher capaz de desejar. O senhor toma uma taça de vinho tinto em minha companhia? Eu tomarei. Estou com sede. Perdi muita água hoje. – Muito obrigado, Mynheer Peeperkorn. Embora eu não tenha o hábito de beber a esta hora, estou sempre disposto a tomar um trago à sua saúde. – Então sirva-se da taça. Temos uma só. Eu me arranjarei com o copo de lavar dentes. Acho que este zurrapa não se ofenderá, quando for bebido de um recipiente simples... – Com a mão de capitão levemente trêmula, encheu os copos, ajudado pelo visitante, e avidamente esvaziou o seu. O vinho tinto descia-lhe pela garganta escultural como se fosse água pura. – Isso refresca – disse ele. – O senhor não bebe mais nada? Então permita que eu tome mais um... – Derramou um pouco de vinho ao encher o copo. O lençol de cima estava salpicado de manchas vermelho-escuras. – Eu repito – prosseguiu com o dedo indicador em riste, enquanto na outra mão tremia o copo cheio –, repito: daí resulta a nossa obrigação, o nosso dever religioso de sentir. Nosso sentimento – compreende? – é a força viril que desperta a vida. A vida está dormindo. Quer ser acordada para celebrar bodas orgiásticas com o sentimento divino. Pois o sentimento, jovem, é divino. O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria. O homem que fracassasse quanto ao sentimento aviltaria a Deus, seria a causa da derrota da força viril de Deus, a causa de uma catástrofe cósmica, de um horror inimaginável... – Tornou a beber. – Deixe que eu segure o copo, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp. – Acho muito instrutivo seguir o curso dos seus pensamentos. O senhor acaba de desenvolver uma teoria teológica na qual atribui ao homem uma função religiosa muito digna, se bem que, talvez, um pouco unilateral. Nas suas idéias, se me posso permitir esta observação, há um certo rigorismo que é – perdoe-me – que é angustiante. Todo rigor religioso é por natureza angustiante para pessoas de uma envergadura mais modesta. Nem penso em me atrever a corrigir o senhor, mas queria apenas desviá-lo desses problemas e voltar ao que o senhor disse acerca de certos “preconceitos” que, segundo a sua opinião, o Sr. Settembrini tem com referência a madame, sua companheira de viagem. Não é de ontem que conheço o Sr. Settembrini; conheço-o faz muito tempo, há anos e anos. E posso lhe assegurar que os seus preconceitos – se é que existem – não são em absoluto os preconceitos mesquinhos de um pequeno burguês. No caso dele só se pode tratar de preconceitos de um estilo mais elevado e por conseguinte de caráter impessoal, de princípios pedagógicos gerais, que o Sr. Settembrini defende, visando, para falar com franqueza, a mim, na minha qualidade de “filho enfermiço da vida”... Mas isso nos leva muito longe. É um assunto excessivamente vasto para que poucas palavras o possam... – E o senhor ama madame? – perguntou Mynheer de repente, voltando para o visitante o rosto de soberano, com a boca dolorosa e gretada e com os olhinhos apagados sob os arabescos drapejados da fronte... Hans Castorp sobressaltou-se. Balbuciando, respondeu: – Se eu... Quer dizer... Sinto naturalmente grande respeito por Mme. Chauchat, já pelo fato de ela ser... – Por favor! – disse Peeperkorn, refreando-o com um esmerado gesto da mão estendida e obtendo, desta forma, o necessário “espaço” para as palavras que tencionava pronunciar. – Permita-me – continuou –, deixe-me repetir que estou longe de culpar esse senhor italiano por uma infração real das leis do cavalheirismo... Não acuso ninguém de tal infração, ninguém! Mas notei... Neste momento, por exemplo, tenho o prazer de... Bem, meu caro jovem! Está tudo muito bem. Tenho nisso grande prazer; não se discute; de fato me é sumamente agradável. Mesmo assim digo de mim para mim... Numa palavra, digo de mim para mim: o senhor conhece madame há mais tempo do que eu. Já esteve aqui com ela na outra temporada. Além disso, madame é uma mulher cheia de encantos, e eu sou apenas um velhote enfermo. Como se explica então... Por eu estar indisposto, ela desceu hoje de tarde à vila para fazer compras, sozinha e sem ninguém que a acompanhasse... Não há mal nenhum nisso. Absolutamente! Mas não há dúvida de que seria... Será que devo atribuir à influência dos – como se expressou o senhor? – dos princípios pedagógicos do Signor Settembrini o fato de o senhor não ter seguido o impulso cavalheiresco... Peço que me entenda literalmente... – Literalmente, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor. Nem um pouquinho. Agi espontaneamente. Pelo contrário, em certa ocasião o Sr. Settembrini até me... Mynheer Peeperkorn, lastimo ver no seu lençol umas manchas de vinho. Não acha que se deveria... Lá em casa costumavam pôr sal, enquanto a mancha estava fresca... – Isso não tem importância – volveu Peeperkorn, sem perder de vista o visitante. Hans Castorp corou. – As coisas – prosseguiu com um sorriso amarelo – apresentam-se aqui sob um aspecto diferente do normal. O espírito que reina neste lugar, se me posso expressar assim, não é o espírito convencional. O doente tem a primazia, quer seja homem quer seja mulher. O senhor está passageiramente indisposto, Mynheer Peeperkorn. Trata-se de uma indisposição aguda, de uma coisa atual. A sua companheira de viagem está melhor, em comparação. Creio agir de acordo com as intenções de madame, quando na ausência dela o substituo um pouquinho aqui – se é que num caso desses pode haver substituição, ah, ah – em vez de representar o senhor junto dela e de lhe oferecer a minha companhia no caminho para a vila. Com que direito imporia eu os meus serviços de cavalheiro à sua companheira de viagem? Para isso me faltam títulos e autorização. Posso afirmar que tenho um senso sadio dos direitos positivos. Numa palavra, acho que a minha situação é correta; ela corresponde ao estado geral das coisas, e sobretudo corresponde aos sentimentos sinceros que tenho pela sua pessoa, Mynheer Peeperkorn. Com isso creio que a sua pergunta – o senhor acaba de fazer uma pergunta, não? – recebeu uma resposta satisfatória. – Uma resposta muito agradável – replicou Peeperkorn. – Ouço com sincero prazer as suas frases leves e ágeis, meu caro jovem. Elas saltam por cima de todos os obstáculos, e removem de um modo simpático as arestas das coisas. Mas satisfatória? Não, a sua resposta não me satisfaz. Desculpe-me se com isso lhe causo uma decepção. “Rigoroso”, meu caro amigo! Há poucos instantes o senhor empregou esse termo com referência a certas concepções que eu acabava de expor. Mas também nas suas palavras há um certo rigorismo, uma austeridade, uma atitude forçada, que não me parecem em harmonia com a sua natureza, se bem que, em certo sentido, já os tenha encontrado na sua conduta. Durante os nossos passeios e outros empreendimentos que realizamos em comum, o senhor costuma tomar essa mesma atitude em face de madame, e de mais ninguém. Isto o senhor me deve explicar. É um dever, jovem, uma obrigação! Não me engano. Vi a minha observação confirmada em muitas ocasiões. É improvável que outras pessoas não a tenham feito também, com a única diferença de que elas talvez, ou mesmo provavelmente, saibam a razão desse fenômeno. Essa tarde, Mynheer proferia períodos extraordinariamente precisos e acabados, apesar do cansaço causado pela febre maligna. Quase não havia incoerências. Meio sentado na cama, voltava para o visitante os imponentes ombros e a grandiosa cabeça; estendia um dos braços por cima da colcha, e a mão sardenta de capitão, saindo verticalmente do punho da manga de lã, exibia aquele característico anel da exatidão, flanqueado pelos dedos lanciformes, enquanto a boca formava frases tão claras, tão incisivas e mesmo tão plásticas, que o próprio Sr. Settembrini deveria ter ficado contente. Os “erres” de palavras como “provavelmente” ou “razão” eram guturais e carregados. – O senhor está sorrindo – continuou. – Pisca os olhos e vira a cabeça de cá para lá. Parece entregar-se a reflexões sem resultado positivo. E todavia não há nenhuma dúvida de que sabe a que me refiro e de que se trata. Não quero dizer que nunca dirija a palavra a madame ou lhe fique devendo a resposta, quando a ocasião requer o contrário. Mas repito que o faz de modo forçado, ou para ser mais exato: esquiva-se, evita alguma coisa, e quando se observa mais de perto, vê-se que esta coisa é um determinado tratamento. Quanto ao seu procedimento, tem-se a impressão de que o senhor fez uma aposta, de que partilhou uma filipina com madame, e não pode, segundo as condições estipuladas, dirigir-lhe diretamente a palavra. Como conseqüência lógica disso, evita qualquer forma de tratamento. Nunca lhe diz “a senhora”. – Mas, Mynheer Peeperkorn... Que filipina seria essa? – Posso chamar a sua atenção para o fato que o senhor certamente notou também: acaba de empalidecer até os lábios. Hans Castorp não ergueu o olhar. Inclinado para a frente, ocupava-se intensamente com as manchas vermelhas no lençol. “Isso tinha que acontecer!”, pensou. “Tudo tendia nessa direção. Acho que eu mesmo fiz o que estava a meu alcance para que chegássemos a este ponto. Em certo sentido, tinha isso em mira, como percebo agora. Será que realmente empalideci? É possível, porque está iminente o momento decisivo. Não se sabe o que acontecerá. Posso ainda mentir? Poderia, mas não quero. Por enquanto continuarei olhando essas manchas de sangue, essas manchas de vinho tinto no lençol...” De cima dele também não vinha palavra alguma. O silêncio prolongou-se por dois ou três minutos, tornando perceptível a enorme extensão que essas unidades minúsculas podem adquirir em tais circunstâncias. Quem reencetou a conversa foi Pieter Peeperkorn. – Naquela noite em que tive o prazer de travar conhecimento com o senhor – começou em tom cantante, baixando a voz como se terminasse a primeira frase de uma longa história. – Acabávamos de celebrar uma pequena festa. Havíamos saboreado comidas e bebidas. A altas horas da noite, numa disposição animada, com o espírito livre e empreendedor, dirigíamo-nos, de braços dados, para os nossos quartos. Sucedeu então o seguinte: diante desta minha porta, no momento da despedida, ocorreu-me a idéia de convidar o senhor a tocar com os lábios a fronte da mulher que o tinha apresentado a mim como um bom amigo de uma temporada anterior, e de deixar ao critério dela se queria retribuir, na minha presença, esse ato solene e alegre, como consagração da hora sublime. O senhor rejeitou redondamente a minha sugestão; rejeitou-a alegando que lhe parecia absurdo trocar beijos na fronte com a minha companheira de viagem. O senhor não vai negar que aquilo era uma explicação que por sua vez necessitava de um comentário, e esse comentário o senhor me ficou devendo até agora. Está o senhor disposto a pagar essa dívida? “Ora, ora, ele percebeu até isso”, pensou Hans Castorp e pôs-se a estudar ainda mais intensamente as manchas de vinho, chegando até a arranhar uma com a ponta curva do dedo médio. “Pode ser que naquele instante eu desejasse, no fundo do coração, que ele percebesse e tomasse nota do fato. Caso contrário, eu não teria dito essas coisas. Mas que haverá agora? Meu coração bate violentamente. Terei de enfrentar uma enorme explosão de fúria real? Quem sabe se eu não faria bem em vigiar o seu punho, que talvez já esteja erguido por cima da minha cabeça? Uma situação esquisitíssima e sumamente crítica, essa em que me encontro.” De chofre sentiu a mão de Peeperkorn agarrar-lhe o pulso direito. “Agora me pega pelo pulso!”, pensou. “Que bobagem, ora essa! Por que me comporto aqui como um cão surrado? Cometi alguma falta contra ele? Nenhuma. O primeiro que teria direito de se queixar seria aquele homem em Daghestan. E depois mais este ou aquele. E finalmente eu mesmo. Ao que saiba, ele não tem motivo nenhum para queixar-se. Pois então, por que meu coração bate tanto? Já é tempo que me aprume e olhe franca, mas também reverentemente, para o seu rosto majestoso.” Foi o que fez. O rosto majestoso estava amarelo. Os olhos pareciam apagados sob o enrugamento içado da testa. Os lábios gretados mostravam uma expressão amarga. Um lia nos olhos do outro, o grande ancião e o jovem insignificante, enquanto um prosseguia segurando o pulso do outro. Finalmente Peeperkorn disse em voz baixa: – O senhor foi amante de Clávdia durante a outra temporada. Hans Castorp mais uma vez inclinou a cabeça, mas logo voltou a levantá-la, respondendo, depois de respirar profundamente: – Mynheer Peeperkorn! Repugna-me no mais alto grau mentir-lhe. Esforço-me por encontrar uma possibilidade de evitar esse recurso. Não é fácil. Eu exageraria se confirmasse o que o senhor acaba de dizer, e mentiria se o negasse. Isso se explica assim: durante muito tempo, durante muitíssimo tempo mesmo vivi nesta casa com Clávdia – perdão! – com a sua atual companheira de viagem, sem conhecê-la no sentido convencional. A convenção não tinha lugar nas nossas relações, ou melhor: nas minhas relações com ela, sobre as quais quero acrescentar que sua origem está envolta em obscuridade. Nos meus pensamentos, nunca tratei Clávdia de outra forma a não ser de “tu”, e tampouco o fiz em realidade. Pois aquela noite em que me desembaracei de certas peias pedagógicas que mencionei de passagem, e me aproximei dela, sob um pretexto que um fato longínquo me sugeria, era uma noite de mascarada, noite de carnaval, noite sem responsabilidade, noite do “tu”, em cujo decorrer esse “tu” adquiriu, inconscientemente e como num sonho, a plenitude do seu significado. Ao mesmo tempo, porém, era a véspera da partida de Clávdia. – A plenitude do seu significado – repetiu Peeperkorn. – O senhor disse isso de forma muito gentil... – Soltou o pulso de Hans Castorp, e com as palmas das mãos de capitão, de unhas compridas, começou a esfregar ambos os lados do rosto, as órbitas, as bochechas e o queixo. A seguir juntou as mãos sobre o lençol enlaivado de vinho e voltou a cabeça para a esquerda, a direção onde se achava o visitante, parecendo, contudo, desviar o rosto. – Respondi-lhe com a maior clareza possível, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp –, e procurei escrupulosamente não dizer nem de menos nem de mais. O que mais me importava era fazer-lhe notar que, sob certo aspecto, se tem plena liberdade de levar ou não levar em conta aquela noite, a noite do “tu” consumado e da despedida; fazer notar que essa noite se achava completamente fora do normal e quase que fora do calendário, um hors d’oeuvre, por assim dizer, uma noite extra, noite bissexta, 29 de fevereiro, e que, por conseguinte, seria apenas meia mentira se eu negasse o que o senhor acaba de afirmar. Peeperkorn não deu resposta. – Preferi – recomeçou Hans Castorp depois de uma pequena pausa – falar a verdade, não obstante o perigo de perder assim as suas simpatias, o que, digo francamente, seria para mim uma perda sensível; posso assegurar que seria um golpe, um verdadeiro golpe, que bem se poderia comparar com aquele que significou para mim o fato de Mme. Chauchat não voltar sozinha, mas como sua companheira de viagem. Arrisquei correr esse perigo, porque desde muito desejava que houvesse clareza entre nós, entre o senhor, por quem sinto tão extraordinário respeito, e a minha pessoa; isso me parecia mais bonito e mais humano... O senhor conhece o modo como Clávdia pronuncia essa palavra, com aquela sua voz encantadoramente velada, arrastando-a com tanta graça... Bem, isso me parecia mais humano do que a discrição ou o fingimento. Sob esse aspecto experimentei grande alívio quando o senhor há pouco fez aquela afirmação. Nenhuma resposta. – Não é só isso, Mynheer Peeperkorn – prosseguiu Hans Castorp. – Há mais uma coisa que me inspirou o desejo de lhe falar com toda a franqueza. Trata-se da experiência pessoal que me ensinou quão irritantes são, numa situação dessas, a incerteza e a necessidade de se guiar por conjecturas. Agora o senhor é que sabe com quem Clávdia – antes de se estabelecer a atual situação de direito, que seria a mais rematada loucura desrespeitar – teve, ou passou, ou cometeu... sim, cometeu um... um dia 29 de fevereiro. Eu por mim nunca cheguei a adquirir essa clareza, apesar de me dar conta de que todos os que tenham ensejo de refletir sobre essas coisas devem incluir nos seus cálculos esse tipo de precedentes, o que no fundo quer dizer predecessores, e apesar de saber, além disso, que o Conselheiro Behrens, o qual, como o senhor talvez não ignora, é pintor diletante, fez dela, no curso de muitas sessões, um excelente retrato a óleo, com uma representação tão realística da pele que existem, cá entre nós, motivos de sobra para suspeitas. Aquilo me causou muitos tormentos e muita dor de cabeça, e ainda hoje causa. – O senhor ainda a ama? – perguntou Peeperkorn, sem mudar de posição, isto é, com o rosto desviado... O quarto espaçoso ia desaparecendo mais e mais na penumbra. – Perdão, Mynheer Peeperkorn – replicou Hans Castorp –, mas os sentimentos que nutro pelo senhor, sentimentos da mais alta estima e admiração, não me permitiriam falar-lhe dos sentimentos que nutro pela sua companheira de viagem. – E ainda hoje – perguntou Peeperkorn em voz abafada – ela continua a corresponder a esses sentimentos? – Não digo – tornou Hans Castorp –, não digo que em algum momento tenha correspondido a eles. Isso me parece pouco provável. Acabamos de frisar esse assunto teoricamente quando tratamos da natureza reativa das mulheres. Claro que na minha pessoa não há muita coisa que se possa amar. Que envergadura tenho eu? Julgue o senhor mesmo! A possibilidade de um... de um dia 29 de fevereiro só pode ser atribuída ao fato de a mulher se deixar influenciar pela escolha prévia do homem. Quero acrescentar que tenho a impressão de cometer um ato de vaidade e de mau gosto, quando falo de mim como de um “homem”, mas Clávdia é indiscutivelmente mulher. – Ela obedeceu aos seus sentimentos – murmuraram os lábios gretados de Peeperkorn. – Como o fez no caso do senhor, com muito mais obediência ainda – retrucou Hans Castorp – e como, segundo todas as probabilidades, já o deve ter feito umas quantas vezes... Disso se devem dar conta os que têm ensejo de... – Um momento! – disse Peeperkorn, continuando com os olhos desviados, mas detendo o seu interlocutor com um gesto da palma da mão. – O senhor não acha infame falarmos assim sobre ela? – Não acho, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor, nesse ponto me parece que o posso tranqüilizar completamente. Estamos falando de coisas humanas – humanas no sentido da genialidade e da liberdade. Desculpe essa expressão que talvez seja um pouco pomposa; mas uma emergência, há poucos dias, me fez lançar mão dela. – Está bem. Continue! – ordenou Peeperkorn, baixinho. Também Hans Castorp abafava a voz. Sentado na borda da cadeira, junto à cama, com as mãos apertadas entre os joelhos, inclinava-se para o ancião majestoso. – Pois ela é uma criatura genial – disse – e aquele homem que vive lá além do Cáucaso – o senhor deve saber que ela tem um marido por lá – permite-lhe a liberdade, a genialidade, seja por embotamento, seja por inteligência. Não sei dizê-lo, porque não conheço aquele sujeito. Em todo caso anda acertado fazendo-lhe essa concessão, já que é a doença que a torna livre, o princípio genial da doença, ao qual ela está sujeita. E quem tiver ensejo de fazê-lo estará certo em imitar o exemplo dele, sem se queixar nem do passado nem do futuro... – O senhor não se queixa? – perguntou Peeperkorn, voltando o rosto para o jovem... Parecia pálido na penumbra, com o olhar fixo, apagado e lasso, sob as rugas da fronte que lhe davam a aparência de um ídolo. A boca ampla, gretada, estava semi-aberta, como numa máscara trágica. – Eu não pensava – respondeu Hans Castorp com modéstia – que se tratasse de mim. Minhas palavras tinham por objetivo evitar que o senhor se queixasse, Mynheer Peeperkorn, e que me privasse da sua benevolência, por causa de ocorrências passadas. É isso o que me preocupa nesta hora. – Mesmo assim – disse Peeperkorn – deve ter sido uma dor profunda aquela que lhe causei sem saber. – Se isto é uma pergunta – volveu Hans Castorp – e se dou uma resposta afirmativa, isso não significa de forma alguma que eu não saiba apreciar o enorme privilégio de conhecê-lo, uma vez que esse privilégio não pode ser separado da decepção a que se refere. – Obrigado, jovem, obrigado. Gosto da gentileza das suas palavras ágeis. Mas, abstração feita das nossas relações... – É difícil fazer abstração delas – disse Hans Castorp – e também não preciso fazê-la, para responder à sua pergunta com um simples “sim”. Pois o fato de ter Clávdia voltado em companhia de uma personalidade da envergadura do senhor só podia aumentar e complicar o desgosto que constituía para mim a própria circunstância de ela ter voltado em companhia de um homem. Esse fato me deu muito que fazer e continua dando até hoje; não o nego. De propósito me empenhei o mais que pude em ver o lado positivo da coisa, quer dizer: os sentimentos de sincera reverência que tenho pelo senhor, Mynheer Peeperkorn. Isso incluía, aliás, uma pequena malícia contra a sua companheira de viagem; pois as mulheres absolutamente não gostam de que os seus amantes se entendam. – De fato... – disse Peeperkorn, e escondeu um sorriso, passando a mão em concha por sobre a boca e o queixo, como se houvesse o perigo de Mme. Chauchat vê-lo sorrir. Também Hans Castorp esboçou um sorriso discreto, e a seguir ambos sacudiram a cabeça num entendimento tácito. – Afinal de contas – prosseguiu Hans Castorp –, eu tinha direito a essa pequena vingança; pois, quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clávdia, nem tampouco do senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da minha vida e do meu destino. Uma vez que tenho a honra de gozar da, sua confiança, e que essa hora crepuscular é tão agradável, quero pelo menos esboçar esses motivos. – Pois não – disse Peeperkorn cortesmente, e Hans Castorp continuou: – Estou aqui em cima faz muito tempo, Mynheer Peeperkorn, há vários anos já, nem sei dizer quantos. Mas são anos da minha vida, e por isso mencionei a “vida”, assim como também voltarei oportunamente a falar do “destino”. Meu primo, ao qual eu desejava fazer uma pequena visita, um militar com intenções decentes e honradas, que no entanto pouco lhe adiantaram, meu primo foi-me arrebatado, e eu continuo aqui. Eu não era soldado; tinha uma profissão civil, como o senhor talvez tenha ouvido falar, uma profissão sólida e sensata, que, segundo dizem, tem até funções de ligar os povos entre si. Não nego que nunca tenha sentido uma afeição especial por ela, e isso por razões sobre as quais só quero dizer que se acham envoltas em obscuridade. Acham-se ali lado a lado com as origens dos sentimentos que tenho pela sua companheira de viagem – sirvo-me desse termo para demonstrar expressamente que nem penso em discutir direitos adquiridos –, meus sentimentos por Clávdia Chauchat e o tratamento de “tu” que lhe dou no meu íntimo, como nunca deixei de fazer, desde que os olhos dela encontraram os meus pela primeira vez, enfeitiçando-me imediatamente. Enfeitiçando-me num sentido insensato, compreende? Por amor a ela, a despeito do Sr. Settembrini, sujeitei-me ao princípio oposto à razão, ao princípio genial da doença, ao qual talvez já tenha estado sujeito desde muito ou desde sempre. Fiquei aqui em cima, já não sei com certeza há quanto tempo. Esqueci tudo e me desliguei de tudo, dos meus parentes, e da minha profissão, e do meu futuro na planície. E quando Clávdia partiu, esperei por ela, esperei sempre aqui em cima, de modo que estou perdido para a planície, que me considera morto. Era isso que eu tinha em mente, quando me referi ao “destino” e tomei a liberdade de alegar que eu enfim tinha certo direito de me queixar da atual situação jurídica. Certa vez li uma história... Não, vi-a no teatro. Havia lá um rapaz que não fazia mal a ninguém. Era, aliás, um soldado, tal qual meu primo. Trava conhecimento com uma encantadora cigana, um verdadeiro encanto de mulher fatal e selvagem, com uma flor atrás da orelha, e ela domina-o de tal maneira que o rapaz se desnorteia completamente e chega a sacrificar-lhe tudo, a desertar das fileiras, a associar-se em sua companhia a um bando de contrabandistas, e a desonrar-se sob todos os aspectos. Ao cabo de tudo isso, ela se cansa dele e arranja um toureiro de personalidade poderosa com uma magnífica voz de barítono. A história termina assim: o soldadinho, com o rosto branco que nem giz, e com a camisa aberta, esfaqueia-a em frente a um circo. Por outro lado, a mulher o havia provocado a esse ato. É uma história que não vem ao caso, essa que acabo de contar. Mas, afinal, por que me ocorreu? Quando Hans Castorp falara em “esfaquear”, Peeperkorn modificara a sua posição semisentada. Retrocedera um pouco na cama, voltando rapidamente o rosto ao visitante e lançando nele um olhar perscrutador. A seguir, empertigou-se, apoiado no cotovelo, e disse: – Jovem, ouvi as suas palavras e agora estou a par de tudo. Permita que, à base do que me comunicou, lhe ofereça uma explicação leal! Se os meus cabelos não fossem brancos e eu não me achasse acometido por uma febre maligna, o senhor me veria disposto a dar-lhe, de homem para homem, com a arma na mão, satisfação pelo mal que lhe causei sem saber, e ao mesmo tempo pelo outro que lhe infligiu a minha companheira de viagem, e do qual também lhe devo contas. Perfeitamente. O senhor me veria disposto. Mas, sendo as coisas como são, permita que eu lhe faça uma outra proposta. Trata-se do seguinte: lembro-me de um momento sublime, logo no início das nossas relações... Lembro-me dele, embora naquela ocasião tivesse feito muita honra ao vinho. Foi o momento em que eu, agradavelmente impressionado pelo seu caráter, estive a ponto de lhe propor o “tu” fraternal. No entanto, não pude deixar de perceber que esse passo seria um tanto precipitado. Muito bem, hoje me refiro àquele instante, transporto-me novamente para ele e dou por terminado o prazo então estabelecido. Meu caro jovem, somos irmãos; declaro-nos irmãos. O senhor falou do significado pleno de um “tu”. Também o nosso terá significado pleno, o significado da fraternidade no sentimento. A satisfação que não lhe posso dar com a arma, devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a forma de uma aliança fraternal, assim como às vezes se concerta contra terceiros, contra o mundo ou contra quem quer que seja, o que nós faremos no sentimento comum por alguém. Toma a tua taça, jovem, enquanto eu volto a usar do meu copo de lavar dentes, que afinal de contas não ofende de forma alguma essa zurrapazinha... E com a mão de capitão ligeiramente trêmula encheu os copos, ajudado pelo reverente e perplexo Hans Castorp. – Serve-te! – repetiu Peeperkorn. – Cruza o braço comigo e bebe assim! Esvazia o copo!... Ótimo, jovem! Feito! Aqui tens a minha mão. Estás contente? – Essa palavra é, naturalmente, muito fraca para expressar o que sinto, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, que tivera algumas dificuldades em emborcar a taça de um só gole e enxugava os joelhos com o lenço, porque derramara um pouco de vinho. – Prefiro dizer que estou infinitamente feliz. Nem posso ainda compreender como pude ser distinguido dessa maneira. Francamente, é como se eu estivesse sonhando. É uma imensa honra para mim, e não sei como a mereci, a menos que de um modo passivo, porque não pode ser de outra forma. Não será de admirar que no começo me pareça um tanto excêntrico empregar esse novo tratamento, e que eu tropece de vez em quando, sobretudo em presença de Clávdia, que, à maneira das mulheres, provavelmente não gostará deste arranjo... – Deixa isto comigo – replicou Peeperkorn. – E o resto é uma questão de prática e de hábito. E agora vai-te, meu caro jovem! Deixa-me sozinho, meu filho! Está escuro; já é noite cerrada, e nossa amiga pode voltar a qualquer instante. Um encontro de vocês, neste momento, talvez não seja conveniente. – Desejo-te uma boa noite, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, enquanto se levantava. – Como o senhor está vendo, procuro vencer a minha legítima timidez e exercito-me nesse tratamento audacioso. Escureceu; é verdade. Seria bem possível que o Sr. Settembrini entrasse neste quarto e acendesse a luz, para que reinasse a razão e as convenções; é o fraco dele. Até amanhã! Saio daqui tão alegre tão orgulhoso como nem de longe teria imaginado. Estimo tuas melhoras. Tens à frente pelo menos três dias sem febre, durante os quais o senhor não precisa temer nenhum esforço. Isto me dá tanto prazer como se eu fosse tu. Boa noite! Mynheer Peeperkorn (Fim) Uma cascata não deixa de ser objetivo atraente para excursões, e dificilmente se explica por que Hans Castorp, apesar de sentir inclinação particular pelas quedas-d’água, ainda não visitara o pitoresco salto situado na floresta do vale de Fluela. Essa omissão talvez fosse perdoável durante o tempo em que convivera com Joachim; o rigoroso senso do dever, peculiar ao primo, que não viera para divertir-se, e nunca perdia de vista a finalidade da sua estadia, havia limitado o horizonte de ambos aos arredores próximos do Sanatório Berghof. E depois do decesso de Joachim – sim, também depois dele, as relações entre Hans Castorp e a paisagem alpina haviam guardado, abstraindo os passeios de esqui, o caráter de conservadora monotonia, que contrastava fortemente com o vasto alcance das suas experiências interiores e dos seus afazeres de “regente”. Esse contraste exercia sobre o jovem um encanto que ele, em certo sentido, saboreava com plena consciência. Mesmo assim aprovou vivamente um projeto de excursão de coche até aquele lugar famoso, projeto que um dia foi ventilado no pequeno círculo dos seus amigos, entre as referidas sete pessoas (inclusive ele próprio). Nesse ínterim chegara o mês de maio, mês das delícias, segundo as ingênuas cantilenas da planície. Aqui em cima, o ar de maio costumava ser bastante frio e não muito convidativo; mas ao menos podia-se dizer que o degelo estava terminado. Verdade é que diversas vezes no decorrer dos últimos dias haviam caído grossos flocos, mas a neve derretia-se logo, deixando atrás apenas um pouco de umidade. As massas compactas do inverno acabavam de fundir-se, de esvair-se, de desaparecer, com exceção de alguns restos isolados, e o verdor do mundo novamente transitável constituía um convite a todo espírito empreendedor. No curso das semanas passadas, as atividades sociais do grupo tinham sido influenciadas pela indisposição do seu chefe supremo, o majestoso Pieter Peeperkorn, cuja febre maligna, lembrança dos trópicos, não queria ceder nem aos efeitos de um clima excepcional, nem aos antídotos de um médico tão competente como era o Conselheiro Behrens. O holandês passara muito tempo na cama, e não somente nos dias em que a quarta reivindicava cruelmente os seus direitos. O baço e o fígado davam-lhe muito trabalho, conforme o médico explicava em particular aos amigos mais chegados do enfermo. Também o estômago não se achava em estado perfeito, e Behrens não se esqueceu de indicar o perigo de um enfraquecimento progressivo, a que estava exposta, sob essas circunstâncias, até mesmo uma constituição tão robusta como a de Peeperkorn. Durante todas essas semanas, Mynheer não presidira senão um único festim noturno, e também os passeios em comum tinham sido cancelados, exceção feita de um só, de pouca extensão. Por outra parte – contamos isso aqui entre nós – Hans Castorp experimentava uma espécie de alívio graças a esse afrouxamento dos laços que ligavam o grupo; pois a nova fraternidade com o companheiro de viagem de Mme. Chauchat causava-lhe dificuldades. Nas conversas que ele mantinha com Peeperkorn em presença de terceiros voltavam a aparecer aquela “atitude forçada”, aquela “evitação” e “esquivança”, que o holandês percebera na sua conduta para com Clávdia, e que pareciam ter a sua origem numa obrigação de partilhar a filipina. Hans Castorp servia-se de estranhos circunlóquios para não empregar o tratamento direto, nos casos em que este se impunha. Era o mesmo dilema, ou talvez o dilema inverso, que pesava sobre as palavras que ele trocava com Clávdia na frente de outras pessoas ou apenas do próprio Peeperkorn. Devido à satisfação que este lhe havia dado, esse dilema colocava o jovem entre Cila e Caribdes. Mas agora estava na ordem do dia o projeto da excursão à cascata. Peeperkorn em pessoa fixara o itinerário e sentia-se disposto a tentar a empresa. Era o terceiro dia depois de um ataque de quarta, e Mynheer comunicou que tinha a intenção de aproveitá-lo. Não almoçara no refeitório; como nesses últimos tempos acontecia freqüentemente, tomara as primeiras refeições no salão do seu apartamento, em companhia de Mme. Chauchat. Mas já na hora do café da manhã Hans Castorp recebera, por intermédio do porteiro coxo, a ordem de se aprontar para um passeio de coche, uma hora depois do almoço, de transmitir essa ordem aos senhores Ferge e Wehsal, e finalmente de comunicar a Settembrini e Naphta que o carro passaria pela sua casa para buscá-los. Além disso devia Hans Castorp arranjar dois landôs para as três da tarde. A essa hora encontraram-se diante do portão do Sanatório Berghof. Enquanto Hans Castorp, Ferge e Wehsal esperavam ali os donos do apartamento principesco, distraíram-se acariciando os cavalos, que com os grossos e úmidos beiços pretos lhes tiravam das palmas da mão pedaços de açúcar. Com um pequeno atraso apenas os companheiros de viagem surgiram na escadaria. Peeperkorn, cuja cabeça de rei parecia mais magra, e que trajava um sobretudo comprido, um pouco gasto, deteve-se no patamar, ao lado de Clávdia, tirando o chapéu redondo e macio, e seus lábios articularam um ‘Bom-dia!” inaudível. A seguir apertou as mãos de cada um dos três senhores, que haviam ido ao encontro do casal, até o pé da escada. – Meu caro jovem! – disse então dirigindo-se a Hans Castorp e pondo-lhe a mão esquerda sobre o ombro. – Como vais, meu filho? – Vou indo aqui muito bem. Obrigado. E desse lado aí, como vão as coisas? – respondeu o jovem. O sol brilhava. Era um dia lindo, sem nuvens. Mesmo assim tinham agido com acerto vestindo casacões de meia-estação, porque era provável que durante o passeio o frio se tornasse sensível. Também Mme. Chauchat trajava um sobretudo quente, cinturado, de uma fazenda felpuda, com grandes quadrados de xadrez, e com uma gola de pele que lhe cobria os ombros. No chapéu de feltro trazia um véu cor de azeitona, atado por baixo do queixo, e que dobrava as abas em torno do rosto. Ficava tão encantadora com esse chapéu que literalmente fazia sofrer a maioria dos cavalheiros presentes, exceção feita de Ferge, o único que não estava apaixonado por ela. Foram distribuídos os lugares, provisoriamente, já que mais tarde os externos se reuniriam ao grupo, e a indiferença de Ferge teve por conseqüência caber-lhe o assento de costas, no primeiro landô, na frente de Mynheer e de madame, ao passo que Hans Castorp embarcou junto com Wehsal no segundo carro, não sem ter apanhado um sorriso irônico de Clávdia. O vulto frágil do criado malaio também participava da excursão. Com um volumoso cesto, sob cuja tampa apontavam os gargalos de duas garrafas de vinho, e que foi depositado debaixo de um dos assentos de costas do primeiro landô, o homenzinho aparecera atrás dos seus amos, e quando se achava instalado na boléia, com os braços cruzados, deu-se aos cavalos o sinal de partida. Com os freios apertados, os carros começaram a descer pela curva da rampa. Também Wehsal notara o sorriso de Mme. Chauchat. Mostrando os dentes cariados, fez comentários acerca dele para Hans Castorp. – Viu – perguntou – como ela se riu do senhor, porque tem de ir sozinho comigo? Primeiro o dano, depois o escárnio. Não acha o senhor irritante e repulsivo estar assim a meu lado? – Controle-se, Wehsal, e deixe de falar desse jeito miserável – repreendeu-o Hans Castorp. – As mulheres sorriem a qualquer instante, pelo prazer de sorrir. Não vale a pena refletir sobre todos os seus sorrisos. Por que insiste o senhor em rebaixar-se deste modo? Como nós todos, o senhor tem suas qualidades e seus defeitos. Por exemplo, toca bastante bem o Sonho de uma noite de verão, coisa que nem todos sabem fazer. O senhor deveria tocá-lo novamente qualquer dia destes. – Pois sim! – respondeu o pobre-diabo. – O senhor me fala com muita condescendência e nem sequer percebe o desaforo que está contido no seu consolo e que somente me humilha ainda mais. Para o senhor é fácil dizer essas coisas e reconfortar a gente do alto dos seus tamancos; pois, se hoje se encontra numa situação um tanto ridícula, pelo menos teve a sua vez, Santo Deus, e esteve no sétimo céu! Sentiu os braços dela em torno do pescoço, e tudo aquilo, Santo Deus! me queima a garganta e o fundo do coração quando me volta à memória. E o senhor, com plena consciência do que gozou, pode contemplar desdenhosamente os meus tormentos de mendigo... – Não é bonita essa sua maneira de expressar-se, Wehsal. É até sumamente repugnante. Não acho necessário ocultar-lhe esta minha opinião, uma vez que o senhor me tachou de desaforado. E tenho a impressão de que o senhor fala de propósito dessa forma repulsiva. Faz tudo para parecer asqueroso e avilta-se a cada momento. Sua paixão por ela é realmente violenta? – É terrível – replicou Wehsal, meneando a cabeça. – São indescritíveis as torturas que sofro pela sede e pela cobiça de possuí-la. Quem me dera dizer que isso será a minha morte! Mas num estado desses não se pode nem viver nem morrer. Enquanto ela estava ausente, comecei a me sentir melhor. Aos poucos consegui me preocupar menos. Mas desde que voltou e a vejo todos os dias, a minha paixão me faz morder o braço e agarrar miragens. Já não sei o que fazer. Uma coisa assim não deveria existir. Mas não é possível desejar que desapareça. Quem sofre de tal paixão não pode ter esse desejo, porque seria o mesmo que desejar que desaparecesse a própria vida, que se amalgamou com a paixão; é coisa que não se pode... Que adiantaria morrer? Depois, sim; com prazer! Nos braços dela; com a maior satisfação! Mas antes, seria absurdo; pois a vida é o desejo, e o desejo é a vida e não pode voltar-se contra si próprio; nisso é que consiste o maldito dilema. E quando digo “maldito”, isto não passa de uma maneira de falar. É como se um terceiro falasse, porque eu mesmo absolutamente não posso ter essa opinião. Há muitos tipos de tormentos, Castorp, e quem está sendo torturado quer se ver livre, quer simplesmente, incondicionalmente, que o soltem. Eis o que é o seu único objetivo. Mas quando se trata da tortura da cobiça carnal, não se pode desejar a libertação, a não ser pelo caminho e sob a condição de a ver saciada. Não há outro meio, por preço algum! Assim são as coisas, e quem não sofre disso não perde tempo com reflexões desse gênero, mas quem sofre chega a ver estrelas e a compreender o Senhor dos Passos. Deus do Céu! Que instituição curiosa é essa de a carne cobiçar tão violentamente uma outra carne, só porque esta não é a própria, mas pertence à alma de outrem! Como é singular esse desejo, e para bem dizer, como é modesto, na sua bondade pudica! É o caso de dizer: se a carne deseja apenas isso, vá lá, que o tenha! Afinal de contas, que é que eu quero, Castorp? Quero, acaso, matá-la? Quero derramar o sangue dela? Quero apenas é acariciá-la! Castorp, meu caro Castorp, desculpe que me lamente dessa forma, mas, afinal, ela poderia muito bem entregar-se a mim! Haveria nisso algo de sublime, Castorp! Eu não sou nenhum animal; à minha maneira, também sou um ser humano! O desejo da carne espalha-se em todas as direções; não tem limites e não se fixa, e por isso o chamamos bestial. Mas quando se concentra numa única criatura, com um rosto humano, então os nossos lábios começam a falar de amor. Mas o que eu desejo não é apenas o torso dela, o manequim de carne que é o seu corpo; pois, se no seu rosto uma coisinha de nada tivesse uma forma diferente, talvez deixasse eu de cobiçar todo o resto do corpo. Assim se vê claramente: o que eu amo é a sua alma e a amo com a alma. Pois o amor ao rosto é o amor da alma ... – Mas que é que o senhor tem, Wehsal? Parece fora de si e nem sabe em que tom está falando... – Mas, precisamente isso, precisamente isso é a desgraça – prosseguiu o coitado –, a desgraça é ter ela uma alma, ser ela uma criatura humana, dotada de corpo e alma! Ora, a sua alma nada quer saber da minha, e o seu corpo nada do meu. Que miséria, que grandíssima miséria! Daí acontece que o meu desejo está condenado à vergonha, e meu corpo tem de se retorcer eternamente! Por que ela não quer saber de mim, Castorp, nem com o corpo nem com a alma? Por que lhe causa horror o meu desejo? Porventura não sou homem? Um homem repugnante não é homem? Sou homem no mais alto grau; juro que ultrapassaria tudo que já se viu, se ela me abrisse o paraíso dos seus braços, que são tão formosos porque pertencem ao rosto da sua alma! Eu seria capaz de lhe dar todas as volúpias do mundo, Castorp, se se tratasse apenas dos corpos e não das almas também; se não existisse a maldita alma dela, que nada quer saber de mim, mas sem a qual eu não lhe cobiçaria o corpo. E neste nojento dilema dos diabos debato-me eternamente! – Psiu, Wehsal! Fale mais baixo! O cocheiro entende o que está dizendo. De propósito não volta a cabeça, mas vejo pelas costas dele que escuta. – Ele me entende e escuta; aí está, Castorp! Aí temos novamente aquela coisa, aquela instituição com a sua particularidade e seus característicos. Se eu falasse de palingenesia ou... ou de hidrostática, ele não entenderia patavina; não saberia de que se trata, não escutaria e não mostraria o menor interesse. Pois esses assuntos não são populares. Mas a coisa mais sublime, a mais extrema e a mais secreta, num sentido sinistro, o assunto da carne e da alma, olhe, essa coisa é ao mesmo tempo a mais popular. Todos a entendem, todos podem zombar de quem sofre dela e a quem ela transforma os dias em torturas voluptuosas, e as noites num inferno ignominioso! Castorp, meu caro Castorp, deixe que eu me lamente um pouco; pois que noites são estas que eu tenho! Noite após noite sonho com ela; ah, com quanta coisa dela não sonhei! A garganta e o estômago me queimam, quando recordo. E todos os sonhos terminam assim: ela me esbofeteia, me bate em pleno rosto e às vezes me cospe na cara, me cospe na cara, com o rosto da sua alma crispado de asco, e então acordo, coberto de suor e de vergonha e de volúpia... – Muito bem, Wehsal, e agora vamos fazer uma pequena pausa e tomar a decisão de calar a boca até que cheguemos à casa do merceeiro e alguém venha nos fazer companhia. É da minha parte uma sugestão e uma ordem. Não quero ofendê-lo e admito que o senhor se encontra em graves apuros. Mas lá em casa contavam a história de um indivíduo que tinha recebido o seguinte castigo: quando falava, saíam-lhe da boca serpentes e sapos, a cada palavra uma serpente ou um sapo. O livro não rezava o que aquela personagem fazia diante disso, mas sempre fui de opinião que ela deve ter calado a boca. – Mas falar é uma necessidade humana, meu caro Castorp – tornou Wehsal melancolicamente –, uma necessidade humana. É preciso desabafar, quando se está em tais apuros. – É até um direito que o homem tem, Wehsal, se assim quiser. Mas, a meu ver, existem direitos que sob certas circunstâncias não convém usar. Assim guardaram silêncio, conforme a ordem de Hans Castorp. Ademais, o coche não tardou a alcançar a casinha coberta de vinhas do merceeiro, onde não os deixaram esperar nem um instante. Naphta e Settembrini já se achavam na rua; o humanista trajava aquela jaqueta puída, forrada de peles, e o jesuíta, um sobretudo amarelo-esbranquiçado, de meia estação, pespontado em toda parte, e que lhe dava aparência de janota. Acenaram uns aos outros. Trocaram cumprimentos, enquanto os carros faziam meia-volta, e os dois senhores embarcaram também. Naphta ocupou o quarto assento do primeiro landô, ao lado de Ferge, ao passo que Settembrini., de humor radiante, transbordando de piadas esplêndidas, se associou a Hans Castorp e Wehsal. Este lhe cedeu o seu lugar no fundo do carro, onde o Sr. Settembrini se instalou com a mais elegante displicência, na atitude de quem costuma passear em corsos. E celebrou o prazer de andar de carro, quando o corpo se encontra em confortável estado de repouso e todavia é transportado através de um cenário que sempre se modifica. Demonstrou a Hans Castorp sentimentos de complacência paternal, e até acariciou com palmadinhas a face do pobre Wehsal, enquanto o convidava a esquecer-se do seu próprio eu antipático e de abandonar-se à admiração desse mundo luminoso, que lhe designava num amplo gesto da mão direita, revestida com uma surrada luva de couro. Tiveram uma viagem excelente. Os quatro cavalos, todos eles malacaras, animais vivos, fortes, bem alimentados e de pêlo lustroso, pisavam com ritmo firme a magnífica estrada, que a essa época estava livre de poeira. Às vezes se aproximavam das margens rochedos anfractuosos, com flores e capim crescendo entre as juntas das pedras. Postes telegráficos corriam em sentido oposto. Surgiam bosques nas encostas. Curvas amenas, almejadas primeiro e em seguida percorridas, mantinham alerta a curiosidade. Em regiões distantes, iluminadas pelo sol, via-se sempre a cordilheira parcialmente coberta de neve. Já haviam perdido de vista a paisagem familiar do vale, e a mudança do cenário cotidiano produzia sobre os espíritos um efeito animador. Pouco depois, os coches pararam à beira da floresta. Tinha sido combinado que a partir desse ponto os excursionistas prosseguiriam a pé até a meta do passeio; essa meta com a qual os seus sentidos, sem se dar conta disso, tinham desde havia muito estabelecido um contato frouxo no início, mas que se tornava cada vez mais intenso. Terminada a viagem de carro, todos notaram um ruído longínquo, um suave rumor sibilante, vibrante, murmurante, que de vez em quando tornava a esquivar-se à percepção. Os membros do grupo estacaram para ouvir melhor, e uns chamavam a atenção dos outros. – Por enquanto – disse Settembrini, que já conhecia o lugar – o ruído parece fraquinho. Mas lá na cascata é fortíssimo nesta época do ano. Os senhores vão ver que não poderemos ouvir as nossas próprias vozes. Penetraram no bosque, por uma vereda coberta de úmidas agulhas de pinheiro. Peeperkorn ia na frente, apoiado no braço da sua companheira, com o macio chapéu preto repuxado sobre a testa, e com o seu típico andar oscilante. Atrás deles seguia Hans Castorp, sem chapéu como todos os demais, com as mãos nos bolsos; inclinando a cabeça obliquamente, olhava em torno e assobiava baixinho. Logo após vinham Naphta e Settembrini, depois Ferge com Wehsal, e por fim o malaio, caminhando sozinho, com o cesto de víveres no braço. Falavase do bosque. Aquele bosque não era como todos os outros. Oferecia um aspecto singularmente pitoresco, um aspecto exótico e ao mesmo tempo lúgubre. Existia ali em abundância uma espécie de líquen musgoso, que pendia das árvores, carregava-as, envolvia-as por completo. Em longas barbas incolores, as emaranhadas teias da planta parasita desciam bambaleando da ramagem como que embrulhada e estofada. Quase não se viam agulhas; tudo desaparecia sob as grinaldas de musgo. Era uma degeneração grave e esquisita, uma visão mágica e mórbida. O bosque não ia bem de saúde, sofria da moléstia desse líquen exuberante, que ameaçava sufocá-lo, segundo a opinião que todos manifestavam, enquanto o pequeno cortejo avançava pela vereda coberta de agulhas, ouvindo o ruído que significava a meta da qual se aproximavam, aquele rebôo e sussurro que aos poucos se transformava em estrondo e prometia confirmar a predição de Settembrini. Numa curva descortinava-se o panorama do desfiladeiro penhascoso que se abria no meio do bosque e era atravessado por uma ponte. No seu fundo caía a catarata. No momento em que os excursionistas depararam com ela, chegavam ao auge os efeitos acústicos. Era um barulho infernal. A massa de água precipitava-se verticalmente, num único salto, de sete ou oito metros de extensão e de considerável largura, e em seguida se lançava, branca, por sobre os rochedos. Sua queda produzia um estrépito medonho, no qual pareciam mesclar-se todos os tipos de ruídos e de tonalidades possíveis, trovões e silvos, bramidos, berros, fanfarras, estouros, estalidos, ribombos e badaladas de sinos. Realmente, aquilo era capaz de aturdir os sentidos. Os visitantes tinham-se adiantado muito sobre as rochas escorregadias, para chegar bem perto. Açoitados e salpicados por um sopro úmido, envoltos no vapor de água, com os ouvidos abarrotados e obstruídos pelo fragor, trocavam olhares e sacudiam a cabeça, sorrindo timidamente, ao contemplarem esse espetáculo, essa catástrofe contínua, formada de espuma e de alarido, cujo marulhar insensato e excessivo os estonteava, lhes causava medo e provocava ilusões acústicas. Tinham a impressão de ouvir de trás, de cima, de todos os lados gritos de ameaça ou de advertência, clarinadas ou vozes rudes de homens. Agrupados atrás de Mynheer Peeperkorn – Mme. Chauchat encontrava-se entre os cinco convidados – contemplavam com ele o turbilhão. Não divisavam o rosto do holandês, mas viam como descobria a cabeça rodeada de labaredas brancas e inflava o peito, enchendo-o daquele ar fresco. Comunicavam-se entre si por meio de olhares e de sinais, uma vez que quaisquer palavras, inclusive as que se gritassem diretamente ao ouvido do vizinho, seriam, sem dúvida, abafadas pelo fragor da queda. Os lábios articulavam expressões de surpresa e de admiração, que no entanto permaneciam inaudíveis. Mediante acenos de cabeça, Hans Castorp, Settembrini e Ferge combinaram escalar a encosta do desfiladeiro a cujo sopé se encontravam, a fim de chegar à ponte superior e de ver as águas de cima. Não era difícil. Uma escada íngreme, com degraus estreitos, talhados na rocha, conduzia a uma espécie de pavimento superior da floresta. Galgaram-na um após outro; avançaram pela ponte; chegados ao meio, por cima do jorro curvo da cascata, acenaram para os amigos que se achavam embaixo. A seguir atravessaram o resto da pontezinha e realizaram a laboriosa descida pelo outro lado, até a outra margem da torrente, de onde partia mais uma ponte, pela qual voltaram a reunir-se ao grupo. A essa altura, a mímica referia-se à merenda. Alguns opinavam que seria conveniente distanciarem-se, para esse fim, da zona do barulho, a fim de saborearem a refeição vesperal com os ouvidos descansados e não à maneira de surdos-mudos. Mas não podiam deixar de perceber que Peeperkorn não concordava com isso. Sacudiu a cabeça, repetidas vezes apontou com o indicador para o chão, e os lábios gretados, repuxados com esforço, articularam um “Aqui!” Que se podia fazer? Nessas questões de encenação, Peeperkorn era o diretor e o mestre. O peso da sua personalidade teria sido decisivo, mesmo que não fosse ele, como sempre, o organizador e o dono da empresa. Homens de tamanha envergadura foram e serão em todos os tempos tiranos e autocratas. Mynheer tencionava merendar à vista da cascata, em plena trovoada. Assim mandava o seu capricho soberano, e quem não quisesse renunciar à comida teria de ficar. A maioria estava pouco satisfeita. O Sr. Settembrini, que via eliminada a possibilidade de um intercâmbio humano, de uma palestra democrático-distinta ou ao menos de uma discussão, ergueu a mão por cima da cabeça, com aquele seu peculiar gesto de resignação e desespero. O malaio apressou-se a executar a ordem do amo. Levara consigo duas cadeiras dobradiças que armou junto à parede rochosa, para Mynheer e madame. Depois estendeu uma toalha aos seus pés e espalhou sobre ela o conteúdo do cesto – um aparelho de café, copos, garrafas térmicas, doces e vinho – que foi avidamente disputado. Os convidados instalaram-se nas pedras ou na balaustrada da ponte, com a xícara de café quente na mão e o prato cheio de bolo sobre os joelhos. Silenciosos, no meio do fragor, começaram a comer a merenda. Peeperkorn, com a gola do sobretudo levantada, e com o chapéu depositado no chão, perto de si, bebia vinho do Porto num copo de prata, guarnecido de um monograma, e que esvaziou várias vezes. E de repente se pôs a falar. Que homem estranho! Não era possível que ouvisse a própria voz, e muito menos que os outros entendessem uma sílaba sequer daquilo que lhes comunicava sem comunicá-lo. Levantou, entretanto, o dedo indicador. A seguir, mantendo o copo na mão direita, estendeu o braço esquerdo, com a palma da mão voltada obliquamente para cima. Viu-se então o rosto majestoso movimentar-se ao falar; viu-se a boca articulando palavras que permaneciam desprovidas de som, como se fossem proferidas num vácuo. Todos pensavam que logo desistiria desse esforço inútil, ao qual assistiam com um sorriso perplexo. Mas ele, com uma gesticulação esmerada, fascinante, imperiosa, continuava, a arengar o fragor, fixando os olhinhos lassos, apagados e muito abertos, ora num, ora noutro espectador, de modo que a pessoa a quem parecia dirigir-se se via obrigada a dar-lhe um sinal de aprovação, com as sobrancelhas alçadas, abrindo a boca e pondo a mão em concha na orelha, como se isso bastasse para resolver a situação irremediável. A seguir, Mynheer até se levantou. Tinha ainda o copo na mão. No surrado sobretudo de viagem que quase lhe ia até os pés, e cuja gola se achava erguida, com a cabeça descoberta, e com a alta e rugosa testa de ídolo rodeada pelas labaredas brancas do cabelo – assim se quedava junto ao penhasco e movia o semblante, à cuja frente elevava, doutrinando, o anel do polegar e do indicador, dominado pelos outros dedos em riste, como para remediar a indistinção do brinde mudo pelo sugestivo signo da exatidão. Compreendiam-se através dos gestos e liam-se-lhes dos lábios algumas palavras isoladas que habitualmente saíam da sua boca: “Absolutamente!”, “Basta!” e nada mais. A cabeça pendia para um lado, com uma expressão de amargor nos lábios gretados: a perfeita imagem de um mártir. Em seguida, porém, desabrochou a lasciva covinha, sinal do espírito sibarita, galhofeiro, e do impudor sagrado de um sacerdote pagão que ao dançar arregaça as vestes. E Peeperkorn ergueu o copo, descreveu com ele um semicírculo em direção aos seus convidados, e esvaziou-o completamente em dois ou três tragos, de maneira que o fundo se voltava para o céu. Por fim, com o braço estendido, passou-o ao malaio, que o recebeu com uma mesura, e deu o sinal de partida. Depois de se terem inclinado diante dele, para expressar a sua gratidão, todos se dispuseram a obedecer-lhe a ordem. Os que se achavam acocorados no chão levantaram-se de um pulo; quem estava sentado na balaustrada da pontezinha desceu depressa. O delgado javanês, com o chapéu-coco e a gola de peles, apanhou a baixela e os restos de comida. Na mesma ordem de marcha que haviam observado na ida, voltaram pela vereda úmida, coberta de agulhas de pinheiro, através da floresta desfigurada pelas grinaldas de líquen, até a estrada onde os esperavam os coches. Desta vez, Hans Castorp embarcou no carro do mestre e da sua companheira. Ocupou um lugar em frente ao casal, ao lado do bom Ferge, que continuava alheio a quaisquer assuntos elevados. Quase não se falou durante a viagem de regresso. Mynheer mantinha as mãos espalmadas sobre o cobertor que envolvia as suas pernas e as de Clávdia, e deixava pender a mandíbula inferior. Settembrini e Naphta desceram e despediram-se antes que os carros atravessassem os trilhos e o curso de água. Wehsal permaneceu sozinho no segundo coche, enquanto este subia pela curva da rampa e alcançava o portal do Berghof, onde todos se separaram... Na noite que se seguiu a esse dia, que é que houve com o sono de Hans Castorp? Foi ele mais leve e mais superficial devido a uma certa prontidão interior, da qual a sua alma não se dava conta, mas que tinha por conseqüência que a menor modificação do costumeiro silêncio noturno do Sanatório Berghof – um alarma por mais abafado que fosse e a mal perceptível repercussão de passos rápidos à distância – bastasse para tornar desperto e lúcido e para fazê-lo sobressaltar-se na cama? O fato é que acordou muito antes que alguém batesse à sua porta, o que se deu pouco depois das duas horas. Respondeu sem demora, clara e energicamente, com plena presença de espírito. Ouviu então a voz aguda e hesitante de uma das enfermeiras auxiliares, ocupadas na casa, e que lhe solicitava, em nome de Mme. Chauchat, que comparecesse imediatamente ao primeiro andar. Com redobrada energia mandou dizer que logo iria. Levantou-se de um salto; enfiou rapidamente as roupas; passou os dedos pelos cabelos, a fim de afastá-los da testa, e desceu sem pressa, mas também não devagar, mais incerto quanto às circunstâncias do que ao próprio fato que havia causado tal convite. Encontrou aberta a porta do salão de Peeperkorn, bem como aquela que dava para o quarto do holandês, onde todas as luzes estavam acesas. Ambos os médicos, a Superiora von Mylendonk, Mme. Chauchat e o criado malaio achavam-se presentes. Este não estava vestido como de costume, mas trazia uma espécie de traje nacional: uma jaqueta parecida com uma camisa, de listras largas e com mangas muito amplas e compridas; uma saia de muitas cores em lugar das calças; e um chapéu cônico de pano amarelo. Além disso se adornara com um colar de amuletos que lhe pendiam sobre o peito. Mantinha-se imóvel, com os braços cruzados, à esquerda da cabeceira da cama, na qual jazia Pieter Peeperkorn, de costas, com os braços estendidos ao longo do corpo. Empalidecendo, o jovem abrangeu a cena com a vista, enquanto entrava. Mme. Chauchat voltava-lhe as costas. Estava sentada numa poltrona baixa, ao pé da cama, apoiando o cotovelo na colcha, com o queixo fincado na mão e os dedos cravados no lábio inferior, e contemplava o rosto do seu companheiro de viagem. – Boa noite, meu rapaz – disse Behrens, que acabava de conversar baixinho com o Dr. Krokowski e com a Superiora. Sacudiu melancolicamente a cabeça e torceu o lábio com o bigodinho branco. Trajava o avental de médico, com o estetoscópio sobressaindo do bolso de cima. Calçava chinelos bordados e estava sem colarinho. – Não há remédio – acrescentou num murmúrio. – Trabalho perfeito. Pode ir mais perto e examiná-lo com olhar de perito. O senhor deve admitir que aí se fez tudo para sabotar a arte médica. Sobre as pontas dos pés, Hans Castorp aproximou-se da cama. Os olhos do malaio vigiavam cada um dos seus movimentos; acompanhavam-nos, sem que o homem virasse a cabeça, de modo que se via o branco do globo ocular. Com um olhar de esguelha, o jovem verificou que Mme. Chauchat não dava atenção à sua presença. Postou-se ao lado do leito, na sua posição típica, com o peso do corpo a repousar sobre uma das pernas, as mãos juntas à frente da barriga, inclinando a cabeça para o lado, numa contemplação reverente e pensativa. Peeperkorn achava-se estatelado sob a colcha de seda vermelha, naquela camisola de malha que Hans Castorp tantas vezes o vira usar. As mãos, bem como partes do rosto, mostravam manchas de um roxo enegrecido, o que contribuía consideravelmente para desfigurar o holandês, se bem que, fora isso, as feições majestosas permanecessem inalteradas. Também em estado de descanso, e apesar das pálpebras cerradas, ressaltavam fortemente as rugas da alta fronte circundada de labaredas brancas, essas rugas pregueadas como num ídolo, que se estendiam horizontalmente em quatro ou cinco fileiras, antes de descerem em ângulo reto por ambas as têmporas, e pareciam acentuadas pelos esforços habituais de uma vida inteira. Os lábios gretados e amargurados estavam entreabertos. A cianose indicava uma interrupção brusca, um impedimento veemente, apoplético, das funções vitais. Hans Castorp quedou-se alguns instantes imóvel, observando tudo isso com reverência. Vacilava em modificar a sua posição e esperava que a “viúva” lhe dirigisse a palavra. Mas, como tal não se desse, preferiu não incomodá-la por enquanto e voltou-se para o grupo das outras pessoas que se achavam atrás dele. O conselheiro fez um sinal de cabeça em direção ao salão. Hans Castorp seguiu-o até ali. – Suicidium? – perguntou baixinho, com objetividade profissional. – Se é! – respondeu Behrens, dando de ombros; e acrescentou: – Cem por cento. No superlativo. O senhor já viu uma coisa destas numa casa de miudezas? – E puxou do bolso do avental um estojo de forma irregular, do qual tirou um pequeno objeto que apresentou ao jovem. – Eu, nunca. Mas vale a pena olhá-lo. Vivendo e aprendendo. Um troço fantástico e muito engenhoso. Tirei-o das mãos dele. Cuidado! Basta que uma gota lhe caia sobre a pele para que o senhor fique com bolhas. Hans Castorp revolveu entre as mãos o objeto misterioso. Era feito de aço, marfim, ouro e borracha e oferecia aspecto bem estranho. Viam-se dois dentes de garfo, recurvos, de aço polido, e com pontas muito afiadas; havia uma parte central, de marfim, levemente retorcida e incrustada de ouro, cujo mecanismo elástico permitia mover os dentes até certo ponto e aproximá-los um do outro; e tudo terminava numa espécie de saquinho de borracha preta e meio dura. O tamanho do objeto não ia além de umas poucas polegadas. – Que é isto? – perguntou Hans Castorp. – Isto – respondeu Behrens – é a encarnação de uma seringa hipodérmica. Ou, sob um outro ponto de vista, é a cópia mecânica das presas da naja. O senhor me compreende? Parece que não – continuou ao ver que Hans Castorp não deixava de fitar, como que hipnotizado, aquele objeto curioso. – Aqui estão os dentes. Não são completamente maciços, mas passa por eles um tubo capilar, um canal finíssimo, cuja extremidade exterior se vê nitidamente, na parte dianteira, um pouco acima das pontas. Claro que os tubinhos têm outro orifício na raiz dos dentes e ali comunicam-se com o conduto excretor da glândula de borracha, que se estende através da peça central de marfim. No momento da mordida, os dentes executam um movimento elástico de contração, como é fácil perceber, e exercem uma pressão sobre o depósito de veneno, que então impele o seu conteúdo para dentro dos canais, de maneira que no mesmo instante em que as pontas entram na carne a dose de veneno penetra na circulação do sangue. É muito simples quando já se vê pronto. Difícil era inventá-lo. Provavelmente foi feito segundo as próprias indicações dele. – Acho que sim – disse Hans Castorp. – A carga não pode ter sido muito grande – prosseguiu o conselheiro. – O que lhe faltava em quantidade, sobrava-lhe em... – ...dinamismo – completou Hans Castorp. – Certo. Já verificaremos do que se trata. Pode-se esperar com certa curiosidade o resultado da análise, porque não duvido de que nos dará uma oportunidade para aprender alguma coisa. Aposto que aquela personagem exótica que ali está de sentinela e se endomingou para a ocasião saberia perfeitamente informar-nos. Na minha opinião foi usada uma combinação de substâncias animais e vegetais, o melhor que existe no ramo, pois o efeito deve ter sido fulminante. Tudo leva a crer que lhe cortou imediatamente a respiração; paralisia do centro respiratório, entende? Asfixia rápida, sem esforços nem dores, segundo todas as probabilidades. – Quisera Deus! – disse Hans Castorp piamente. Com um suspiro devolveu ao conselheiro o sinistro instrumentozinho e voltou ao quarto do holandês. Unicamente o malaio e Mme. Chauchat encontravam-se ainda ali. Desta vez, Clávdia levantou a cabeça e olhou o jovem, que novamente se aproximava da cama. – O senhor tinha direito a que eu o mandasse chamar – disse ela. – Foi muito gentil da sua parte – respondeu Hans Castorp. – E a senhora tem razão. Éramos amigos e nos tratávamos de “tu”. Tenho vergonha até o fundo do meu coração de me ter esquivado a tuteá-lo na frente de terceiros e de ter recorrido a subterfúgios... A senhora achava-se a seu lado durante os últimos instantes? – O criado me avisou quando tudo estava terminado – explicou ela. – A envergadura dele era tamanha – recomeçou Hans Castorp – que o fracasso do sentimento em face da vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um aviltamento de Deus. Pois a senhora deve saber que ele se considerava o órgão nupcial de Deus. Era uma fantasia de rei... Quando estamos comovidos, temos a coragem de empregar expressões que soam rudes e desapiedadas, mas são mais solenes do que as palavras da devoção convencional. – C’est une abdication – disse ela. – Sabia ele da nossa loucura? – Não me foi possível negá-la, madame. Ele adivinhara tudo, quando me recusei a beijarlhe a fronte na presença dele. Embora esta presença seja antes simbólica do que real neste momento, a senhora me permitirá que o faça agora? Num movimento breve, como que de convite, ela elevou até o jovem a cabeça, com os olhos fechados. E Hans Castorp aproximou os lábios da sua testa. Os olhos castanhos, de animal, do malaio observavam a cena, mirando de esguelha, a ponto de mostrar o branco do globo ocular. O grande tédio Mais uma vez ressoa a voz do Conselheiro Behrens. Prestemos-lhe atenção! Talvez seja a última vez que a ouça-mos. Até mesmo esta história deve ter um fim; já se prolongou por bastante tempo, ou melhor: o tempo do seu conteúdo vai se precipitando de tal forma que também a sua duração musical está na iminência de se esgotar. Assim pode ser que não se nos ofereça mais nenhuma oportunidade para escutar as alegres cadências da pitoresca linguagem de Radamanto. – Castorp, meu velho – disse ele –, o senhor se aborrece. Diariamente vejo como anda entediado. O mau humor está escrito na sua cara. O senhor é um sujeito blasé, Castorp. Tem sido mimado por experiências sensacionais, e quando não lhe apresentamos todos os dias uma novidade de primeira ordem, torce o nariz e resmunga contra a época das vacas magras. Tenho ou não tenho razão? Hans Castorp permaneceu calado, e em face desta atitude é de supor que realmente reinassem trevas no seu interior. – Tenho razão como sempre – respondeu Behrens à sua própria pergunta. – Olhe, cidadão carrancudo, antes de espalhar por aqui o veneno do descontentamento alemão, deveria dar-se conta de que absolutamente não se acha abandonado por Deus e pelos homens, mas que as autoridades velam pelo seu bem, velam sem cessar; sim, senhor! e não param de procurar meios de diverti-lo. O velho Behrens está a postos. E agora vamos deixar de brincadeiras, meu filho. Tive uma idéia para resolver o seu caso, ocorreu-me uma coisa nas minhas noites de vigília. A gente poderia falar de uma inspiração. Com efeito, espero muito da minha idéia, quer dizer, espero nada mais nada menos do que a desintoxicação do senhor e o seu regresso triunfal para muito mais cedo do que pensa. “Está arregalando os olhos, heim?”, prosseguiu, depois de uma pausa bem calculada, se bem que Hans Castorp absolutamente não arregalasse os olhos, mas o fitasse com uma expressão entre sonolenta e distraída. “Não pode imaginar o que o velho Behrens quer dizer com isso. Quero dizer é o seguinte: há no seu interior qualquer coisa que não está certa, Castorp. Isso não pode ter escapado à sua prezada inteligência. Não está certa, no sentido de que os seus fenômenos de intoxicação há muito tempo não correspondem ao estado local, que incontestavelmente melhorou muito. Não é apenas desde ontem que esse fato me dá que pensar. Temos aqui a sua última radiografia... Vamos olhar esse troço contra a luz. Como o senhor está vendo, nem os piores resmungões e pessimistas, para usar uma das expressões prediletas do nosso imperador, poderiam encontrar aqui muitos defeitos. Alguns focos acham-se completamente resolvidos, a área diminuiu e tem contornos mais nítidos, o que, como o senhor na sua sabedoria não ignora, indica a cura progressiva. Esse estado de coisas não explica a irregularidade da sua temperatura doméstica, meu caro rapaz. E o médico vê-se na obrigação de procurar outras causas.” Um movimento de cabeça de Hans Castorp evidenciou um esforço moderado de mostrar alguma curiosidade cortês. – Pois é, meu caro Castorp, sem dúvida pensa o senhor agora que o velho Behrens deve admitir ter cometido um erro no tratamento. Nesse caso, o senhor estaria redondamente enganado e julgaria mal tanto a situação como o velho Behrens. O seu tratamento não foi errado; apenas pode ser que a sua orientação tenha sido unilateral. Cheguei a ventilar a possibilidade de os seus sintomas não terem, desde o começo, a sua origem exclusiva na tuberculosis; e isso porque hoje me parece improvável que ainda continuem tendo a sua origem nela. Deve existir uma outra fonte de perturbações. A meu ver, o senhor tem “cocos”... “Sim!”, repetiu o conselheiro enfaticamente, depois de ter registrado o sinal de aprovação que Hans Castorp lhe devia por esse diagnóstico, “segundo a minha íntima convicção, o senhor tem ‘estreptos’, o que, aliás, não é nenhum motivo para se assustar desta forma.” (Absolutamente não se podia falar de susto. A fisionomia de Hans Castorp expressava antes certa admiração irônica, ou antes a agudeza que se lhe deparava ou antes a nova dignidade que lhe conferia a hipótese do conselheiro.) – Não há razão para pânico – volveu o médico, variando o seu consolo. – Todo mundo tem “cocos”. Qualquer burro tem “estreptos”, de maneira que o senhor não precisa gabar-se. Não faz ainda muito tempo que sabemos que o homem pode ter estreptococos no sangue, sem que se produzam fenômenos mais ou menos perceptíveis que indiquem a infecção. Achamo-nos em presença de um fato que muitos dos meus colegas ignoram, por enquanto, a saber: que o sangue pode conter tubérculos, sem que estes causem as menores conseqüências. Já não estamos muito, distantes da teoria de que a tuberculose é, na verdade, uma doença do sangue. Hans Castorp achou isso muito interessante. – Bem, quando falo de estreptos – recomeçou Behrens – o senhor não deve pensar na forma grave da doença, que é a mais conhecida. A análise bacteriológica do seu sangue deve demonstrar se esses bichinhos simpáticos realmente se instalaram no seu interior. Mas não será senão pelos efeitos de um tratamento de estreptovacina que constataremos se seu estado febril provém ou não provém deles. É este o caminho, meu caro amigo, que seguiremos, e, como já lhe expliquei, espero dele resultados dos mais imprevisíveis. Embora a tuberculose seja de cura muitíssimo demorada, enfermidades desse tipo podem ser curadas em pouco tempo. Se o senhor mostrar a menor reação a estas injeções, em seis semanas o senhor estará tão bem quanto um peixe dentro d’água. Que me diz agora? O velho Behrens está ou não está alerta? – Por enquanto só se trata de uma hipótese – disse Hans Castorp sem energia. – Uma hipótese que pode ser comprovada. Uma hipótese sumamente fecunda – retrucou o conselheiro. – O senhor vai ver até que ponto é fecunda, quando os cocos se multiplicarem nas nossas culturas. Amanhã de tarde, Castorp, vai entrar na faca; faremos uma sangria segundo as regras da arte dos barbeiros de aldeia. Isso é um prazer sui generis e pode exercer sobre o corpo e a alma os mais milagrosos efeitos... Hans Castorp declarou-se disposto a submeter-se a essa diversão e agradeceu polidamente pela atenção que lhe era dedicada. Com a cabeça inclinada para o ombro, acompanhou com o olhar o conselheiro, que se afastava remando. A intervenção do médicochefe realizara-se precisamente num momento crítico. Radamanto interpretara de modo bastante acertado a fisionomia e o estado de espírito do pensionista, e sua nova experiência destinava-se – destinava-se expressamente, sem disfarçar a intenção – a fazer Hans Castorp avançar além do ponto morto em que o paciente se encontrava havia pouco, segundo se podia concluir do seu semblante, que recordava exatamente o que mostrara o saudoso joachim na época em que certas decisões bruscas e indisciplinadas se haviam preparado no seu íntimo. E mais: parecia a Hans Castorp que não somente ele próprio chegara a esse ponto morto, mas que ao mundo na sua totalidade acontecera o mesmo, ou melhor: tornava-se-Ihe difícil distinguir nesse caso os fatores particulares dos gerais. Suas relações com uma autêntica personalidade tinham acabado de forma excêntrica, que produzira múltipla agitação no sanatório. Clávdia Chauchat abandonara novamente a sociedade dos pensionistas, depois do beijo de despedida que, à sombra de uma grande e trágica renúncia, e num espírito de reverente devoção, fora trocado entre ela e o grande amigo do seu senhor. E desde aquele clímax o jovem sentia que alguma coisa não andava certa no mundo e na vida; tudo lhe dava a impressão de ter saído dos eixos; de um modo singular e cada vez mais intenso, tudo se lhe afigurava angustiante; era como se um demônio se tivesse apossado do poder, um demônio cuja influência perigosa e tola desde muito tempo já se fizera bastante sensível, mas que, a essa altura, se arrogava uma autoridade irrestrita, capaz de inspirar um secreto terror e de sugerir pensamentos de fuga: o demônio que se chamava “tédio”. Decerto julgarão que o narrador exagera crassa e romanticamente ao estabelecer uma relação entre o conceito de tédio e o princípio demoníaco, e ao atribuir ao primeiro o efeito de um pavor místico. E todavia não contamos histórias da carochinha; pelo contrário, atemo-nos exatamente às experiências pessoais do nosso singelo herói, experiências essas que – não podemos relatar como – chegamos a conhecer, e que nos fornecem a prova cabal de ser possível, sob certas circunstâncias, que o tédio assuma tal caráter e inspire sentimentos desse gênero. Hans Castorp olhava em torno de si... Via coisas perfeitamente sinistras, perniciosas, e sabia o que se lhe deparava: era a vida sem tempo, a vida sem cuidados nem esperanças, a vida que estagnava sob a forma de uma atividade abastardada, a vida morta. Achava-se ela num movimento constante; ocupações de toda espécie existiam lado a lado, mas de vez em quando uma dentre elas degenerava a ponto de se tornar uma loucura geral à qual todos se entregavam freneticamente. O diletantismo fotográfico, por exemplo, ocupara sempre lugar importante no mundo do Berghof; duas vezes, porém – quem vivia bastante tempo ali em cima podia presenciar a volta periódica de tais epidemias –, a paixão pela fotografia transformarase em mania geral que se prolongara por semanas e meses. Não houvera então ninguém que não inclinasse com uma expressão preocupada a cabeça por cima de uma máquina fotográfica fincada no estômago, que não fizesse o obturador piscar e não passasse cópias de mesa em mesa. De repente faziam questão de revelar as suas fotografias sozinhos. A câmara escura que se achava à disposição dos pensionistas nem de longe bastava para satisfazer as necessidades. As janelas dos quartos e as portas de sacada eram então revestidas de cortinas pretas e, à luz de lâmpadas vermelhas, os amadores lidavam com banhos químicos até um belo dia produzir-se um incêndio que quase devorou o estudante búlgaro da mesa dos “russos distintos”; em conseqüência disso, as autoridades do sanatório proibiram esse tipo de atividade. Não tardaram em desinteressar-se da fotografia simples. Entrou a moda dos instantâneos a magnésio e das fotografias coloridas pelo processo de Lumière. Começaram então a deleitar-se com retratos de pessoas que, bruscamente surpreendidas pelo relâmpago de magnésio, mostravam os olhos fixos e os rostos lívidos, contraídos, de cadáveres de assassinados que alguém tivesse assentado numa cadeira, depois de lhes abrir os olhos. E Hans Castorp guardava um diapositivo emoldurado em papelão, que se devia manter contra a luz para vê-lo com o rosto cor de cobre, numa clareira verde-gaio, pintalgada de dentes-de-leão muito amarelos, um dos quais lhe luzia na lapela; ladeavam-no a Srª. Stöhr e a Srta. Levi, com a tez de marfim, a primeira num pulôver azul-celeste e a segunda numa blusa vermelha como sangue. Havia também a filatelia. Sempre existiam pensionistas que se dedicavam a ela, mas em determinadas épocas alastrava-se, originando uma verdadeira mania coletiva. Todo mundo trocava, regateava, colava selos em álbuns. Tomavam assinaturas de revistas filatélicas; entabulavam correspondências com casas especializadas da Suíça e do estrangeiro, com associações e colecionadores. Até mesmo pessoas cuja situação financeira mal lhes permitia passar meses ou anos nesse luxuoso sanatório gastavam importâncias pasmosas na aquisição de selos raros. Essa epidemia durava até se impor uma outra tolice, como, por exemplo, a compra e o consumo de enormes quantidades de chocolates de todas as marcas, que um dia entrou em voga. Todos andavam com os lábios pardos, e os mais apetitosos produtos da cozinha do Berghof encontravam uma acolhida desdenhosa e crítica, já que os estômagos estavam entulhados e indispostos por milka-nut, chocolat à la creme d’amandes, marquis-napolitains e línguas de gato salpicadas de ouro. A arte de desenhar porquinhos com os olhos fechados, introduzida pela mais alta autoridade numa longínqua noite de carnaval, e muito cultivada desde então, transformara-se aos poucos em exercícios geométricos de paciência, aos quais se dedicavam em certa época as forças intelectuais de todos os pensionistas do Berghof e mesmo os últimos pensamentos e as derradeiras demonstrações de energia dos moribundos. Durante semanas a fio, a casa viu-se sob o signo do desenho de uma figura complicada que se compunha de nada mais nada menos que oito círculos grandes e pequenos e de diversos triângulos inscritos uns nos outros. Tratava-se de esboçar a mão livre e num só traço o intrincado multilátero; mas a mestria suprema consistia em realizar essa proeza com os olhos espessamente vendados, o que, em última análise, e abstração feita a deslizes de menor monta, foi unicamente conseguido pelo Promotor Paravant, o campeão absoluto dessa excentricidade engenhosa. Sabemos que ele se consagrava à matemática; sabemo-lo pela boca do próprio conselheiro, e também conhecemos a casta motriz do seu zelo; ouvimos elogios às qualidades mitigantes dessa ciência que embotava o aguilhão da carne. Se todos houvessem imitado o exemplo do promotor, provavelmente teriam sido desnecessárias certas medidas de precaução, cuja introdução nos últimos tempos se tornara inevitável. Procedera-se antes de tudo à obstrução de todas as passagens que existiam nas sacadas para quem contornasse aquelas divisões de vidro fosco, que não se estendiam até a balaustrada. Nessas passagens foram colocadas pequenas portas que, de noite, se fechavam à chave, sob os largos sorrisos de todo mundo. A partir de então eram muito procurados os quartos do primeiro andar, acima do avarandado, onde se podia saltar a balaustrada, caminhar por cima do teto de vidro e passar de um compartimento a outro, evitando as portinhas. Mas não era por causa do promotor que fora preciso introduzir essa inovação disciplinar. A veemente tentação que a figura da egípcia Fatme exercera sobre Paravant havia muito que estava dominada, e esta tinha sido a última agitação da sua virilidade natural. Com redobrado ardor lançara-se ele então nos braços da deusa de olhos claros, cujo poder calmamente o conselheiro costumava celebrar com palavras cheias de elevada moral. Outrora, antes da sua licença muitas vezes prorrogada, e que ameaçava converter-se em aposentadoria definitiva, empenhara-se com afinco em comprovar a culpa dos desgraçados pecadores. Agora dedicava toda essa persistência, toda a sua tenacidade desportiva a um único problema que dia e noite lhe absorvia os pensamentos. Esse problema era a quadratura do círculo. O funcionário deslocado adquirira no curso dos seus estudos a convicção de que as provas com que a ciência queria demonstrar a impossibilidade dessa construção não eram sólidas, e que por esta razão é que a bondosa providência o distanciara do mundo dos vivos, lá de baixo, e o transportara até aquelas alturas, sendo ele, Paravant, escolhido para arrancar o objetivo sublime da esfera do transcendente e para colocá-lo no terreno firme da solução exata. E assim chegara a traçar círculos, a calcular onde quer que se encontrasse. Cobria imensas quantidades de papel com figuras, letras, algarismos, símbolos algébricos. Seu rosto bronzeado, aparentemente o rosto de um homem de perfeita saúde, mostrava a expressão visionária, obstinada, de um maníaco. Sua conversa referia-se exclusivamente, com pavorosa monotonia, ao fator pi, essa fração desesperante, que o gênio inferior de um calculador chamado Zacharias Dase calculara um dia até duzentas decimais, e isso por um capricho gratuito, já que nem duas mil decimais aumentariam de modo apreciável as possibilidades de nos aproximarmos da precisão inatingível. Não havia quem não procurasse escapar do pensador atormentado, pois todos os que ele conseguia agarrar pela manga do casaco tinham de suportar torrentes de palavras fervorosas, destinadas a lhes despertar a sensibilidade humana, para que percebessem a vergonha com que a irracionalidade irremediável dessa proporção mística poluía o espírito do homem. O promotor executava inúmeras multiplicações do diâmetro do círculo e do quadrado do raio por pi, na intenção de encontrar respectivamente a circunferência e a área, e a inutilidade de todos esses esforços levava-o a alguns acessos de dúvida. Perguntava-se então se a humanidade, desde os dias de Arquimedes, não complicara desnecessariamente a solução do problema, e se esta solução não era, em realidade, incrivelmente fácil. Ora, por que não seria possível retificar o contorno de um círculo e por conseguinte curvar uma reta a ponto de fazê-la assumir a forma circular? Às vezes, Paravant pensava estar na iminência de uma revelação. Era visto freqüentemente, altas horas da noite, na sala de refeições vazia e mal iluminada, onde permanecia sentado à sua mesa, sobre cuja superfície nua dispunha cuidadosamente em forma de círculo um pedaço de barbante, ao qual bruscamente, como que para surpreendê-lo, dava a forma de quadrado. Em seguida, costumava apoiar a cabeça na mão e entregar-se a sombrias meditações. O conselheiro acudia-lhe de vez em quando nessas brincadeiras melancólicas e animava-o a persistir na sua mania. Acontecia também dirigir-se o coitado a Hans Castorp para desabafar a sua querida mágoa, e isso se repetia, já que encontrava compreensão amistosa e bastante simpatia pelo mistério do círculo. O promotor explicava ao jovem a desgraça de pi, exibindo um desenho sumamente exato, onde com extremo esmero a circunferência de um círculo estava traçada entre dois polígonos de inúmeros lados minúsculos, um inscrito e outro circunscrito, desenho que representava o máximo de aproximação a que o homem pode chegar. O resto, porém, a curva que de um modo etéreoespiritual se esquivava à racionalização por parte das retas que a comprimiam, este resto – dizia Paravant com a maxila inferior a tremer – este resto era pi! Hans Castorp, apesar da sua índole receptiva, mostrava-se menos irritado com pi do que o seu interlocutor. Dizia que aquilo não passava de uma quimera; aconselhava o Sr. Paravant a que não se inflamasse em excesso com aquela busca ilusória; falava dos pontos de inflexão, sem extensão alguma, de que se compunha o círculo, desde o seu início inexistente até o seu fim, que também não existia, bem como da soberba melancolia que se manifestava nessa eternidade, a qual, sem nunca guardar um rumo constante, sempre voltava ao ponto de partida. Suas palavras revelavam tanta religiosidade sossegada que produziam passageiramente um efeito tranqüilizador sobre o Sr. Paravant. Em conseqüência do seu caráter complacente, o bom Hans Castorp estava predestinado a receber as confidencias de vários dos seus companheiros que se achavam possuídos de alguma idéia fixa e sofriam por não encontrar na maioria leviana dos pensionistas pessoas que os quisessem ouvir. Um antigo escultor, natural de uma província da Áustria, homem de certa idade, com um bigode branco, nariz adunco e olhos azuis, concebera um projeto político-financeiro, que caligrafara, sublinhando os trechos decisivos com pinceladas de tinta nanquim. Esse projeto tinha o seguinte objetivo: cada assinante de jornal deveria ser obrigado a entregar no primeiro dia de cada mês uma quantidade de papel de jornal velho que correspondesse a quarenta gramas por dia. Isso importaria anualmente em cerca de mil e quatrocentos gramas, e em vinte anos em nada menos de duzentos e oitenta e oito quilos, os quais, à base de um preço de vinte Pfennige por quilo, representariam um valor de cinqüenta e sete marcos e sessenta Pfennige. Cinco milhões de assinantes – assim prosseguia o memorando – entregariam, portanto, em vinte anos, a soma formidável de duzentos e oitenta e oito milhões de marcos, dois terços da qual poderiam ser deduzidos das assinaturas, ao passo que o resto, aproximadamente cem milhões de marcos, seriam aproveitados para fins humanitários, como, por exemplo, o financiamento de sanatórios populares para tísicos, subvenções para talentos, pobres, etc. O plano estava elaborado em todos os pormenores. Inclusive uma coluna que permitia ao funcionário encarregado de recolher mensalmente o papel verificar o valor do mesmo pela altura da pilha. Havia formulários perfurados para servir de recibo. Era um projeto sólido e fundado sob todos os aspectos. O gesto insensato e a destruição de papel de jornal, que gente mal-avisada ainda desperdiçava em cloacas ou fogões, constituía alta traição às nossas florestas e um golpe contra a economia nacional. Poupar papel, economizar papel, significaria poupar e economizar celulose, florestas e o material humano usado na fabricação da celulose e do papel – material humano e capital. Acrescia a isso o fato de o papel de jornal velho adquirir facilmente o quádruplo valor pela transformação em papel de embrulho ou em papelão, de maneira que seria capaz de se converter num fator econômico de vasta importância e em fundamento de rendosos impostos estaduais ou municipais, ao passo que os leitores de jornais veriam as suas contribuições aliviadas. Numa palavra, o projeto era bom, era, em realidade, inatacável, e se no entanto tinha algo de sinistra ociosidade e mesmo de obscura tolice, era somente por causa do fanatismo excêntrico com que o ex-artista defendia e apregoava uma idéia econômica, exclusivamente esta e mais nenhuma, apesar de levá-la, evidentemente, tão pouco a sério que não fazia a menor tentativa para realizála... Sacudindo a cabeça obliquamente inclinada, Hans Castorp escutava as exposições do homem, cada vez que este, com palavras febrilmente exaltadas, propagava a sua idéia de salvação. Ao mesmo tempo o jovem analisava a natureza do desdém e da repulsa que o impediam de tomar o partido do inventor contra a indolência do mundo. Alguns pensionistas do Berghof estudavam esperanto e compraziam-se em conversar à mesa nessa geringonça artificial. Hans Castorp observava-os de cenho franzido, se bem que opinasse de si para si que eles não eram os piores. Desde algum tempo encontrava-se por ali um grupo de ingleses que haviam introduzido um jogo de salão que consistia apenas no seguinte: formavam um círculo e um dos participantes dirigia ao vizinho a pergunta: “Did you ever see the devil with a night-cap on?” O assim interrogado devia responder: “No! I never saw the devil with a night-cap on”, e em seguida passar adiante a pergunta, que sem cessar percorria a roda. Era espantoso! Mas o pobre Hans Castorp assustava-se ainda mais diante dos companheiros que jogavam paciência, e que se podiam ver a qualquer hora e em todo lugar. A mania dessa distração alastrara-se nos últimos tempos a tal ponto que não é exagerado dizer que transformara o Berghof num antro de vício. Hans Castorp tinha motivos para experimentar diante disso uma sensação de horror, tanto mais que ele mesmo temporariamente fizera parte das vítimas da epidemia, sendo talvez o caso mais grave de todos. Entusiasmara-se pela paciência dos “onze”; nesse jogo, usa-se o baralho completo; dispõem-se na mesa três filas de três cartas cada uma; duas cartas vizinhas cuja soma for onze ou três figuras que se encontrarem numa fila, podem ser substituídas por outras cartas, até a paciência, bafejada pela sorte, dar certo. Parece incrível que de um procedimento tão simples possa resultar uma verdadeira fascinação. Entretanto Hans Castorp, tal e qual muitos outros, deparava com essa possibilidade; fazia-o com uma expressão carrancuda, visto o excesso jamais levar à alegria. Sentia-se dominado pelos caprichos do demônio das cartas, encantado pelos fantásticos e volúveis favores da Fortuna. Às vezes, esta, num gracioso gesto de simpatia, acumulava logo de início as parelhas de onze pontos e de grupos de valete-dama-rei, de modo que o jogo estava ganho ainda antes do começo da terceira mão – triunfo fugaz que apenas estimulava os nervos para novas tentativas. Outras vezes, não oferecia até a nona e última carta nenhuma oportunidade para retirar parelhas ou grupos, ou ainda contrariava, numa reviravolta brusca, no último momento, o êxito que já parecera garantido. E Hans Castorp tirava paciências a toda hora, onde quer que se achasse; tirava-as tanto de noite, à luz das estrelas, como pela manhã, ainda de pijama, à mesa e mesmo durante os seus sonhos. Horrorizava-se diante dessa mania, mas continuava a fazê-lo. Sucedeu, assim, que um belo dia, por ocasião de uma visita, o Sr. Settembrini o encontrou jogando, e logo o “importunou”, conforme a missão que lhe coubera desde o começo das suas relações. – Accidente! – disse o humanista. – O senhor tira a sorte, engenheiro? – Não é precisamente essa a minha intenção – respondeu Hans Castorp. – Jogo apenas paciência, estou desafiando o acaso inconstante. Suas extravagâncias me intrigam, sua obsequiosidade que se reveza com uma obstinação incrível. Esta manhã, quando me levantei, a paciência deu certo três vezes seguidas, uma vez até em duas mãos apenas, o que representa um recorde. Acredita o senhor que hoje de tarde já fiz trinta e duas tentativas, sem que nenhuma vez chegasse apenas à metade do baralho? O Sr. Settembrini mirou-o com uma expressão triste dos olhos negros, como tantas vezes fizera no decorrer dos anos. – Em todo caso, o senhor me parece atarefado – disse. – Não tenho a impressão de que encontrarei na sua companhia consolo para as minhas preocupações e bálsamo para aliviar o conflito interior que me atormenta. – Conflito? – repetiu Hans Castorp, e tirou uma carta. – A situação mundial me deixa perturbado – suspirou o maçom. – A Liga Balcânica está a ponto de se realizar. Todas as minhas informações confirmam isso. A Rússia trabalha assiduamente nesse sentido, e a ponta da combinação dirige-se contra a monarquia austrohúngara, sem a destruição da qual nenhuma parte do programa russo pode se tornar realidade. O senhor compreende o meu dilema? Odeio Viena de todo o coração, como o senhor sabe. Mas será esse um motivo para que a minha alma dê apoio ao despotismo sármata, que está prestes a lançar a tocha incendiaria contra o nosso nobre continente? Por outro lado, uma colaboração diplomática entre o meu país e a Áustria, por mais passageira que fosse, não deixaria de me ferir como uma ofensa. Esses são os escrúpulos de consciência que... – Sete e quatro – disse Hans Castorp. – Oito e três. Valete, dama, rei. Já vai melhor. O senhor me traz sorte, Sr. Settembrini. O italiano emudeceu. Hans Castorp sentiu como os olhos negros, o olhar cheio de razão e de moral, pousavam sobre a sua pessoa, profundamente entristecidos. Mesmo assim prosseguiu por algum tempo ainda tirando cartas, antes de firmar o queixo na mão, com aquela fisionomia teimosa de fingida inocência que as crianças arteiras exibem. Ergueu então o olhar para o mentor, que estava de pé à sua frente. – Seus olhos – disse este – procuram em vão dissimular que o senhor sabe muito bem aonde chegou. – Placet experiri – foi a petulante resposta de Hans Castorp, em virtude da qual o Sr. Settembrini o abandonou. Verdade é que o jovem deixado sozinho permaneceu por muito tempo diante da sua mesa, no meio do quarto branco, sem tirar cartas; com a cabeça apoiada na mão, cismava e, no seu íntimo, sentia-se tomado de horror em face do estado macabro e inseguro em que se lhe apresentava tudo; espantava-o a careta cinicamente risonha do demônio, do deusmacaco, sob cujo domínio insensato e desenfreado se achava o mundo, e que se chamava o “Grande Tédio”. Um nome mau, apocalíptico, próprio para inspirar uma secreta angústia. Hans Castorp, continuando sentado, esfregou com as mãos a fronte e a zona do coração. Tinha medo. Parecialhe que “tudo aquilo” não podia acabar bem, que uma catástrofe devia ser o seu fim lógico, uma revolta da natureza paciente, um temporal, um tufão que varresse o mundo, desfazendo o feitiço que o paralisava, arrancando a vida do “ponto morto” e dando cabo da “época das vacas magras” num terrível dia do juízo. Não lhe faltava, como já dissemos, vontade de fugir. Ainda bem que as autoridades “velavam sem cessar”, sabiam interpretar a sua fisionomia e se esforçavam por diverti-lo mediante novas e fecundas hipóteses! No linguajar característico dos acadêmicos universitários, as autoridades haviam declarado que se achavam na pista das verdadeiras causas da temperatura irregular de Hans Castorp, causas que, segundo a sua afirmação científica, seria tão fácil remediar que a cura, a alta efetiva e o regresso à planície pareciam de súbito iminentes. O coração do jovem batia mais depressa, assaltado pelas mais diversas emoções, enquanto estendia o braço para a sangria. Levemente pálido, com os olhos piscos, admirava a maravilhosa cor de rubi da sua seiva vital, que, subindo aos poucos, enchia o receptáculo transparente. O conselheiro em pessoa, assistido pelo Dr. Krokowski e por uma enfermeira, efetuou a pequena operação cujas conseqüências podiam ser grandes. Depois se escoou uma série de dias que Hans Castorp passou curioso por saber que papel faria o sangue dado, fora de seu corpo, perante os olhos da ciência. No começo, o conselheiro dizia que o tempo não era suficiente para que alguma coisa pudesse germinar. Depois, dizia que infelizmente não germinara ainda nada. Mas chegou a manhã em que, na hora do café, se aproximou da mesa de Hans Castorp, o qual a essa época tinha o seu lugar entre os “russos distintos”, na extremidade superior, lá onde outrora seu grande amigo costumara sentar-se. Entre felicitações temperadas de floreios, o médico lhe comunicou que numa das culturas por ele preparadas tinha sido descoberta, de modo inegável, a presença de estreptococos. Era um problema de cálculo de probabilidades saber se os fenômenos de intoxicação tinham a sua origem na tuberculosezinha que em todo caso ainda persistia, ou nos “estreptos”, cuja proporção também não era mais que modesta. Era preciso examinar o material mais detida e mais cuidadosamente. A cultura ainda não estava completamente desenvolvida. No laboratório, mostrou-a a Hans Castorp. Era uma geléia vermelha, de sangue, no meio da qual se distinguiam uns pontinhos cinzentos. Aquilo eram os cocos. (Qualquer burro tinha cocos, da mesma forma que tubérculos, e não houvesse os sintomas, a descoberta não teria muito valor.) Fora do corpo de Hans Castorp, e sob os olhos da ciência, o sangue coagulado do seu coração continuava a desempenhar o seu papel. E raiou a manhã em que o conselheiro, servindose de palavras emocionadas, cheias de locuções pitorescas, o informou do seguinte: não somente numa única cultura, mas também em todas as demais, acabavam de desenvolver-se cocos, e em grandes quantidades. Era difícil dizer se todos eles eram estreptococos, mas parecia agora sumamente provável que os fenômenos de intoxicação fossem causados por eles, posto que não se pudesse dizer até que ponto contribuía para esses fenômenos a tuberculose que indiscutivelmente existira e ainda não se dera por totalmente vencida. Que conclusão se devia tirar de tudo isso? Um tratamento de estreptovacina! O prognóstico? Extraordinariamente favorável, e além disso não haveria o menor risco em fazer uma tentativa que de forma alguma prejudicaria o paciente. Uma vez que o soro seria tirado do próprio sangue de Hans Castorp, a injeção não introduziria no corpo nenhum elemento de enfermidade que já não se encontrasse nele. Na pior das hipóteses seria inútil, sem nenhum efeito. Mas era essa hipótese realmente tão má assim, dado o fato de que Hans Castorp de qualquer jeito teria de ficar ali? Hans Castorp não queria ir tão longe a ponto de afirmar o contrário. Submeteu-se ao tratamento, embora o achasse ridículo e desonroso. Essas vacinas com a sua própria substância afiguravam-se-lhe como uma diversão terrivelmente desagradável, um horroroso incesto do eu com o eu, de natureza estéril e desprovida de esperança. Assim o fazia julgar a sua ignorância hipocondríaca, que tinha razão somente no que se referia à esterilidade do processo, a qual se manifestou completa. A diversão prolongou-se através de várias semanas. Às vezes parecia prejudicá-lo, o que não podia ser outra coisa que um engano; outras dava a impressão de lhe trazer proveito, o que também se revelou ilusório. O resultado foi zero, sem que isso fosse proclamado expressamente. A experiência morreu um belo dia de morte natural, e Hans Castorp continuou a jogar paciência, cara a cara com o demônio, cujo reinado descomedido estava – o jovem sentia-o claramente – fadado a um fim horroroso. Abundância de harmonia Qual foi a nova aquisição do Sanatório Berghof que salvou o nosso velho amigo da mania das cartas, para lançá-lo nos braços de uma paixão diferente, mais nobre, embora na verdade não menos estranha? A ponto de falar dessa inovação, nós mesmos sentimos o misterioso encanto que o assunto irradia, e que nos inspira o sincero desejo de comunicar os fatos ao leitor. Tratava-se de um acréscimo feito ao número de aparelhos de diversão que se achavam no maior dos salões da casa. A compra, cuja idéia era fruto dos incessantes cuidados da gerência, tinha sido resolvida no seio do grêmio administrativo do sanatório e exigira despesas que não queremos computar, mas devemos qualificar de generosas por parte da direção desse estabelecimento, que merece a nossa irrestrita recomendação. Seria um brinquedo engenhoso do tipo da caixa estereoscópica, do caleidoscópio em forma de luneta e do tambor cinematográfico? Sim e, sob certos aspectos, também não. Pois, em primeiro lugar não era óptico mas acústico aquele instrumento com que os pensionistas certa noite depararam no salão de música e que os fez bater as mãos em sinal de aplauso e de surpresa. Além disso, as referidas atrações levianas absolutamente não podiam ser comparadas a ele quanto à classe, ao nível e ao valor. Isso não era um espetáculo infantil, monótono, do qual todos estavam fartos e que ninguém olhava depois de mais de três semanas de permanência no sanatório. Era uma opulenta cornucópia de prazeres artísticos que alegravam ou entristeciam a alma. Era um instrumento de música. Era um fonógrafo. Receamos seriamente que essa palavra possa ser interpretada num sentido indigno e obsoleto, e associada a idéias que talvez correspondam aos primitivos precursores daquilo que temos em mente, não, porém, à realidade, essa realidade que a técnica consagrada ao serviço das musas desenvolvera, num infatigável esforço burilador, até a mais elevada perfeição. Não, meus amigos! Não falamos de um daqueles míseros caixotes a manivela que em tempos remotos enchiam os ouvidos pouco exigentes do público de restaurantes com seus berros fanhosos, esses caixotes coroados pelo prato giratório e pelo braço da agulha, e que pareciam apêndices de um monstruoso funil de trombeta. A arca preta, de madeira mate, um pouco mais comprida do que larga, que ali, em cima de uma estantezinha, exibia as suas linhas simples e nobres, e que um fio revestido de seda ligava a uma tomada elétrica embutida na parede, absolutamente não se parecia com aquelas máquinas toscas, antediluvianas. Abria-se a tampa graciosamente chanfrada, guarnecida no seu interior de um suporte metálico dobradiço que, ao levantar-se do fundo do aparelho, fixava-a automaticamente numa posição oblíqua, protetora; e numa concavidade pouco profunda via-se o prato giratório, forrado de pano verde, cingido de um aro niquelado, com o pino central igualmente de níquel, que se enfiaria no furo dos discos de ebonite. Notava-se, além disso, bem na frente, ao lado direito, um dispositivo cifrado à maneira de relógio, e que servia para regular a velocidade. À esquerda, havia uma alavanca, mediante a qual se podia pôr em marcha ou travar o mecanismo, e mais para trás, ao mesmo lado, o braço oco, niquelado, sinuoso e claviforme, que se movia em articulações macias e tinha na sua extremidade o diafragma redondo, achatado, com o torninho destinado a segurar a agulha. Abriam-se também os batentes da porta da frente. Atrás dela descobria-se uma espécie de gelosia, formada por fasquias enviesadas de madeira preta – e nada mais. – É o modelo mais recente – disse o conselheiro, que acabava de entrar. – A última conquista da técnica. Pois é, meus filhos, de primeiríssima qualidade! Ultrafino! Não há coisa melhor nesse gênero. – Procurou arremedar de maneira cômica a linguagem de um vendedor ignorante que apregoa a sua mercadoria. – Isto não é aparelho, não é máquina – continuou, enquanto tirava uma agulha de uma caixinha colorida, de lata, que se achava na mesa, e a fixava no diafragma –, isso aí é um instrumento, é um Stradivarius, um Guarneri, com ressonâncias e vibrações do mais extremo refinamento! A marca é Polyhymnia, segundo nos informa esta inscrição no interior da tampa. Fabricada na Alemanha. Nesse ramo ninguém nos ganha, sabem? O sentimentalismo musical em forma moderna, mecanizada! A alma alemã up to date! E aí está a discoteca – acrescentou, designando um pequeno armário com fileiras de álbuns volumosos. – Entrego todo esse tesouro ao uso e prazer irrestrito dos senhores e das senhoras, mas pede-se ao público que zele por ele. Que tal se ouvíssemos uma peça, a título de experiência? Os enfermos imploraram-lhe que o fizesse. E Behrens apanhou um daqueles livros mágicos, de valioso conteúdo, virou as páginas pesadas e de uma das bolsas de cartolina, cujos buracos circulares deixavam ver os rótulos multicores, tirou um disco que colocou no aparelho. Com uma única manobra acionou o prato giratório, esperou alguns segundos, até o movimento alcançar a velocidade desejada, e aplicou a delicada ponta da agulha de aço cautelosamente à beira do disco. Ouviu-se um leve chiado. O médico desceu a tampa, e no mesmo instante irrompeu pelos batentes abertos da porta, por entre as fasquias da gelosia, um turbilhão orquestral, uma melodia alegre, barulhenta, apressada, os primeiros compassos saltitantes de uma abertura de Offenbach. Todos escutavam, sorrindo, boquiabertos. Não podiam dar crédito a seus ouvidos, tão puros e tão naturais saíam os trinados dos sopros de madeira. Um violino, sozinho, preludiava fantasiando. Ouviam-se o toque do arco, o tremolo da mão esquerda, a suave transição de uma posição a outra. O violino encontrou a melodia que procurara, uma valsa, Ai de mim, perdi a amada. Graciosamente, a orquestra acompanhava a ária insinuante, e era delicioso quando esta, honrosamente acolhida pelo conjunto dos músicos, se repetia sob o estrondo dos tutti. Não era, naturalmente, a mesma coisa como se uma verdadeira orquestra tocasse no salão. O som não sofria a menor desfiguração, mas o seu volume estava diminuído pela perspectiva; se nos é permitido empregar diante desse fenômeno acústico uma comparação tirada do terreno da óptica: era como se olhássemos um quadro por um binóculo às avessas, de modo que aparecesse distante e reduzido, sem detrimento da nitidez do desenho e da luminosidade das cores. A peça musical, engenhosa e picante, ia sendo reproduzida com todo o brilho inerente a essa composição frívola. O final era a leveza pura e simples, um galope comicamente hesitante no começo, um lascivo cancã, evocando a visão de cartolas brandidas no ar, de joelhos sacudidos e de saias farfalhantes, e cujo desenlace humorístico-triunfal parecia não ter fim. A seguir, o mecanismo desligou-se automaticamente. Terminara tudo. Houve sinceros aplausos. Reclamaram mais música e receberam-na. Uma voz humana brotou da arca, voz máscula, ao mesmo tempo macia e poderosa, acompanhada por uma orquestra. Era um barítono italiano de grande fama. Desta vez já não se podia falar de distância e de véus abafadores. A magnífica voz ressoava na plenitude natural do seu volume e vigor. Quem passasse para uma das salas vizinhas, cujas portas estavam abertas, e não visse o aparelho, poderia pensar que o cantor em carne e osso estivesse presente, e cantasse com as músicas na mão. Cantava na sua língua materna, uma ária di bravura: “Sono un barbieri, di qualità, di qualità! Figaro qua, Figaro la, Figaro, Figaro, Figaro!” Os ouvintes quase morriam de riso, ao escutar o parlando em voz de falsete e ao notar o contraste entre a voz potente e a vertiginosa desenvoltura da língua. As pessoas mais competentes talvez fossem capazes de observar e de apreciar a arte do fraseado e da técnica respiratória. Mestre na apresentação irresistível, virtuose do gosto latino que exige o “da capo”, o cantor sustentou por muito tempo a penúltima nota, antes da tônica final. Parecia aproximar-se da ribalta e erguer uma das mãos, a ponto de o público bater palmas ainda antes do fim da ária. Era esplêndido. E isso não era tudo. Uma trompa de caça executou com escrupulosa delicadeza variações sobre uma canção popular. Um soprano fez vibrar as clarinadas, os staccati e os gorjeios de uma ária de La traviata com a mais encantadora frescura e precisão. O fantasma de um violinista de celebridade mundial tocou, como se se achasse por trás de alguns véus, uma romança de Rubinstein, com acompanhamento de um piano que soava tão duro como um cravo. A arca milagrosa fervia aos poucos, mas ainda saíam dela badaladas de sinos, glissandi de harpas, clangores de trombetas e rufos de tambores. Finalmente tocaram discos de dança. Já havia até algumas amostras da importação mais recente, ao gosto das tavernas de portos exóticos: o tango, destinado a relegar a valsa vienense ao baile dos avós. Dois pares que sabiam executar os passos da moda exibiram-se sobre o tapete. Behrens acabava de retirar-se, depois de recomendar-lhes que não usassem uma agulha mais de uma vez e que tratassem os discos como se fossem ovos frescos. Hans Castorp encarregou-se do aparelho. Por que justamente ele? Isso se dera com a maior naturalidade. Falando laconicamente, em voz abafada, opusera-se àqueles que, depois da saída do conselheiro, queriam tomar a si a incumbência de mudar os discos ou as agulhas e de acionar ou desligar o motor elétrico. – Deixem isto comigo! – dissera, afastando-os do aparelho, e eles, indiferentes, lhe haviam obedecido; primeiro, porque ele dava a impressão de ser entendido no assunto desde havia muito tempo, e segundo, porque não faziam questão de trabalhar na fonte do prazer, ao invés de se deixar servir comodamente e sem responsabilidade, até o momento em que isso lhes causasse tédio. Hans Castorp era diferente. Enquanto o conselheiro apresentava a nova aquisição, o jovem mantivera-se silenciosamente no fundo da sala; não se ria, não batera palmas, mas prestara intensa atenção às peças oferecidas, torcendo uma sobrancelha entre dois dedos, como às vezes tinha por hábito. Tomado de certa inquietação, de quando em quando mudara de lugar, sem que o público o notasse. Entrara na biblioteca, a fim de escutar ali. Mais tarde plantara-se ao lado de Behrens, com as mãos nas costas e com a cara fechada. Examinara a arca, para lhe aprender o fácil manejo. Uma voz dizia nele: “Alto! Alerta! Começa uma época! Isso veio para mim!” Estava cheio do infalível pressentimento de mais uma paixão, de outro encantamento, do peso de um novo amor. Um jovem da planície, que ao primeiro olhar lançado a uma garota sente-se ferido pela flecha farpada do amor, não experimenta sensações diferentes. Os atos subseqüentes de Hans Castorp foram determinados pelo ciúme. Propriedade comum? Qual nada, a curiosidade indolente não tem nem o direito nem a força necessária para possuir! “Deixem isto comigo!”, disse Hans Castorp entre dentes, e eles pareciam muito satisfeitos. Dançaram mais um pouco ao som das músicas fúteis que ele lhes oferecia. Pediram ainda um disco de canto, um dueto de ópera, a barcarola dos Contos de Hoffmann, cuja graça lhes enfeitiçava os ouvidos, e quando Hans Castorp chaveou a tampa, recolheram-se ao repouso, tagarelando, superficialmente animados pelo novo brinquedo. Era precisamente isto o que o jovem esperava. Haviam abandonado tudo na mais completa desordem, as caixinhas de agulhas e os álbuns abertos, os discos espalhados por toda parte. Era típico! Hans Castorp fez como se os seguisse, mas, clandestinamente, separou-se deles na escada. Voltou ao salão, cerrou todas as portas e permaneceu ali durante grande parte da noite, intensamente atarefado. Ia se familiarizando com a inovação. Sem que ninguém o incomodasse, examinava os tesouros musicais que acompanhavam o aparelho, o conteúdo de todos os pesados álbuns. Havia doze, de dois tamanhos diferentes, e cada qual continha doze discos. Muitas dessas chapas pretas, com os angustos sulcos circulares, eram gravadas dos dois lados. Certas peças estendiam-se por sobre o disco inteiro, e não eram raros os casos em que o mesmo disco continha duas obras diferentes. Assim parecia, no início, difícil e mesmo perturbadora a tarefa de obter uma visão de conjunto desse terreno cheio de belas possibilidades, que lhe cabia conquistar. Hans Castorp experimentou aproximadamente uns vinte e cinco discos, servindo-se de certo tipo de agulhas finas que tocavam em surdina, para não molestar ninguém e para não ser ouvido através da noite. Mas isso representava apenas a oitava parte de tudo quanto se lhe oferecia e clamava por ser experimentado. Por enquanto, Hans Castorp se contentou com uma rápida leitura dos títulos, e só de vez em quando escolhia a esmo uma amostra das silenciosas gravações circulares, para incorporá-la na arca que a faria soar. Era só pelo colorido que lhes cobria a parte central, e por nada mais, que esses discos de ebonite se distinguiam à primeira vista. Um era igual ao outro. Todos estavam cobertos até quase o centro por um sem-número de círculos concêntricos, e no entanto esse lineamento delicado continha tudo o que se pudesse imaginar de música, os mais felizes achados de todas as regiões da alma, em esmerada interpretação. Existiam ali numerosas aberturas e movimentos avulsos, pertencentes ao mundo sublime da sinfonia, tocados por orquestras famosas, cujos regentes eram designados pelo nome. Seguiase uma série de Lieder cantados por membros de grandes óperas, com acompanhamento de piano; tratava-se em parte de obras elevadas, produtos do esforço consciente de artistas individuais, em parte de singelas cantigas do povo, e ainda de outras peças que, por assim dizer, constituíam um meio-termo entre ambos os gêneros: embora frutos de uma arte intelectual, representavam, quanto à inspiração e à forma, a alma e o gênio do povo no que possuía de mais puro e mais piedoso; eram canções populares artificiais, se é possível usar o epíteto “artificial” sem lhes diminuir o caráter genuíno da invenção. Referindo-nos sobretudo a uma canção que Hans Castorp conhecia desde criança, mas pela qual só agora começava a sentir um amor misterioso, rico em associações, canção essa de que falaremos noutra parte... Que mais havia, ou, para tornar a resposta mais fácil: que faltava, afinal? Havia abundância do gênero lírico. Um coro internacional de festejados cantores e cantoras, acompanhados por orquestras discretamente refreadas, empregava o dom divino das suas vozes afeitas ao bel canto, na interpretação de árias, duetos, ensembles, provenientes das mais diversas regiões e épocas do repertório operístico: a beleza meridional, com o seu arrebatamento ao mesmo tempo generoso e frívolo; o mundo dos povos germânicos, mescla de espírito brincalhão e demoníaco; a grande ópera e a ópera cômica, de origem francesa. Era tudo? Ah, não! Vinha ainda o grupo de músicas de câmara, os quartetos e os trios, os solos instrumentais de violinos, violoncelos e flautas, os cantos de concerto, com acompanhamento obligato de violino ou flauta, as peças puramente pianísticas, para não falar das diversões leves, como os couplets e os discos de serventia concreta, gravados por orquestras de dança, e que requeriam uma agulha grossa. Hans Castorp examinava e classificava tudo isso. Manobrando em completa solidão, entregou parte do tesouro ao instrumento que o despertava para uma vida sonora. Com a cabeça ardendo, recolheu-se ao quarto numa hora tão avançada como aquela em que terminara o primeiro festim organizado pela saudosa personalidade do majestoso e fraternal Peeperkorn. Das duas da madrugada até as sete da manhã, sonhou com a arca mágica. No seu sonho via o prato giratório dar voltas em torno do pino, tão depressa que não se podia distinguir nenhum pormenor, e todavia sem o mínimo ruído, num movimento que consistia não somente no turbilhonante fluxo circular, mas também numa estranha ondulação lateral, de maneira que ao braço articulado, portador da agulha, que passava por cima, era imprimida uma oscilação elástica, muito proveitosa, segundo tudo fazia crer, ao vibrato e ao portamento dos instrumentos de corda e das vozes humanas. Mas, tanto em sonho como em estado de vigília, continuava incompreensível por que o simples ato de acompanhar uma linha fina como um cabelo, por cima de uma caixa de ressonância, e com o único auxílio da membrana do diafragma, era capaz de reproduzir a vasta complexidade das composições que enchiam os ouvidos interiores do adormecido. De manhã cedo, ainda antes do café, voltou ao salão e, com as mãos postas, sentado numa poltrona, fez sair da arca a voz maravilhosa de um barítono que cantava, com acompanhamento de harpa, a ária de Wolfram von Eschenbach, da ópera Tannhäuser. A harpa tinha um som perfeitamente natural; eram arpejos autênticos, não adulterados, que partiam da arca, junto com a voz humana, ampla, suave, bem-articulada. Era pasmoso. E nada podia haver de mais terno no mundo do que um dueto de uma ópera italiana de um compositor moderno, que Hans Castorp tocou a seguir – essa aproximação sentimental, cheia de humildade e ternura, que se produz entre uma voz de tenor mundialmente famosa, que muitas vezes figurava nos álbuns, e um sopranozinho meigo, cristalino; era impossível imaginar coisa mais delicada do que esse “Dami il braccio, mia piccina...”, cantado pelo homem, e aquela pequena frase simples, doce, de melodia pressurosa com que ela lhe respondia... Hans Castorp sobressaltou-se, quando a porta se abriu às suas costas. Era o conselheiro, que lançava um olhar ao salão. Em avental de médico, o estetoscópio no bolso do peito, permaneceu um instante com o trinco da porta na mão, acenando para o alquimista de sons. Depois que este retribuiu o aceno por cima do ombro, o rosto do chefe, com as faces azuladas e o bigodinho torto de um lado, logo sumiu atrás da porta cerrada. E Hans Castorp tornou a dirigir a atenção ao harmonioso casalzinho de namorados invisíveis. Mais tarde, no decorrer do dia, após o almoço e o jantar, havia ouvintes a observar-lhe as atividades, um público que se renovava constantemente – uma vez que consideramos o próprio Hans Castorp, não como parte do auditório, senão como autor do divertimento oferecido. Também ele tendia para esse ponto de vista, e os habitantes do Berghof admitiram-no tacitamente desde o início, não se opondo ao ato enérgico com que o jovem se nomeara a si próprio administrador e guardião da nova instituição pública. Para essa gente, isso não representava nenhum sacrifício. Verdade é que manifestavam certo arrebatamento superficial quando aquele idolatrado tenor, extasiando-se em harmonia e doçura, derramava a voz que encantava o mundo, em cantilenas e efusões de paixão altamente artísticas. Mas, não obstante o seu júbilo ruidoso, faltava-lhes o verdadeiro amor, e por isso estavam muito dispostos a deixar os cuidados do aparelho a quem quisesse encarregar-se deles. Era Hans Castorp quem mantinha em ordem o tesouro dos discos; era ele quem anotava no interior da capa o conteúdo do respectivo álbum, de maneira a se poder encontrar imediatamente qualquer música desejada; era ele quem lidava com o instrumento. Dentro de pouco tempo, isso já se notava pelos seus gestos rápidos, precisos e delicados. Realmente, que teriam feito os outros? Teriam violado os discos, maltratando-os com agulhas gastas; tê-los-iam abandonado nas cadeiras, sem invólucro protetor; teriam abusado do aparelho para brincadeiras estúpidas, tocando uma peça sublime com a velocidade de cento e dez ou colocando o ponteiro em zero, de modo a tirarem da caixa ora um trilo histérico ora um grunhido sufocado... Já haviam chegado a fazer tudo isso. Embora doentes, eram rudes. Eis por que Hans Castorp, ao cabo de algum tempo, confiscou simplesmente a chave do armário que continha os álbuns e as agulhas. Daí por diante andava com ela no bolso, e quem quisesse ouvir um concerto teria de chamá-lo. Pela noite, depois da reunião, quando os pensionistas acabavam de se recolher, vinham as suas melhores horas. Permanecia então no salão ou voltava ali clandestinamente, para tocar músicas, sozinho, até altas horas da noite. Verificou que o perigo de perturbar com isso o sossego da casa era menor do que acreditara. O alcance desses sons espectrais era evidentemente pequeno. As vibrações, por mais surpreendente que fosse o efeito por elas causado perto da sua fonte, enfraqueciam a alguma distância, mostrando-se débeis e desprovidas de verdadeiro poder, como toda fantasmagoria. Hans Castorp achava-se entre as quatro paredes, a sós com as maravilhas da arca, com as exuberantes produções desse ataudezinho truncado, de madeira de violino. Diante dos batentes abertos desse pequeno templo de fosca negrura, instalava-se numa poltrona, com as mãos postas, inclinando a cabeça para um ombro, e com a boca entreaberta banhava-se em melodias. Os cantores e as cantoras que estava ouvindo – não os via. Sua forma humana encontrava-se na América, em Milão, em Viena, em São Petersburgo. Não fazia mal que não se encontrassem ali, pois aquilo que Hans Castorp possuía era o que neles havia de melhor, era a sua voz, e o jovem apreciava essa depuração e abstração que restava bastante acessível aos sentidos para permitir-lhe um bom controle humano – sobretudo quando se tratava de artistas alemães, compatriotas seus – com eliminação de todos os inconvenientes que acarretaria a excessiva proximidade física. Podia-se distinguir o dialeto, a dicção, a origem étnica dos artistas. O caráter vocal revelava fatos relacionados com a envergadura espiritual de cada um deles. Pela maneira como aproveitavam ou desperdiçavam as possibilidades de interpretação, evidenciava-se o grau da sua inteligência. Hans Castorp exasperava-se quando fracassavam. Também sofria e mordia os lábios cada vez que ocorriam imperfeições da reprodução técnica. Sentia-se como sobre brasas quando, no meio de um disco muitas vezes tocado, uma nota de canto soava estridente ou berrante, o que sucedia freqüentemente com as delicadas vozes femininas. Mesmo assim se conformava, pois quem ama tem de sofrer. Às vezes se inclinava por sobre o mecanismo que girava, palpitando, como sobre um ramalhete de lilases, com a cabeça sumida numa nuvem de sons. Mantinha-se à frente da arca aberta, e saboreava o prazer soberano de um regente, enquanto com um gesto de mão, no momento preciso, dava aos clarins o sinal de ataque. Tinha alguns favoritos na coleção, números de canto e peças instrumentais, que nunca se cansava de ouvir. Não podemos deixar de citá-los. Um pequeno grupo de discos apresentava as cenas finais daquela ópera pomposa, transbordante de gênio melódico, que fora composta por um grande compatriota do Sr. Settembrini, o velho mestre da música dramática meridional, na segunda metade do século passado, por encomenda de um potentado oriental, e devia a sua origem à circunstância solene da entrega à humanidade de uma obra da técnica destinada a aproximar os povos. Devido à sua formação, Hans Castorp sabia pouco mais ou menos do que se tratava. Conhecia em linhas gerais os destinos de Radamés, Amnéris e Aída, que cantavam para ele em italiano, no interior da caixa, e assim entendia praticamente tudo quanto diziam o incomparável tenor, o majestoso contralto com a magnífica mudança de timbre na meia-voz, e o soprano cristalino. Não os entendia palavra por palavra, mas apanhava uma ou outra frase, graças ao seu conhecimento das situações e à simpatia que experimentava por elas, essa afeição íntima que se intensificava à medida que tocava aqueles quatro ou cinco discos, a ponto de se transformar num autêntico sentimento amoroso. Em primeiro lugar havia uma discussão entre Radamés e Amnéris. A filha do rei mandara conduzir à sua presença o homem acorrentado, a quem amava e desejava ardentemente salvar, se bem que ele tivesse renegado a pátria e a honra por amor à escrava bárbara. (Verdade é que o próprio Radamés afirmava que “puro se conservara o seu pensamento e intata a sua honra”.) Mas essa integridade íntima, sem embargo da gravidade da sua culpa, pouco lhe adiantava. Em virtude do seu crime evidente, ele estava sujeito à jurisdição dos sacerdotes, que eram inexoráveis quanto às fraquezas humanas. Parecia certo que não fariam cerimônias, se no último instante não alterasse a sua atitude e renunciasse à escrava, para lançar-se nos braços do majestoso contralto com a mudança de timbre, que, do ponto de vista acústico, merecia isso plenamente. Amnéris fazia os mais fervorosos esforços em prol do tenor harmonioso, o qual, porém, tragicamente obcecado e avesso à vida, se limitava a cantar “Não posso” ou “Em vão”, cada vez que lhe implorava, com súplicas desesperadas, que abandonasse a escrava, porque a sua vida estava em jogo. “Não posso.” “Rogo-te mais uma vez: renuncia a ela!” “Em vão!” A cegueira desejosa de morrer e o mais ardente pesar de amor reuniam-se num diálogo, que era extraordinariamente belo, mas não deixava nenhuma esperança. A seguir, Amnéris acompanhava com seus gritos de dor as medonhas fórmulas das réplicas do tribunal religioso, cujos sons surdos subiam das profundezas, e às quais o infausto Radamés absolutamente não reagia. “Radamés, Radamés!”, cantava com insistência o Sumo Sacerdote, e de uma forma muito sutil lhe fazia ver o crime de traição. “Desculpa-te!”, exigia o coro dos sacerdotes. E como o Sumo Sacerdote verificava que Radamés permanecia mudo, todos, com cavernosa unanimidade, declaravam-no culpado de traição. “Radamés, Radamés!”, recomeçava o presidente, “desertaste do acampamento na véspera da batalha.” “Desculpa-te!”, cantava novamente o coro. “Ele se cala”, constatava pela segunda vez o presidente muito mal impressionado, e em conseqüência disso, todos os votos dos juizes tornavam a reunir-se na sentença: “Traição!” “Radamés, Radamés!”, ouvia-se pela terceira vez a voz do implacável acusador. “Violaste o juramento à pátria, à honra e ao rei.” “Desculpa-te!”, ressoava novamente o coro. E “Traição!” era o veredicto definitivo que o grêmio dos sacerdotes pronunciava com horror, depois de sua atenção ter sido chamada para o fato de Radamés calar-se teimosamente. Destarte era impossível evitar o inevitável. O coro, cujas vozes nem sequer se haviam retirado para deliberar, promulgava a sentença, segundo a qual a sorte do criminoso estava decidida. Teria ele de morrer a morte dos malditos; entraria vivo na tumba, sob o templo da divindade irada. A indignação que Amnéris manifestava diante dessa crueldade clerical era coisa que o ouvinte devia imaginar o melhor que pudesse; pois a reprodução interrompia-se nesse ponto. Hans Castorp teve que mudar o disco, o que fez com movimentos silenciosos, precisos, e, por assim dizer, com os olhos baixos. Quando voltou a instalar-se na poltrona para escutar, já se desenrolava a última cena do melodrama, o dueto final entre Aída e Radamés, cantado na profundeza da sua sepultura subterrânea, enquanto por cima das suas cabeças os sacerdotes fanáticos, desapiedados, celebravam o seu culto no templo e, com as mãos espalmadas, proferiam surdas ladainhas... “Tu, in questa tomba?”, clamava entre espanto e delícia a voz de Radamés, essa voz incrivelmente insinuante, meiga e ao mesmo tempo heróica. Sim, ela se juntara a ele, a bem-amada, pela qual sacrificara a vida e a honra; esperara-o nesse lugar; deixara-se enterrar com ele, para morrer a seu lado. Os cantos em que os amantes comentavam esse fato, ora dialogando, ora unindo as suas vozes, esses cantos interrompidos de quando em quando pelo ruído surdo do cerimonial, que vinha do pavimento superior – eram eles em última análise o que enfeitiçara até o fundo da alma o ouvinte solitário e noturno, devido tanto às circunstâncias como à expressão musical. Falava-se do céu nesse dueto, mas ele mesmo era celeste, e cantavam-no divinamente. A linha melódica que as vozes de Radamés e Aída, isoladas ou reunidas, não cessavam de traçar, essa curva singela e feliz em torno da tônica e da dominante, que subia desde a nota fundamental até a prolongação em marcato, a um semitom da oitava, e depois de um contato fugidio com esta se voltava para a quinta –, essa linha afigurava-se ao ouvinte mais pura, mais maravilhosa do que tudo o que já lhe ocorrera. No entanto, Hans Castorp teria demonstrado muito menos entusiasmo pelos meros sons, não existisse a situação que os inspirava, e que tornava o seu espírito sensível para a doçura que dela se desprendia. Era tão belo o fato de Aída se ter juntado ao condenado Radamés, a fim de partilhar com ele, para toda a eternidade, o destino sepulcral! Com razão protestava o sentenciado contra a imolação de uma vida tão graciosa. Mas, através do seu grito terno e desesperado “No, no! troppo sei bella!” transparecia o encanto que experimentava ante a definitiva união com Aída, que pensara nunca mais ver. Hans Castorp não precisava forçar a sua imaginação para participar desse encanto e dessa gratidão. Mas, o que sentia, compreendia e gozava antes de mais nada, enquanto, com as mãos postas, olhava a portinhola negra de cujas fasquias partia toda essa beleza, era o alto e idealístico vôo da música, da arte, da alma humana, o sublime e irrefutável embelezamento que esse idealismo outorgava aos horrores vulgares das coisas reais. Bastava visionar com os olhos da razão o que se passava nessa cena. Duas pessoas enterradas vivas, com os pulmões cheios de gases mefíticos, pereceriam juntas, ou, o que seria ainda pior, uma depois da outra, torcendo-se de fome; a seguir, a putrefação exerceria sobre os corpos os seus indescritíveis efeitos, até que no fundo da tumba repousassem dois esqueletos, cada um dos quais ficaria completamente indiferente e insensível à questão de saber se jazia ali sozinho ou acompanhado. Este era o aspecto realista e objetivo das coisas – um aspecto e uma coisa à parte, que o idealismo do coração nem sequer levava em conta, e que o espírito da beleza e da música ofuscava triunfalmente. Para as almas operísticas de Radamés e Aída não existia a realidade que os ameaçava. Suas vozes elevavam-se em uníssono até aquela jubilosa appoggiatura à oitava, afirmando que nesse momento se abria o céu, e que suas almas errantes voavam ao encontro dos raios do dia eterno. O poder consolador desse paliativo fazia bem ao ouvinte e contribuía muito para que esse número do seu programa predileto se lhe tornasse especialmente caro. Costumava ele descansar desses sustos e êxtases, escutando uma outra peça breve, mas cheia de concentrada magia, peça de conteúdo muito mais plácido do que o da primeira, um idílio, porém um idílio refinadíssimo, ideado e colorido com o aproveitamento dos meios parcos e ao mesmo tempo complexos da arte contemporânea. Era uma peça puramente orquestral, sem canto, um prelúdio sinfônico de origem francesa, composta com uma instrumentação relativamente reduzida para a nossa época, mas com o mais perfeito conhecimento da polifonia moderna, e habilmente elaborada para envolver a alma numa teia de sonhos. O sonho a que Hans Castorp se entregava ao tocar esse disco era o seguinte: achava-se ele deitado de costas num prado banhado pelo sol e semeado das estrelas variegadas de um semnúmero de flores. Tinha por baixo da cabeça um montículo de terra. Estava com as pernas encolhidas, uma cruzada por cima da outra. Mas deve-se observar que essas pernas eram pernas de bode. Só para o seu próprio prazer – pois a solidão do prado era completa – suas mãos dedilhavam um pequeno instrumento de sopro, que mantinha diante da boca, clarineta ou charamela, da qual extraía sons pacatos e fanhosos, um após outro, assim como lhe ocorriam, e todavia numa seqüência agradável. E esses balidos despreocupados subiam ao céu intensamente azul, sob o qual fremia ao sol a delicada folhagem de isolados freixos e bétulas, que uma leve aragem agitava. Mas esta musiqueta contemplativa, inconsciente, semimelodiosa, estava longe de ser a única voz que ressoava pela solidão. Os zumbidos dos insetos no ar quente do verão, por cima do capim; a própria luz do sol, a suave brisa, a agitação das copas das árvores, a cintilação das folhas – todo o movimento brando da paz estival que reinava em redor transformava-se numa mescla de sons que dava ao singelo toque da charamela um sentido harmônico, sempre renovado e sempre cheio de surpresas. De vez em quando recuava ou emudecia o acompanhamento sinfônico; mas Hans, com suas pernas de bode, continuava a soprar no seu instrumento, e a monotonia ingênua da sua música despertava novamente a magia sonora, de requintado colorido, da natureza; essa magia que, depois de uma nova interrupção, voltava finalmente, superando-se a si mesma. Juntavam-se-lhe instrumentos novos, mais agudos, atacando em rápida sucessão. Por um momento fugaz, cuja plenitude deliciosa, perfeita, encerrava, todavia, a eternidade, era-lhe dada a exuberância de que a orquestra dispunha e que lhe negara até então. O jovem fauno sentia-se muito feliz no seu prado, nesse dia de verão. Ali não havia ninguém que exigisse: “Desculpa-te!”, não havia responsabilidades, não havia sacerdotes reunidos num tribunal de guerra, julgando um homem que se esquecera da honra e estava perdido para o mundo. Nesse lugar reinava o próprio esquecimento, a bem-aventurada imobilidade, o estado inocente da ausência de tempo. Era o relaxamento praticado com a melhor das consciências, a miragem apoteótica de todo tipo de negação do imperativo ocidental da ação, e a sensação de calma que esse disco inspirava conferia-lhe valor especial aos olhos do nosso músico noturno. Existia uma terceira peça... Na realidade eram outra vez diversas peças, três ou quatro, formando um grupo e revezando-se entre si. A ária do tenor, que fazia parte do conjunto, enchia sozinha uma face do disco. Novamente se tratava de música francesa, trechos de uma ópera que Hans Castorp conhecia bem, que ouvira e vira diversas vezes no teatro, e a cujo enredo até aludira de passagem num colóquio, e num colóquio de importância decisiva... A cena passava-se no meio do segundo ato, numa taverna espanhola, baiuca espaçosa, enfeitada de panos. O edifício de estilo mourisco já estava um tanto danificado. A voz de Carmem, cálida, levemente rouca mas atraente pelo timbre peculiar à sua raça, declarava que queria dançar em homenagem ao sargento, e já se ouvia o tatalar das suas castanholas. No mesmo instante, porém, ressoavam a alguma distância trombetas, clairons, um sinal militar que se repetia e fazia o rapaz sobressaltar-se violentamente. “Espera um pouco. Só um momento!”, gritava ele, aguçando os ouvidos qual um cavalo. E quando Carmem perguntava: “Por quê? Que é que há?”, exclamava o sargento: “Não ouves?”, todo surpreendido porque a clarinada não a impressionava tanto como a ele. E explicava que esse sinal era dado pelas trombetas do quartel. “Do regresso se aproxima a hora”, dizia em estilo operístico. Mas a cigana era incapaz de compreender aquilo, e também não queria fazê-lo. Tanto melhor, argumentava ela, entre tola e insolente, nesse caso não havia necessidade de castanholas; o próprio céu lhes mandava música para dançar: “tá-rá-tá-rá...” O rapaz estava fora de si. A mágoa que lhe causava a decepção eclipsava-se diante do esforço de explicar a ela de que se tratava e que nenhuma paixão do mundo podia resistir a esse sinal. Como era possível que ela não compreendesse uma coisa tão fundamental e tão absoluta? “É preciso que eu volte já ao quartel, para a revista”, clamava ele, desesperado diante da ignorância da mulher, que lhe tornava o coração ainda mais triste do que normalmente. E imaginem o que Carmem lhe respondia a isso! Estava furiosa, indignada até o fundo da alma. Era em cada nota a personificação do amor enganado e ofendido; ou, ao menos, fingia sê-lo. “Ao quartel? Para a revista?” e o seu coração? Seu coração meigo e carinhoso que, na sua fraqueza – sim, ela não o negava: na sua fraqueza! – se dispusera a diverti-lo com danças e cantos? “Tá-rá-tá-rá!” Com um gesto de escárnio selvagem conduzia à boca a mão em funil, para arremedar o clarim. “Tá-rá-tá-rá!” Mais não era necessário para que o imbecil se levantasse de um pulo e fizesse menção de sair correndo. Pois então, que se fosse! E lhe estendia o capacete, o sabre, o cinturão. Que não perdesse tempo, que se apressasse para voltar ao quartel!... E ele pedindo misericórdia. Mas a mulher prosseguia com o seu sarcasmo cáustico, representando o papel dele, que perdera a pouca razão que tinha ao ouvir as clarinadas. “Tá-rá-tá-rá, para a revista!” Deus do Céu! chegaria tarde. Depressa, chamavam-no para a revista, e por isso era natural sobressaltar-se feito um louco, no momento em que Carmem queria dançar para ele. Ora, se aquilo era o amor que sentia por ela!... Que situação angustiosa! Ela não o compreendia. Essa mulher, essa cigana não podia nem queria compreender. Não queria, pois isso era indubitável: na sua fúria e no seu sarcasmo havia algo que ia além dos fatos atuais e particulares, um ódio, uma inimizade primitiva contra o princípio que se servia desses clairons franceses – ou dessas trompas espanholas – para chamar o soldadinho apaixonado. Triunfar sobre esse princípio era a sua ambição suprema, inata, ultrapessoal. Para esse fim fazia uso de um recurso muito simples: afirmava que, se ele ia embora, era porque não a amava. Era precisamente isso o que José, lá no interior da arca, não podia suportar. Conjurava-a a que o deixasse falar. Ela não queria. Então obrigavá-a a escutá-lo. Era um momento infernalmente sério. Sons trágicos desprendiam-se da orquestra, um motivo sombrio, cheio de ameaça, que, como Hans Castorp sabia, se alastrava através de toda a ópera, até a catástrofe final, e também constituía a introdução da ária do soldadinho, num outro disco que se seguia a este. “A flor que me atiraste...”, José cantava às mil maravilhas. Hans Castorp tocava o disco também isoladamente, fora do conjunto familiar, e sempre o ouvia com a mais atenta simpatia. Quanto ao conteúdo, a ária não valia grande coisa, mas o sentimento expressado nessas súplicas era comovente. O soldado falava da flor que Carmem lhe atirara no começo das suas relações, e que significara tudo para ele no cárcere onde fora metido por causa dela. Profundamente emocionado, confessava que em certos momentos amaldiçoara o destino por ter admitido que Carmem cruzasse os seus caminhos. Mas em seguida se arrependera dessa blasfêmia e ajoelharase para rogar a Deus lhe permitisse revê-la. Pois – e este “pois” era a mesma nota aguda com que imediatamente antes iniciara a frase “Rever-te, Carmem...” – pois... (e agora se desencadeava no acompanhamento toda a magia instrumental apropriada para descrever o pesar, a saudade, a ternura frustrada e o doce desespero do soldadinho) pois bastara que Carmem lhe surgisse ante os olhos, na sua beleza simplesmente fatal, e lançasse um olhar sobre ele (“sobre mim”, com uma appoggiatura breve, soluçante, de tom inteiro, na primeira palavra) para que José sentisse com a mais absoluta clareza que ela se apoderara de todo o seu ser – “para possuíres todo o meu ser”, cantava ele, desolado, numa seqüência melódica reiterada, que a orquestra, lamentando-se por sua própria conta, repetia, subindo da tônica dois tons e voltando-se ardorosamente para a quinta inferior. “Meu coração te pertence”, afirmava desnecessariamente o rapaz, com palavras triviais, mas muitíssimo carinhosas, servindo-se mais uma vez dessa figura musical. A seguir galgava a escala até o sexto grau, para acrescentar: “E eu era teu!” Com isso a voz deixava cair dez tons e confessava com a mais profunda emoção: “Carmem, eu te amo!”, retardando dolorosamente o fim dessa frase por um prolongamento com harmonia modulada, antes que a última sílaba da palavra “amo” se fundisse com a primeira no acorde fundamental. – Está bem – dizia então Hans Castorp, entre melancólico e agradecido, e punha ainda no aparelho o disco do final, em que todos felicitavam o jovem José por ter-lhe o encontro com o oficial impossibilitado o regresso, de maneira que não podia senão desertar, como Carmem, para o seu maior espanto, já lhe sugerira antes. “Segue-nos através dos campos, Vai conosco às montanhas –” cantavam em coro. Era fácil entender a letra. “Como é bela a vida errante; O universo por país; tua vontade por lei, E sobretudo aquela coisa inebriante Que é a liberdade, a liberdade!” – Está bem – dizia Hans Castorp novamente e passava para uma quarta peça, que o comovia pela bondade e pelo sentimento. Nós não somos responsáveis de que fosse outra vez uma composição francesa, como tampouco nos pode ser imputado o espírito militar que também nela se manifestava. Era uma melodia intercalada, um solo de canto, uma “Oração” da ópera Fausto de Gounod. Aparecia um indivíduo ultra-simpático, de nome Valentim; mas Hans Castorp, no seu íntimo, chamava-o de outra forma, por um nome mais familiar, cheio de recordações aflitivas, cujo portador identificava completamente com a personagem que ali se manifestava no interior da arca, se bem que este tivesse voz muito mais bela. Era um vigoroso e cálido barítono, e sua ária se dividia em três partes. Havia duas estrofes muito semelhantes uma à outra, de caráter piedoso, compostas quase no estilo de um hino sacro protestante, e que emolduravam uma terceira de espírito destemido, cavalheiresco, um canto guerreiro, frívolo, e não obstante também piedoso. Era precisamente isso o que havia nessa ária de francês e militar. A personagem invisível cantava: “Antes de deixar estes sítios, A terra natal dos meus antepassados...” e nessas circunstâncias dirigia a sua prece ao Senhor dos Céus, confiando-Lhe a irmã para que a protegesse durante a sua ausência. Iria ele para a guerra – e com isso mudava o ritmo, tornandose enérgico. Que as preocupações e as tristezas fossem para o diabo! Ele, o invisível, queria procurar o lugar onde houvesse a mais encarniçada batalha e o maior perigo, e arrojar-se intrépida, piedosa, francesmente, contra o inimigo. “Mas, se Deus me chamar para o Céu”, cantava, “velarei fielmente sobre ti.” Embora esse “ti” se referisse à irmã, comovia profundamente Hans Castorp, e essa sua emoção não o abandonava até o fim da ária, quando o homem valente no interior do aparelho repetia, acompanhado por poderosos acordes corais: “A ti, Senhor e Rei dos Céus, Margarida eu confio”. Esse disco não apresentava nenhum outro interesse. Achamos indicado dedicar-lhe umas poucas palavras, porque Hans Castorp o apreciava especialmente, mas também porque ele desempenhou mais tarde um certo papel em circunstâncias bastante estranhas. E agora falaremos da quinta e última das peças que pertenciam ao grupo dos discos prediletos. Dessa vez não nos referimos a uma obra francesa, mas a uma música específica e inteiramente alemã. Não era um trecho de ópera, senão um Lied, uma daquelas canções que são simultaneamente patrimônio popular e obra-prima, e devem a essa simultaneidade o seu caráter peculiar e espiritual... mas, para que todos esses circunlóquios? Era A tília de Schubert; era simplesmente aquela canção que todos conhecem e que começa com as palavras: “Recordo a velha tília bem junto do portão...” Cantava-a um tenor, com acompanhamento de piano, rapaz cheio de tato e de bom gosto, que sabia tratar com grande inteligência, com muita delicadeza musical e com esmerada técnica de recitação, o seu assunto singelo e ao mesmo tempo sublime. Ninguém ignora que essa maravilhosa canção, quando cantada por uma criança ou pela boca do povo, soa diferente da composição artística. Na sua forma popular, simplificada, as estrofes de oito versos seguem a melodia principal, ao passo que, no Lied de Schubert, já a segunda estrofe é variada; o tom passa para menor, mas no quinto verso volta a maior, de um modo lindíssimo. Na frase que se segue – a dos “ventos frios” e do chapéu arrancado da cabeça – a melodia é dramaticamente resolvida, não sendo reencontrada senão nos últimos quatro versos da terceira estrofe, que são repetidos, para dar um remate à canção. A inflexão realmente arrebatadora da melodia ocorre três vezes, na sua segunda metade modulada; a terceira vez, por conseguinte, na repetição da última semiestrofe, a partir do verso “E agora vou tão longe...” Essa inflexão mágica que não ousamos analisar por meio de palavras realiza-se nos fragmentos de frases “Mil coisas que senti...”, “Falando para mim...” e “Daquele lugar ali...” A clara e cálida voz de tenor, soluçante sem exagero, e de magnífica técnica respiratória, cantava-a sempre com uma compreensão tão inteligente da sua beleza que o ouvinte sentia o coração indizivelmente comovido. E o artista sabia intensificar esse efeito por um falsete extremamente suave que usava ao cantar os versos: “E sempre estava lᔠe “A paz está aqui”. Na repetição da última frase, porém, naquele “Encontrarás a paz”, cantou o primeiro “encontrarás” com a plenitude da sua voz cheia de nostalgia, e o segundo, num delicadíssimo flageolet. Isso quanto ao Lied e à sua interpretação. Nos casos anteriores podíamos jactar-nos de ter comunicado aos nossos leitores uma vaga compreensão da simpatia íntima que Hans Castorp experimentava pelas peças favoritas dos seus concertos noturnos. Mas tornar compreensível o que significava para ele essa última, essa canção, a velha Tília, é realmente empresa das mais complexas, que requer da nossa parte um tratamento de extraordinária delicadeza, porque o contrário nos levaria antes a comprometer do que a esclarecer a questão. É assim que queremos colocá-la: um assunto espiritual, isto é, um assunto significativo torna-se “significativo” precisamente porque designa algo fora dos seus próprios limites, porque é expressão e expoente de uma esfera espiritual mais vasta, de um mundo inteiro de sentimentos e pensamentos, que encontrou nele um símbolo mais ou menos perfeito – o que dá então a medida da sua importância. Além disso é “significativo” em si o amor que se sente por tal assunto. Esse amor nos informa sobre a pessoa que ama, caracteriza as relações que ela mantém com aquela esfera mais vasta, com o referido mundo que o assunto representa, e que é, consciente ou inconscientemente, amado junto com ele. Poderá o leitor nos dar crédito se afirmarmos que o nosso singelo herói, depois de tantos anos de desenvolvimento hermético-pedagógico, penetrara bastante fundo na vida espiritual para ter consciência do “significado” do seu amor e do objeto amado? Afirmamo-lo e asseguramos que ele teve essa consciência. Aquela canção significava muito para Hans Castorp, um mundo inteiro e justamente um mundo que ele amava, não há dúvida; pois, não fosse assim, não se enamoraria a tal ponto do símbolo que o substituía. Sabemos o que estamos dizendo quando acrescentamos – talvez sob forma um tanto obscura – que o seu destino teria tomado um rumo diferente, se a sua alma não houvesse sido particularmente receptível às tentações da esfera sentimental, da atitude espiritual que esse Lied resumia de um modo mágico e insinuante. Esse mesmo destino, porém, trouxera consigo progressos, aventuras, descobertas, e colocara-o diante de problemas “governamentais” que o haviam tornado capaz de criticar intuitivamente esse mundo, bem como o símbolo que o representava, por mais admirável que fosse, e também o amor que sentia por ele; e tudo isso fazia com que o jovem tivesse escrúpulos de consciência com respeito a todos os três, o mundo, o símbolo e o amor. Ora, nada entenderia do amor quem supusesse que tais escrúpulos poderiam prejudicá-lo. Pelo contrário, dão-lhe o verdadeiro sabor. Eles é que conferem ao amor o incentivo da paixão, de maneira que se poderia definir a paixão, de um modo absoluto, como o amor que duvida. E em que consistiam os escrúpulos que acossavam a consciência e o “reino” de Hans Castorp e o levavam a duvidar da legitimidade superior da afeição que nele despertavam aquela encantadora canção e o mundo de que ela tratava? Qual era o mundo que se abria atrás dela e que, segundo os pressentimentos íntimos de Hans Castorp, devia ser o mundo do amor proibido? Era a morte. Mas isso é rematada loucura! Uma canção tão maravilhosa! Uma obra-prima das mais puras, nascida nas derradeiras e mais sagradas profundezas do gênio popular! Um patrimônio sublime, a mais alta expressão do sentimento genuíno, a graça personificada! Que calúnia! Está bem! Está tudo muito bem! É assim que pessoas bem-intencionadas devem falar. Entretanto, por trás dessa formosa obra de arte levantava-se a morte. O Lied mantinha relações com esta, relações que era possível amar, não, porém, sem se dar conta – de um modo intuitivo e na função de um “rei” – do caráter ilícito de tal amor. Pela sua natureza primitiva, a canção talvez não expressasse simpatias pela morte, senão algo muitíssimo popular e vital. Mas a simpatia espiritual por isso era, apesar de tudo, uma simpatia pela morte. No início, sim, havia a mais pura piedade, o decoro em pessoa – absolutamente não o negamos. O que se seguia, porém, eram os produtos das trevas. Afinal, que coisas são essas de que Hans Castorp procurava persuadir-se? Ninguém teria sido capaz de dissuadi-lo delas. Produtos das trevas! Produtos sinistros! O espírito de algozes e a inimizade aos homens, trajando roupas pretas, à espanhola, e uma golilha engomada! A volúpia em lugar do amor – como resultado da piedade de olhos leais? Embora a confiança que Hans Castorp dedicava ao literato Settembrini nunca tivesse sido irrestrita, o jovem lembrava-se de algumas lições que outrora lhe ministrara o lúcido mentor, em tempos remotos, logo no começo da sua carreira hermética, quando lhe falara do “retrocesso” espiritual em direção a certos mundos. O discípulo achava oportuno aplicar cautelosamente aqueles ensinamentos ao assunto em apreço. O Sr. Settembrini qualificara de “doença” o fenômeno desse retrocesso. O próprio conceito do mundo e a época espiritual buscados pelo retrocesso talvez se afigurassem “mórbidos” ao seu intelecto pedagógico. Mas como? A nostálgica e meiga canção de Hans Castorp, a esfera sentimental de que ela fazia parte, e a afeição a essa esfera seriam então – sintomas de “doença”? Nada disso! Eram o que havia de mais sadio no mundo da psique. E todavia tratava-se de um fruto que, se bem que no momento aparecesse fresco e viçoso, tendia fortemente à decomposição e à putrefação. Para quem o saboreava no momento oportuno representava um regalo puríssimo da alma; mas, num instante inoportuno, que já podia ser o próximo, difundia podridão e ruína no seio da humanidade que o ingeria. Era um fruto da vida, gerado pela morte e prenhe de morte. Era um milagre da alma – o mais sublime talvez sob o ponto de vista da beleza irresponsável e abençoado por esta; mas havia motivos ponderáveis para que fosse considerado com desconfiança pelos olhos de quem amasse a vida, de quem “reinasse” com senso de responsabilidade e tivesse afeição à esfera orgânica; segundo o veredicto definitivo da consciência, requeria um triunfo sobre o próprio eu. Sim, um triunfo sobre o próprio eu – talvez fosse esta a essência do triunfo sobre esse amor, sobre o sortilégio que enleava a alma, com sinistras conseqüências! Os pensamentos, ou melhor, os semipensamentos intuitivos de Hans Castorp alçavam um alto vôo, enquanto, em meio à noite e à solidão, se achava sentado à frente do truncado ataúde de música. Voavam para além do alcance da sua razão; eram pensamentos alquimisticamente desenvolvidos. Ah, como era poderoso aquele sortilégio! Nós todos éramos seus filhos e, obedecendo-lhe, podíamos realizar grandes coisas neste mundo. Não era preciso mais gênio, senão apenas muito mais talento do que tivera o autor da canção da Tília, para conferir, como artista da magia da alma, proporções gigantescas ao Lied e para conquistar o mundo por meio dele. Provavelmente seria até possível fundar impérios sobre essa base, impérios terrestres, por demais terrestres, impérios rudes, progressistas, e que no fundo não sofriam da menor nostalgia, impérios em cujo seio o Lied degenerava para uma música de vitrola elétrica. Mas o melhor dentre os filhos do sortilégio talvez fosse aquele que consumisse a sua vida no esforço de triunfar sobre ele e falecesse esboçando com os lábios a nova palavra do amor, que ainda não sabia pronunciar. Valia a pena morrer por essa canção mágica! Mas, quem morria por ela, em realidade já não o fazia e era um herói somente porque, em última análise, já morria por uma coisa nova, fomentando no seu coração a nova palestra do amor e do futuro.. . Eram, pois, aqueles os discos preferidos de Hans Castorp. Coisas muito problemáticas Quanto às conferências de Edhin Krokowski, produzira-se, no decorrer dos anos, uma modificação surpreendente. Suas pesquisas dedicadas à análise das almas e à vida dos sonhos sempre haviam revelado um caráter subterrâneo, catacumbal. Recentemente, porém, numa transição suave que o público mal percebera, acabavam de tomar o rumo para o mágico, inteiramente misterioso. As palestras que o médico, trajando sobrecasaca e sandálias, postado atrás de uma mesinha coberta, fazia de duas em duas semanas, na sala de refeições, como a atração principal da casa e o orgulho do prospecto, essas palestras, apresentadas numa voz arrastada e com sotaque estrangeiro ao auditório que as escutava imóvel, já não se ocupavam dos disfarces da atividade erótica e da reconversão da doença no afeto tornado consciente. Tratavam a essa altura dos profundos segredos do hipnotismo e do sonambulismo, dos fenômenos da telepatia, do sonho revelador e da deuteroscopia, bem como dos milagres da histeria. Enquanto o Dr. Krokowski comentava tudo isso, ampliavam-se os horizontes filosóficos de tal maneira que de repente os olhos dos ouvintes vislumbravam enigmas tais como o da relação entre a matéria e a esfera psíquica, ou ainda o próprio enigma da vida, que parecia mais acessível por sendas dúbias, mórbidas, do que pelo caminho da saúde... Mencionamos esses fatos por achar que é nosso dever refutar as afirmações de espíritos levianos, segundo as quais o assistente recorrera às coisas ocultas apenas para salvar as conferências do perigo de uma irremediável monotonia, isto é, para fins puramente emocionais. Assim diziam as más línguas, que não faltam em parte alguma. É verdade que, durante as conferências de segunda-feira, os cavalheiros coçavam mais apressadamente do que nunca as orelhas para ouvir melhor, e a Srª. Levi parecia-se ainda mais do que antes com aquela figura de cera com mecanismo interior. Mas esses efeitos eram tão legítimos quanto o desenvolvimento por que passara o espírito do sábio, que podia defender não somente a lógica mas até a necessidade do caminho intelectual por ele transposto. Sempre haviam sido o seu campo de estudos aquelas regiões vastas e obscuras da alma humana, que são designadas pelo nome de inconsciente, se bem que fosse mais acertado falar de um “superconsciente”, já que dessas esferas procede às vezes, de um modo fantástico, um conhecimento que ultrapassa grandemente o saber consciente do indivíduo, e sugere a idéia da existência de relações ou laços entre as tenebrosas zonas interiores da psique individual e uma alma universal, perfeitamente consciente. A região do inconsciente, “oculta” no sentido próprio da palavra, imediatamente se mostra oculta também no sentido mais limitado e constitui uma fonte da qual emanam os fenômenos que assim chamamos por falta de outro termo melhor. Isso não é tudo. Quem considera o sintoma orgânico da doença o produto de afetos relegados da vida consciente da alma e transformados em histeria reconhece um poder criador das forças psíquicas, exercido sobre a matéria – esse poder que se deve qualificar de segunda fonte dos fenômenos mágicos. Quem pensa assim é um idealista do patológico, para não dizer um idealista patológico, e há de encontrar-se no ponto de partida de raciocínios que rapidamente alcançarão o problema do ser em si, quer dizer, o problema das relações existentes entre o espírito e a matéria. O materialista, filho de uma filosofia da força bruta, jamais renunciará a declarar que o espiritual é o produto fosforescente do material. O idealista, porém, partindo do princípio da histeria criadora, divergirá, e dentro em breve estará decidido a resolver num sentido totalmente oposto a dúvida acerca da primazia. Em suma, tratase aqui nada mais nada menos que da velha controvérsia sobre a questão de saber o que existiu antes, se o ovo ou a galinha; controvérsia que conduz a uma embrulhada completa precisamente pelo duplo lato de não se poder imaginar ovo que não haja sido posto por uma galinha nem galinha que não tenha saído de um ovo hipotético. Eram, pois, esses os assuntos que nos últimos tempos o Dr. Krokowski explanava nas suas conferências. Alcançara-os por caminhos orgânicos, legítimos, lógicos – não cessamos de insistir nisso, e nos parece até supérfluo acrescentar que já começara a comentá-los muito antes de Ellen Brand entrar em cena. Com a sua chegada, porém, as coisas passaram à fase empírica e experimental. Quem era Ellen Brand? Estávamos ao ponto de nos esquecer que os nossos leitores o ignoram, ao passo que para nós o seu nome é naturalmente familiar. Quem era ela? À primeira vista, quase ninguém. Uma coisinha querida de dezenove anos, com cabelos louros como trigo; chamavam-na Elly; era dinamarquesa, mas nem sequer natural de Copenhague, senão de Odense, na ilha de Fiônia, onde o pai se dedicava ao comércio de manteiga. Ela mesma tivera durante alguns anos um emprego como funcionária da sucursal provincial de um banco da capital, onde trabalhara, sentada numa banqueta giratória, diante de livros volumosos, com uma manga protetora no braço. No curso dessa atividade teve sintomas de elevação de temperatura. O caso não era grave. No fundo tratava-se apenas de suspeitas. Mas Elly era frágil, bastante frágil e evidentemente anêmica, embora tão gentil que dava à gente vontade de lhe pôr a mão nos cabelos louros, o que o conselheiro fazia regularmente, quando falava com ela na sala de refeições. Um frescor nórdico parecia envolvê-la, tinha uma castidade cristalina, uma atmosfera entre infantil e virginal, muito atraente, tal como o olhar franco, puro, dos seus olhos azuis, de criança, e como a sua voz branda, aguda, fininha. Falava um alemão levemente estropiado, com certos errinhos típicos de pronúncia. Nas feições não havia nada,de particular. O queixo era muito curto. Tinha o seu lugar à mesa da Kleefeld, que a protegia como uma mãe. Em torno da donzela Elly Brand, essa amável ciclistazinha e bancária dinamarquesa, havia, no entanto, coisas que ninguém teria imaginado à primeira ou segunda vista da sua pessoa transparente, mas que poucas semanas após a sua chegada a essas alturas começaram a revelar-se. Coube ao Dr. Krokowski patentear a plenitude do mistério. Certas diversões coletivas, durante a reunião noturna, deram ao sábio os primeiros motivos de perplexidade. Os pensionistas faziam jogos de adivinhações. Também procuravam encontrar objetos escondidos, guiando-se por sons de piano que se tornavam mais fortes, à medida que a pessoa se aproximava do esconderijo, e mais fracos quando ela se desviava do caminho. A seguir, passaram a exigir a execução correta de determinadas ações complexas de quem esperava atrás da porta, enquanto os outros deliberavam; combinava-se, por exemplo, que essa pessoa deveria trocar os anéis de dois outros participantes do jogo, ou convidar alguém a dançar, mediante três reverências, ou retirar certo livro da biblioteca, para entregá-lo a Fulano ou Sicrano, etc. Convém observar que jogos desse tipo não eram habitualmente praticados entre os pensionistas do Berghof. Não foi possível averiguar de quem partira a idéia. Certamente não fora de Elly. Mas foi somente depois da sua chegada que esse jogo entrou em moda. Os que tomavam parte nele – eram quase todos velhos conhecidos nossos, e também Hans Castorp achava-se no meio do grupo – mostravam-se ora mais ora menos hábeis nas suas tentativas, ou fracassavam por completo. A aptidão de Elly Brand, porém, manifestou-se como extraordinária, sensacional e mesmo chocante. A segurança infalível com que a moça encontrara quaisquer esconderijos apenas lhe valera aplausos e risadas cheias de admiração. Mas quando começou a executar ações mais complicadas, os espectadores ficaram boquiabertos. Realizava ela tudo quanto lhe houvessem imposto secretamente; realizava-o, logo que voltava ao recinto, com um leve sorriso, sem a menor hesitação e também sem nenhuma música que a guiasse. Ia à sala de refeições para buscar uma pitada de sal; espargia-a sobre a cabeça do Promotor Paravant; em seguida, tomava-o pela mão e levava-o ao piano, onde tocava com o dedo indicador dele as primeiras notas de uma canção infantil; feito isso, reconduzia-o até o seu lugar, cumprimentava-o com uma mesura, aproximava um tamborete e sentava-se, por fim, a seus pés – exatamente assim como, depois de muita deliberação, fora combinado em segredo. Claro, ela tinha escutado! Elly ruborizou-se. Como que aliviados ao vê-la confundida, todos se puseram a censurá-la em coro, quando afirmava que não escutara. Não, não! Que não pensassem isso! Palavra de honra que não escutara lá fora, atrás da porta! Não escutara lá fora atrás da porta? – Não! – respondeu ela, desculpando-se, e acrescentou que era ali mesmo, dentro da sala que escutava. Quando entrava, não podia evitar fazê-lo. Dentro da sala? Não podia evitá-lo? Alguém lhe sussurrava aos ouvidos – soprava-lhe o que devia fazer, falava baixinho, mas com muita precisão e nitidez. Isso era uma confissão, evidentemente. Elly tinha, sob certos aspectos, consciência de ter cometido uma falta; fizera trapaça. Deveria ter dito que não se prestava a um jogo dessa espécie, já que alguém lhe sussurrava tudo aos ouvidos. Uma competição perde todo o seu sentido humano quando um dos participantes dispõe de vantagens sobrenaturais. Do ponto de vista desportivo, Elly estava subitamente desqualificada, mas de uma forma que causava arrepios a muitos que souberam do fato. Várias vozes, simultaneamente, clamaram pela presença do Dr. Krokowski. Saíram correndo para buscá-lo, e ele veio, atarracado, esboçando um sorriso enérgico. Ficara logo a par do assunto, e todo o seu ser inspirava alegre confiança. Ofegando, os mensageiros lhe haviam comunicado que uma coisa de crassa anormalidade acabava de acontecer, que surgira uma criatura onisciente, uma donzela que ouvia vozes. – Não digam! E daí? Calma, meus amigos! Vamos ver. – O assistente achava-se no seu próprio terreno, um terreno perigoso, alagadiço, instável para todos os outros, mas onde ele se movimentava com simpática segurança. Fez perguntas. Pediu que lhe contassem a história. – Não digam! Ora vejam! – E, como todos gostavam de fazer, pôs a mão na cabeça da pequena. Explicou que havia muitos motivos para atenção e nenhum para espanto. Cravou os olhos castanhos, exóticos, nos olhos azuis, claros, de Ellen Brand. Ao mesmo tempo descia a mão suavemente da cabeça, pelo ombro, até o braço. A jovem devolveu o olhar com uma expressão mais e mais piedosa, fitando-o por baixo, enquanto a cabeça se inclinava para a espádua e o peito. Quando os olhos da moça começaram a velar-se, o sábio levantou a mão, displicentemente, diante do rosto dela, e declarou que tudo ia muito bem. Mandou que o grupo excitado fosse repousar, com exceção de Elly Brand, com a qual tencionava “charlar” alguns instantes. “Charlar!” Já se sabia o que isso significava. Ninguém se sentia à vontade ao ouvir essa palavra, uma palavra peculiar ao jovial camarada Krokowski. Todos tinham a impressão de que uma mão fria lhes tocava o fundo do coração, também Hans Castorp, quando, com grande atraso, se instalou na sua excelente espreguiçadeira. Lembrou-se de como o solo lhe oscilara sob os pés, quando vira as proezas anormais de Elly e ouvira-a dar, toda ruborizada, a explicação do fato. Também recordou o leve mal-estar, a angústia física, o como que enjôo que o acometera nesse instante. Nunca havia assistido a um terremoto, mas estava convencido de que tal fenômeno devia produzir sensações análogas de inconfundível pavor, abstraindo-se a curiosidade que as faculdades fatais de Ellen Brand lhe inspiravam além disso; uma curiosidade que encerrava em si a sensação da sua própria inutilidade, num sentido superior, isto é, a consciência da inacessibilidade espiritual do domínio que ela procurava alcançar, e por conseguinte a dúvida de saber se ela era apenas ociosa ou também pecaminosa; o que, entretanto, não a impedia de permanecer o que era, quer dizer, curiosidade. No curso da sua vida, Hans Castorp, como todo mundo, tinha ouvido isto ou aquilo acerca de coisas de natureza ou “sobrenatureza” oculta. Já se mencionou aquela tia vidente, cuja lenda melancólica lhe fora transmitida. Mas não sentira tão próximo da sua própria pessoa esse mundo que, teórica e desinteressadamente, jamais deixara de reconhecer. Nunca fizera experiências particulares nesse terreno, e sua aversão contra tais experiências, oposição de gosto, antipatia estética, reação do orgulho humano – se é que podemos empregar termos tão elevados com referência ao nosso insignificante herói –, tudo isso igualava quase a viva curiosidade que elas lhe despertavam. Hans Castorp pressentia, pressentia com absoluta nitidez, que essas experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. Percebia que “ociosa ou pecaminosa”, essa alternativa já de per si bastante triste, não constituía em realidade nenhuma alternativa, mas era uma mesma coisa, e que a inutilidade espiritual não era senão a forma de expressar, fora da moral, o caráter proibido da experiência. O princípio do placet experiri, porém, que lhe inculcara certa pessoa que indubitavelmente desaprovaria com a maior veemência tentativas dessa espécie, continuava arraigado em Hans Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade, o que, na verdade, sempre fizera; com essa mesma curiosidade irrestrita, própria de um viajeiro ávido de formação, que, ao saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse próxima do domínio que agora se lhe deparava, e a qual revelava uma espécie de espírito militar, por não se esquivar da esfera vedada, desde que esta se oferecia a ela. Em conseqüência disso resolveu Hans Castorp permanecer no seu posto e não se afastar, quando surgissem novas aventuras relacionadas com Ellen Brand. O Dr. Krokowski proibira estritamente que continuassem, por parte dos leigos, quaisquer experimentos com as faculdades ocultas da Srta. Brand. Requisitara a garota para a ciência; tinha sessões com ela no calabouço analítico; hipnotizava-a, segundo se dizia, e esforçava-se por lhe desenvolver e disciplinar as possibilidades latentes e por investigar-lhe os antecedentes psíquicos. Hermine Kleefeld, a amiga maternal e a protetora de Elly, fazia, aliás, o mesmo e inteirava-se, sob sigilo, de uma porção de coisas, que logo ia espalhando, sob o mesmo sigilo, por toda a casa, inclusive o gabinete do porteiro. Soube ela, por exemplo, que aquele ou aquilo que sussurrava à pequena as respostas certas por ocasião dos jogos, se chamava Holger; era o jovem Holger, um espectro muito familiar a ela, um ser etéreo do outro mundo, e uma espécie de guardião fantasma de Ellen. Era então este quem lhe revelara aquela história da pitada de sal e do dedo indicador do Promotor Paravant? Sim, com os lábios de sombra acariciando-lhe a orelha, a ponto de ela sentir cócegas e se ver forçada a sorrir, o fantasma lhe segredara tudo. “Deve ter sido muito agradável na escola, quando Holger soprava as lições que você não tinha preparado, não é?” A essa pergunta, Ellen não dera resposta, segundo contava a Kleefeld. Mais tarde explicara que Holger talvez não tivesse o direito de fazer isso. Não lhe cabia intrometer-se em assuntos tão sérios. Além disso, era possível que ele mesmo não soubesse as lições. Manifestou-se em seguida que Ellen, desde criança, embora com grandes intervalos, tivera aparições, tanto visíveis como invisíveis. Que significava aquilo, aparições invisíveis? Por exemplo, o seguinte: quando tinha dezesseis anos, achava-se certo dia, em plena tarde, sozinha diante da mesa redonda na sala de estar da casa paterna, ocupada em fazer um trabalho manual. A seus pés, perto dela, estava deitada no tapete uma cadela dinamarquesa do pai, de nome Freia. A mesa estava coberta por uma toalha de muitas cores, espécie de xale turco, daquele tipo que as mulheres velhas usavam dobrado triangularmente. O xale estava estendido em diagonal sobre a superfície da mesa, com as pontas pendentes das bordas. E, de repente, Ellen viu como a ponta à sua frente se enrolava devagar; alguém enrolava-a calma, cuidadosa, regularmente, até quase o centro da mesa, de maneira que o rolo formado era bastante comprido. Enquanto isso acontecia, Freia, num violento sobressalto, soergueu-se bruscamente, com as patas dianteiras muito tesas e o pêlo eriçado. A seguir precipitou-se uivando, para o quarto vizinho, onde se escondeu debaixo do sofá. Durante um ano inteiro foi impossível induzi-la a entrar novamente na sala de estar. – Foi Holger quem enrolou o xale? – perguntou a Srta. Kleefeld. A pequena Brand não sabia. – E que pensou você quando aquilo se deu? – Ora, como era completamente impossível pensar o que quer que fosse a esse respeito, Elly não pensara nada em particular. – Informou seus pais do acontecido? – Não. Era estranho. Ainda que nada houvesse que pensar acerca dessa ocorrência, tinha Elly a sensação de que era conveniente, nesse caso como em outros semelhantes, calar-se e guardar tudo em pudico e rigoroso segredo. – Sofreu muito com isso? – Não, muito não. Afinal de contas, uma toalha que se enrola não era para fazer a gente sofrer. Mas houvera outras coisas mais difíceis de suportar. Por exemplo: Fazia um ano, também no lar paterno em Odense, saíra ela de manhã cedo, muito animada, do seu quarto situado no rés-do-chão. Estava a ponto de atravessar o vestíbulo, a fim de subir a escada e encaminhar-se para a sala de jantar, para preparar o café, como de costume, antes da entrada dos pais. Já alcançara quase o patamar, onde a escada dava uma volta, quando viu nele, junto à beira, diante do primeiro degrau, sua irmã mais velha, Sophie, que era casada e morava nos Estados Unidos. Viu-a realmente, em carne e osso. Sophie trajava um vestido branco e – coisa singular! – uma coroa de nenúfares úmidos. Tinha as mãos postas perto dos ombros e acenava com a cabeça para Elly. Esta, como que petrificada, perguntou, entre alegre e atônita: – Mas como, Sophie? Tu aqui? – E Sophie novamente fez que sim. Em seguida sumiu; tornou-se transparente; depois de pouco tempo era visível somente assim como se percebe a flutuação do ar quente, e por fim não se viu mais nada, de maneira que Ellen pôde passar livremente. Mais tarde, porém, ficou sabendo que àquela mesma hora a mana Sophie morrera de endocardite em Nova Jersey. – Bem – opinou Hans Castorp, quando a Kleefeld lhe contara a história –, isso tinha um sentido e parecia plausível. A aparição aqui, o óbito lá... Inegavelmente havia entre as duas coisas algum nexo que se devia reconhecer. E ele consentiu em tomar parte num passatempo social de natureza espírita, uma tentativa de fazer um copo trepidar, que alguns impacientes haviam resolvido realizar com Ellen Brand, contornando a proibição ciumenta do Dr. Krokowski. Só algumas poucas pessoas foram admitidas à sessão que teria lugar no quarto de Hermine Kleefeld; além da anfitriã, de Hans Castorp e da pequena Brand, havia ainda as senhoras Stöhr e Levi, bem como o Sr. Albin, o tcheco Wenzel e o Dr. Ting-Fu. À noite, às dez em ponto, reuniram-se discretamente e examinaram, falando baixinho, os preparos feitos por Hermine e que eram os seguintes: numa mesa redonda de tamanho médio, sem toalha, colocada no centro do aposento, encontrava-se uma taça de vinho, virada, com o pé para cima, e em torno dela, nas bordas, estavam espalhadas, a intervalos convenientes, umas vinte e cinco chapinhas de osso, normalmente usadas como fichas de jogo, e nas quais haviam sido desenhadas a tinta as letras do alfabeto. Antes de mais nada, a Kleefeld serviu chá, o que foi acolhido com agrado, uma vez que as senhoras Stöhr e Levi, não obstante a inocência infantil da empresa projetada, já se queixavam de ter palpitações e as extremidades frias. Depois de ingerir a bebida quente, sentaram-se em redor da mesinha. Sob uma luz rosada – para criar uma atmosfera apropriada, a anfitriã apagara a luz do teto e deixara acesa somente a lampadazinha de cabeceira, envolta por um abajur –, todos encostaram um dedo da mão direita levemente ao pé da taça. Assim prescrevia o método. Aguardaram então o momento em que o copo se pusesse a trepidar. Isso podia produzir-se facilmente, pois a superfície da mesa era lisa, e o bordo do copo, bem polido; a pressão exercida pelos dedos trêmulos, por mais leve que fosse o contacto, seria naturalmente irregular, mais vertical aqui, mais lateral ali, o que bastaria, com o tempo, para determinar o copo a abandonar a sua posição central. Na periferia do seu campo de ação, a taça iria ao encontro de letras, e se aquelas com que se encontrasse compusessem palavras com algum sentido, isso representaria um fenômeno intimamente complexo até a impureza, um conglomerado de elementos conscientes, semiconscientes, inconscientes, um produto em que se mesclavam a ajuda ativa de alguns, instigada pelo desejo – quer se dessem ou não conta de que o tinham – e o consentimento secreto de extratos não-iluminados da alma coletiva, uma colaboração subterrânea, visando resultados aparentemente estranhos, para os quais contribuiriam em grau maior ou menor as esferas obscuras de cada um, sobretudo as da graciosa garota Elly. Todos sabiam disso de antemão, e Hans Castorp, segundo o seu costume, chegou até a comentar o fato, enquanto estavam sentados, esperando, com os dedos trêmulos. E, com efeito, as extremidades frias e as palpitações das senhoras, bem como a alegria constrangida dos homens, tinham o seu motivo dada a circunstância de todos saberem disso e de ninguém ignorar que se haviam reunido no seio da noite para um brinquedo impuro com a natureza de cada um, para uma experiência, entre tímida e curiosa, com partes ignotas do seu eu, aguardando aquelas ilusões ou semi-realidades que chamamos de mágicas. Era quase só para dar uma certa forma ao assunto e, por conseguinte, por mera convenção, que se admitia que espíritos de defuntos se serviriam do copo para dirigir-se ao grupo. O Sr. Albin ofereceu-se para ser o interlocutor e para interpelar os fantasmas que porventura se manifestassem, porque já participara em outras ocasiões de sessões espíritas. Decorreram vinte minutos ou talvez mais. Esgotaram-se os temas para conversas cochichadas. A curiosidade inicial diminuiu. Apoiavam com a mão esquerda o cotovelo do braço direito. O tcheco Wenzel estava a ponto de adormecer. Ellen Brand, com o dedinho ligeiramente encostado na taça, fixava os grandes e puros olhos de criança além das coisas mais próximas, na luz da lampadazinha de cabeceira. De repente o copo oscilou, bateu na mesa e fugiu das mãos das pessoas que o cercavam e só com muita dificuldade conseguiram acompanhá-lo com os dedos. Deslizou até à borda da mesa, correu um bom pedaço ao longo dela e voltou em linha reta ao centro. Ali tornou a bater na mesa e permaneceu imóvel. O espanto que todos sentiam era um misto de alívio e de pavor. A Srª. Stöhr declarou com voz chorosa que preferia parar com aquilo. No entanto lhe fizeram ver que devia ter-se decidido antes, e que agora lhe cabia ficar quietinha. As coisas pareciam em pleno desenvolvimento. Foi estipulado que, para responder “sim” ou “não”, era desnecessário que o copo fosse ao encontro das letras, mas bastaria que batesse na mesa uma ou duas vezes, respectivamente. – Está presente algum espírito? – perguntou o Sr. Albin com uma fisionomia séria, dirigindo-se por cima das cabeças ao vazio... Seguiu-se um instante de vacilação. Depois o copo bateu, dando uma resposta afirmativa. – Como te chamas? – perguntou o Sr. Albin num tom quase rude, acentuando a energia das palavras por um gesto de cabeça. O copo pôs-se em movimento. Correu resolutamente, em ziguezague, de ficha em ficha, embora recuando em certos intervalos um bom pedaço em direção ao centro da mesa. Aproximou-se do H, do O, do L; em seguida deu a impressão de estar cansado, de confundir-se, de não saber como continuar; mas, concentrando-se novamente, encontrou também o G, o E e o R. Justamente como se esperava! Era Holger em pessoa, o mesmo fantasma Holger que soubera aquelas coisas da pitada de sal, etc, porém não interviera em assuntos escolares. Achava-se ali, flutuava na atmosfera, pairava em torno do grupo. E agora? Que iam fazer com ele? Um certo acanhamento reinava na roda. Deliberaram em voz abafada, por assim dizer falando atrás da mão, sobre o que queriam saber do espírito. O Sr. Albin decidiu-se a perguntar qual havia sido a atividade e a profissão de Holger em vida. Fez a pergunta da mesma maneira que antes, em tom de interrogatório, severamente, com o cenho cerrado. A taça permaneceu silenciosa durante alguns instantes. A seguir, encaminhou-se cambaleando e tropeçando no P; recuou e designou o O. Que sairia disso? A tensão era forte. Cacarejando, o Dr. Ting-Fu manifestou o receio de que Holger talvez houvesse sido um policial. A Srª. Stöhr rebentou numa gargalhada histérica, sem contudo interromper o trabalho do copo, que, embora num avanço coxo e barulhento, deslizou até o E e depois, evidentemente com omissão de uma letra, terminou no A. Acabava de soletrar “poea”. Imaginem! Holger tinha sido um poeta! Sem necessidade e por puro orgulho, segundo parecia, o copo oscilou e bateu o sinal afirmativo. – Um poeta lírico? – perguntou a Kleefeld, pronunciando a palavra afetadamente, como Hans Castorp notou com indignação... Holger deu a impressão de não estar disposto a entrar em pormenores. Não respondeu. Limitou-se a repetir a resposta anterior, soletrando depressa com segurança e clareza e acrescentando o T que esquecera da outra vez. Muito bem, um poeta. O embaraço foi crescendo, um embaraço singular, relacionado com as manifestações de esferas não controladas da vida interior, mas ao qual a atualidade falaz, semi-objetiva, dessas manifestações imprimia o rumo para a realidade exterior. Desejaram saber se Holger se sentia à vontade e feliz no seu estado. De um modo sonhador, o copo percorreu a palavra “sereno”. Ah, sim, sim, “sereno”. Hum, isso não teria ocorrido a ninguém, mas uma vez que o copo a soletrara, acharam todos que a resposta era plausível e bem formulada. E havia quanto tempo se encontrava Holger nesse estado sereno? Agora vinham novamente palavras inopinadas, sonhadoras, ensimesmadas, as palavras: “Vagar apressado”. Ótimo! Também poderia ter dito “Pressa vagarosa”. Era um oráculo vindo do além, pela boca de um poeta ventríloquo. Hans Castorp, sobretudo, achou-o excelente. Um “vagar apressado” era, pois, o elemento de tempo em que vivia Holger. Claro, ele não podia senão falar por meio de oráculos para satisfazer a curiosidade dos interlocutores, já que, provavelmente, se esquecera de lidar com os conceitos e com as medidas exatas deste mundo... E agora, que mais informações queriam? A Levi confessou estar curiosa por saber qual era, ou qual havia sido outrora, o aspecto de Holger. Se ele era um jovem formoso? Que ela mesma perguntasse – ordenou o Sr. Albin que considerava uma pergunta dessas indigna da sua função. Assim indagou ela, tateando o fantasma, se Holger tinha cabelos louros. – Lindos cabelos castanhos, castanhos – diziam as curvas descritas pelo copo, que repetia propositadamente duas vezes a palavra “castanhos”. Uma satisfação animada reinava no círculo. As senhoras mostravam-se francamente apaixonadas. Atiravam beijos obliquamente em direção ao teto. O Dr. Ting-Fu observou, entre risinhos cacarejantes, que Holger lhe parecia muito faceiro. Nesse momento o copo enfureceu-se, tornou-se louco de cólera. Meteu-se a percorrer a mesa, a esmo, feito doido; virou raivosamente; caiu e rolou no regaço da Srª. Stöhr, que o olhou, lívida de susto, com os braços abertos. Cautelosamente, com muitas desculpas, reconduziram-no ao seu lugar. Censuraram o chinês. Como podia ele atrever-se a dizer uma coisa dessas? Aí estava vendo aonde levava o atrevimento! Que fariam se Holger, na sua indignação, sumisse e emudecesse por completo? Empenharam-se o mais que puderam em sossegar o copo. Perguntaram se Holger não queria, talvez, recitar um poema. Afinal de contas fora poeta, antes de adejar pelos ares num vagar apressado. Ah, como desejavam todos eles conhecer uma das suas obras! Ficariam encantados se... Vejam só, o bom copo fez que sim. Com efeito, havia algo de bonacheirice e de espírito conciliador na maneira como o fazia. E em seguida o fantasma Holger começou a poetar. Poetou copiosamente, circunstancialmente, sem interrupção, quem sabe quanto tempo, dando a impressão de que nunca mais pararia com aquilo. Era um poema de todo surpreendente o que proferiu à maneira de um ventríloquo, enquanto os componentes da roda, cheios de admiração, repetiam as palavras; era matéria mágica, sem limites como o mar que constituía o seu assunto predileto... Algas em montes extensos ao longo da augusta praia, na ampla baía da ilha com as dunas escarpadas. Oh, vede como a imensa vastidão esverdeada se confunde, morrendo, com a eternidade, onde o sol de verão, encoberto pelas largas tiras dos véus nebulosos de turvo carmesim e de luzes leitosas, retarda o seu ocaso! Não há palavras que possam expressar quando e como o reflexo argentino, movediço, da água se transformou na cintilação pura de madrepérola, toda envolta no inefável jogo de cores do brilho desmaiado, cambiante, opalino, de pedras da lua... Ai de nós, imperceptivelmente como nasceu esvai-se o silencioso encantamento. O mar adormece. Mas os suaves vestígios da despedida do sol remanescem aqui e ali. Não escurece até tardias horas da noite. Uma meia-luz espectral paira sobre o bosque de pinheiros no alto das dunas e dá uma aparência de neve à pálida areia das profundidades. Ilusão de uma floresta hibernal, em completo silêncio através do qual se ouvem os estalos dos ramos roçados pelo lerdo vôo de uma coruja! Acolhe-nos a esta hora! Tão elástico o andar, tão alta e branda a noite! E o mar lá embaixo respira lenta, profundamente; devaneando, murmura sons arrastados. Estás com saudade de revê-lo? Então aproxima-te da desbotada vertente da duna e sobe-a, afundando-te nessa substância macia que te inunda os sapatos. Rígida e íngreme, a terra coberta de arbustos desce até a praia pedregosa, e os resquícios do dia continuam fazendo o seu jogo fantasmagórico à beira da vastidão esmaecida... Estende-te na areia aqui em cima! Que frescor de morte, que maciez de seda ou de farinha! Ela te corre por entre os dedos da mão cerrada, num esguicho descorado, fininho, e forma no chão a que pertence um montículo delicado. Não reconheces aquele fio de areia? É o fluxo silencioso, estreito, através da angústia da ampulheta, o utensílio solene e frágil que adorna a cela do ermitão. Um livro aberto, uma caveira, e na estante a dupla concavidade de vidro, com sua armação delgada. E dentro dela, um pouquinho de areia tirada da eternidade a fazer o papel do tempo, de um modo secreto e sagrado que inspira pavor... Dessa forma, as improvisações líricas do fantasma Holger haviam percorrido uma seqüência de associações estranhas, desde o mar do seu país natal até um ermitão e o instrumento do seu espírito contemplativo. E ele veio a falar de muitas coisas mais, decantando o humor e o divino em palavras sonhadoras e audaciosas que causaram enorme admiração ao grupo que as soletrava. Mal tinham tempo de intercalar aplausos entusiásticos, tão rápida era a marca ziguezagueante de um assunto a outro, e que não fazia menção de terminar. Depois de uma hora ainda não se podia prever o fim dessa torrente poética que tratava inesgotavelmente das dores do parto, do primeiro beijo dos namorados, da coroa do sofrimento, da benevolência paternal e grave de Deus; sondava as atividades da criatura; perdia-se nos tempos, nas paisagens, no espaço sideral, mencionando até o zodíaco e os caldeus. Sem dúvida ter-se-ía prolongado através da noite inteira, não houvessem os seus invocadores finalmente afastado os dedos do copo. Agradeceram cordialmente a Holger e declararam que era bastante por essa vez, que a beleza de tudo aquilo ultrapassava as suas mais arrojadas expectativas. Que lástima que ninguém tivesse tomado nota do poema, cujo destino inexorável seria agora cair no esquecimento, o que infelizmente já tinha acontecido em grande parte, devido a uma certa inconsistência peculiar aos sonhos. Na próxima vez não deixariam de nomear em tempo um secretário, para ver o efeito que isso produziria transladado a escrita e recitado de um modo fluente. De momento, porém, e antes que Holger voltasse à serenidade do seu vagar apressado, seria melhor e, em todo caso, muito amável da sua parte, se respondesse ainda a uma ou outra pergunta precisa que lhe fizessem os componentes do grupo. Não sabiam ainda o que indagariam dele, mas pediam que lhes comunicasse ao menos se, em princípio e por uma especial deferência, estava disposto a responder. – Sim – foi a resposta. Mas, a essa altura, revelou-se a desorientação geral. Que deviam perguntar? Era como nas histórias da carochinha, quando a fada ou o anão permitem que se faça um pedido e a pessoa contemplada corre o risco de desperdiçar a oportunidade preciosa. Havia muita coisa no mundo e no futuro que parecia digna de se saber, e a responsabilidade de quem escolhia era grande. Como ninguém se arriscasse a tomar uma decisão, Hans Castorp, com um dedo encostado na taça, e com a face esquerda apoiada no punho, disse que gostaria de ouvir quanto tempo duraria a sua permanência aqui em cima, em vez das três semanas prefixadas para ela. Bem, visto não se encontrar outra pergunta melhor, vá lá que o fantasma, da plenitude da sua sabedoria, satisfizesse essa curiosidade qualquer! Depois de alguma hesitação, o copo começou a trepidar. Traçou uma resposta bem estranha e, segundo parecia, incoerente, que ninguém era capaz de interpretar. Soletrou a sílaba “vai” e em seguida a palavra “através”, que era ainda menos aproveitável. Feito isso, mencionou alguma coisa acerca do quarto de Hans Castorp, de maneira que a ordem lacônica na sua forma completa rezava que aquele que perguntara “fosse através do seu quarto”. Através do seu quarto? Através do número 34? Que significava isso? Enquanto estavam ali sentados, deliberando e meneando a cabeça, um murro formidável fez estremecer a porta. Todos ficaram atônitos. Era um assalto? Estava lá fora o Dr. Krokowski para levantar a sessão proibida? Olharam-se consternados. Aguardaram a entrada do médico enganado. Mas, no mesmo instante, houve outro murro estrondoso no centro da mesa, novamente aplicado com toda a força do punho, como para esclarecer que também o primeiro não tinha sido dado fora da sala, senão dentro. Fora uma brincadeira de mau gosto do Sr. Albin? Ele negou, sob palavra de honra, desnecessariamente, porque todo mundo tinha quase certeza de que ninguém da roda era culpado disso. De maneira que foi Holger? Atiraram um olhar para Elly, cuja atitude quieta todos haviam notado simultaneamente. Achava-se sentada, recostando-se no espaldar e apoiando na borda da mesa as pontas dos dedos, enquanto os pulsos pendiam para baixo. Inclinava a cabeça para um dos ombros, e alçava as sobrancelhas, ao passo que baixava as comissuras dos lábios, formando uma boca bicuda. Esboçava um levíssimo sorriso que tinha algo de fingido e ao mesmo tempo inocente. Os olhos azuis de criança miravam o vazio, sem nada perceber. Chamaram-na pelo nome, mas ela não deu nenhum sinal de vida. Nesse momento apagou-se a lampadazinha de cabeceira. Apagou-se? A Srª. Stöhr, incapaz de conter-se por mais tempo, começou a lançar gritos estridentes, pois acabava de ouvir o estalido da luz. Esta tinha sido apagada por uma mão que seria eufemístico qualificar de estranha. Fora a mão de Holger? Até então se mostrara tão brando, tão disciplinado e tão poético, mas a essa altura a sua natureza estava a ponto de degenerar em puerilidade e traquinice. Quem poderia garantir que a mão que golpeava a porta e os móveis e apagava travessamente a luz não agarraria qualquer pessoa pela garganta? No escuro, clamaram por fósforos, por uma lanterna. A Levi deu um berro, alegando que alguém a puxara pelos cabelos da frente. De tanto medo, a Srª. Stöhr não se envergonhava de invocar Deus em alta voz. – Ah, Deus nosso Senhor, salvai-nos pelo menos desta vez! – gritava e suplicava gemendo que lhes fosse concedida a graça, apesar de terem tentado o inferno. Foi o Dr. Ting-Fu quem teve a idéia razoável de acender a luz do teto, de modo que o quarto logo se achou banhado de claridade. Verificaram então que a lâmpada de cabeceira de fato não se apagara sozinha, mas que alguém dera volta à chave; bastava repetir com mãos humanas essa manobra realizada por meios ocultos, para que voltasse a luzir. Enquanto isso, Hans Castorp teve, por sua vez, uma surpresa que podia considerar uma atenção especial das forças obscuras e pueris que ali se manifestavam. Encontrou sobre os joelhos um objeto leve, a “lembrança” que em certa ocasião espantara o seu tio, quando a descobrira na cômoda do sobrinho: o diapositivo de vidro que mostrava o retrato de Clávdia Chauchat, e que ele, Hans Castorp, certamente não introduzira no quarto da Kleefeld. Guardou-o no bolso, sem mencionar o fenômeno. Os outros estavam ocupados com Ellen Brand, que continuava sentada no mesmo lugar, na posição que acabamos de descrever, com os olhos cegos e com uma expressão estranhamente afetada. O Sr. Albin soprou-lhe na cara e imitou diante dos seus olhos o gesto com que o Dr. Krokowski movera a mão de baixo para cima. Com isso, ela recobrou os sentidos e chorou um pouco, sem que ficasse claro por quê. Acariciaram-na, beijaram-lhe a fronte e mandaram-na dormir. A Levi dispôs-se a passar a noite em companhia da Srª. Stöhr, já que de tanto pavor a mulher vulgar não sabia como encontrar a cama. Hans Castorp, com o apport no bolso interno, não fez objeção nenhuma, quando foi convidado para terminar aquela noite irregular, tomando um conhaque no quarto do Sr. Albin, junto com os demais cavalheiros; pois tinha notado que incidentes desse gênero exerciam um certo efeito, não sobre o coração nem tampouco sobre o espírito, mas sobre os nervos do estômago; efeito prolongado, parecido com o do enjôo nas viagens marítimas, cujas vítimas sentem ainda em terra firme durante horas a fio as oscilações causadoras das náuseas. Por enquanto, a sua curiosidade estava satisfeita. No primeiro instante, o poema de Holger não lhe parecera mau, mas nitidamente se lhe impusera a vacuidade íntima e a insipidez, aliás prevista, de tudo isso, de maneira que resolveu contentar-se com essas poucas faíscas dos fogos do inferno que haviam esvoaçado em torno dele. O Sr. Settembrini, como era de se esperar, confirmou-o o mais possível nessa intenção, quando Hans Castorp lhe falou das suas experiências. – Era só o que faltava! – exclamou o humanista. – Que miséria! Que miséria! – E sem rodeios declarou que a pequena Elly era uma impostora das mais ladinas. A isso, o seu discípulo não disse nem sim nem não. Dando de ombros, opinou que não existia clareza inequívoca sobre o que era realidade, e, por conseguinte, não se sabia o que era impostura. Os limites talvez fossem instáveis. Podia ser que houvesse transições de uma à outra, graus de realidade, no seio da natureza muda e neutra, esquivando-se a distinções que, a seu vez, tinham manifestamente um caráter moralizante. Que pensava o Sr. Settembrini, por exemplo, da palavra “ilusão”, esse estado em que elementos do sonho e elementos da realidade formavam uma mescla que talvez fosse menos alheia à natureza do que aos nossos toscos pensamentos cotidianos? O mistério da vida era literalmente insondável, e não era de admirar que de vez em quando surgissem do abismo ilusões que... E assim por diante, no estilo amável, complacente e bastante vago que era peculiar ao nosso herói. O Sr. Settembrini ministrou-lhe a ensaboadela que merecia e realmente conseguiu fortalecer-lhe a consciência ao menos de momento. Obteve até uma espécie de promessa de que o seu discípulo nunca mais participaria de tamanhas perversidades. – Respeite a parte de humanidade que encerra em si, engenheiro – exortou-o. – Tenha confiança no raciocínio claro, humano, e abomine as contorções do cérebro, o atoleiro espiritual! Ilusões? Mistério da vida? Qual nada, caro mio! Quando entra em decomposição a coragem ética de optar e de fazer uma distinção entre conceitos como a impostura e a realidade, acaba-se a vida em geral, da mesma forma que o juízo, os valores e o ato civilizante. Começa então a obra atroz de um processo de putrefação, causado pelo ceticismo moral. – Acrescentou ainda que o homem era a medida de todas as coisas e tinha o direito imprescindível de se pronunciar sobre o bem e o mal, sobre a verdade e a mentira. Ai de quem se atrevesse a desviar a humanidade da fé nesse direito criador! Para ele era melhor ser afogado no mais profundo de todos os poços, com uma mó em volta do pescoço. Hans Castorp aprovou tudo isso com um gesto de cabeça. De fato começou a distanciarse, por enquanto, desse tipo de empresa. Ouviu dizer que o Dr. Krokowski, no seu subterrâneo analítico, organizava sessões com Ellen Brand, às quais era admitida uma parte seleta dos pensionistas. Mas o jovem declinou do convite com indiferença, o que naturalmente não impedia que os componentes da roda e o próprio Dr. Krokowski o mantivessem mais ou menos a par dos êxitos alcançados no curso das suas experiências. Manifestações de forças no gênero das que se haviam produzido no quarto da Kleefeld, de um modo arbitrário e brutal – murros aplicados à mesa e aos móveis, lâmpadas apagadas, e outras coisas semelhantes – eram obtidas e praticadas durante essas reuniões, sistematicamente, e com todas as garantias possíveis da sua autenticidade. Para esse fim o camarada Krokowski hipnotizava a pequena Elly conforme as regras da arte, a fim de transportá-la a um estado de sonambulismo. Evidenciara-se que um acompanhamento musical facilitava os exercícios. Por isso, a vitrola mudava de lugar naquelas ocasiões, requisitada pelo círculo mágico. Mas como o tcheco Wenzel, que então se encarregava do serviço, fosse um homem dotado de senso musical, que certamente não maltrataria nem danificaria nada, Hans Castorp podia confiar-lhe o instrumento sem grande inquietude. Para essa finalidade especial tirava do tesouro de discos um álbum com uma seleção de peças leves – danças, pequenas aberturas e outras bagatelas musicais –, que punha à disposição do grupo. Elly não fazia questão de ouvir sons mais sublimes, de maneira que esses discos lhe bastavam. Acompanhado por esse tipo de música – assim se inteirava Hans Castorp – levantara-se um lenço do chão, por iniciativa própria, ou melhor, guiado por uma “garra” escondida nas suas dobras; o cesto de papéis do doutor esvoaçara rumo ao teto; o pêndulo de um relógio de parede fora, alternadamente, detido e acionado “por ninguém”; uma sineta tinha sido “apanhada” e agitada; e outros fatos obscuros e insignificantes do mesmo calibre. O erudito diretor dessas experiências achava-se na situação feliz de saber designar tais proezas por um nome grego cheio de decoro científico. Tratava-se – segundo explanava nas suas conferências e em colóquios particulares – de fenômenos telecinéticos, de casos de levitação. O doutor classificava-os numa categoria que recebera da ciência o nome de “materializações”. Era precisamente a elas que visavam os seus esforços nas tentativas realizadas com Ellen Brand. Conforme a terminologia usada por ele, estavam à frente de complexos inconscientes, projetados biopsiquicamente para a esfera objetiva. O estado sonambúlico e a constituição mediúnica deviam ser considerados a fonte dessas projeções, que tinham de ser qualificadas de representações de sonho objetivadas, uma vez que nelas agia uma faculdade ideoplástica da natureza. Sob certas condições, o pensamento era capaz de atrair a matéria e de configurar-se nela, adquirindo uma realidade efêmera. Essa matéria emanava do corpo do médium, para adquirir, fora dele, a forma transitória de extremidades biologicamente vivas, como tentáculos ou mãos, que efetuavam justamente essas insignificâncias admiráveis, presenciadas pelos convidados no laboratório do Dr. Krokowski. Às vezes, esses membros eram visíveis e palpáveis, e suas formas podiam ser conservadas em parafina ou em gesso. Em outros casos, porém, o seu desenvolvimento não se limitava a isso. Diante dos olhos das pessoas que faziam as experiências, surgiam cabeças, semblantes de homens com feições individuais, fantasmas de corpo inteiro, e, dentro de certos limites, entabulavam relações com a roda. Era nesse ponto que a teoria do Dr. Krokowski começava a tornar-se estrábica, a olhar em duas direções ao mesmo tempo, e a assumir o mesmo caráter vacilante, ambíguo, que haviam revelado as suas expectorações acerca do “amor”, porque daí em diante já não se podia falar, de forma inequívoca, inteiramente científica, de subjetividades de médium e de seus ajudantes passivos, que eram refletidas para a esfera real; entravam em jogo, ao menos participando ou contribuindo, “eus” estranhos, vindos de fora ou do além; tratava-se – possivelmente, embora não confessadamente – de algo não-vivo, de seres que aproveitavam a oportunidade complexa e secreta do momento para voltar à matéria e para comunicar-se com quem os chamava; tratava-se, em suma, da evocação espiritista dos mortos. Eram, pois, esses os resultados que o camarada Krokowski, assistido pelos seus, trabalhava por obter. Atarracado, com um sorriso enérgico nos lábios, inspirando confiança alegre, dedicava-se a esse trabalho. Uma vez que ele pessoalmente estava familiarizado com aquele terreno suspeito, pantanoso, subumano, prestava-se muito bem para guiar através da região até os espíritos tímidos ou céticos. Graças aos dons extraordinários de Ellen Brand, que o doutor se empenhava em desenvolver e treinar, parecia sorrir-lhe pleno êxito, segundo contavam a Hans Castorp. Diversos componentes da roda já haviam sido tocados por mãos materializadas. O Promotor Paravant recebera das esferas transcendentes uma violenta bofetada, que aceitara com satisfação científica, levando a curiosidade a ponto de oferecer a outra face, não obstante a sua condição de cavalheiro, de jurista e de sócio veterano de um grêmio de estudantes, cujo código de duelo o teria obrigado a uma atitude muito diferente, se o golpe houvesse partido de mãos vivas. A. K. Ferge, o singelo sofredor que ficava alheio a todas as coisas sublimes, mantivera na mão uma das tais extremidades de fantasma e verificara pelo tato que era bemconformada e completa, antes de ela se esquivar de um modo indescritível ao seu aperto cordial nos limites prescritos pelo respeito. Escoou-se um período bastante longo – quase dois meses e meio, com duas sessões por semana – até que uma mão do outro mundo, mão de um jovem, segundo parecia, mostrou-se aos olhos de todos, irradiada pela luz rosada de uma lampadazinha de mesa, revestida de papel encarnado. Tateando, a mão passou por sobre a superfície da mesa e deixou seu rastro num pote de barro, cheio de farinha. Mas oito dias depois aconteceu que um grupo de colaboradores do Dr. Krokowski, o Sr. Albin, a Stöhr e o casal Magnus, irromperam por volta da meia-noite no compartimento de sacada de Hans Castorp, que ali cochilava no meio do frio glacial. Com todos os sinais de entusiasmo desenfreado e de arrebatamento febril, relataram em palavras precipitadas o seguinte: o Holger da Elly acabava de aparecer, sua cabeça surgira por cima do ombro da sonâmbula; ele tinha realmente “lindos cabelos castanhos, castanhos”; sorrira com uma expressão inesquecível pela brandura e pela melancolia, antes de sumir novamente. Como se harmonizava – assim ponderou Hans Castorp – essa aflição distinta com a conduta que Holger manifestava em outras ocasiões, com certas criancices sem graça e com aquela molecagem simples e pura, que constituía a bofetada nada melancólica que vibrara ao promotor? Evidentemente não se podia exigir nesse caso uma coerência lógica de caráter. Talvez se encontrassem em face de uma mentalidade semelhante à do Corcundinha da canção popular, com sua malícia patética e sua ânsia de que se reze por ele. Os admiradores de Holger não pareciam preocupados com tudo isso. O que tencionavam fazer era que Hans Castorp se determinasse a abandonar o seu isolamento. Insistiram em que ele não deixasse de assistir à próxima sessão, agora que tudo ia às mil maravilhas. Pois Elly prometera, enquanto dormia, que da próxima vez apresentaria qualquer defunto cuja presença o círculo reclamasse. Qualquer defunto? Mesmo assim, Hans Castorp persistiu na sua atitude negativa. Mas o fato de se poder chamar qualquer pessoa falecida continuou a absorvê-lo durante os três dias seguintes, a ponto de chegar ele a decisões completamente opostas. No fundo não eram necessários três dias, senão apenas alguns minutos para produzir esse resultado. A mudança de opinião realizou-se a uma hora solitária da noite, no salão de música, enquanto ele ouvia mais uma vez aquele disco ao qual a personalidade ultra-simpática de Valentim imprimira o seu cunho peculiar. Sentado na sua cadeira ouviu Hans Castorp aquela prece guerreira, a despedida de um homem de valor, cujo coração o arrastava ao campo da honra, e que cantava: “E se Deus me chamar para junto de si, velarei fiel por ti, ó Margarida!” Como acontecia sempre que tocava essa ária, sentiu-se possuído de uma veemente emoção, que dessa vez, aumentada por certas possibilidades, se condensou a ponto de transformar-se em desejo. E ele pensou: “Seja ou não pecaminoso e ocioso, em todo caso seria uma coisa maravilhosa e uma aventura muito desejável. E ele, tal como o conheci, não me guardará rancor, se estiver metido no assunto”. Lembrou-se então da maneira amável e displicente como fora pronunciada a resposta: “Pois não!”, nas trevas do gabinete de radioscopia, quando achara necessário pedir licença para certas indiscrições ópticas. Na manhã do dia seguinte avisou que tomaria parte na sessão marcada para a noite. Uma hora após o jantar reuniu-se aos outros, que se encaminhavam ao andar subterrâneo, conversando sem nervosismo, habituados como estavam ao sobrenatural. Na escada encontrou o Dr. Ting-Fu e o tcheco Wenzel, mas também os outros que se associaram no calabouço do Dr. Krokowski eram membros fundadores do grupo ou pelo menos veteranos traquejados, como, por exemplo, os senhores Ferge e Wehsal, o promotor público, as senhoras Levi e Kleefeld, para não falar das pessoas que o haviam informado da aparição da cabeça de Holger, e naturalmente da médium, Elly Brand. A garota nórdica já se achava sob a guarda do médico, quando Hans Castorp passou pela porta guarnecida de um cartão de visita. Enquanto Krokowski, trajando o avental preto de trabalho, lhe cingia paternalmente o ombro, esperava ela os convidados ao sopé dos degraus que no nível do andar subterrâneo conduziam à habitação do assistente, e cumprimentava-os um a um, tal qual o doutor. Essas saudações mostravam de ambas as partes um caráter despreocupado, alegre e cordial. Visivelmente tinham todos o firme propósito de não deixar entrar no ambiente a menor angústia solene. Conversavam entre si em voz alta, gracejavam, trocavam cotoveladas animadoras, para demonstrar das mais diversas maneiras a falta de acanhamento. Entre a barba do Dr. Krokowski apareciam constantemente os dentes amarelados, com aquela peculiar expressão máscula, tranqüilizadora, enquanto convidava os componentes da roda a “entrrar”. E essa expressão intensificou-se quando deu as boas-vindas a Hans Castorp, que se mostrava taciturno e cuja fisionomia parecia indecisa. O anfitrião saudou-o com um enérgico aceno de cabeça, apertando-lhe a mão com força quase brutal. Era como se lhe quisesse dizer: “Ânimo, meu amigo! Não há motivo para andarmos cabisbaixos. Aqui não existe nem pusilanimidade nem beatice, mas unicamente o bom humor viril, próprio da pesquisa livre de preconceitos”. Mas o jovem exortado por essa pantomima nem por isso se sentiu mais à vontade. Como já mencionamos, chegara Hans Castorp à sua decisão lembrando-se do gabinete de radioscopia; mas essa associação de idéias absolutamente não basta para definir os seus sentimentos. Pelo contrário, estes lhe evocavam antes a recordação daquele singular e inesquecível estado de alma – mescla de nervosismo, petulância, curiosidade, menosprezo e devoção – que tomara conta dele fazia muitos anos, no momento em que pela primeira vez entrara, levemente tocado, em companhia de alguns amigos, num bordel do bairro de Sankt Pauli. Como estivessem presentes o Dr. Krokowski e duas ajudantes, que eram, dessa vez a Srª. Magnus e a Srta. Levi com a tez de marfim, retiraram-se à sala vizinha, a fim de revistar a médium. Enquanto isso, Hans Castorp permaneceu com os nove outros componentes da roda no consultório do assistente, aguardando o fim dessa cerimônia cientificamente rigorosa, que se celebrava antes de todas as sessões e sempre sem resultado nenhum. A peça era-lhe familiar, desde certas horas que ali passara, às escondidas de Joachim, “charlando” com o analista. Nos fundos, à esquerda, perto da janela, havia uma escrivaninha com uma cadeira de braços e outra poltrona para o paciente; a ambos os lados da porta lateral via-se uma biblioteca de consulta; um biombo de vários painéis separava a escrivaninha e as cadeiras de uma chaise longue forrada de oleado, colocada diagonalmente no ângulo direito do gabinete, onde também se achava uma vitrine de instrumentos; num outro canto erguia-se um busto de Hipócrates, ao passo que acima da lareira a gás, na parede direita, estava pendurada uma gravura reproduzindo a Anatomia de Rembrandt. Em suma, era uma sala de consultas típica, semelhante a muitíssimas outras. Mas para a finalidade especial dessa noite haviam sido feitas algumas modificações na mobília. A mesa redonda, de acaju, que normalmente se encontrava cercada de poltronas, no centro da peça, embaixo do lustre elétrico, sobre o tapete vermelho que cobria a quase totalidade do soalho, fora deslocada para o primeiro plano, em direção ao ângulo esquerdo, junto do busto de gesso, ao passo que outra mesinha revestida de uma toalha leve, e na qual se achava um abajur de lâmpada vermelha, tinha sido colocada nas proximidades da lareira acesa, que irradiava um calor seco. Por cima dessa mesinha pendia do teto outra lâmpada escondida atrás de véus vermelhos e negros. Na mesa e a seu pé viam-se alguns objetos de vasta notoriedade: a sineta, ou melhor, duas sinetas de construção diferente, uma de badalo e a outra parecida com uma campainha; havia, além disso, um prato com farinha e um cesto de papéis. Cerca de uma dúzia de cadeiras e poltronas de diversos tipos circundavam a mesinha, formando um semicirculo, desde os pés da chaise longue quase até o centro da sala, onde se achava o lustre. Era ali, perto da última cadeira, a meio caminho da porta lateral, que o fonógrafo encontrara o seu lugar. O álbum com as peças frívolas jazia numa banqueta próxima. Tais eram os preparativos feitos. Ainda não haviam acendido as lâmpadas vermelhas. O candelabro central difundia uma luz branca e clara. A janela, para a qual a escrivaninha dirigia um dos lados curtos, estava oculta atrás de duas cortinas, uma escura e outra rendilhada, de cor creme. Ao cabo de dez minutos, o doutor voltou do gabinete vizinho, acompanhado das três senhoras. O aspecto da pequena Elly mudara consideravelmente. Em lugar do vestido usava uma espécie de traje de sessão, algo semelhante a um chambre de crepe branco, com um cordão em torno da cintura, e que deixava desnudos os braços delgados. Os seios de moça desenhavam-se macios e soltos sob a fazenda, dando a impressão de que pouca roupa havia por baixo dessa vestimenta. Cumprimentaram-na vivamente. – Olá, Elly! Está encantadora, outra vez! Uma verdadeira fada! Faça força, meu anjinho! – Ela sorriu tanto das aclamações como da fantasia, que, como não ignorava, lhe ficava muito bem. – Inspeção prévia negativa – anunciou o Dr. Krokowski. – Pois então, mãos à obra, camaradas! – acrescentou, com seus peculiares rr palatais, exóticos, produzidos por um simples golpe de língua. Hans Castorp, mal impressionado por esse tratamento, estava a ponto de escolher um lugar, tal como faziam os demais, entre gritos, conversas e palmadinhas no ombro. Mas, nesse instante, o médico dirigiu-se a ele pessoalmente. – Meu amigo – disse –, uma vez que o senhor se encontra hoje no nosso meio como visitante, ou, em certo sentido, como novato, gostaria de outorgar-lhe por esta noite um direito especialmente honroso. Confio-lhe o encargo de controlar a nossa médium. Praticamos esse controle da seguinte maneira. – E rogou ao jovem que se aproximasse de uma das extremidades do semicírculo. Era aquela que ficava próxima do biombo e da chaise longue. Ellen Brand instalarase ali numa simples cadeira de vime, voltando o rosto mais para a porta da entrada com os degraus do que para o centro do aposento. O doutor sentou-se em outra cadeira igual, logo à sua frente, e apanhou-lhe as mãos, enquanto apertava os joelhos da garota entre os seus. – Imite isto! – ordenou, cedendo o lugar a Hans Castorp. – O senhor deve admitir que ela está totalmente presa. Mas o senhor terá ainda uma assistente. Tenha a bondade, minha prezada Srta. Kleefeld! – A moça, mobilizada por essas palavras urbanas e exóticas, juntou-se ao grupo, para agarrar com ambas as mãos os pulsos frágeis de Elly. Hans Castorp não pôde abster-se por completo de contemplar o rosto, tão próximo do seu, da donzela prodígio que mantinha estreitamente aprisionada. Encontraram-se os olhos, mas os de Elly, fugindo, abaixaram-se em sinal de um pudor bem compreensível em vista daquela situação. Ao mesmo tempo esboçou ela um sorriso um tanto afetado, com a cabeça obliquamente inclinada e com a boca levemente bicuda, como fizera durante a sessão da taça. No jovem encarregado de vigiá-la, isso evocou, aliás, uma outra recordação mais remota: fora mais ou menos assim que sorrira Karen Karstedt, quando, em companhia dele e de Joachim, se achara diante do jazigo ainda intacto no cemitério da “aldeia”... Os componentes do semicírculo acabavam de sentar-se. Compunha-se ele de treze pessoas, sem incluir o Sr. Wenzel, que tinha o hábito de consagrar a sua pessoa ao serviço da Polyhymnia. Depois de ligar o aparelho, o tcheco ocupou um tamborete nas proximidades, às costas do auditório, que ficava com os rostos voltados para o centro da sala. Tinha também consigo o violão. Sob o lustre central, na outra extremidade da fileira curva, o Dr. Krokowski tomou assento, depois de ter aceso, com uma só manobra, as duas lâmpadas vermelhas, e de ter apagado, com outra, a luz do teto. Uma escuridão suavemente avermelhada envolvia o aposento, cujas zonas e recantos mais afastados se esquivavam ao olhar. Somente a superfície da mesinha e o que lhe ficava em torno estavam iluminados por uma débil luz rubra. Durante os minutos que se seguiram, mal se enxergava o vizinho mais próximo. Apenas lentamente os olhos acomodaram-se às trevas e aprenderam a aproveitar a pouca luz que lhes era concedida, e que as pequenas labaredas, dançando na lareira, intensificavam até certo ponto. O Dr. Krokowski dedicou algumas palavras à iluminação, cuja insuficiência do ponto de vista científico procurou desculpar. Estaria redondamente enganado quem a interpretasse como destinada a criar uma atmosfera sugestiva, propícia a mistificações. Apesar da melhor boa vontade não se podia, infelizmente, trabalhar com uma luz mais forte. A natureza das forças em apreço, que lhes cabia estudar, era inerente a incapacidade de se desenvolver e de produzir efeitos com luz branca. Esse era um fato fundamental com que deviam conformar-se... Hans Castorp, por sua vez, estava muito satisfeito com isso. A escuridão lhe fazia bem. Atenuava a singularidade da situação. Para justificar a escuridão, o jovem chamou, além disso, à memória aquelas outras trevas do gabinete de radioscopia, que faziam a gente concentrar-se piedosamente, e nas quais eram banhados os “olhos ordinários”, antes de se “ver”. A médium, prosseguia o assistente na sua introdução, que evidentemente se dirigia a Hans Castorp em particular, já não tinha necessidade de ser adormecida por ele, o médico. Como o controlador logo teria oportunidade de verificar, Elly caía espontaneamente no estado de transe, e feito isso, o guardião fantasma, o famoso Holger, falava por intermédio da sua boca. Era a ele, e não a ela, que se deviam expressar os respectivos desejos. Por outra parte, seria um erro, que até poderia causar o malogro da tentativa, crer que fosse preciso concentrar a vontade e os pensamentos, com todas as forças, no fenômeno esperado. Pelo contrário, o mais indicado era uma atenção ligeira, distraída por meio de conversas. Recomendou a Hans Castorp que não perdesse o controle perfeito das extremidades da médium. – Formem a cadeia! – ordenou por fim o Dr. Krokowski, e assim fizeram, rindo, quando não encontravam, na escuridão, as mãos dos vizinhos. O Dr. Ting-Fu, que tinha o lugar ao lado de Hermine Kleefeld, deitou a mão direita no ombro dela, e estendeu a esquerda ao Sr. Wehsal, que era o elo seguinte da cadeia. Junto do médico achavam-se o Sr. e a Srª. Magnus, seguidos por A. K. Ferge, que, se Hans Castorp não se enganava, segurava a mão da Levi com a tez de marfim; e assim por diante... – Música! – comandou o Dr. Krokowski, e o tcheco, às costas do assistente e dos seus vizinhos, pôs o aparelho em ação e colocou a agulha no disco. – Conversem! – ordenou Krokowski novamente, enquanto ressoavam os primeiros compassos de uma abertura de Millöcker. E docilmente todos se esforçaram por entabular uma palestra, que tratava de nada, absolutamente nada; falaram ora da neve caída nesse inverno, ora do cardápio da última refeição, ora da chegada de um novo pensionista, ora enfim de partidas autorizadas ou “em falso”. Meio abafada pela música, interrompendo-se e recomeçando, a conversa mantinha-se numa animação artificial. Assim se passaram alguns minutos. O disco ainda não chegara ao fim, quando Elly sobressaltou-se violentamente. Um tremor percorreu-a toda. Gemeu. O tronco inclinou-se para a frente, de maneira que a testa tocava a de Hans Castorp. Ao mesmo tempo começaram os braços a mover-se de um modo estranho, avançando e recuando bruscamente, como se acionassem uma bomba. – Transe! – anunciou a Kleefeld com perícia. A música emudeceu. A conversa parou. Através do silêncio repentino ouvia-se a branda e arrastada voz de barítono do doutor, que perguntava: – Holger está presente? Elly estremeceu novamente. Gingou na cadeira. Então sentiu Hans Castorp como ambas as mãos da médium apertavam as suas forte e rapidamente. – Ela me aperta as mãos – comunicou aos outros. – Ele – corrigiu-o o médico. – Foi ele quem as apertou. De modo que se acha presente. Salve, Holger – continuou com fervor. – Sejas bem-vindo de todo o coração, companheiro! E permite que te recorde isto: a última vez que estiveste entre nós, prometeste que chamarias qualquer defunto, fosse qual fosse o irmão ou a irmã que te citasse alguém da nossa roda, e que o tomarias visível aos nossos olhos mortais. Estás disposto e te sentes capaz de cumprir hoje esta promessa? Elly tremeu outra vez. Suspirou. Hesitou antes de responder. Vagarosamente, levou as suas mãos e as do seu assistente até a testa, onde as manteve imóveis por alguns instantes. Depois segredou ao ouvido de Hans Castorp um “sim” ardente. O sopro dessa palavra, penetrando diretamente na sua orelha, causou ao nosso amigo aquele arrepio epidérmico que o povo chama de “pele de galinha” e cuja natureza o conselheiro lhe explicara certa vez. Falamos de um arrepio instintivo, para distinguir o fenômeno puramente corporal do psíquico, uma vez que aquilo nada tinha que ver com um verdadeiro horror. O que o jovem pensou nesse momento foi mais ou menos o seguinte: “Ora vejam, ela promete mundos e fundos!” Mas ao mesmo tempo sentiu-se comovido e consternado; sim, invadiu-o um sentimento confuso que tinha a sua origem na circunstância enganadora de que essa moça tão nova, cujas mãos segurava, lhe sussurrara ao ouvido a palavra “sim”. – Ele disse “sim” – informou Hans Castorp, embaraçado. – Muito bem, Holger! – disse o Dr. Krokowski. – Nós te pegaremos na palavra. Temos confiança em que farás lealmente tudo quanto estiver em teu poder. Logo saberás o nome do ente querido cujo comparecimento desejamos... Camaradas – continuou, dirigindo-se ao grupo –, digam de uma vez! Quem é que tem um desejo? Qual é a criatura que nosso amigo Holger deve fazer aparecer? Seguiu-se profundo silêncio. Todos esperavam que o vizinho se manifestasse. Verdade é que cada qual, individualmente, escrutara nesses últimos dias o seu íntimo, para saber em que direção e para que pessoa rumavam os seus pensamentos. Mas a volta de defuntos, isto é, a desejabilidade de tal volta nunca deixa de ser coisa problemática e delicada. Em última análise, e falando com franqueza, essa desejabilidade não existe; é uma ilusão; à luz do dia, é tão impossível como a própria coisa, o que se tornaria evidente se a natureza, num caso particular, abolisse esta impossibilidade. O que chamamos “luto” talvez não seja a dor que nos inflige a impossibilidade de ver os nossos mortos voltarem à vida, senão a outra, que experimentamos diante do fato de sermos incapazes de desejar tal coisa. Todos tinham, vagamente, essa sensação. Embora dessa vez não se tratasse de uma volta séria e verdadeira à vida, mas apenas de um arranjo puramente sentimental e teatral, cuja única finalidade era ver o finado; embora, por conseguinte, o ato fosse inofensivo do ponto de vista da vida, apavoravam-se diante da idéia de encarar o ente em que pensavam, de maneira que cada um preferia abandonar ao vizinho o privilégio de expressar um desejo. Também Hans Castorp não se adiantou, ainda que ouvisse através das trevas aquele “Pois não” bondoso e complacente. No último instante, estava disposto a deixar a primazia a outrem. Mas, como aquilo se prolongasse por muito tempo, voltou a cabeça para o presidente da sessão e disse com voz velada: – Eu queria ver meu falecido primo Joachim Ziemssen. Foi um alívio para todos. Dos componentes do grupo, somente o Dr. Ting-Fu, o tcheco Wenzel e a própria médium não tinham conhecido pessoalmente o defunto citado. Os demais – Ferge, Wehsal, o Sr. Albin, o promotor, o casal Magnus, a Stöhr, a Levi e a Kleefeld – demonstraram ruidosa e alegremente a sua aprovação. Até mesmo o Dr. Krokowski fez um gesto de satisfação, se bem que as suas relações com Joachim sempre houvessem sido um tanto frias, pois este se mostrara recalcitrante em matéria de análise. – Ótimo – disse o doutor. – Ouviste, Holger? Em vida, não conhecias a pessoa que te foi designada. Será que a reconheces no além e estás disposto a guiá-la até nós? A tensão foi grande. A adormecida gingava, dava suspiros, estremecia. Parecia procurar e lutar, enquanto se deixava cair ora para um ora para outro lado, murmurando palavras incompreensíveis ao ouvido de Hans Castorp ou da Kleefeld. Finalmente recebeu Hans Castorp de ambas as mãos de Elly o aperto que significava “sim”. Comunicou o fato aos demais e... – Pois bem! – exclamou o Dr. Krokowski. – Mãos a obra, Holger!... Música! – ordenou. – Conversem! – E mais uma vez lhes recomendou que para servir à causa nada adiantava concentrar-se convulsivamente e fixar todas as idéias na visão esperada, senão prestar uma atenção vaga, desembaraçada. Seguiram-se então horas mais estranhas do que a vida curta do nosso herói continha até esse momento. Ainda que não possamos vislumbrar com absoluta clareza os seus destinos ulteriores e o percamos de vista em determinado ponto da nossa história, sentimo-nos inclinados a crer que foram as mais estranhas que chegou a viver. Havemos por bem avisar os nossos leitores previamente de que se trata de horas inteiras, mais de duas, inclusive uma pequena interrupção do “trabalho” que agora começava; esse trabalho de Holger ou, na realidade, da donzela Elly, que se prolongava terrivelmente, de maneira que todos já estavam prestes a desesperar de um resultado positivo. Acrescia a isso que, por pura misericórdia, muitas vezes se sentiam tentados a resignar-se e a abreviar o trabalho, que de fato parecia imensamente difícil e dava a impressão de ultrapassar as forças débeis da moça a quem fora solicitado. Nós, os homens, a não ser que nos esquivemos às coisas humanas, conhecemos, de uma determinada situação da vida, aquela compaixão intolerável, mas ridícula, porque ninguém a aceita, e provavelmetne inoportuna; conhecemos aquele grito indignado: “Basta!” que tende a se desprender do nosso peito, posto que “aquilo” não possa, nem deva “bastar” e que seja preciso terminá-lo desta ou daquela forma. Já devem ter compreendido que nos referimos à nossa função de esposo e de pai, bem como ao processo do parto, ao qual a luta de Elly se assemelhava tão inequívoca e inconfundivelmente, que mesmo aqueles que ainda não o conheciam tinham de reconhecê-lo. Tal era o caso do jovem Hans Castorp, visto também ele não se ter esquivado à vida. Foi, pois, sob essas condições que travou conhecimento com aquele ato cheio de misticismo orgânico. Sob que condições? E com que finalidade? Era impossível qualificar com outro adjetivo que não escandalosos os pormenores e as particularidades dessa animada sala de partos, banhada em luz vermelha. Isso se aplicava tanto à pessoa virginal da parturiente, com o roupão flutuante e os bracinhos desnudos, como ao resto do ambiente, a saber, a incessante e leviana música que partia da vitrola, as conversas artificiais que o semicírculo mantinha para cumprir a ordem recebida, as aclamações joviais e estimulantes que os componentes da roda dirigiam sem cessar à garota que ali se contorcia: “Vamos, Holger! Coragem! Já vai melhor! Continua assim! Mais um pouco e vencerás!” E absolutamente não excetuamos a figura e a posição do “marido” – desde que podemos considerar Hans Castorp como tal, por ter ele manifestado o desejo –, o marido que comprimia os joelhos da “mãe” com os seus e lhe segurava as mãos; essas mãozinhas que estavam tão úmidas como haviam sido as da pequena Leila, de maneira que era preciso apertá-las sempre, para evitar que lhe escapassem. Pois a lareira a gás, às costas das pessoas sentadas nas suas proximidades, irradiava forte calor. Misticismo e solenidade? Nada disso! Era barulhento e banal aquilo que se passava nas trevas vermelhas, às quais os olhos, pouco a pouco, haviam-se habituado a ponto de dominarem a maior parte do aposento. A música e os gritos recordavam os. métodos que emprega o Exército de Salvação, com o fim de galvanizar o auditório; recordação essa que se impunha até a quem, como Hans Castorp, jamais assistira a um serviço divino desses fanáticos jubilosos. Não era num sentido fantasmagórico que essa cena parecia mística, misteriosa, capaz de inspirar pensamentos piedosos a pessoas sensíveis, senão unicamente num sentido natural, orgânico, e já mencionamos o parentesco próximo e íntimo que era a fonte dessa associação de idéias. Os esforços de Elly produziam-se à maneira de dores do parto, depois de intervalos de repouso, durante os quais ela pendia frouxamente para o lado da cadeira, num estado inacessível que o Dr. Krokowski definiu como “transe profundo”. Em seguida tornava a sobressaltar-se; revolvia-se; lutava com os vigilantes; sussurrava-lhes nos ouvidos palavras ardentes, sem nexo; fazia bruscos movimentos laterais como se quisesse expulsar alguma coisa do seu próprio corpo; rangia os dentes; em certa ocasião até mordeu a manga de Hans Castorp. Isso durou uma hora ou talvez mais. Por fim, o presidente da sessão julgou indicado intercalar uma pausa. O tcheco Wenzel, que, para variar um pouco, terminara poupando o aparelho e tocando o violão com grande habilidade, pôs o instrumento de lado. Com um suspiro de alívio, soltaram-se as mãos. O Dr. Krokowski encaminhou-se à parede, para acender a luz do teto. A claridade branca se fez tão deslumbrante que todos piscavam estonteados os olhos acostumados à noite. Elly dormia, muito inclinada para a frente, com o rosto quase tocando as coxas. Via-se como se entregava a uma atividade estranha que parecia familiar aos outros, mas que Hans Castorp contemplou com atenção e surpresa: durante alguns minutos passou ela a mão cava, de cá para lá, pela zona dos quadris, estendendo-a e recolhendo-a num gesto de quem, ao trabalhar com uma concha ou um ancinho, procurasse juntar e puxar para si alguma coisa. Por fim estremeceu várias vezes e acordou. Piscando estonteada, também ela, com os olhos sonolentos, esboçou um sorriso. Foi um sorriso gracioso, um tanto alheado. A compaixão que haviam sentido ao vê-la penar parecia realmente desperdiçada. A moça não dava a impressão de estar particularmente exausta. Talvez nem sequer se lembrasse dos seus trabalhos. Estava sentada na poltrona dos enfermos, perto da janela, entre a escrivaninha e o biombo que escondia a chaise longue. Dera meiavolta à cadeira, de modo que pudesse apoiar o braço na superfície da escrivaninha e olhar para dentro da sala. Deixava-se estar assim, alvo de olhares comovidos, recebendo de vez em quando um aceno alentador, e guardando silêncio durante todo esse intervalo que se prolongou por quinze minutos. Tratava-se de um verdadeiro recreio que dava oportunidade para descansar e para contemplar, com suave satisfação, a obra já realizada. Abriram-se as cigarreiras dos homens. Fumavam com prazer. Aqui e ali se formavam grupos que discutiam o caráter da sessão. Estavam longe de desanimar ou de encarar o fracasso definitivo. Existiam sintomas próprios para deter tal ceticismo. Todos aqueles que ocupavam os lugares na extremidade oposta do semicírculo, vizinho ao do médico, afirmavam unanimemente que haviam sentido, diversas vezes e com absoluta nitidez, aquela aura fria que costumava partir da médium e avançar numa determinada direção, cada vez que se preparavam aparições. Outros pretendiam ter notado fenômenos luminosos, manchas brancas, aglomerações movediças de energias que acabavam de se manifestar nas proximidades do biombo. Numa palavra: nada de relaxamento! Nada de pusilanimidade! Holger empenhara a sua palavra, e não tinham direito de duvidar de que a cumpriria. O Dr. Krokowski deu o sinal para recomeçar a sessão. Enquanto todos voltavam aos lugares, reconduziu a médium pessoalmente até a cadeira dos seus tormentos, acariciando-lhe os cabelos. Tudo se passou como antes. Hans Castorp pediu que o substituíssem no cargo de primeiro vigilante, mas o presidente se opôs. Disse que fazia questão de oferecer à pessoa que expressara o desejo o contato físico com a médium, a fim de garantir-lhe que praticamente não havia possibilidade de manipulações fraudulentas por parte desta. Foi assim que Hans Castorp voltou a ocupar a sua estranha posição à frente de Elly. A luz transformou-se nas trevas vermelhas. Recomeçou a música. Novamente se produziram depois de poucos minutos os bruscos tremores de Elly e o movimento de dar impulso a uma bomba. Dessa vez foi Hans Castorp quem anunciou o transe. O parto escandaloso continuaria. Como era terrivelmente penoso! Parecia não querer realizar-se – como seria possível? Que loucura! De onde viria a maternidade nesse caso? Dar à luz? Como e o quê? “Acudam! Acudam!”, gemia a garota, enquanto as dores ameaçavam converter-se naquele estado desfavorável e perigoso de espasmo constante, ao qual os peritos da obstetrícia deram o nome de “eclampsia”. Em dado momento chamou o doutor, pedindo que lhe impusesse as mãos. O assistente assim o fez, encorajando-a energicamente. O efeito magnético, se é que se tratava de tal, fortaleceu-a para novas lutas. Desta forma transcorreu a segunda hora, durante a qual se alternavam os arpejos do violão e as peças fúteis da vitrola, ressoando pelo recinto, a cuja semi-escuridão os olhos acabavam de se reacostumar. Então ocorreu um incidente. Foi Hans Castorp quem o provocou, ao dar uma sugestão ou ao pronunciar um desejo, uma idéia, que fomentara havia muito, ou melhor, desde o início da sessão, e que talvez devesse ter manifestado antes. A essa altura, Elly se achava num transe profundo, apoiando o rosto nas mãos agarradas, e o Sr. Wenzel estava a ponto de mudar ou de virar o disco. Nesse instante, o nosso amigo pôs-se a falar resolutamente, dizendo que queria fazer uma proposta – nada de importância, aliás, mas cuja realização poderia ser útil. – Eu disponho... isto é, a discoteca da casa dispõe de uma peça do Fausto de Gounod, a “Oração” de Valentim, uma ária muito bonita, para voz de barítono com acompanhamento de orquestra. Seria conveniente experimentar esse disco. – E por quê? – perguntou o médico através das trevas vermelhas. – Por motivos sentimentais. Questão de atmosfera – respondeu o jovem, explicando que o espírito da referida peça era estranho e muito particular. Valeria a pena fazer uma tentativa. A seu ver não era impossível que esse espírito ou caráter da ária abreviasse o processo em que se achavam empenhados. – O disco está aqui? – indagou o doutor. Não, não estava. Mas Hans Castorp poderia ir buscá-lo. – Isso não! – Krokowski rejeitou peremptoriamente essa idéia. Mas como? Será que Hans Castorp tencionava ir e vir sem mais aquela, procurar um objeto e reencetar depois o trabalho interrompido? Nisso se demonstrava a sua inexperiência. Não, aquilo era impraticável. Tudo ficaria anulado, e seria preciso voltar ao ponto de partida. Também a exatidão científica vedava essas idas e vindas arbitrárias. Ele, o doutor, estava com a chave no bolso. Numa palavra, se o disco não se achasse disponível, melhor seria... Ainda prosseguia falando, quando o aparteou o tcheco, do seu lugar ao pé do fonógrafo: – O disco está aqui. – Aqui? – perguntou Hans Castorp... Sim, aqui mesmo. Fausto, “Oração” de Valentim. Às ordens! Excepcionalmente, o disco tinha sido colocado no álbum das peças fúteis e não no álbum verde número II, o das árias, onde devia encontrar-se segundo a sua categoria. Por casualidade, por relaxamento, por uma circunstância extraordinária e, em todo caso, feliz, fora misturado com as bagatelas, de maneira que tudo o que se precisava fazer era pô-lo no aparelho. Que havia Hans Castorp de dizer a isso? Não disse nada. O médico observou: “Tanto melhor!”, e algumas pessoas repetiram essas palavras. A agulha pôs-se a chiar. A tampa foi abaixada. E uma voz máscula começou a cantar, entre os acordes de um hino sacro: “Antes de deixar este lugar...” Ninguém falava. Todos escutavam. Com as primeiras notas cantadas, Elly reiniciara o seu trabalho. Sobressaltou-se; lançou gemidos; executou o movimento de dar impulso a uma bomba, e tornou a levar à testa as mãos úmidas, escorregadias. O disco continuava a girar. Veio a estrofe intermediária, com a modificação do ritmo, o trecho que tratava, de modo intrépido, pio, francês, de combates e perigos. Terminado este, seguiu-se o fim, a repetição orquestralmente reforçada do começo. Com sons poderosos ressoava a frase: “Ó Senhor Deus, ouve minhas preces...” Hans Castorp estava ocupado com Elly. A moça corcoveava, lutava por aspirar pela garganta angustiada. A seguir entrou em colapso, com um suspiro, e daí por diante permaneceu imóvel. Hans Castorp, desassossegado, estava se curvando por cima dela, quando ouviu a voz chorosa, pipilante, da Srª. Stöhr, que disse: – Ziem...ssen! O jovem não se aprumou. Sentiu na boca um sabor amargo. Ouviu uma outra voz profunda e fria, que replicava: – Já faz tempo que o vejo. O disco chegara a seu fim. Perdera-se no ar o derradeiro acorde dos sopros. Mas ninguém fez o aparelho parar. Chiando em vão através do silêncio, a agulha prosseguia a percorrer a parte central do disco. Então Hans Castorp levantou a cabeça, e seus olhos, sem necessidade de procurar, tomaram a direção certa. Havia no aposento uma pessoa mais. Ali, a alguma distância do grupo, nos fundos do gabinete, no ponto em que os restos da luz vermelha quase se confundiam com a escuridão, de modo que a vista mal avançava até ele, ali entre o lado comprido da escrivaninha e o biombo, na poltrona dos pacientes do médico, que Elly ocupara durante o intervalo, estava sentado Joachim. Era Joachim, com as sombras das faces encovadas e com a barba de guerreiro dos seus últimos dias, essa barba no meio da qual ressaltavam, cheios e altivos, os lábios. Recostava-se ao espaldar e tinha uma perna cruzada sobre a outra. Não obstante a coberta da cabeça que lhe obscurecia as feições, distinguia-se novamente no seu rosto o cunho do sofrimento, bem como aquela expressão grave, austera, que lhe conferira tanta beleza viril. Duas rugas sulcavam a testa entre os olhos afundados nas órbitas ossudas; mas isso não diminuía a brandura do olhar desses olhos belos, grandes, escuros, que se dirigia, numa interrogação calma, amistosa, para Hans Castorp, e só para ele. A sua pequena aflição de tempos passados – as orelhas de abano – continuava perceptível sob a coberta da cabeça, essa coberta estranha que ninguém sabia explicar. O primo Joachim não estava à paisana. Um sabre, cujo punho segurava com ambas as mãos, parecia encostado na coxa da perna cruzada. Na cintura podia-se distinguir um coldre. Mas aquilo que usava não era um verdadeiro uniforme. Nada havia nele de brilhante nem de colorido. Era uma espécie de túnica, de gola virada e com bolsos laterais. Na parte inferior do peito achava-se uma cruz. Os pés de Joachim pareciam bastante grandes e as pernas, muito finas; estavam enroladas em grevas, o que lhes dava um aspecto desportivo antes que militar. E que significava aquela coberta da cabeça? Tinha-se a impressão de que Joachim se cobrira com uma marmita de soldado, com uma panela de cozinha, que fixara sob o queixo por meio de uma correia. Mas, coisa estranha! aquilo lhe emprestava ares antigos, de lansquenete, e essa marcialidade assentavalhe bem. Hans Castorp sentiu nas mãos o hálito de Ellen Brand. A seu lado ouviu a respiração da Kleefeld, que era acelerada. Fora disso não se percebia nenhum som, a não ser o chiar incessante do disco, que ainda girava sob a agulha, e que ninguém se lembrava de parar. Não procurou com os olhos nenhum dos companheiros; não desejava vê-los nem saber deles. Obliquamente, por cima das mãos e da cabeça de Elly, que jaziam sobre os seus joelhos, seu olhar atravessava as trevas vermelhas e fixava-se no visitante que se achava na poltrona. Durante um momento, o seu estômago pareceu a ponto de revoltar-se. Contraía-se-lhe a garganta, fazendo-o soluçar quatro ou cinco vezes profunda e convulsivamente. – Perdoe-me! – murmurou de si para si. Em seguida, seus olhos transbordaram de lágrimas, de modo que não enxergava mais nada. Ouviu como murmuravam: – Dirija-lhe a palavra. – Ouviu a voz de barítono do Dr. Krokowski, em tom solene e ao mesmo tempo jovial, pronunciar-lhe o nome e repetir a solicitação. Ao invés de obedecer, Hans Castorp retirou as mãos de baixo do rosto de Elly e levantou-se. Novamente o Dr. Krokowski chamou-o pelo nome, dessa vez num tom severo de admoestação. Mas Hans Castorp já alcançara com poucos passos os degraus da porta de entrada e acendeu, numa manobra rápida, a luz branca do lustre. Ellen Brand sobressaltou-se num choque violento. Torcia-se nos braços da Kleefeld. A poltrona estava vazia. Hans Castorp aproximou-se de Krokowski que protestava, de pé. Quis falar, mas nenhuma palavra lhe saiu dos lábios. Com um gesto brusco, imperioso, da cabeça, estendeu a mão. Depois de receber a chave, acenou várias vezes ameaçadoramente na cara do médico. Deu meia-volta e abandonou o gabinete. A grande irritação À medida que se sucediam os anos, um certo quê começou a pairar sobre o Sanatório Berghof, um espírito que, como Hans Castorp vagamente sentia, era o descendente direto do demônio cujo nome maligno já citamos em outra ocasião. O jovem estudara aquele demônio com a curiosidade irresponsável de um viajeiro em busca de formação e até descobrira na sua própria alma perigosas aptidões para desempenhar um papel importante no culto abominável que todo mundo lhe devotava. Segundo a sua índole, o nosso herói não era feito para se entregar ao vício que a essa altura dos acontecimentos se pôs a grassar, ao passo que antes só existira, tal e qual aquele outro, endemicamente ou em surtos espaçados. Contudo notou Hans Castorp, com espanto, que bastava relaxar um pouquinho para que, também ele, na sua fisionomia, nas suas palavras, no seu comportamento, sucumbisse a uma infecção à qual ninguém, nesse ambiente, conseguia subtrair-se. Que se passava, afinal? Que havia no ar? Um espírito rixento. Uma irritação aguda. Uma impaciência indizível. Uma tendência geral para discussões venenosas, para acessos de raiva e mesmo para lutas corporais. Querelas ferozes, gritarias desenfreadas de parte a parte surgiam todos os dias entre indivíduos ou grupos inteiros, e o característico era que aqueles que não tomavam parte nos conflitos, ao invés de sentir-se desgostosos diante da conduta dos respectivos adversários ou de servir de pacificadores, simpatizavam com a explosão de sentimentos e intimamente se abandonavam à mesma vertigem. Ficavam pálidos ou estremeciam ao ver uma cena dessas. Os olhos brilhavam agressivamente. As bocas crispavam-se de tanta paixão. Invejava-se aos protagonistas do momento o direito, a oportunidade de berrar. O premente desejo de imitá-los atormentava as almas e os corpos, e quem não tinha a força necessária para refugiar-se na solidão era irresistivelmente arrastado pelo torvelinho. As brigas por motivos fúteis, as recriminações mútuas em presença das autoridades empenhadas em reconciliar os digladiantes, mas que sucumbiam elas próprias, com espantosa facilidade, vítimas da tendência geral para a gritaria grosseira – tudo isso se tornara freqüente no Sanatório Berghof. Os que saíam de casa mais ou menos tranqüilos eram incapazes de prever em que estado voltariam. Uma pensionista que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, moça muito elegante da cidade provinciana de Minsk, ainda jovem e apenas levemente enferma – só três meses lhe haviam sido impostos –, desceu certo dia à vila para comprar alguma coisa na loja francesa de blusas. Ali teve um atrito tão violento com a modista que, ao regressar possuída da mais viva excitação, teve uma forte hemoptise e, tendo chegado a esse ponto, era agora incurável. Mandaram vir o marido e informaram-no de que ela estava condenada a permanecer para sempre ali em cima. Este é um exemplo do estado de espírito que se alastrava. Muito a contragosto citaremos outros casos. Um ou outro leitor talvez se lembre ainda de certo colegial, ou ex-colegial, que usava óculos de aros redondos e comia à mesa da Srª. Salomon, aquele rapaz macilento que tinha o hábito de cortar toda a comida em pedaços, a ponto de obter uma espécie de picadinho, que então engolia vorazmente, com os cotovelos apoiados na mesa, interrompendo-se apenas para passar de vez em quando o lenço por trás das lentes espessas. Assim fizera durante todo o tempo, continuando a ser um colegial, ou um ex-colegial, sempre abarrotando-se de comida e enxugando os olhos, sem dar motivo para se prestar à sua pessoa uma atenção mais do que passageira. Um belo dia, porém, durante o café da manhã, teve, inopinadamente, sem mais nem menos, um ataque de cólera que causou escândalo geral e agitou o ambiente da sala de refeições. Ouviu-se um barulho que partia do lugar onde se achava o rapaz. E ali estava ele sentado, lívido, a gritar, dirigindo-se à anã que se encontrava de pé a seu lado. – É mentira sua! – gritou em voz esganiçada. – O chá está frio! O chá que me trouxe está frio como gelo. Não o quero! Prove-o você mesma antes de mentir. Então vai ver que é uma água morna e já usada, intragável para gente que se preze. Como se pode atrever a servir-me um chá gelado assim, como pode ter a ousadia de me oferecer essa porcaria morna na esperança de que eu beba?! Eu não! Não tomarei isso! – vociferou e meteu-se a esmurrar a mesa com ambos os punhos, de modo que a baixela tinia e dançava. – Eu quero é chá quente! Quero chá fervendo. Tenho direito a isso perante Deus e os homens! Não aceito isto. Faço questão que me sirvam chá quentíssimo! Antes morrer imediatamente do que tomar um só gole de... Maldita aleijada! – uivou de repente, abandonando, por assim dizer, de golpe, os últimos restos de controle e avançando com arrebatamento até os derradeiros limites da raiva. Ameaçou Emerentia com os punhos cerrados e mostrou-lhe literalmente os dentes cobertos de espuma. Prosseguiu dando murros na mesa, batendo o pé no chão e urrando aqueles “Eu quero” ou “Eu não quero”, enquanto na sala se repetia o espetáculo de sempre. Uma simpatia veemente, de alta intensidade, estava sendo dedicada ao colegial raivoso. Alguns pensionistas acabavam de se levantar de um pulo. Enquanto contemplavam o rapaz, também eles tinham os punhos cerrados, os dentes rilhando e os olhos chamejantes. Outros permaneciam sentados, pálidos, com os olhos baixos, sacudidos de tremor. E esse estado persistia ainda, quando o colegial, completamente exausto, havia muito se achava diante de uma xícara de chá novo, sem tocar nela. Que era isso? Um homem entrou na comunidade do Berghof, um trintão, antigo comerciante, febril desde muito tempo e que passava os anos indo de sanatório em sanatório. Era inimigo dos judeus, anti-semita por princípio e por esporte; era-o com um fanatismo soberbo, e essa atitude negativa constituía todo o seu orgulho e o conteúdo da sua vida. Tinha sido comerciante; já não o era, não era nada no mundo a não ser inimigo dos judeus. Estava gravemente enfermo; sofria de penosos ataques de tosse; às vezes dava a impressão de espirrar pelos pulmões, um só espirro agudo, breve, sinistro. Mas não era judeu, e precisamente isso é que nele havia de positivo. Chamava-se Wiedemann, tinha um nome cristão e não um nome impuro. Era assinante de uma revista intitulada A Tocha Ariana, e dizia coisas como as seguintes: – Hospedei-me no Sanatório X., em B... Estou a ponto de me instalar no alpendre de repouso. Quem é que vejo na espreguiçadeira à minha esquerda? O Sr. Hirsch! E quem está deitado à direita? O Sr. Wolf! Claro que parti imediatamente... – E assim por diante. “Logo você!”, pensou Hans Castorp, cheio de aversão, ao ouvir isso. Wiedemann tinha um característico olhar rápido e insidioso. Literalmente, era como se andasse com uma borla suspensa diante do nariz, em que cravasse os olhos com malícia, sem nada enxergar atrás dela. A idéia fixa, absurda, que o acossava, convertera-se numa desconfiança pruriente, numa constante mania de perseguição, que o impelia a catar qualquer impureza oculta ou disfarçada que porventura existisse a seu redor, e a expô-la ao desprezo público. Fosse onde fosse, remoqueava, suspeitava, detratava. Em suma, o que lhe absorvia os dias era a tarefa de levar ao pelourinho todas as criaturas vivas que não tivessem aquela qualidade única que ele possuía. As circunstâncias internas que estamos empenhados em descrever agravaram extraordinariamente a birra desse homem, e como fosse inevitável que topasse também aqui em cima com criaturas que padecessem do defeito de que ele, Wiedemann, estava livre, essas circunstâncias contribuíram para provocar uma cena lamentável que Hans Castorp não pôde deixar de presenciar, e que nos oferece mais um exemplo daquilo que estamos explanando. É que existia por ali um outro homem. Não havia nada que desmascarar nele. O caso era claro. O homem chama-se Sonnenschein, e como não se pudesse imaginar nome mais imundo, a pessoa de Sonnenschein formava, desde o primeiro dia, a borla suspensa diante do nariz de Wiedemann, e que este olhava de esguelha, com olhares rápidos e maliciosos; a borla em que batia com a mão, menos para afastá-la do que para fazê-la balouçar a fim de se irritar ainda mais com ela. Sonnenschein tinha sido comerciante, tal qual o outro. Também ele estava gravemente enfermo e distinguia-se por uma suscetibilidade doentia. Era homem amável, nada estúpido, de índole bem-humorada. Mas odiava Wiedemann, devido àquelas indiretas e batidas na borla; odiava-o cegamente. E certa tarde, todo mundo acudiu correndo ao vestíbulo onde Wiedemann e Sonnenschein se engalfinhavam de modo desregrado e bestial. Era um espetáculo medonho, deplorável. Os dois atracavam-se como meninos, mas com o desespero de homens adultos que chegaram até esse ponto. Arranhavam-se a cara; agarravamse pela garganta e pelo nariz, enquanto se golpeavam mutuamente; cingiam-se com os braços; revolviam-se pelo chão, com uma seriedade pavorosa, radical; cuspiam, davam pontapés, puxões e socos, espumando de raiva. O pessoal da “administração”, que acorreu às pressas, teve muito trabalho em separar os contendores enlaçados e ferrenhos. Wiedemann, babando e deitando sangue, com o rosto atoleimado de tanta cólera, apresentava o fenômeno dos cabelos eriçados. Hans Castorp nunca vira tal coisa e pensava que aquilo não acontecesse em realidade. O Sr. Wiedemann, cujos cabelos conservavam-se eriçados, abandonou o recinto precipitadamente, enquanto o Sr. Sonnenschein, com um dos olhos desaparecido sob uma mancha azul, e com uma lacuna sangrenta na coroa de cabelos pretos que lhe rodeava a calva, era conduzido ao escritório, onde se sentou e chorou amargamente com o rosto enterrado entre as mãos. Foi o que se deu entre Wiedemann e Sonnenschein. Todos os que haviam assistido a essa cena continuaram trêmulos durante horas a fio. Em confronto com tal miséria, é relativamente agradável falar de um autêntico ajuste de honra, que se desenrolou nesse mesmo período e merece essa qualificação até as raias do ridículo, por causa da solenidade formal com que foi tratado. Hans Castorp não presenciou as diferentes fases do caso, mas informou-se sobre seu curso complicado e dramático por meio de documentos, declarações e termos referentes à questão, cujas cópias eram difundidas no Sanatório Berghof e fora dele, não só em Davos, no cantão e no país, mas também no estrangeiro, inclusive na América, e remetidas mesmo a pessoas a quem certamente essa história não despertaria o menor interesse. Era um assunto polaco, uma querela de honra, originada num grupo de poloneses que recentemente se reunira no Berghof. Era uma verdadeira coloniazinha que ocupava a mesa dos “russos distintos”. (Hans Castorp – seja dito de passagem – já não tinha o seu lugar, ali, mas passara, no decorrer do tempo, pelas mesas da Kleefeld e da Salomon, indo parar na da Srta. Levi.) Aquela roda era de tal modo elegante, cavalheiresca e polida, que o observador só podia arregalar os olhos e preparar-se intimamente para toda sorte de incidentes. Havia lá um casal, bem como uma senhorita que mantinha relações amigáveis com um dos cavalheiros. O resto do grupo era formado exclusivamente por cavalheiros. Chamavam-se Von Zutawski, Cieszynski, Von Rosinski, Michael Lodygowski, Leo von Asarapetian, etc. Ora, aconteceu que no restaurante Berghof um certo Japoll, ao beber champanha em companhia de dois outros cavalheiros, fizera com respeito à esposa do Sr. von Zutawski e à Srta. Krylow, amiga íntima do Sr. Lodygowski, considerações que não é possível repetir. Disso resultaram as providências, os atos e as formalidades que constituíam o conteúdo das atas distribuídas e remetidas a todo mundo. Hans Castorp lia o seguinte: “Declaração traduzida do original polonês: A 27 de março de 19..., o Sr. Stanislav von Zutawski dirigiu-se aos senhores Dr. Antoni Cieszynski e Stefan von Rosinski, solicitando-lhes que fossem em seu nome ter com o Sr. Kasimir Japoll, para pedir-lhe, em conformidade com o código de honra, satisfação pela grave ofensa e difamação que o Sr. Kasimir Japoll infligiu à Srª. Jadwiga von Zutawski, sua esposa, por ocasião de uma conversa com os senhores Janusz Teofil Lenart e Leo von Asarapetian. “Quando o Sr. von Zutawski há poucos dias teve por via indireta conhecimento da referida conversa, ocorrida em fins de novembro do ano passado, fez imediatamente o necessário para obter a mais absoluta certeza quanto aos fatos e ao caráter da ofensa perpetrada. No dia de ontem, a 27 de março de 19..., a difamação e a ofensa foram confirmadas pela boca do Sr. Leo von Asarapetian, testemunha auricular da conversa no decorrer da qual foram pronunciadas as palavras e insinuações ofensivas. Em virtude disso, o Sr. von Zutawski viu-se induzido a dirigirse, sem perda de tempo, aos abaixo-assinados, a fim de confiar-lhes o mandato para instaurar um processo contra o Sr. Kasimir Japoll perante um tribunal de honra. “Os abaixo-assinados fazem a seguinte declaração: “1.° – Baseando-se no termo lavrado à instância de uma das partes no dia 9 de abril de 19..., redigido em Lemberg pelos Srs. Zdzistaw Zygulski e Tadeusz Kadyi, na demanda do Sr. Ladislaw Goduleczni contra o Sr. Kasimir Japoll, atendo-se, outrossim, à declaração do Tribunal de Honra, pronunciada a 18 de junho de 19..., em Lemberg, no mesmo caso, verificam que ambos esses documentos acham-se em completo acordo quanto ao fato de que o Sr. Kasimir Japoll, em virtude das suas reiteradas faltas às exigências da honra, não pode ser considerado cavalheiro. “2.° – Os abaixo-assinados tiram as últimas conseqüências do acima relatado, deduzindo ser absolutamente impossível julgar o Sr. Kasimir Japoll capaz de dar uma satisfação de qualquer espécie. “3.° – No que se refere às suas próprias pessoas, os abaixo-assinados são de parecer que é inadmissível instaurar perante um tribunal de honra um processo contra um homem que se colocou fora do terreno da honra, e intervir num assunto dessa espécie. “Em face dessa situação, os abaixo-assinados chamam a atenção do Sr. Stanislaw von Zutawski para o fato de ser inútil defender os seus direitos contra o Sr. Kasimir Japoll mediante um processo de honra e aconselham-no a recorrer à justiça criminal, a fim de evitar futuros prejuízos que lhe possam ser causados por parte de uma personalidade tão incapaz de dar a devida satisfação como o é o Sr. Kasimir Japoll. – Datado e assinado: Dr. Antoni Cieszynski, Stefan von Rosinski.” Além disso, Hans Castorp teve oportunidade de ler o seguinte: “Ata das testemunhas do incidente havido entre os senhores Stanislaw von Zutawski e Michael Lodygowski, de um lado, e os senhores Kasimir Japoll e Janusz Teofil Lenart, do outro, no bar do cassino de D., a 2 de abril de 19..., entre as 7,30 e as 7,45 da tarde. “O Sr. Stanislaw von Zutawski, depois de refletir maduramente sobre as declarações feitas pelos seus representantes, os senhores Dr. Antoni Cieszynski e Stefan von Rosinski, com referência ao caso do Sr. Kasimir Japoll, chegou à convicção de que a recomendada denúncia criminal contra o Sr. Kasimir Japoll não lhe poderia dar plena satisfação pela grave ofensa e difamação de sua esposa Jadwiga, “1.° – considerando que há justas razões para temer que o Sr. Kasimir Japoll no momento preciso deixe de comparecer perante o tribunal, e que a sua perseguição ulterior se possa tornar não somente difícil, senão até impossível, dada a sua nacionalidade austríaca, e “2.° – considerando que uma condenação judicial do Sr. Kasimir Japoll não poderia expiar a ofensa pela qual este senhor procurou aviltar caluniosamente o nome e a estirpe do Sr. Stanislaw von Zutawski e de sua esposa Jadwiga; “em vista disso, o Sr. Stanislaw von Zutawski escolheu o caminho mais breve, que, segundo a sua convicção, era também o mais radical e, devido às circunstâncias, o mais oportuno, especialmente após ter recebido, por via indireta, a informação de que o Sr. Kasimir Japoll tencionava partir desta cidade no dia seguinte. “Assim sendo, encaminhou:se a 2 de abril de 19..., entre as 7,30 e as 7,45 da tarde, ao American Bar do cassino daqui, acompanhado de sua esposa Jadwiga e dos senhores Michael Lodygowski e Ignaz von Mellin. Ali encontrou o Sr. Kasimir Japoll, que consumia bebidas alcoólicas, em companhia do Sr. Janusz Teofil Lenart e de duas moças desconhecidas, e esbofeteou-o diversas vezes. “Imediatamente depois, o Sr. Michael Lodygowski esbofeteou o Sr. Kasimir Japoll, acrescentando que isso era a punição das graves ofensas infligidas à Srta. Krylow e a ele mesmo. “A seguir, o Sr. Michael Lodygowski esbofeteou o Sr. Janusz Teofil Lenart, em desforra das inqualificáveis injúrias que este senhor assacara contra o casal Von Zutawski, depois do que, “sem perda de um instante, também o Sr. Stanislaw Zutawski esbofeteou repetidas vezes o Sr. Janusz Teofil Lenart, por ter manchado caluniosamente a honra de sua esposa e da Srta. Krylow. “Os senhores Kasimir Japoll e Janusz Teofil mantiveram-se completamente passivos durante todo esse incidente. “Datado e assinado: Michael Lodygowski, Ign. von Mellin.” O estado de espírito em que Hans Castorp se achava a essa altura dos acontecimentos não lhe permitia rir-se dessa metralha de bofetadas oficiais, como o teria feito em outros tempos. Estremeceu ao ler o relatório. O pundonor inatacável de uma das partes e a desonra vil, desprezível, da outra, que os documentos patenteavam aos olhos do leitor – tudo isso o emocionou intensamente pelo contraste pouco vivo e todavia impressionante. O mesmo ocorreu a todo mundo. Onde quer que se fosse, eram vistas pessoas que estudavam apaixonadamente e comentavam com os dentes a rilhar a querela de honra dos polacos. Uma réplica do Sr. Kasimir Japoll, difundida por meio de um folheto, esfriou algum tanto os espíritos. Dizia ele que, tempos atrás, em Lemberg, alguns almofadinhas presunçosos o haviam declarado incapaz de dar satisfação, e que Zutawski tivera perfeito conhecimento desse fato, de maneira que todas as suas medidas tomadas de inopino tinham sido pura comédia, visto ele saber de antemão que não teria necessidade de se bater em duelo. Por outro lado renunciara Zutawski a fazer queixa contra ele, Japoll, unicamente porque sua esposa Jadwiga, como ninguém ignorava, nem sequer o próprio Zutawski, o presenteara com uma verdadeira coleção de cornos, coisa que ele, Japoll, com a maior felicidade, poderia ter provado perante a justiça. Também com respeito à Srta. Krylow, uma citação em juízo teria sido pouco honrosa, dada a sua conduta habitual. De resto, existiam provas da incapacidade de dar satisfação somente no que se referia à pessoa do autor dessas linhas, o próprio Japoll, e não com respeito a seu interlocutor, Lenart; mas Zutawski servira-se de um pretexto para não correr perigo. Do papel que o Sr. Asarapetian desempenhara em toda essa história nem era bom falar. E quanto àquela cena no bar do cassino, convinha levar em conta que ele, Japoll, embora mordaz e propenso a pilhérias, era homem muitíssimo débil. Zutawski, por sua vez, chegara acompanhado dos seus amigos e da esposa, mulher de grande robustez, de modo que tinha a seu favor a superioridade física. Acrescia a isso que as duas senhoritas que se encontravam junto com ele, Japoll, e Lenart, eram criaturas muito alegres, sim, mas medrosas como galinhas. Para evitar um pugilato brutal e um escândalo público, ele mesmo rogara a Lenart, que fazia menção de reagir, que se mantivesse tranqüilo e tolerasse, por amor de Deus, o contato passageiro e inconvencional com os senhores Von Zutawski e Lodygowski, uma vez que esse contato não era doloroso e os vizinhos julgariam que se tratava de uma brincadeira de amigos. Assim rezava o folheto de Japoll, que, naturalmente, poucas possibilidades tinha de salvar as aparências. Suas emendas não conseguiram anular senão superficialmente o belo contraste entre a honra e a covardia que as declarações da outra parte acabavam de estabelecer, tanto mais que ele, não dispondo dos meios de ampla divulgação do partido de Zutawski, se limitava a espalhar pelo público algumas cópias datilografadas da sua réplica. Aquelas atas que acabamos de transcrever eram, por sua vez, acessíveis a todo mundo, sendo remetidas até a pessoas completamente desinteressadas, como, por exemplo, Naphta e Settembrini, que também as tinham recebido. Hans Castorp viu-as nas suas mãos e notou com surpresa que até eles as liam com fisionomias contraídas, singularmente arrebatadas. A zombaria alegre que ele mesmo, devido à mentalidade que reinava no Berghof, era incapaz de forjar – esperara-a ao menos da parte do Sr. Settembrini. Mas aquela epidemia que Hans Castorp via grassar a seu redor contagiara também o espírito claro do maçom com uma força que lhe tirava a vontade de rir e o tornava facilmente acessível à fascinação provocante da história das bofetadas. Além disso, sentia-se ele, o lutador, deprimido em face do seu estado de saúde, que piorava lenta, porém inexoravelmente, apenas com melhoras passageiras e ilusórias. O humanista praguejava contra essa miséria, tinha vergonha e desdém de si próprio, e no entanto, já por essa época, não podia evitar de se acamar de vez em quando. Naphta, o seu vizinho e adversário, tampouco ia melhor. Minando-lhe interiormente o organismo, ia em progresso a doença que havia sido a causa física – ou deve-se dizer o pretexto? – de ter a sua carreira na ordem chegado a um fim prematuro. As virtudes do ar rarefeito das alturas em que se vivia ali em cima não conseguiam deter o andamento do mal. Também ele tinha de ir para a cama com muita freqüência, e a sua voz soava mais rachada do que nunca, cada vez que falava. E, à medida que a aumentava, tornava-se ainda mais loquaz, mais penetrante e mais cáustico. Aquela oposição idealista à doença e à morte, cuja derrota diante da superioridade esmagadora da natureza infame tanto afligia o Sr. Settembrini, tinha de ser alheia ao pequeno Naphta, e a sua maneira de reagir contra a piora do seu estado de saúde não consistia, por conseguinte, em mágoa e pesar, senão numa animação sarcástica, numa agressividade sem limite, numa necessidade maníaca de duvidar, de negar, de criar confusão, que irritava gravissimamente a melancolia do italiano e incitava cada vez mais as divergências intelectuais. Era claro que Hans Castorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não perder nenhuma delas, pois a sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para dar grandeza aos colóquios. E conquanto não se pudesse poupar ao Sr. Settembrini o desgosto de ver que Hans Castorp se interessava pelos ditos maliciosos de Naphta, era forçoso admitir que estes ultrapassavam nos últimos tempos todas as medidas e amiúde os próprios limites de um raciocínio são. Esse enfermo não tinha nem a força nem a boa vontade de se elevar acima da doença, senão que via o mundo sob a imagem e o signo dela. Para desespero do Sr. Settembrini, que gostaria de mandar para fora do quarto o discípulo atento ou de tapar-lhe os ouvidos, declarava Naphta que a matéria era uma substância por demais imprestável para que o espírito pudesse completar-se numa habitação feita dela. Esforçar-se por conseguir isso não passava de tolice. Em que dava tal esforço? Numa caricatura! O resultado prático da tão elogiada Revolução Francesa era o Estado capitalista burguês – deveras um belo produto que alguns esperavam melhorar universalizando essa abominação! A república universal traria a felicidade, pois sim. O progresso? Infelizmente podia-se comparar este com o famoso caso do enfermo que sempre estava mudando de posição porque nisso esperava encontrar algum alívio. Um desejo não confessado, mas muito difundido, secretamente, o de ver rebentar uma guerra, era a expressão dessa atitude. Ela não deixaria de vir, essa guerra, e isso era bom, se bem que acarretasse efeitos bem diferentes daqueles que aguardavam seus autores. Naphta menosprezava o Estado burguês, preocupado exclusivamente com a sua segurança. Veio a falar nisso num dia de outono, durante um passeio pela rua principal, quando começava a chover e todo mundo de repente, como a uma ordem de comando, abriu os guarda-chuvas. Aquilo se lhe afigurava como um símbolo da covardia e da efeminação vulgar que a civilização produzia. Um incidente como o naufrágio do navio Titanic tinha um sentido atávico e todavia edificante. Depois reclamavam todos, em altos brados, maior segurança dos meios de transporte. Em geral reinava a mais violenta indignação sempre que a “segurança” se via ameaçada. Isso era miserável, e essa moleza humanitária formava uma harmonia curiosa com a crueldade perversa e bestial daquele campo de batalha econômica que constituía o Estado burguês. Guerra, guerra! Ele, por si, era a favor, e a impaciência com que todos a almejavam parecia-lhe relativamente honrosa. Mas, quando o Sr. Settembrini introduziu na conversa a palavra “justiça” e recomendou esse sublime princípio como meio preventivo contra catástrofes políticas, tanto externas como internas, evidenciou-se que o mesmo Naphta que acabava de julgar o espírito por demais elevado para que fosse possível e desejável a sua encarnação numa forma terrena punha agora em dúvida precisamente o espírito e se empenhava em denegri-lo. Justiça? Era ela uma idéia digna de adoração? Uma idéia divina?Uma idéia de primeira categoria? Deus e a natureza eram injustos, tinham favoritos, selecionavam segundo as suas simpatias, concediam perigosas distinções a um e preparavam a outro uma sorte fácil e banal. E o homem dotado de vontade? Para ele, a justiça era, de um lado, uma franqueza paralisante, a dúvida em si, e de outro, uma fanfarra que o chamava para atos inescrupulosos. Desde que o homem, para manter-se dentro da esfera da moral, tinha de corrigir esta “justiça” por aquela – onde ficavam a incondicionalidade e o radicalismo da idéia? Ademais, era-se “justo” para com um ou outro dos dois pontos de vista. O resto não passava de liberalismo, e com isso não se arranjava mais nada hoje em dia. Numa palavra, a justiça era um termo oco da retórica burguesa, e para chegar à ação era preciso saber de que justiça se tratava – daquela que desejava conceder a cada um o que lhe pertencia ou da outra que queria dar parte igual a todos. Escolhemos a esmo, das discussões sem fim, um exemplo para demonstrar a maneira como Naphta trabalhava por perturbar a razão. No entanto, era ainda pior o modo como falava da ciência, na qual não acreditava. Não tinha fé na ciência – dizia – visto o homem ter plena liberdade de crer ou não crer nela. Essa era uma crença como qualquer outra, apenas mais tola e mais prejudicial. A própria palavra “ciência” era a expressão do mais estúpido realismo que não se envergonhava de aceitar e gastar como moeda sonante os reflexos mais que duvidosos que os objetos sofriam do intelecto humano, e de preparar com eles a mais lamentável e a mais insossa doutrina que já se impingiu à humanidade. Não constituía, porventura, o conceito de um mundo material existente por si só a mais ridícula de todas as autocontradições? Ora, a ciência natural moderna, como dogma, baseava-se exclusivamente no postulado metafísico, segundo o qual o tempo, o espaço e a causalidade – a saber, as formas de conhecimento dentro das quais se passam os fenômenos do mundo – eram condições reais, existentes independentemente do nosso conhecimento. Essa afirmação monista era o mais berrante desaforo que já foi pespegado ao espírito. Em linguagem monista, o tempo, o espaço e a causalidade chamavam-se evolução, e com isso estava-se à frente do dogma central da pseudo-religião livre-pensadora e ateística, por meio da qual se tencionava abolir o primeiro Livro de Moisés e opor a sabedoria esclarecedora a uma fábula estultificante, como se Haeckel tivesse estado presente no momento em que nascia a Terra. Empirismo? O éter universal era, acaso, exato? O átomo, essa graciosa brincadeira matemática em torno da “parcela menor e indivisível” – existia uma prova que o demonstrasse? A teoria do espaço e do tempo infinitos fundava-se certamente na experiência; ou talvez não? Com efeito, qualquer pessoa que soubesse pensar logicamente seria levada a experiências curiosas e a resultados divertidos com esse dogma do espaço e do tempo infinitos e reais; obteria precisamente o resultado: nada. Perceberia que o tal realismo era genuíno niilismo. Por quê? Pela simples razão de a relação entre qualquer grandeza e o infinito ser zero. No infinito não existia medida, e na eternidade não havia nem duração nem modificação. No espaço infinito, onde todas as distâncias seriam matematicamente iguais a zero, não era possível conceber nem sequer dois pontos situados um ao lado do outro, e ainda menos dois corpos, para não falar de um movimento. Ele, Naphta, fazia questão de constatar isso, para contrariar o atrevimento com que a ciência materialista apresentava os disparates astronômicos e o seu palavrório frívolo acerca do universo como se fossem conhecimentos absolutos. Coitada da humanidade, que, em face de uma exposição ostensiva de cifras vazias, deixou que lhe impingissem o sentimento da sua própria nulidade e admitiu que a privassem do sentido patético da sua importância! Talvez fosse ainda tolerável que a razão e o conhecimento humanos se mantivessem dentro da esfera terrena e nesse campo tratassem como reais as suas experiências na exploração do objetivo e do subjetivo. Mas quando ultrapassassem esses limites e estendessem a mão para o enigma eterno, dedicandose à chamada cosmologia ou cosmogonia, levariam a brincadeira um pouco longe, e a sua presunção chegaria ao cúmulo do grotesco. Que absurdo blasfemo querer calcular a “distância” entre um astro e a Terra em trilhões de quilômetros ou também em anos-luz e imaginar que por meio dessas mentiras matemáticas se pudesse abrir ao espírito humano a vista para o infinito e o terreno, quando, em realidade, o infinito nada, absolutamente nada tinha que ver com grandezas, e a eternidade, nada com a duração e com os lapsos de tempo. Pelo contrário, o infinito e a eternidade, longe de serem conceitos da ciência natural, representavam justamente a abolição daquilo que chamamos natureza. A ingenuidade de uma criança que tomasse as estrelas por buracos no dossel celeste, através dos quais penetrasse a claridade eterna, lhe parecia mil vezes preferível a toda aquela lengalenga oca, disparatada, presunçosa, que a ciência monista produzia com respeito ao “universo”. Settembrini perguntou se Naphta, por sua parte, partilhava dessa crença quanto às estrelas, ao que o jesuíta respondeu que se reservava o direito da humildade e da liberdade do ceticismo. Essas palavras davam mais um ensejo para formar uma idéia daquilo que ele entendia por “liberdade”, e deixavam entrever aonde conduziria esse conceito. Se ao menos o Sr. Settembrini não tivesse motivos ponderáveis para recear que Hans Castorp achasse essas coisas dignas de serem ouvidas! A malícia de Naphta ficava à espreita de oportunidade para descobrir as fraquezas do progresso dominador da natureza e para demonstrar que os seus pioneiros e campeões sofriam recaídas muito humanas no irracional. Os aviadores, dizia ele, eram na maioria uns indivíduos suspeitos, de pouco valor, e sobretudo muitíssimo supersticiosos. Costumavam levar consigo a bordo dos aviões mascotes ou uma gralha, cuspiam três vezes em todas as direções e calçavam as luvas dos seus predecessores afortunados. Tal insensatez primitiva era, porventura, compatível com a concepção do mundo em que se alicerçava a sua profissão?... A contradição que Naphta acabava de revelar divertia-o, causava-lhe prazer, de maneira que insistia nessa tecla por muito tempo. Mas todos esses exemplos não são senão casos isolados do sem-número de ditos hostis proferidos por Naphta. Abandonemo-los para contar fatos infelizmente muito reais. Certa tarde de fevereiro, os cavalheiros se reuniram para uma excursão a Monstein, localidade situada a uma hora e meia de trenó da sua morada habitual. O grupo era formado por Naphta, Settembrini, Hans Castorp, Ferge e Wehsal. Foram em dois trenós, cada qual tirado por um só cavalo. No primeiro embarcaram Hans Castorp e o humanista, no segundo Naphta, Ferge e Wehsal, que se instalou na boléia, ao lado do cocheiro. Todos estavam bem agasalhados. Às três horas partiram do domicílio dos externos. Os guizos soavam simpaticamente através da paisagem silenciosa sob a sua coberta de neve, enquanto os trenós seguiam ao longo da encosta direita, passando por Frauenkirch e Glaris, rumo ao sul. Nuvens carregadas de neve aproximavam-se rapidamente, vindas dessa mesma direção, de modo que pouco depois desapareceu todo o azul do céu, salvo uma estreita nesga atrás deles, por cima da cordilheira Rética. O frio era intenso. As montanhas estavam envoltas em bruma. A estrada que percorriam, essa plataforma angusta, sem balaustrada, construída entre a parede e o abismo, subia uma vertente íngreme, coberta de abetos. Os cavalos avançavam a passo. Freqüentemente vinham a seu encontro desportistas com trenós, deslizando pela encosta, e que desmontavam para dar-lhes passagem. Por detrás das curvas ressoavam em delicada advertência guizos estranhos. Trenós puxados por dois cavalos atrelados um atrás do outro passavam por eles, sendo então preciso esquivar-se com muita cautela. Perto da meta da viagem descortinava-se uma linda vista sobre um trecho rochoso da estrada de Zügen. Defronte ao pequeno hotel de Monstein, que se chamava Kurhaus, desembrulharam-se dos cobertores e caminharam alguns passos para poder contemplar o Stulsergrat. A gigantesca escarpa, de três mil metros de altura, estava escondida na bruma. Só se via em alguma parte um pico alto como o céu, superterreno, por assim dizer, recordando um longínquo Valhala, sagrado e inacessível. Hans Castorp estava cheio de admiração por esse espetáculo e exortou os outros a partilhar com ele desse sentimento. Foi ele quem, tomado de uma sensação de humildade, pronunciou a palavra “inacessível”, dando com isso ao Sr. Settembrini uma oportunidade para observar que aquele cume já havia sido escalado. Era, aliás, uma coisa que quase não existia mais, essa da inacessibilidade e dos lugares em que o homem ainda não houvesse posto o pé. Naphta retrucou que isso era um pequeno exagero e uma gabolice. E citou o monte Everest, que por enquanto opunha uma negativa glacial à arrogância dos homens e parecia querer obstinar-se nessa reserva. O humanista mostrou-se agastado. O grupo voltou ao Kurhaus, à frente do qual se achavam além dos seus próprios trenós mais alguns outros, desatrelados. No primeiro andar havia quartos numerados, onde a gente podia hospedar-se. Era também ali que estava situada a sala de refeições, de aspecto rústico, bem aquecida. Os excursionistas encarregaram a hoteleira solícita de lhes trazer uma pequena refeição: café, mel, pão branco e bolo de peras, a especialidade do lugar. Mandaram servir vinho tinto aos cocheiros. As outras mesas estavam ocupadas por turistas suíços e holandeses. Gostaríamos de afirmar que em torno da mesa dos nossos cinco amigos o café quente, muito digno de elogios, houvesse originado uma conversa mais elevada. Mas isso seria inexato, uma vez que essa conversa era em realidade um solilóquio de Naphta, que a monopolizou depois de umas poucas palavras com que os outros haviam contribuído para ela, um monólogo pronunciado de forma bastante estranha, censurável do ponto de vista das convenções, visto o ex-jesuíta se dirigir exclusivamente a Hans Castorp, doutrinando-o com muita amabilidade, ao passo que voltava as costas a seu outro vizinho, que era o Sr. Settembrini, e também não prestava a menor atenção aos dois outros senhores. Seria difícil definir qual era o tema das suas improvisações, que Hans Castorp acompanhava sacudindo a cabeça em sinal de meia aprovação. Não havia, em realidade, um assunto único. A palestra vagava livremente pela esfera do espírito, roçando isto e aquilo, empenhada, essencialmente, em demonstrar, de forma desanimadora, a ambigüidade dos fenômenos espirituais da vida, bem como a natureza irisante e a debilidade combativa das grandes idéias derivadas deles. Esforçava-se por tornar evidente que o absoluto se apresentava neste mundo em roupas muitíssimo cambiantes. A rigor se poderia dizer que a sua conferência se ocupava do problema da liberdade, que ele tratava com o propósito de criar confusão. Entre outras coisas, mencionamos o Romantismo e o fascinante sentido duplo, inerente a esse movimento europeu de princípios do século XIX, em face do qual fracassariam conceitos como “reação” ou “revolução”, a não ser que se reunissem num conceito superior. Naturalmente era ridículo querer associar o conceito do “revolucionário” apenas ao progresso e ao esclarecimento vitorioso. O Romantismo europeu tinha sido, antes de mais nada, um movimento libertador, de caráter anticlassicista e antiacadêmico, dirigido contra o gosto da França antiga, contra a velha escola da razão, cujos paladinos eram ridicularizados como cabeças de perucas empoadas. E Naphta veio a falar das Guerras de Libertação, do entusiasmo fichteano, do levantamento delirante, poético, de um povo contra uma tirania insuportável, que, desgraçadamente (ah, ah!), era a encarnação da liberdade, quer dizer, das idéias da Revolução. Que coisa divertida! Cantando a altas vozes, o povo erguera o braço para esmagar a tirania revolucionária em prol da opressão reacionária dos príncipes; e isso tinha sido feito em nome da liberdade! Aí o jovem ouvinte podia notar a diferença ou talvez a oposição existente entre a liberdade exterior e a interior. E ao mesmo tempo achava-se diante da escabrosa questão de saber que forma de servidão era mais ou (ah, ah!) menos compatível com a honra de uma nação. Em última análise, a liberdade era um conceito do Romantismo antes do que da Época das Luzes, pois com aquele tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico. A sede individualística de liberdade originara o culto histórico-romântico do nacional, culto esse que era belicoso e que o liberalismo humanitário tachava de sinistro, posto que ele mesmo nada fizesse senão pregar o individualismo, somente de maneira um pouco diversa. O individualismo era romântico-medieval na sua concepção da infinita, da cósmica importância do indivíduo; dela resultavam a doutrina da imortalidade da alma, a teoria geocêntrica e a astrologia. Por outro lado, era o individualismo um aspecto do humanismo de tendências liberalísticas, que inclinava para a anarquia e queria, em todo caso, proteger o querido indivíduo contra o destino de ser imolado à coletividade. Um e outro aspecto eram individualismo, e esse termo servia para muita coisa. Mas devia-se admitir que o entusiasmo libertador tinha produzido os mais brilhantes adversários da liberdade, os mais engenhosos campeões do passado, no combate ao progresso impiamente destrutor. Naphta citou Arndt, que amaldiçoara o industrialismo e enaltecera a nobreza; mencionou também Görres, o autor da Mística cristã. A mística, acaso, nada tinha que ver com a liberdade? Não fora ela antiescolástica, antidogmática, anticlerical? Embora fosse forçoso considerar a hierarquia uma potência libertadora, desde que opusera um dique à monarquia absoluta... A mística da última fase da Idade Média pusera à prova o seu caráter liberal como precursora da Reforma. Sim, da Reforma (ah, ah!), que, por sua vez, havia sido um amálgama indissolúvel de liberdade e de reação medieval... E a obra de Lutero? Ah, sim, esta obra tinha o mérito de patentear com a mais crua nitidez a natureza dúbia da própria ação, da ação em geral. Sabia o ouvinte de Naphta o que era uma ação? Uma ação fora, por exemplo, o assassínio do Conselheiro de Estado Kotzebue pelo estudante Sand. Que fora aquilo que, para empregar a linguagem da criminologia, pusera a arma na mão do jovem Sand? O amor à liberdade, naturalmente! Mas, diante de uma observação mais detida, manifestava-se que, em realidade, não tinha sido esse amor, senão o fanatismo moral e o ódio à estrangeirice frívola. Por outro lado estivera Kotzebue a serviço dos russos, isto é, a serviço da Santa Aliança, de maneira que Sand talvez, apesar de tudo, o tivesse apunhalado em prol da liberdade... O que, no entanto, também parecia improvável, em face da circunstância de haver jesuítas entre os seus amigos mais íntimos. Em suma, fosse o que fosse a ação, em todo caso era um meio pouco adequado para expressar-se com clareza e contribuía pouco para resolver os problemas espirituais. – Posso me permitir a pergunta: quando o senhor tenciona terminar com essas indecências? Quem perguntara assim era o Sr. Settembrini, e isso num tom muito veemente. Mantivera-se quieto na sua cadeira, tamborilando na mesa e torcendo os bigodes. Mas aquilo lhe enchia as medidas. Sua paciência estava esgotada. Empertigava-se, numa posição mais do que ereta, com o rosto empalidecido. Era como se, apesar de sentado, se colocasse nas pontas dos pés, de modo que apenas as coxas tocavam o assento. Com os olhos brilhantes encarava o inimigo que acabava de voltar-se para ele com fingida surpresa. – Como houve por bem o senhor expressar-se? – foi a pergunta com que Naphta protestou. – Eu houve por bem... – disse o italiano, engolindo em seco – eu hei por bem declarar que estou decidido a impedir que o senhor continue a importunar a juventude indefesa com suas palavras equívocas! – Convido o senhor a ponderar o que diz. – Senhor, dispenso tal convite. Estou acostumado a ponderar o que digo, e a minha expressão corresponde exatamente às circunstâncias, quando afirmo que o seu jeito de perturbar o espírito da juventude já de per si vacilante, de seduzi-la e de debilitar-lhe a moral, é uma infâmia e que palavras não são suficientes para castigá-lo devidamente... Ao pronunciar a palavra “infâmia”, Settembrini golpeou a mesa com a palma da mão. A seguir empurrou a cadeira para trás e levantou-se, dando dessa forma aos outros o sinal para imitá-lo. As pessoas que se achavam nas outras mesas observavam a cena com perplexidade; eram os holandeses, visto os suíços já terem partido. Todos os componentes do nosso grupo encontravam-se, pois, de pé, em atitude tensa, Hans Castorp e os dois adversários, e em frente deles Ferge e Wehsal. Todos os cinco estavam pálidos, com os olhos arregalados e as bocas crispadas. Não poderiam os três desinteressados ter feito uma tentativa para intervir num sentido conciliador, afrouxando a tensão por meio de uma piada e arranjando tudo mediante um apelo humano? Não fizeram tal tentativa. O seu estado de espírito opunha-se a isso. Quedavam-se de pé, trêmulos, e, sem querer, suas mãos se fechavam. O próprio A. K. Ferge, que declaradamente nada entendia de quaisquer coisas sublimes e de antemão renunciava a imaginar o alcance da querela – também ele estava convencido de que desta vez não havia lugar para transigências e que as pessoas que, elas mesmas fascinadas, presenciavam a contenda, nada podiam fazer senão deixar as coisas tomarem seu curso normal. Seu bigode hirsuto e bonachão subia e descia em movimentos rápidos. Reinava completo silêncio, de forma que se podia ouvir como Naphta rangia os dentes. Isso representava para Hans Castorp uma experiência semelhante àquela dos cabelos eriçados de Wiedemann. Pensara ele que “ranger os dentes” fosse somente uma locução e não um fato que se pudesse produzir. Mas, nesse momento, o rangido ressoava realmente através do silêncio, um ruído bastante desagradável, selvagem e fantástico, que, no entanto, dava a prova de um formidável domínio de si próprio; pois, longe de gritar, o jesuíta disse em voz baixa, apenas com uma quase risada ofegante: – Infâmia? Castigar? Será que os burros virtuosos se metem a dar coices? Levamos a polícia pedagógica da civilização a desembainhar a espada? Eis o que chamo um êxito, facilmente obtido, logo de início, como acrescento com desdém, visto que uma ironia leve foi suficiente para mobilizar a virtude vigilante! Quanto ao resto, senhor, virá a seu tempo. Inclusive o tal castigo, sim, senhor! Espero que os seus princípios sociais não o impeçam de saber o que me deve. Caso contrário, ver-me-ei forçado a pôr esses princípios à prova por meios que... Um gesto terminante de Settembrini fez com que Naphta continuasse: – Ah, já vejo que isso não será necessário. Eu estou no seu caminho, o senhor está no meu. Muito bem, liquidemos essa pequena diferença num lugar adequado. De momento só quero dizer uma coisa: o seu temor devoto pela ideologia escolástica da revolução jacobina vê um crime pedagógico na minha maneira de induzir a juventude a duvidar, de derrubar as categorias e de privar as idéias da dignidade acadêmica da virtude. Esse temor é por demais compreensível, pois a sua humanidade saiu de moda – tenha certeza disso – saiu de moda, acabou-se! Hoje em dia já não passa de um rabicho, uma sensaboria classicista, um ennui espiritual que faz bocejar, e que a nova revolução, a nossa, senhor, está a ponto de abolir. Quando, na nossa função de educadores, semeamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais imaginou o seu modesto espírito esclarecido, sabemos perfeitamente o que estamos fazendo. Unicamente do ceticismo radical, do caos moral nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo. Isso lhe digo para justificar-me e para instruí-lo. O resto pertence a um outro capítulo. O senhor terá notícias minhas. – Estou ansioso por recebê-las, senhor! – gritou Settembrini por trás de Naphta, que, abandonando a mesa, se encaminhava ao cabide para apanhar o seu casaco de pele. A seguir, o maçom deixou-se cair pesadamente na cadeira e apertou o coração com ambas as mãos. – Distruttore! Cane arrabiato! Bisogna ammazzarlo! – sibilou arfando. Os outros continuavam de pé em torno da mesa. Os bigodes de Ferge prosseguiam subindo e descendo. Wehsal deixava pender obliquamente a mandíbula inferior. Hans Castorp arremedava o jeito do avô quando escorava o queixo no colarinho, porque sentia a nuca tremer. Todos estavam pensando no inesperado desfecho da sua excursão. Todos, sem exceção do Sr. Settembrini, pensavam também na circunstância feliz de terem alugado dois trenós em vez de um em comum, o que pelo menos facilitava o regresso. Mas que haveria depois? – Ele provocou o senhor para um duelo – disse Hans Castorp com o coração angustiado. – Com efeito – respondeu Settembrini, erguendo o olhar para o jovem que se achava de pé à sua frente. Mas logo o desviou dele e descansou a cabeça na mão. – O senhor aceita? – quis Wehsal saber. – Que pergunta! – retrucou Settembrini, lançando também a ele um rápido olhar. – Senhores – continuou então, levantando-se completamente controlado –, lastimo que o nosso passeio tenha chegado a este fim, mas, na vida que vivemos, todo homem deve andar preparado para essa espécie de incidentes. Teoricamente desaprovo o duelo. Por índole sou obediente à lei... Na prática, porém, o caso é diferente, e existem situações onde... existiam contrastes que... Numa palavra, estou à disposição desse cavalheiro. Ainda bem que na minha juventude pratiquei um pouco de esgrima. Algumas horas de treino hão de me devolver a agilidade do punho. Vamos embora! A respeito de tudo o mais a gente se porá de acordo. Acho que aquele senhor já terá dado ordem para atrelar. Durante o regresso e mais tarde, Hans Castorp teve momentos em que se sentia tomado de vertigens diante da monstruosidade daquilo que tinham à sua frente; sobretudo quando se manifestou que Naphta não queria saber de floretes ou de sabres, senão insistia num duelo a pistola, e que realmente lhe cabia escolher as armas, já que, segundo os conceitos do código de honra, era ele o ofendido. Houve, pois, momentos em que o jovem conseguiu até certo ponto libertar-se daquele espírito que lavrava no ambiente, envolvendo e perturbando a todos. Dizia-se então que aquilo era rematada loucura e devia ser evitado. – Se, pelo menos, houvesse uma ofensa real! – exclamou numa conversa com os senhores Settembrini e Ferge, e com Wehsal, a quem Naphta, já durante a viagem de volta, escolhera para padrinho e que servia de intermediário entre as partes. – Um insulto de caráter meramente convencional! Se o nome honrado de um fosse enxovalhado pelo outro, se se tratasse de uma mulher ou de qualquer outro ponto vital, de uma situação em que não se visse nenhuma outra possibilidade de compensação! Bem, num caso desses existe o duelo como último recurso. Depois, quando se lavou a honra, quando tudo terminou sem grandes danos e se verifica que “os adversários se separaram reconciliados”, pode-se até opinar que se trata de uma boa instituição, de uma coisa salutar e prática em certos casos complicados. Mas que fez Naphta, afinal? Absolutamente não quero defendê-lo. Pergunto apenas: que fez ele para ofender o senhor? Ele derrubou as categorias. Privou, segundo a sua própria expressão, as idéias da sua dignidade acadêmica. O senhor sentiu-se ofendido por isso. Com razão, vamos admiti-lo... – Admiti-lo? – repetiu o Sr. Settembrini, encarando-o. – Com razão, com razão! Ele ofendeu o senhor com isso. Mas não o insultou. Aí está a diferença, permita-me que o diga! Trata-se de coisas abstratas, espirituais. Com coisas espirituais pode-se ofender, mas não insultar uma pessoa. Esse é um axioma que todos os tribunais de honra aceitariam, posso lhe garantir. E pelo mesmo motivo não há tampouco um insulto naquela resposta do senhor, em que falou de “infâmia” e de “castigar devidamente”, já que também esses termos estavam sendo empregados em sentido espiritual. Tudo se mantinha na esfera espiritual e nada tinha que ver com a esfera pessoal. O espiritual nunca pode ser pessoal; este é o complemento e a interpretação do axioma, e por isso... – O senhor está enganado, caro amigo – replicou o Sr. Settembrini com os olhos fechados. – Está enganado em primeiro lugar ao afirmar que o espiritual não pode assumir caráter pessoal. O senhor não deveria pensar assim – continuou com um sorriso singularmente frouxo e doloroso. – Antes de tudo, porém, equivoca-se na apreciação que faz do espírito em geral, que evidentemente considera demasiado fraco para provocar conflitos e paixões da mesma intensidade daqueles que acarreta a vida real e que não toleram outra solução que não a luta armada. All’ incontro! O elemento abstrato, purificado, ideal, é ao mesmo tempo o absoluto, é o que há de realmente rigoroso e encerra em si possibilidades muito mais profundas e mais radicais de ódio, de oposição irrestrita e irreconciliável, do que a vida social. Admira-se o senhor ao ver que o abstrato conduz, por caminhos mais diretos e mais inelutáveis do que esta, à situação em que se trata de “um de nós dois, tu ou eu”, a situação propriamente radical, a do duelo, da luta corporal? O duelo, meu amigo, não é uma “instituição” como qualquer outra. É um último recurso, é a volta ao estado primevo da natureza, apenas levemente suavizada por certo código cavalheiresco que não deixa de ser superficial. O característico dessa situação é o seu cunho totalmente primitivo, a luta corporal, e cabe a todo homem, por mais que se distancie da natureza, manter-se preparado para essa emergência. Ela pode ocorrer a qualquer instante. Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens. Dessa forma, Hans Castorp recebera uma lição. Que se podia opor a isso? O jovem permaneceu calado, meditando com o coração opresso. As palavras do Sr. Settembrini fingiam ser calmas e lógicas, e todavia soavam estranhas, pouco naturais na sua boca. Esses pensamentos não eram seus, como tampouco fora ele quem tivera a idéia do duelo, senão a aceitara daquele terrorista que era o pequeno Naphta. Eram, sim, a expressão da mentalidade reinante em toda parte, e que se apossara também de Settembrini, reduzindo a sua bela inteligência ao papel de seu servo e instrumento. Mas como? O espírito, por ser rigoroso, deveria conduzir, inexoravelmente, à bestialidade, à solução encontrada por meio da luta corporal? Hans Castorp.revoltava-se contra essa concepção, ou melhor, tentava revoltar-se; e para maior espanto seu, verificava que também ele era incapaz de fazê-lo. Também no seu próprio íntimo, ela se mostrava forte, essa mentalidade, e ele tampouco era talhado para distanciar-se dela. Daquela zona das suas recordações onde Wiedemann e Sonnenschein, desnorteados, se revolviam numa contenda bestial, vinha-lhe uma inspiração tremenda, definitiva, e com horror percebia Hans Castorp que ao fim de todas as coisas não restavam outros meios a não ser os do corpo, as unhas e os dentes. Sim, sim, parecia necessário bater-se, porquanto assim se podia garantir aquela suavização do estado primevo por meio do código cavalheiresco... E o jovem ofereceu ao Sr. Settembrini seus serviços como padrinho. Sua oferta foi rejeitada. Não, isso não convinha; não podia ser, foi a resposta que recebeu, primeiramente do próprio Settembrini com um sorriso macio e doloroso, e, a seguir, após um momento de reflexão, também de Ferge e de Wehsal, sem que ninguém justificasse essa opinião. Achavam impossível Hans Castorp assistir ao duelo nessa função. Talvez pudesse ele comparecer ao campo de luta como árbitro, pois a presença de uma pessoa com esse encargo estava prevista nas regras cavalheirescas, destinadas a suavizar a bestialidade. O próprio Naphta, pela boca de Wehsal, seu representante em assuntos de honra, manifestou-se nesse sentido, e Hans Castorp conformou-se com isso. Padrinho ou árbitro, fosse o que fosse, em todo caso teria uma oportunidade para exercer influência sobre as modalidades do combate, coisa que se manifestou sumamente necessária. As propostas de Naphta ultrapassavam todos os limites. Exigiu ele cinco passos de distância e três trocas de balas, no caso de se tornar preciso. Na mesma noite do incidente mandou transmitir essa loucura por Wehsal, que se identificava por completo com a tarefa de ser porta-voz e representante dos caprichos selvagens do jesuíta e se aferrava a tais condições ora porque recebera ordem de agir assim, ora porque correspondiam ao seu próprio gosto. Settembrini, naturalmente, nada tinha que objetar, mas Ferge, como seu padrinho, e Hans Castorp, o árbitro, mostraram-se indignados. Este chegou mesmo a ralhar com o desgraçado Wehsal. Não tinha vergonha – perguntou – de trazer à baila essas sugestões desumanas e antipáticas, embora se tratasse de um duelo puramente convencional, sem base em nenhum insulto real? A exigência das pistolas já era muito forte, mas esses pormenores sanguinários eram o cúmulo. Aí não se podia mais falar em espírito cavalheiresco. Por que não atirariam logo à queima-roupa? Para Wehsal era fácil manifestar tamanha sede de sangue, porque não seria contra ele que se daria um tiro de cinco metros de distância. E assim por diante. Wehsal encolheu os ombros, indicando pelo seu silêncio que se achavam numa situação radical, e desarmando dessa forma os seus oponentes, inclinados a esquecer esse fato. Mesmo assim conseguiram estes, no decorrer das negociações do dia seguinte, reduzir as três trocas de tiros a uma única e chegar a um acordo na questão da distância: os combatentes ficariam separados um do outro por quinze passos e teriam o direito de avançar cinco passos antes de atirar. Mas também essa concessão não foi obtida senão pela promessa de que não se fariam tentativas de reconciliação. Descobriram então que nenhum deles possuía pistolas. O Sr. Albin, porém, tinha. Além do pequeno e lustroso revólver, com o qual gostava de assustar as senhoras, dispunha ainda de um par de pistolas de oficial, fabricadas na Bélgica e guardadas num estojo comum. Eram Brownings automáticas com coronhas de madeira marrom, que continham os depósitos das balas, com um mecanismo de aço azulado e com canos polidos, sobre cujas bocas se achavam as miras. Em outra ocasião, Hans Castorp vira essas armas nas mãos do fanfarrão, e contra as suas próprias convicções, por puro senso de imparcialidade, ofereceu-se para pedi-las emprestado. E assim fez, não escondendo a finalidade em si, mas envolvendo-a naquele segredo peculiar aos casos de honra e invocando, com êxito fácil, a discrição cavalheiresca do rapaz. O Sr. Albin mesmo lhe ensinou como carregar as armas e disparou-as diversas vezes ao ar livre, a título de experiência. Tudo isso requereu tempo, e assim sucedeu que até a data do encontro transcorreram dois dias e três noites. O lugar do duelo tinha sido proposto por Hans Castorp: era aquele sítio pitoresco, que no verão se cobria de flores azuis, e onde o jovem costumava retirar-se para “reinar”. Era ali que; na terceira manhã após a desinteligência, se liquidaria a querela, logo que houvesse bastante luz. Somente na véspera, a altas horas da noite, Hans Castorp, que andava muito nervoso, teve a idéia de que era necessário levar um médico ao campo de luta. Foi imediatamente deliberar com Ferge sobre esse problema cuja solução se apresentou bem difícil. Verdade era que Radamanto pertencera a um grêmio de estudantes que mantinha o código de duelo, mas parecia impossível pedir ao chefe do estabelecimento que desse o seu apoio a semelhante ato ilegal, tanto mais que se tratava de doentes. De modo geral, havia pouca esperança de encontrar em Davos um médico que se dispusesse a assistir a um duelo a pistola entre dois homens gravemente enfermos. No que se referia a Krokowski, não se sabia ao certo se esse espírito refinado tinha muita prática na medicação de ferimentos. Wehsal, igualmente consultado, declarou que Naphta já se opusera à presença de um médico, alegando que não ia ao lugar do duelo para ser untado e pensado, mas para bater-se e fazê-lo seriamente. Pouco se lhe dava o que acontecesse depois. Isso ficaria para mais tarde. Embora essas palavras parecessem sinistras, Hans Castorp esforçou-se por interpretá-las no sentido de que Naphta era intimamente de opinião que não haveria necessidade de um médico. Não respondera também Settembrini, interpelado por Ferge, que achava melhor abandonar a idéia, uma vez que não lhe interessava? Não era totalmente insensato esperar que os adversários, no fundo do coração, tivessem ambos a intenção de não causar derramamento de sangue. Haviam dormido duas noites desde aquela rixa, e tinham à sua frente uma terceira. O tempo aclara o ambiente e arrefece os ânimos. Não há exaltação que resista à corrente das horas, sem sofrer alterações. Amanhã de madrugada, com a arma na mão, nenhum dos dois brigões seria o mesmo homem que fora na tarde do incidente. Agiriam automaticamente, sob o ditame da honra, e não por viva e espontânea vontade, como teriam feito se tivessem agido na própria ocasião. Deveria ser possível evitar que renegassem o seu espírito atual, a favor daquilo que pertencia ao passado. Hans Castorp não se enganava nessas suas reflexões; quer dizer que não se enganava num sentido que jamais poderia ter imaginado. Tinha até perfeitamente razão no que tocava ao Sr. Settembrini. Porém, se houvesse previsto em que sentido Leo Naphta no decorrer do tempo ou no próprio momento decisivo modificaria os seus desígnios, nem sequer a situação íntima em que tudo isso tinha a sua origem teria sido capaz de induzi-lo a admitir o que estava se preparando. Às sete horas da manhã, o sol estava longe de surgir atrás da sua montanha, mas o dia raiava penosamente por entre as brumas, quando Hans Castorp, após uma noite inquieta, saía do Sanatório Berghof, a fim de se encaminhar ao lugar do encontro. As criadas que limpavam o vestíbulo olharam-no com surpresa. No entanto achou aberto o portão principal. Ferge e Wehsal, juntos ou separadamente, já o tinham transposto, um para guiar Settembrini e o outro para acompanhar Naphta ao campo de combate. Hans Castorp ia sozinho, visto a sua função de árbitro não lhe permitir associar-se a nenhuma das partes. Ia maquinalmente, sob a coação da honra, forçado pelas circunstâncias. Era natural e necessário que ele assistisse ao duelo. Seria impossível manter-se afastado a aguardar o resultado na cama, em primeiro lugar porque... Mas o jovem, ao invés de desenvolver o primeiro motivo, logo acrescentou o segundo: não se devia deixar que as coisas chegassem a seu termo. Por enquanto não acontecera nada de grave, graças a Deus, e não era inevitável, era até mesmo inverossímil que algo de grave acontecesse. Tiveram de se levantar à luz artificial e de sair, sem terem tomado café, para reunir-se ao ar livre, no frio cortante da madrugada, já que assim havia sido combinado. Mas Hans Castorp pensava que depois, sob o influxo da sua própria presença, tudo tomaria rumos mais favoráveis e menos tristes, não se podia antever de que modo, e que era melhor não querer adivinhar, porquanto a experiência ensinava que mesmo os mais simples dos acontecimentos sempre transcorriam de forma diferente à antecipada pela imaginação. Ainda assim, era a manhã mais desagradável de todas de que se recordava. Hans Castorp sentia-se lasso e tresnoitado; seus dentes tendiam a bater nervosamente. Não precisava inquirir seu íntimo para desconfiar dos pensamentos com que acabava de tranqüilizar-se. Os tempos que corriam eram tão invulgares... A senhora de Minsk, arruinada pela cólera, o colegial enfurecido, Wiedemann e Sonnenschein, a história das bofetadas polacas – tudo isso se revolvia confusamente no seu cérebro. Não podia imaginar que à sua frente, na sua presença, dois homens fossem trocar tiros e derramar o sangue um do outro. Mas quando se lembrava do que, ante os seus olhos, ocorrera entre Wiedemann e Sonnenschein, desconfiava de si próprio e do seu mundo e arrepiava-se sob o casaco forrado de peles, não obstante a sensação do extraordinário e do patético do momento, que o exaltava e animava, da mesma forma que os elementos vivificadores do ar da manhã. Tomado de sentimentos contraditórios, que variavam a cada instante, o jovem saía da “aldeia”, através do lusco-fusco que lentamente se aclarava. Partindo do fim da pista de trenó, galgava a encosta, subindo por uma vereda muito estreita. Alcançou o bosque oculto por espessa camada de neve. Atravessou as pontes de madeira, por baixo das quais se estendia a pista, e avançou, por entre as árvores, num caminho aberto antes pelos pés dos transeuntes do que pelas pás. Como caminhasse velozmente, passou depois de pouco tempo por Settembrini e Ferge. Este levava a caixa de pistolas sob a ampla capa. Hans Castorp não vacilou em unir-se a eles. Mal chegara a seu lado, deparou com Naphta e Wehsal, que se achavam a pouca distância na frente. – Que manhã fria! Menos dezoito graus – disse na melhor das intenções, mas, assustando-se ele mesmo com a frivolidade das suas palavras, acrescentou: – Senhores, estou convencido... Os outros permaneceram silenciosos. Os bigodes joviais de Ferge subiam e desciam. Alguns segundos após Settembrini estacou e, tomando a mão de Hans Castorp entre as suas, disse: – Meu amigo, eu não matarei. Não farei isso. Vou me expor à bala dele. É tudo o que a honra pode exigir de mim. Mas eu não matarei, fique sossegado! Soltou a mão do jovem e prosseguiu o caminho. Hans Castorp estava profundamente emocionado, mas, depois de alguns passos, objetou: – Acho maravilhoso da sua parte, Sr. Settembrini, mas... Se ele, da sua parte... O Sr. Settembrini limitou-se a menear a cabeça. Hans Castorp, ponderando que, quando um não atirava, o outro de modo algum poderia atrever-se a fazê-lo, chegou à conclusão de que os auspícios eram felizes e suas esperanças começavam a confirmar-se. Sentiu-se bastante aliviado. Transpuseram a passadeira que cruzava a ravina, onde no verão caía a pitoresca cachoeira, congelada e muda a essa época do ano. Naphta e Wehsal iam de cá para lá, pela neve, diante do banco escondido sob espessa, camada branca. Era o mesmo banco em que Hans Castorp, certa vez, se vira acossado por recordações singularmente vivas, enquanto esperava o fim de uma hemorragia do nariz. Naphta fumava um cigarro, e Hans Castorp perguntou a si mesmo se não sentia vontade de imitá-lo, mas verificou que absolutamente não estava disposto a fazê-lo e deduziu disso que a atitude do outro tinha um fundo de afetação. Com a sensação de agrado que sempre o invadia ali, contemplou a intimidade fria desse sítio que lhe pertencia e não era menos formoso sob aquele aspecto glacial do que na época em que aparecia inundado de flores azuis. O tronco e a ramagem do pinheiro, que formava uma linha diagonal através do quadro, dobravamse sob a carga de neve. – Bom dia! – exclamou o jovem com voz alegre, inspirado pelo desejo de introduzir no ambiente, desde o começo, um tom natural, destinado a dissipar as nuvens. Mas teve pouca sorte com essa intenção, pois ninguém respondeu. As saudações trocadas consistiam em reverências mudas, tão cerimoniosas que se tornavam quase imperceptíveis. Mesmo assim, Hans Castorp continuou decidido a lançar mão, sem demora, da emoção inicial, do aceleramento cordial da sua respiração, do calor originado pela caminhada rápida através da manhã de inverno, e a aproveitálos em prol da finalidade boa. Por isso começou dizendo: – Senhores, estou convencido... – O senhor tratará das suas convicções em outra oportunidade – atalhou-lhe Naphta friamente a palavra. – As armas, por favor – acrescentou com a mesma arrogância. E Hans Castorp, como se tivesse levado um tapa na boca, teve de ver Ferge tirar o estojo fatal de sob a capa. Wehsal, que se aproximara dele, recebeu das suas mãos uma das pistolas, a fim de passá-la a Naphta. A seguir, Ferge entregou a outra a Settembrini. Feito isso, pediu em voz baixa que desembaraçassem o lugar e pôs-se a medir a passos o terreno e a marcar a distância. Riscou na neve os limites externos com o tacão e assinalou as barreiras internas com duas bengalas, a sua e a de Settembrini. Que fazia ali o sofredor bonachão? Hans Castorp mal podia dar crédito a seus olhos. Ferge tinha as pernas compridas e dava largas passadas, de maneira que os quinze passos resultaram numa extensão considerável. Mas havia ainda as malditas barreiras, que realmente não distavam muito uma da outra. Sem dúvida, Ferge estava bem intencionado. E todavia – que perturbação forçava-o a dedicar-se a esses preparativos monstruosos? Naphta atirara na neve a peliça, de modo que se via o forro de pele de marta do Canadá. Com a pistola na mão, pôs o pé numa das marcações externas, logo que esta foi traçada, enquanto Ferge ainda tratava das demais. Quando terminou, também Settembrini, com a jaqueta surrada, amplamente aberta, ocupou a sua posição. Hans Castorp despertou da sua letargia e apressadamente tornou a avançar. – Senhores – disse em voz opressa –, não se precipitem! Apesar de tudo é do meu dever... – Cale-se! – gritou Naphta em tom imperioso. – Exijo o sinal. Mas ninguém dava o sinal. Haviam esquecido de se pôr de acordo sobre esse ponto. Era lógico que alguém ordenasse: “Fogo!”, mas não tinham pensado, ou pelo menos não tinham declarado que caberia ao árbitro pronunciar o comando terrível. Hans Castorp permaneceu silencioso, e ninguém fez menção de substituí-lo. – Vamos começar! – declarou Naphta. – Avance e atire, senhor! – gritou ao adversário, e começou a avançar ele mesmo, com o braço estendido, apontando a pistola para o peito de Settembrini. Foi um espetáculo fantástico. Settembrini fez o mesmo. Ao terceiro passo – o outro, sem disparar, já alcançara a barreira – levantou a pistola muito alto e apertou o gatilho. A detonação provocou um eco múltiplo. As montanhas repercutiram sucessivamente o som. O vale encheu-se de vibrações com o choque, e Hans Castorp pensou que aquilo devia alarmar os habitantes. – O senhor atirou para o ar – disse Naphta, controlando-se, enquanto baixava a arma. Settembrini replicou: – Eu atiro como quero. – Atire o senhor novamente. – Nem penso nisso. Agora é a sua vez. – Com a cabeça erguida, o Sr. Settembrini olhava o céu. Colocara-se quase de lado, não expondo o peito em cheio ao outro, o que era comovente de se ver. Evidentemente alguém lhe aconselhara não oferecer ao adversário toda a largura do corpo, e ele se inspirava por essa advertência. – Covarde! – bradou Naphta, e com esse grito humano admitiu que era preciso maior coragem para atirar do que para servir de alvo. Levantou então a pistola de um modo que nada mais tinha em comum com um combate, e descarregou-a na própria cabeça. Que cena trágica, inesquecível! Enquanto os cumes jogavam bolas com o ruído seco da sua façanha medonha, Naphta cambaleou ou precipitou-se alguns passos para trás, arremessando as pernas para o alto. Deu bruscamente meia-volta à direita e caiu com o rosto na neve. Todos permaneceram imóveis durante um momento. Settembrini, depois de arrojar a pistola para longe de si, foi o primeiro a aproximar-se de Naphta. – Infelice! – exclamou. – Che cosa fai, per l’amor di Dio? Hans Castorp ajudou-o a virar o corpo. Via-se o buraco vermelho, enegrecido, ao lado da têmpora. Cobriram-lhe o rosto com o lenço de seda cuja ponta sobressaía do bolsinho do casaco de Naphta. O trovão Sete anos passou Hans Castorp com a gente ali de cima. Não é um número redondo ao gosto dos partidários do sistema decimal, é todavia um número bom, prático à sua maneira; um lapso de tempo com um cunho mítico e pitoresco, não há negá-lo, e mais satisfatório para a alma do que, por exemplo, uma árida meia dúzia. Comera ele em cada uma das sete mesas da sala de refeições, aproximadamente um ano em cada lugar. Por último achava-se à mesa dos “russos ordinários”, junto com dois armênios, dois fineses, um bucarense e um curdo. Achava-se ali, arvorando uma barbicha que deixara crescer nesse meio tempo, um cavanhaquezinho louro como o trigo, de forma indefinível, cuja existência devemos considerar como a expressão de certa indiferença filosófica quanto à sua apresentação. Temos até de ir mais longe, relacionando a idéia de uma tendência particular para descuidar-se de si próprio, com uma tendência análoga que o mundo exterior manifestava no que se referia a ele. As autoridades haviam cessado de inventar novas diversões para a sua pessoa. Verdade é que o conselheiro continuava a perguntar-lhe todas as manhãs se havia dormido bem. Mas, exceção feita dessa pergunta retórica, de caráter coletivo, só raras vezes lhe dirigia a palavra, e Adriática von Mylendonk – que na época de que tratamos andava com um terçol totalmente maduro – já não falava com ele nem sequer de vez em quando. Deixavam-no em paz, pouco mais ou menos como se faz com um aluno que goza do estado singularmente feliz de já não ser examinado nem ter necessidade de trabalhar, porque a “bomba” é um fato consumado e ninguém mais se preocupa com ele; um tipo orgiástico de liberdade – digamos isso de passagem, perguntando-nos se a liberdade pode jamais ter outra natureza que não precisamente esta. Fosse como fosse, Hans Castorp constituía um caso pelo qual as autoridades já não precisariam velar, visto ser certo que no seu peito nunca mais evoluiriam decisões indisciplinadas, subversivas. Era um paciente garantido, definitivo, que desde muito tempo cessara de saber para onde mais poderia ir e se tornara completamente incapaz de sequer ventilar a idéia do regresso à planície... Não se demonstrava um certo descuido com respeito à sua pessoa no simples fato de o terem transferido para a mesa dos “russos ordinários”? Com isso nada, absolutamente nada queremos dizer contra a chamada mesa dos “russos ordinários”. Não havia entre as sete mesas vantagens ou desvantagens manifestas. Era uma democracia de mesas de honra, para empregar uma metáfora audaciosa. A mesma comida superabundante era servida nessa mesa como em todas as demais. O próprio Radamanto jantava ali às vezes, conforme o turno, as manzorras gigantescas diante do seu prato, e os povos que em torno dela tomavam as refeições eram honrados membros da humanidade, se bem que não entendessem latim e não comessem com gestos excessivamente elegantes. O tempo – mas não aquele que marcam os relógios de estação, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, senão o indicado por relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o tempo que a relva leva para crescer, sem que nenhum olho o perceba, apesar de ela fazê-lo constantemente, o que um belo dia se torna um fato inegável; o tempo, uma linha composta de um sem-número de pontos sem extensão – o malogrado Naphta perguntaria provavelmente como coisas desprovidas de extensão conseguem produzir uma linha –, o tempo, à sua maneira silenciosa, imperceptível, secreta e contudo ativa, havia continuado a trazer consigo transformações. O pequeno Teddy, para citar apenas um exemplo, deixara um dia – o que, naturalmente, não significa um dia determinado, senão uma época cujo começo é vago – de ser pequeno. As senhoras já não podiam sentá-lo no colo, nas ocasiões em que se levantava, trocava o pijama por uma roupa esporte e descia para ir ter com elas. Insensivelmente mudara a situação; agora era ele quem as sentava no seu colo, e isso produzia a ambas as partes o mesmo prazer, ou talvez ainda mais. Tornara-se adolescente; não queremos dizer que tivesse desabrochado, mas pelo menos espigara depressa. Hans Castorp não o notara, porém agora notou-o. Nem o tempo nem o espigamento trouxeram proveito ao adolescente Teddy, que não era talhado para eles. A vida temporal não lhe fez bem. Aos vinte e um anos sucumbiu à enfermidade, para a qual se mostrara predisposto, e o seu quarto foi desinfetado. Contamos a sua história em voz calma, já que não houve grande diferença entre o novo estado e o antigo. Houve, entretanto, óbitos mais importantes, óbitos na planície que interessavam mais ao nosso herói ou, ao menos, o teriam feito em outras épocas. Pensamos no passamento recente do velho Cônsul Tienappel, tio-avô e pai de criação de Hans, de remota lembrança. Evitando cuidadosamente expor-se a condições atmosféricas pouco saudáveis, deixara ele a tio James a oportunidade de tornar-se ridículo. Mesmo assim não lograra esquivar-se indefinidamente à apoplexia, e a notícia do seu finamento, transmitida num telegrama lacônico, porém redigido em termos delicados e cautelosos – em consideração ao defunto antes do que ao destinatário da mensagem –, essa notícia subiu um belo dia até a excelente espreguiçadeira de Hans Castorp. Depois de recebê-la, o jovem comprou papel tarjado de preto e escreveu aos tios-primos que ele, órfão de pai e mãe, tinha de considerar-se órfão pela terceira vez e sentia-se ainda mais aflito porque as circunstâncias não lhe permitiam e até lhe vedavam estritamente interromper a sua estada nessas alturas para acompanhar o tio-avô à sua última morada. Falar em luto seria exagerar as coisas. Contudo, mostravam os olhos de Hans Castorp, naqueles dias, expressão mais pensativa do que em geral. Essa morte, cujo efeito sentimental em época alguma teria sido grande e pelos aventurosos anos de separação quase chegara a ser nulo, significava sem embargo a ruptura de mais um laço, de mais uma relação que o ligava à esfera lá de baixo e completava aquilo que Hans Castorp, com razão, chamava de liberdade. Com efeito, nessa fase final a que nos referimos, estava totalmente interrompido o contato entre ele e a planície. Não escrevia cartas nem as recebia. Já não mandava vir os Maria Mancini. Encontrara ali em cima uma marca que lhe agradava, e à qual demonstrava a mesma fidelidade que àquela amiga de tempos passados. Era um produto que teria ajudado um explorador polar a suportar as piores privações no gelo eterno. Dispondo dele, podia-se ficar estendido como na praia e agüentar tudo quanto sucedesse. Tratava-se de um charuto especialmente bem-acabado, de nome Rütlischwur, um pouco mais grosso do que o Maria, de cor cinzenta como a do camundongo, com um anel azulado em torno, e que tinha caráter muito dócil e suave; ao consumir-se, convertia-se numa cinza branca que guardava a forma originária, na qual se salientavam as nervuras do invólucro. Esse processo realizava-se com tamanha regularidade, que o fumante podia servir-se do charuto em lugar de uma ampulheta, o que Hans Castorp realmente fazia, em caso de necessidade, pois deixara de usar o relógio de bolso. Este já não trabalhava. Certo dia caíra da mesinha-decabeceira, e Hans Castorp não tratara de mandar consertá-lo, para que reassumisse aquela cadenciada marcha circular, pela mesma razão por que havia muito renunciara a recorrer à folhinha, quer arrancando diariamente a folha, quer se informando de antemão acerca de certos dias ou festas. Agia assim em prol da “liberdade”, em homenagem ao “passeio pela praia”, a esse “sempre” constante e imóvel, ao feitiço hermético para o qual o jovem arrebatado a essas alturas se mostrara predisposto e que fora a aventura fundamental do seu espírito, aquela em cujo curso se haviam desenrolado todas as aventuras alquimísticas dessa singela matéria. Assim o jovem deixou-se estar, e assim o ano completou mais uma vez o seu ciclo, em pleno verão, época da sua chegada; era a sétima vez, mas o nosso herói não se deu conta do fato. Foi quando estrondeou... Mas a reserva e o pudor impedem-nos de empregar termos exagerados ao contar o que então ressoou e sucedeu. Justamente nesse ponto não cabem nem bravatas nem fanfarrices. Abafemos a voz para comunicar que de fato estrondeou aquele trovão, de que todo mundo tem conhecimento, a ensurdecedora detonação da sinistra mistura de tédio e de irritação de há muito acumulados; um trovão histórico – seja dito com discreta reverência – que abalou os alicerces da terra, e, para nós, o trovão que fez explodir a montanha mágica e arremessou o nosso dorminhoco brutalmente diante das portas. Estupefato, o jovem se acha sentado na relva e esfrega os olhos, como faz quem se omitiu, em que pesem numerosas admoestações, de ler os jornais. Seu amigo e mentor do Mediterrâneo sempre procurara remediar esse mal e se esforçara por informar o filho enfermiço dos seus esforços pedagógicos em grandes linhas a respeito daquilo que acontecia lá embaixo. Mas encontrara ouvidos moucos por parte de um discípulo que, ao “reinar”, imaginava, na verdade, isto ou aquilo das sombras espirituais das coisas, mas não se preocupava com as próprias coisas, devido a uma tendência arrogante para tomar as sombras pelas coisas e para ver nestas apenas sombras. E não devemos censurá-lo severamente por causa disso, visto a relação entre sombras e coisas não estar definitivamente esclarecida. Outrora, o Sr. Settembrini enchia o ambiente de repentina clareza, sentava-se à beira da cama do jovem e empenhava-se em exercer sobre ele uma influência corretiva em assuntos da vida e da morte. Agora já não era assim. Agora era Hans Castorp quem sentava, com as mãos entre os joelhos, à beira da cama do humanista, no pequeno cubículo, ou ao pé do divã onde Settembrini repousava de dia, no simpático gabinete do sótão, com as cadeiras do carbonário e com a garrafa de água. Fazia companhia ao italiano e escutava cortesmente seus comentários sobre a situação mundial. Haviam-se tornado raras as ocasiões em que o Sr. Lodovico se achava de pé. Para a natureza sensível do humanista, o fim cruento de Naphta, essa façanha terrorista do disputante sagaz e desesperado, tinha sido um choque violento do qual não conseguia refazer-se. Desde então sentia-se muito fraco e decrépito. Sua colaboração na Patologia sociológica estava interrompida. O dicionário de todas as obras beletrísticas relativas ao sofrimento humano deixara de progredir, e aquela liga esperava em vão pelo respectivo tomo da sua enciclopédia. O Sr. Settembrini via-se forçado a limitar à palavra falada as suas contribuições para a organização do progresso, e precisamente para esse fim lhe ofereciam as visitas amistosas de Hans Castorp uma oportunidade de que, sem elas, teria sentido falta. Embora em voz débil, dizia muitas coisas formosas que lhe vinham do coração. Falava sobre o aperfeiçoamento social que a própria humanidade devia realizar. Seu discurso avançava como sobre pés de pomba, mas quando chegava a tratar de assuntos como o da união dos povos liberados em prol da felicidade geral, ressoava logo nas suas palavras, sem que ele mesmo o quisesse ou soubesse, o rumor de asas de águia. A causa disso era sem dúvida a política, a herança do avô, que, unindo-se à herança humanística do pai, formava na alma de Lodovico o ideal das belas-letras, exatamente como a humanidade e a política se uniam no ideal sublime da civilização, essa idéia mansa como as pombas e denodada como as águias, que aguardava o dia de tornar-se realidade, a manhã dos povos em que o princípio da reação caísse derrotado e se efetuasse a santa aliança da democracia burguesa... Contudo, havia nesse ponto algumas desarmonias. O Sr. Settembrini era humanitário, mas, ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, era quase explicitamente belicoso. Por ocasião do duelo com o sanguinário Naphta comportara-se humanamente; porém, em assuntos de maior importância, em que o espírito humano se aliava com entusiasmo à política, para gerar o ideal triunfante e dominador da civilização, e onde se glorificava o cidadão no altar da humanidade, tornava-se duvidoso saber se o Sr. Settembrini, objetivamente falando, desejava ou não evitar que sua mão derramasse sangue. E a situação íntima tinha por conseqüência que na sua bela alma o elemento do denodo aquilino se impusesse cada vez mais à brandura columbina. Freqüentemente, a sua atitude em face das grandes constelações do mundo era contraditória, acossada de escrúpulos e perturbada por embaraços. Recentemente, fazia apenas ano e meio ou dois anos, a cooperação diplomática do seu país com a Áustria, na questão da Albânia, enchera de desassossego as suas explanações; essa cooperação que o satisfazia por ser dirigida contra a Semi-Ásia antilatina, contra o cnute e contra Schlüsselburg, ao mesmo tempo o atormentava por ser a mésalliance com o inimigo hereditário, com o princípio da reação e do avassalamento dos povos. No outono passado, o grande empréstimo que a França fizera à Rússia para a construção de uma vasta rede ferroviária na Polônia despertara nele sentimentos igualmente heterogêneos; ora, o Sr. Settembrini pertencia ao partido francófilo da sua terra, o que não nos deve admirar se nos lembrarmos que o avô comparara os dias da Revolução de Julho aos da criação do universo; e, no entanto, o acordo entre a república iluminada e o bizantinismo cítico deixava-o com dúvidas morais e lhe oprimia o peito. Mas também essa angústia não tardava em converter-se em esperança e alegria que lhe aceleravam a respiração, sempre que se recordava do significado estratégico dessas vias férreas. Então teve lugar o atentado contra o príncipeherdeiro, que para todos, exceção feita de alguns dorminhocos alemães, constituía um sinal de tempestade, um aviso aos iniciados, entre os quais temos toda a razão de incluir o Sr. Settembrini. Hans Castorp, na verdade, viu-o horrorizar-se como indivíduo diante desse ato terrorista, mas observou como o peito do humanista vibrava com o pensamento de que se tratava de uma façanha libertadora, brotada do seio de uma nação e dirigida contra a cidadela que ele mais odiava, posto que, ao mesmo tempo, tivesse de considerar esse feito como fruto de atividades moscovitas, o que o inquietava, porém não impedia de qualificar de insulto a humanidade e de crime hediondo o ultimato que a monarquia, três semanas mais tarde, endereçou à Sérvia. Assim agia em face das conseqüências que previa como conhecedor do assunto, e com as quais se regozijava, a ponto de respirar mais depressa de tanta exaltação... Numa palavra, os sentimentos do Sr. Settembrini eram tão complexos quanto a fatalidade que ele via precipitar-se com imensa rapidez, e para a qual procurava por meio de palavras veladas preparar o seu discípulo, se bem que uma espécie de cortesia e de compaixão nacional o impedisse de falar sem rebuços a esse respeito. Nos dias das primeiras mobilizações e da primeira declaração de guerra adquirira o hábito de estender ambas as mãos ao visitante e de apertar as do nosso jovem simplório, como se lhe quisesse falar, senão ao cérebro, pelo menos ao coração. – Meu amigo! – dizia o italiano. – A pólvora e a imprensa, sim, é incontestável que foram inventadas por vocês. Mas se o senhor pensa que nós marcharemos contra a Revolução... Caro... Durante os dias de expectativa, os dias mais carregados de eletricidade, enquanto os nervos da Europa se achavam num verdadeiro leito de Procusto, Hans Castorp não foi ter com o Sr. Settembrini. Os jornais cheios de horrores chegavam agora diretamente da planície ao seu compartimento de sacada, empestando com o seu cheiro de enxofre a sala de refeições e mesmo os quartos dos doentes graves ou moribundos. Referimo-nos àqueles momentos em que o dorminhoco, sem saber o que lhe acontecera, se soerguia lentamente na relva, antes de sentar-se e de esfregar os olhos... Desenvolvamos essa imagem para analisar devidamente o que se passava no seu espírito. Encolheu-se, levantou-se e olhou em torno. Viu-se desencantado, redimido, livre – não pelo seu próprio esforço, como teve de confessar a si mesmo, envergonhado, senão expulso por forças elementares, exteriores, para as quais a libertação do nosso herói era um efeito completamente secundário. Mas, embora o seu pequeno destino se perdesse no destino geral, não se expressavam, contudo, nesse fato certa bondade e justiça que o miravam pessoalmente e portanto eram de origem divina? Se a vida uma vez mais acolhia o seu pecaminoso filho enfermiço, não podia fazê-lo por um preço barato, mas somente dessa forma grave e severa, impondo-lhe uma prova que para ele, o pecador, talvez não significasse a vida, mas justamente nesse caso extremo equivaleria a três salvas fúnebres. E assim Hans Castorp se pôs de joelhos, erguendo o rosto e as mãos ao céu, que estava sombrio, sulfurino, mas já não era o teto da gruta da montanha dos pecados. Foi nessa posição que o encontrou o Sr. Settembrini. É óbvio que falamos metaforicamente; pois, em realidade, o caráter reservado do nosso herói não permitia tal atitude teatral. Na fria realidade, o mentor encontrou-o ocupado a fazer as malas, porquanto Hans Castorp, desde o momento em que acordava, se via arrastado por uma torrente remoinhosa de partidas “em falso”, que o trovão abalador desencadeara no vale. A “pátria”, o Berghof, assemelhava-se a um formigueiro em pânico. De cinco mil pés de altura, seus habitantes precipitavam-se de cabeça para baixo em direção à planície, onde os aguardava a prova. Suspendiam-se nos estribos do trenzinho tomado de assalto, deixando atrás, se assim fosse necessário, as bagagens que em pilhas enfileiradas cobriam a plataforma da estação – a estação apinhada de gente, a cuja altura parecia chegar o bafo abrasador do incêndio da planície. E Hans precipitava-se tal qual os outros. No meio do tumulto abraçou-o Lodovico; abraçou-o literalmente, cingiu-o com os braços e beijou-lhe ambas as faces, à maneira meridional, mas também à maneira russa, o que, não obstante a emoção, não deixou de acanhar o nosso viajante “em falso”. Mas este quase perdeu a serenidade, quando, no último instante, o Sr. Settembrini o chamou pelo primeiro nome, a saber “Giovanni” e, abandonando a forma de tratamento habitualmente usada no Ocidente civilizado, serviu-se do “tu”. – E cosi in giù – disse – in giù finalmente! Addio, Giovanni mio! Eu teria preferido ver-te partir de outra forma. Mas vá lá que seja, uma vez que os deuses dispuseram assim e não de um modo diferente. Eu esperava despedir-me de ti, quando voltasses ao trabalho, e agora lutarás no meio da tua gente. Deus meu, é a ti que isso coube em sorte, e não ao nosso tenente. Como é estranho o jogo da vida!... Vai lutar valentemente, lá para onde te mandam os laços do sangue! Ninguém pode fazer mais, a esta hora. Mas perdoa-me se emprego o resto das minhas forças para concitar também o meu país à luta, ao lado daqueles que lhe indicam o espírito e o sagrado egoísmo. Addio! Hans Castorp enfiou a cabeça entre dez outras que enchiam o vão da janelinha. Abanou com a mão por cima delas. Também o Sr. Settembrini abanou com a direita, enquanto a ponta do dedo anular da esquerda tocava delicadamente o canto de um olho. Onde estamos? Que é isso? Aonde nos levou o sonho? Crepúsculo, chuva e barro, rubros clarões de fogo no céu turvo que sem cessar estruge atroadoramente; os úmidos ares invadidos e dilacerados por silvos agudos, por uivos raivosos que avançam como o cão dos infernos e terminam a sua órbita, entre estilhaços, jatos de terra, detonações e labaredas, por gemidos e por gritos, por clarinadas estridentes e pelo rufar de tambores, clamando depressa, cada vez mais depressa... Ali há um bosque do qual brotam enxames incolores, correndo, caindo, pulando. Acolá se estende uma cadeia de colinas diante do longínquo incêndio, cujas brasas às vezes se condensam em chamas flutuantes. Ao nosso redor espraiam-se campos aráveis, ondulosos, encharcados, revolvidos. Uma estrada rústica, barrenta, coberta de ramos quebrados alonga-se paralela ao bosque. Um atalho, sulcado e alagadiço, desvia-se dela e conduz em vasta curva rumo às colinas. Troncos de árvores erguem-se, nus e desgalhados, na chuva fria... Aí se vê um poste indicador. Não vale a pena consultá-lo. A penumbra velaria as inscrições, mesmo que da tabuleta não houvessem sido arrancadas lascas por um impacto direto. Leste ou oeste? É a planície, é a guerra. E nós somos tímidas sombras à beira do caminho, envergonhando-nos da segurança de sombras que gozamos, e não temos a menor intenção de nos entregar a bravatas e fanfarrices. Quem nos guiou até aqui foi o espírito da nossa história, para que possamos ver mais uma vez, antes de perdê-lo de vista, o rosto singelo de um dentre os camaradas cinzentos que ali correm e caem, impelidos pelos tambores, um rosto conhecido, o rosto do pecador ingênuo que acompanhamos pelo seu caminho durante tantos anos, e cuja voz tantas vezes ouvimos. Eles têm sido procurados, esses companheiros de armas, a fim de pôr o ponto final num combate que já se prolongou pelo dia inteiro e visa à reconquista das posições nas colinas e das aldeias em chamas, que se acham situadas atrás delas e dois dias antes haviam sido abandonadas ao inimigo. É um regimento de voluntários, composto de jovens, na maioria estudantes, com pouco tempo na frente de batalha. Foram avisados em plena noite, viajaram de trem até a madrugada e marcharam através da chuva até a tarde por caminhos péssimos, que nem eram caminhos. As estradas estavam atravancadas de veículos, de modo que tiveram de avançar por campos e pântanos, sete horas a fio, com o equipamento completo, e isso não foi absolutamente um passeio agradável, pois quem não quisesse perder as botas tinha de curvar-se quase a cada passo, para enfiar o dedo no puxador e livrar assim o pé do solo encharcado. Assim gastaram mais de uma hora para atravessar um pequeno prado. Finalmente alcançaram a meta; seu sangue jovem tem suportado todas as fadigas; os corpos, excitados e já exaustos, mas ainda mantidos num estado de tensão pelas mais íntimas reservas vitais, não se preocupam com a alimentação nem com o sono de que foram privados. Os rostos molhados, salpicados de lodo, emoldurados pela correia, ardem sob os capacetes revestidos de pano cinzento e revirados pela corrida. Estão inflamados pelo esforço e também pelo aspecto das baixas que sofreram durante a marcha através do bosque alagado. O inimigo, sabendo que eles estão próximos, lançou sobre o seu caminho uma barragem de Schrapnells e de granadas de grosso calibre; já no meio do bosque, estes se estilhaçaram, irrompendo nos seus grupos, e agora açoitam a vasta campina arada, uivando, vomitando chamas, arrojando terras para todos os lados. E eles devem passar por isso, esses três mil rapazotes febris; são os reforços que têm de decidir, com suas baionetas, o assalto às trincheiras cavadas diante e atrás da cadeia de colinas e às aldeias incendiadas; cabe-lhes levar o ataque até determinado ponto que se encontra assinalado na ordem que seu chefe traz no bolso. Há três mil deles, para que sobrem dois mil, quando chegarem às colinas e às aldeias, e aí está a explicação de serem em tão grande número. Formam um só corpo, composto de tal maneira que mesmo depois de graves perdas possam ainda agir, vencer e saudar o triunfo com um hurra de milhares de vozes, sem se importar com aqueles que se houverem desagregado, saindo de forma. Muitos já fizeram isso, não agüentando a marcha forçada para a qual eram demasiado jovens e fracos. Empalideciam cada vez mais; cambaleavam; cerrando os dentes, exigiam de si energias de homens, e todavia ficavam para trás. Arrastavam-se ainda por algum tempo ao lado da coluna em marcha; pelotão após pelotão ultrapassava-os, e por fim desaparecia, ficando estendidos onde não era bom deitar-se. Depois, veio o bosque despedaçado. Mesmo assim há ainda muitos que dele saem enxameando; três mil podem suportar uma boa sangria e continuam sendo uma multidão. Já estão inundando a terra açoitada pela chuva, a estrada, o atalho, os campos lamacentos. Nós, as sombras observadoras, à beira do caminho, achamo-nos entre eles. Na orla do bosque todos calam a baioneta com manobras destras. Os clarins clamam com insistência, os tambores rufam, ribombam num baixo profundo, e os homens, soltando gritos roucos, precipitam-se para a frente, o melhor que podem, como num pesadelo, com os pés chumbados pelos torrões que se grudam nas toscas botas. Atiram-se de bruços, para esquivar-se aos projéteis que se aproximam ululando. Novamente se levantam, avançam às pressas, encorajando-se com estridentes brados juvenis, cada vez que escapam ilesos. São alvejados, caem, agitando os braços, com um tiro na testa, no coração, nas entranhas. Jazem, com as faces na lama, imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no barro, as costas despegadas da mochila, e agarram o ar com ambas as mãos. Mas o bosque envia outros que se atiram, que saltam, gritam ou avançam mudos, a passo trôpego, por entre os feridos. Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baionetas, com as capas e as botas enlameadas! Sonhando de modo humanístico-estético, poderíamos imaginá-la num quadro diferente. Poderíamos ter a seguinte visão: esses jovens montando e banhando cavalos numa enseada do mar, caminhando pela praia em companhia da namorada, achegando os lábios à orelha da meiga noiva, ou talvez ensinando uns aos outros, numa amizade feliz, o tiro de arco. Em lugar disso, jazem ali, com o nariz no barro bombardeado. Que façam isso com alegria, ainda que transidos de medo e cheios de saudades da mãe, é assunto à parte, que nos orgulha e envergonha, mas nunca nos deveria induzir a colocá-los nesta situação. Eis aí o nosso amigo, Hans Castorp! Já de longe o reconhecemos pela barbicha que deixou crescer, enquanto comia à mesa dos “russos ordinários”. Arde e está ensopado como os demais. Corre com os pés pesados, agarrando o fuzil com o braço caído. Vejam só: pisou na mão de um camarada que se desagregou; com a bota ferrada afunda essa mão no solo lamacento, salpicado de galhos lascados. E todavia é ele! Mas como? Ele canta? Canta, assim como se faz sem saber, de si para si, numa excitação surda, vazia de pensamentos, aproveitando a respiração ofegante para cantarolar a meia voz: “Talhei em sua casca Mil coisas que senti...” Caiu. Não, atirou-se ao chão, porque um cão dos infernos chega uivando, um enorme obus, um asqueroso pão de açúcar, saído das trevas. Acha-se estendido, comprimindo o rosto no barro frio com as pernas escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão. O produto de uma ciência barbarizada abate-se como o Diabo em pessoa a trinta passos dele, penetrando obliquamente no solo, onde explode com espantosa violência e joga à altura de uma casa um jorro de terra, fogo, chumbo, ferro e de humanidade despedaçada; pois nesse lugar havia dois jovens estendidos, eram amigos que se haviam atirado um ao lado do outro, no momento de perigo, e agora estão mesclados, sumidos. Ó vergonha da nossa segurança de sombras! Vamos embora! Não desejamos narrar isso. O nosso conhecido recebeu algum ferimento? Durante um momento, ele mesmo acreditou que sim. Um grande torrão lhe batera na canela. Aquilo doía, mas não era sério! Ele se põe em marcha; coxeando, prossegue a cambalear para a frente, com os pés pesados de barro. E canta inconscientemente: “Os galhos sussurra-avam, Falando para mim...” E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo, o perdemos de vista. Felicidade, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da vida! Tua história terminou: contamo-la até o fim. Ela não foi nem breve nem longa; é uma história hermética. Contamo-la por amor a ela e não a ti, pois tu eras simples. Mas, afinal, era tua essa história, e como ela te coube em sorte, deves ter certas qualidades. Não dissimulamos a simpatia pedagógica que, ao narrá-la, começamos a nutrir por ti, e que seria capaz de nos induzir a tocar delicadamente o canto de um olho com a ponta do dedo, ao pensar que nunca mais tornaremos a te ver nem ouvir. Adeus – para a vida ou para a morte! Tens poucas probabilidades a teu favor. O macabro baile ao qual te arrastaram durará ainda vários anos malignos. Não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar indecisa essa questão. Certas aventuras da carne e do espírito, sublimando a tua singeleza, fizeram teu espírito sobreviver ao que tua carne dificilmente poderá resistir. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor? Finis operis Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e— book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. 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